Competência por Prerrogativa da Função

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N º. 18 – 2012 – Salvador – Bahia – Brasil
A COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Rômulo de Andrade Moreira
Procurador de Justiça na Bahia1
1) Introdução
Um dos critérios determinadores da competência estabelecidos em nosso Código de
Processo Penal é exatamente o da prerrogativa de função, conforme está estabelecido nos seus
arts. 69, VII, 84, 85, 86 e 87. É a chamada competência originária ratione personae.
Evidentemente que estas disposições contidas no código processual têm que ser cotejadas
com as normas constitucionais (seja pela Constituição Federal, seja pelas Constituições dos
Estados) e pela jurisprudência, especialmente a do Supremo Tribunal Federal.
1
Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das
Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade
Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito
Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pósgraduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo
pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da
Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto
Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento
Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso
público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pósgraduação da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm, do Curso IELF, da Universidade Jorge Amado e
da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Autor das obras “Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei
Maria da Penha” (em co-autoria) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2008, além de organizador e
coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante
em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.
1
Desde logo, observa-se que a competência por prerrogativa de função é estabelecida, não
em razão da pessoa, mas em virtude do cargo ou da função2 que ela exerce, razão pela qual não
fere qualquer princípio constitucional, como o da igualdade (art. 5º., caput) ou o que proíbe os
juízos ou tribunais de exceção (art. 5º., XXXVII). Aqui, ninguém é julgado em razão do que é,
mas tendo em vista a função que exerce na sociedade. Como diz Tourinho Filho, enquanto “o
privilégio decorre de benefício à pessoa, a prerrogativa envolve a função. Quando a
Constituição proíbe o ‘foro privilegiado’, ela está vedando o privilégio em razão das qualidades
pessoais, atributos de nascimento... Não é pelo fato de alguém ser filho ou neto de Barão que
deva ser julgado por um juízo especial, como acontece na Espanha, em que se leva em conta,
muitas vezes, a posição social do agente.”3 Efetivamente, a Constituição espanhola estabelece
expressamente que “la persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad.” (art. 563).
Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Leveve explicam que “cuando esas leyes o
esos enjuiciamentos se instauran no en atención a la persona en si, sino al cargo o función que
desempene, pueden satisfacer una doble finalidad de justicia: poner a los enjuiciables
amparados por el privilegio a cubierto de persecuciones deducidas a la ligera o impulsadas por
móviles bastardos, y, a la par, rodear de especiales garantias su juzgamiento, para protegerlo
contra las presiones que los supuestos responsables pudiesen ejercer sobre los órganos
jurisdiccionales ordinarios. No se trata, pues, de un privilegio odioso, sino de una elemental
precaución para amparar a un tiempo al justiciable y la justicia: si en manos de cualquiera
estuviese llevar las más altas magistraturas, sin cortapisa alguna, ante los peldaños inferiores de
la organización judicial, colocándolas, de momento al menos, en una situación desairada y
difícil, bien cabe imaginar el partido que de esa facilidad excesiva sacarían las malas
pasiones.”4
No julgamento do Habeas Corpus nº. 91437 o Supremo Tribunal Federal lembrou a lição
do Ministro Victor Nunes Leal de que “a jurisdição especial, como prerrogativa de certas
funções públicas, é realmente instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no
interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com alto grau de independência
2
Sobre a distinção entre função, cargo e emprego público conferir Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito
Administrativo, São Paulo: Atlas, 14a. ed., 2001, pp. 437 a 440.
3
Processo Penal, Vol. II, Saraiva: São Paulo, 24a. ed., 2002, p. 126.
4
Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Editorial Guillermo Kraft Ltda., 1945, pp. 222/223.
2
que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa
imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção
para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja
à eventual influência do acusado seja às influências que atuarem contra ele. A presumida
independência do tribunal de superior hierarquia é, pois uma garantia bilateral – garantia
contra e a favor do acusado”.
Também no julgamento da Questão de Ordem levantada no Inquérito nº. 2.010-SP, o
Ministro Marco Aurélio salientou que “a prerrogativa de foro não visa beneficiar o cidadão, mas
proteger o cargo ocupado.”
