INCLUSÃO UNIVERSITÁRIA: PEQUENAS REFLEXÕES A PARTIR DE UMA GRANDE EXPERIMENTAÇÃO SOCIAL Rabah Benakouche (*) Quem está e quem poderia estar na Universidade? Questão que diz respeito às relações da Universidade com sua população estudantil; questão que pode ser “lida” sob a ótica da inclusão ou exclusão social; quando vista num enfoque ou outro conduz a adotar perspectivas de análises e de ação distintas; questão formulada engloba, epistemologicamente falando, elementos da resposta pesquisada. No “approach” da exclusão, se analisa causas e efeitos do problema. Do ponto de vista econômico, desvenda-se ligações existentes entre formas de exclusão (desemprego, baixa renda...) e modalidades de funcionamento da economia (exigência de qualificação, concentração de renda...). Do ponto de vista psico - sociológico, detecta-se disfunções sociais e desvios comportamentais dos sujeitos. Ambas perspectivas analíticas procuram soluções através do Estado (via política social) objetivando redução das desigualdades sociais. Tal é a visão clássica e ortodoxa sobre a qual se fundamenta a existência de política social (1). Com efeito, a pesquisa social consegue, na melhor das hipóteses, “ler” o problema. Só que a “leitura” é, por definição, de natureza passiva, até porque entender não é resolver, conhecimento não é ação; ou seja, a lógica de conhecimento distancia-se da lógica de ação. Em termos operacionais, nos efeitos coletareis da exclusão (desemprego, pobreza...) não estão inscritos seus remédios e suas formas de equacionamento. Análise é importante, mas é insuficiente! Já a inclusão social é um enfoque que se situa num outro espaço lógico; é uma categoria política, embebida de utopia (no sentido de Manheim) na medida em que se visa a transformação social; é uma agenda de ação e de mobilização social; é um programa de ação com objetivos políticos determinados, que consistem, em última análise, a estender a cidadania para todos os membros da sociedade. Significa dizer que uma mudança conceitual nunca é apenas retórica; ela afeta a definição e o equacionamento (científicos e não científicos) do problema enfocado. O enfoque da exclusão (2) consiste, em última análise, a desvendar a existência de desigualdades sociais e, portanto, de oportunidades. As desigualdades de oportunidade de acesso ao ensino superior, por exemplo, devem-se principalmente às desigualdades sociais. Se assim for, não é exagerado dizer que a Escola não age natural e fortemente em prol dos menos favorecidos socialmente. Com efeito, os especialistas em educação (3) já demonstraram de modo convincente que as desigualdades sociais reproduzem e ampliam as desigualdades escolares, que, por sua vez, geram desigualdades de oportunidade. 1 2 Ver X Greffe, Politique Sociale, PUF, 1980, cap. I Faria, W. Social exclusion in Latin America. An annotated bibliography. Genève, IIES, Discussion Papers Series no.70, 1994 3 Pensa-se particularmente às pesquisas de Althusser Louis (Appareils Idéologiques d´État, in La Pensée, 1970), Bourdieu-Passesson (Reproduction, ed. Minuit, 1970) e Baudelot-Establet (l´Ecole Capitaliste en France, Maspero, 1978). Por outro lado, deve-se rememorar que a História não está escrita (4), mas é produzida pelos homens que a vivem. Aliás, dizia o filósofo alemão, no século passado, que a história social é antes de tudo, o resultado imediato das lutas sociais travadas pelos homens entre si (5). Se este princípio de regulação social continua sendo efetivo, então o Estado tem e deveria ter um papel crucial no processo social. Do ponto de vista estritamente econômico, considera-se (e isto desde Adam Smith) que a coesão social é determinada, em última instância, pelas leis da economia, do mercado. No processo econômico, o Estado tem tido e ainda tem um papel de correção das distorções ou imperfeições do mercado. Este papel tem sido atribuído às políticas sociais cujas funções consistem em corrigir as distorções sociais gritantes, que atrapalham o funcionamento do mercado dos pontos de vista econômico (alocação de recursos e determinação dos preços) e social (distribuição de justiça social). Mas, as ações de política social não têm por objeto eliminar as desigualdades sociais, mas sim a de diminuir distorções sociais que afetam negativamente a economia. Por isso, considera-se – depois de Marx e Keynes – que o Estado age maciçamente em prol do capital, mas sem ignorar o social (6). Equilíbrio destas ações de políticas públicas depende, em última análise, da conjuntura e das forças sociais em presença (7). Mas, o volume de recursos financeiros mobilizáveis por ações do Estado tem limites, em especial o de não modificar substancialmente a estrutura social. Significa dizer que os condicionantes econômicos têm um peso enorme na manutenção da estrutura social. Isto aponta os limites da mobilidade social e os dados disponíveis sustentam fortemente esse tipo de análise (8). Apesar disto, vale ressaltar que o sistema econômico capitalista não é determinista, nem tem como ser. Ele condiciona fortemente as ações dos agentes, mas não determina todas suas ações. Assim sendo, o sistema propõe e os atores sociais dispõem (9). Traduzindo: existem