Também o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de afirmar que “o foro
especial por prerrogativa funcional não é privilégio pessoal do seu detentor, mas garantia
necessária ao pleno exercício de funções públicas, típicas do Estado Democrático de Direito: é
técnica de proteção da pessoa que o detém, em face de dispositivo da Carta Magna, significando
que o titular se submete a investigação, processo e julgamento por órgão judicial previamente
designado, não se confundindo, de forma alguma, com a idéia de impunidade do agente.” (STJ –
HC 99.773/RJ – 5ª. Turma - Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho).
O problema é que no Brasil o número de julgamentos proferidos pelos nossos Tribunais
Superiores é muito pouco, o que gera uma sensação de impunidade (perfeitamente justificável)
quando se trata de crimes cujos acusados são ocupantes de cargos do alto escalão da República.
Por exemplo, no Supremo Tribunal Federal, dos 130 processos contra políticos e altas
autoridades que tramitaram na Corte desde 1988 até 2007, ocorreram apenas seis julgamentos.
Todos foram absolvidos. E mais: 46 processos (35,38%) sequer foram analisados (foram
remetidos para instância inferior de julgamento, por término do mandato do réu). No Superior
Tribunal de Justiça, a situação não é muito diferente. Das 483 ações penais desde1989 (ano de
criação do Tribunal), 40,79% não deram em nada. Foram devolvidas para a primeira instância ou
foi decretada a extinção da punibilidade. Apenas 16 processos tiveram sentença declarada: 11
foram absolvidos e 5 condenados. Em resumo, só cerca de 1% das autoridades acaba de fato
sendo punida.5
5
Segundo levantamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, atualizado em 4 de julho de 2007, mostra
que cinqüenta Ações Penais (APs) estão sendo analisadas atualmente pela Corte, 48% delas iniciaram a tramitação
há menos de seis meses e apenas 4% estão tramitando há mais de quatro anos. De 1988 até 2001, das APs autuadas,
3,85% resultaram em condenação.A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie, apresentou
3
Eis os dados sobre processos contra autoridades no Superior Tribunal de Justiça:
E os casos no Supremo Tribunal Federal:
esses números hoje, em seu gabinete, a uma comitiva de senadores da Comissão de Constituição e Justiça, para
demonstrar que o STF tem respondido com presteza à demanda de ações penais. Os senadores Ideli Salvati, Pedro
Simon, Jéferson Peres, Romeu Tuma e Mozarildo Cavalcante estiveram com a ministra para receber as sugestões do
Judiciário sobre projetos em tramitação no Senado, relacionados à legislação processual penal brasileira.Segundo os
dados apresentados pela ministra aos parlamentares, das APs distribuídas desde 1988 até 2001, metade acabou
arquivada, seja por falta de justa causa (7,69%) ou por extinção de punibilidade, como a prescrição do crime
(42,31%). Outras 46,15% não eram de competência do STF. E 3,85% resultaram em condenação. As condenações
foram com base na Ação Penal 307, que puniu Paulo César Cavalcanti Farias – o PC da era Collor – com uma pena
de 7 anos em regime semi-aberto; Rosinete Silva de Carvalho Melamias foi condenada a 2 anos e 4 meses em regime
aberto; Jorge Waldério Tenório Bandeira de Melo a 1 ano e 2 meses em regime aberto; e Severino Nunes de
Oliveira à pena de 1 ano.Em dezembro de 2001, com a aprovação da Emenda Constitucional 35, o STF passou a não
precisar mais de autorização da Câmara ou do Senado para dar andamento às Ações Penais contra parlamentares, o
que deu maior agilidade à tramitação desses processos. Em 2002, tramitavam no Supremo Tribunal Federal 13 Ações
Penais; em 2003, já eram 30, e até o dia 4 de julho deste ano, 50 ações penais estavam em andamento na Corte.
Também em relação aos Inquéritos, o tempo de tramitação no STF tem sido encurtado. Os dados do Sistema
Informatizado do Tribunal indicam que 48,39% dos 186 inquéritos que transitam na Corte, até a atualização em 6 de
julho deste ano, deram entrada há menos de seis meses e apenas 1,08% deles estão há mais de 10 anos no STF.
Fonte: STF.