alternativas no sistema que podem ser aproveitadas pelo Estado nas suas práticas inclusivas, quer seja em termos de facilitação de acesso a educação, quer seja em termos de criação de oportunidade de emprego e renda. Essas duas opções são integráveis numa única perspectiva, a da educação profissionalizante. FORMAÇÃO PROFISSIONALIZANTE A falta de educação, ou pior sua inexistência, implica exclusão do emprego bem remunerado. Logo, na falta de competência profissional reside a principal causa da pobreza monetária. Cria-se assim um “círculo vicioso”: o pobre é pobre porque tem baixa qualificação profissional e, portanto, é excluído do emprego formal, da renda e, por extensão, da escola. Em termos de mercado de trabalho, a inadequação entre empregos ofertados e as qualificações exigidas pelo mercado explica fortemente as causas do desemprego, subemprego, emprego informal. 4 Ibnu Khaldun, na sua “Mukadema” (séc. XVI), criticava a visão difusa do “Maktub” no oriente. No mesmo sentido, ver E.Said, Orientalismo, Cia de Letras, 1994 5 Bela análise de Marx no seu 18 Brumario. 6 Ver análises e críticas das visões neoclássicas e keynesianas em X. Greffe, Les politiques públiques, Ed. Economica, 1978, cap. II e III. 7 Neste ponto, pensa-se às analises de N. Poulantzas (Classes sociais no capitalismo de hoje, Zahar, 1980) 8 Brilhante análise teórica e quantitativa de Daniel Berteaux, Destinos Pessoais e estrutura de classe, Ed. Zahar, 1979 9 Duru-Bellat Marie, Les Inégalités sociales à l'école : genèse et mythes Paris : PUF, 2002, (Collection Éducation et formation) Nesse sentido, programas educacionais e de formação profissionalizante poderão servir de alavanca de políticas de inclusão social e, portanto, de redução de desigualdades sociais. Esses programas devem fornecer não apenas educação gratuita e de qualidade, mas devem ser sustentados por mecanismos de inclusão profissional. A formação profissional constitui um elemento importante de mobilidade social, uma condição necessária, mas não suficiente. Se assim for, precisa-se de uma inserção no mercado de trabalho para concretizar esta ascensão social. Esta se traduz por emprego e renda e, portanto, por um posicionamento no campo social. Disto conclui-se que, a disponibilização do ensino gratuito e de qualidade é uma condição necessária, mas não suficiente para efetivar a inclusão social. Com efeito, o “excluído” pode até ter aptidões para acompanhar e ter sucesso no ensino dispensado, mas se ele não tiver determinadas pré-condições (recursos de subsistência e para adquirir livros) do aprendizado, ele não vencerá as barreiras sociais e escolares (bloqueios de aprendizado e meios de subsistência) postas pela sociedade. Significa dizer que, a inclusão social viabiliza-se através do binômio: inclusão universitária / inclusão profissional. Nesse espírito, torna-se absolutamente concebível que as ações do Estado na área de educação possam ser, entre outras coisas, as de inclusão social. Vale dizer que o Estado passa a criar condições materiais e institucionais que permitam garantir aos excluídos sociais, em especial os pobres, acesso à educação superior. Tal é o ponto de partida que norteou a Projeto Universidade Zona Leste, que nós tivemos a satisfação em coordenar. A EXPERIÊNCIA DA ZONA LESTE A prática da inclusão social na Universidade tem especiais vantagens pouco perceptíveis, entre as quais podem ser citadas as seguintes (10): Presença física representativa dos excluídos na Universidade implicará em modificação da composição social da universidade e, portanto, do seu papel social e político. Esta nova composição social redireciona o formato organizacional da instituição bem como sua forma de ensino; A inclusão social conduz invariavelmente à introdução de novas demandas sociais na Universidade, que acabarão resultando na produção de “outros olhares” sobre as instâncias sociais e políticas da sociedade. Determinados temas de pesquisas serão priorizados e, portanto, haverá uma reorientação de energia intelectual para questões sociais até então ignoradas; Inclusão social implicará também na democratização social da Universidade devido, entre outros, à presença dos excluídos e, portanto, à tomada em 10 R.Benakouche, Análise da demanda educacional na Zona Leste de São Paulo, Doc. Mimeo, 2002 consideração de suas demandas, em especial das análises de suas necessidades; Inclusão social permitirá o reconhecimento social e institucional das competências (para não dizer saberes) dos excluídos sociais. Isto já é reconhecido pela LDB, que admite a possibilidade de revalidação deste tipo de competências nos processos avaliativos e seletivos. Esses princípios básicos poderão gerar, se praticados, uma Universidade socialmente mais justa, mais responsável socialmente e mais democrática. Tal é o espírito que presidiu o Projeto da Universidade Zona Leste, como é já chamada na imprensa. Para pensar o Projeto, partimos de três pontos básicos: a) População da Região é estimada em mais de 8,4 milhões de habitantes. Tem 35% da população de São Paulo mas tem apenas um IDH de 0.4 (contra 0.8 para SP). Essas características permitem sustentar que a IES a ser projetada deve atender preferencialmente as classes C e D; b) Mercado de trabalho da Região abarca 15% das empresas paulistas e representa 35% da PEA de SP; características que exigem uma IES profissionalizante; c) Ensino da região pode ser representado assim: 121 mil concluintes; o ensino médio é essencialmente estatal (74% do total das vagas) e o superior é essencialmente dominado pelo setor privado (95% das vagas) voltado predominante para a área das humanidades (72% das vagas). Decorre-se daí a necessidade de implementar uma IES voltada para as áreas tecnológica e de saúde. Para se ter uma IES capaz de atender as classes C e D, uma IES profissionalizante e voltada para as áreas de tecnologia e saúde, faz-se necessário construir um ente diferenciado e inovador. Com efeito, passamos a adotar as seguintes características: Ente misto, articulando os setores público e privado, do ponto de vista da sua personalidade jurídica, acoplada a um sistema de gestão compartilhado também entre o público e o privado; Ingresso diferenciado: pensou-se nas diversos modalidades e procedimentos facilitadores de ingresso dos excluídos sociais; Pedagogia flexível baseada nas passarelas entre e intracursos; pedagogia baseada também sobre uma estrutura de um Domínio Conexo, Domínio comum da área de conhecimento (disciplinas comuns a todos cursos da área); Disciplinas especificas (as da especialidade) e disciplinas livres (para permitir ao aluno aumentar sua capacidade vôo); Organização enxuta, sob o olhar vigilante do Conselho dos curadores; Corpo docente diferenciado, permitindo acesso de profissionais mais voltados ao mercado; Sistema de gestão e de financiamento compartilhados entre setores público e privado; Sistema de Gestão baseado fundamentalmente sobre sistema de custos por curso; Estrutura de Ensino permitindo a mescla do ensino presencial e do EAD. . CONCLUSÕES Usar o conceito de inclusão é pensar novo; é sair do debate tradicional sobre causas da exclusão e da probreza; é não atribuir capacidade explicativa globalizante às variáveis de renda, raça, gênero. Numa palavra, afastar-se da “economia da pobreza”. Pois, dois séculos atrás, A.Smith já centrava a questão da exclusão às necessidades e definia o “minimum vital” necessário ao ser humano, para o qual Marx acrescentou a “dimensão histórica”. Desde então, os economistas aperfeiçoaram suas técnicas de mensuração da pobreza absoluta e relativa. Sen, prêmio Nobel de Economia, deu-se conta da “pobreza da economia” e rejeitou esse enfoque por considerar que no “excluído” existe “a capacidade de realizarse” (“capability to function”) (11). Segundo este conceito, o indivíduo tem uma variedade de funções interconectadas. Algumas são básicas (comer, vestir...) e outras são complexas (felicidade, auto-estima, laços comunitários). No exercício de suas funções, o indivíduo opta pelo tipo de vida que ele preza para se “valorizar”. A gama de escolhas pode ser considerada um indicador de liberdade que o indivíduo dispõe para realizar seu bem estar, otimizando sua função utilidade. Assim sendo, os governantes deveriam descobrir os valores que sustentam esta gama de escolhas e lhes dar os devidos pesos, realizando a inclusão social. Seguindo este raciocínio, poder-se-á dizer que a inclusão social via universidade pressupõe reconhecimento de competências do excluído, sistema de ensino diferenciado, pedagogia apropriada e demais soluções correlatas. Todos esses mecanismos permitem construir, na melhor das hipóteses, um sistema de ensino compatível com as demandas sociais e educacionais do excluído. No entanto, essas soluções não serão suficientes se elas não forem acompanhadas da inserção profissional do excluído social e (embora) incluído universitário; processo de inserção é factível e complexo, razão pela qual não será descrito aqui e agora. Inserção profissional é hoje um problema dificílimo para o estudante em geral e mais ainda para o excluído social. Com efeito, quem - excluído ou não - passe pela universidade não tem necessariamente garantido seu ingresso no mercado de trabalho. Quer dizer é um “não incluso”. Pior ainda: hoje, a Economia desempenha-se de modo “não incluso” isto porque o processo de globalização é predominantemente excludente de países (em especial os do Sul) e dentro dos países, de regiões, setores e classes econômicas não competitivas (12). Acrescente a isso que o ingresso maciço de novas tecnologias nos serviços e na produção gera poucos empregos e os empregos criados exigem novas competências não ensinadas em universidades. Numa palavra, hoje, a “não inclusão” é uma regra de funcionamento da Economia. Por isso, a inclusão não está inscrita nem nos programas de ação das universidades, nem dos da Economia. Inclusão pressupõe criação de mecanismos originais de ensino e de oportunidades e renda. 11 12 A.Sen, Desenvolvimento e Libertadade, Ed. Cia de Letras, 2001 R. Benakouche, Globalização ou pax amarecina? (in) Comunicação e Política, 1999/1 • Rabah Benakouche, “Docteur d´Etat” em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris e Doutor em Engenharia Industrial pela Ecole Centrale de Paris; Autor de vários livros e Professor da UFPR (licenciado).