4
Fonte: Blog do jornalista Fernando Rodrigues (06/07/2007).6
Pesquisa realizada pela Assessoria de Gestão Estratégica do Supremo Tribunal Federal
revelou que de fevereiro de 2002 a dezembro de 2008, 172 inquéritos foram reautuados como
ação penal. Conforme os dados divulgados, 165 pessoas estão sendo processadas criminalmente
no Supremo e 339 investigadas. Das 102 ações penais e 265 inquéritos que tramitam atualmente
na Corte, 79 inquéritos e 13 ações penais correm em segredo de justiça. Desde 2002, 9 ações
penais foram julgadas improcedentes. O Supremo registrou 43 inquéritos com denúncia recebida,
inclusive em parte, e 46 inquéritos com denúncia rejeitada. Fonte: STF.
Também segundo dados do Supremo Tribunal Federal, Deputados, Senadores, Ministros
de Estado são algumas das autoridades com prerrogativa de foro que respondem aos 378
inquéritos e ações penais que tramitam no Supremo Tribunal Federal. Desse total, 275 são
inquéritos e 103 são ações penais, em que políticos respondem como réus e aguardam um
veredicto final da Corte sobre culpabilidade ou inocência em relação à denúncia. Entre as
acusações, há casos de desvio de dinheiro público, crimes de responsabilidade, crimes contra o
Sistema Financeiro Nacional e fraude em licitação. O levantamento com dados do Portal de
Informações Gerenciais do STF, no entanto, não contempla, em suas estatísticas, as Petições que
tramitam na Corte e que pedem investigação de autoridades. Isso porque as Petições podem
versar sobre matérias de outros ramos do Direito, que não a área penal e autoridades com foro
privilegiado, o que inviabiliza uma totalização fiel das informações. Entre as ações penais em
curso no STF, a mais célebre é a AP 470, denúncia conhecida como “esquema do Mensalão”, em
que parlamentares foram acusados pelo Ministério Público Federal (MPF) de receber dinheiro em
troca de apoio político para o governo. Em agosto de 2007, após de cinco dias que somaram 30
horas de julgamento, o STF recebeu a denúncia contra os 40 acusados. Desses, 39 continuam
6
Segundo o site www.globo.com.br (julho de 2007), “um em cada seis senadores responde por crime em inquéritos
ou ações penais em andamento no STF, único tribunal no qual senadores e deputados federais podem ser
processados após a diplomação. Isso significa que, 14 dos 80 senadores em exercício (17,5%) são suspeitos de
crimes que vão de calúnia a fraudes na administração pública. Na véspera da posse dos parlamentares, um em cada
sete deputados federais eleitos já respondia a processo. Ao todo, os 14 senadores respondem a 25 processos no
Supremo. Há no STF ao menos outros 127 processos contra mais 29 senadores. Mas estes serão arquivados porque
o crime em questão prescreveu ou em razão de sentença que absolveu o parlamentar. Os tipos de crime mais
recorrentes dentre os processos que atualmente tramitam no STF contra senadores são aqueles ligados à
administração pública - 11 dos 25 processos localizados. As acusações são de desvio de verbas, peculato
(apropriação de dinheiro público por parte de servidor público), irregularidades em licitações e corrupção. Outra
acusação comum (sete processos) é a de crime contra a ordem tributária e o sistema financeiro: falta de
recolhimento de impostos, apropriação indébita e gestão fraudulenta de instituição financeira. Cinco acusações são
de crimes contra a pessoa, crimes contra a honra e crimes eleitorais. Em dois processos, a acusação não pôde ser
identificada porque os casos estão sob segredo de Justiça.”
5
respondendo como réus perante a Corte. Eles já foram interrogados e juízes federais designados
cumprem agora a etapa de oitiva de testemunhas. O ex-secretário-geral do Partido dos
Trabalhadores (PT) Sílvio José Pereira, que respondia por formação de quadrilha, concordou em
cumprir pena alternativa e foi excluído da ação. O processo conta atualmente com 19 mil folhas e
170 apensos e está totalmente digitalizado. Para agilizar a tramitação desse tipo de denúncia e dos
demais processos criminais dentro do STF, foi criado em novembro de 2008, o Núcleo de Apoio
ao Processamento de Ações Penais Originárias do Supremo. Entre as atribuições do núcleo está
“informar periodicamente ao relator, mediante controles estatísticos, as pendências de diligências
sob a responsabilidade do núcleo” e “controlar os prazos de devolução dos autos emprestados”.
Os dados sobre as 103 ações penais em andamento no STF em 2009, somados ao levantamento
realizado pelo STF em 2007, mostram o aumento crescente do número desse tipo de processo na
Corte. Em 2002, tramitavam no Supremo 13 Ações Penais; em 2003, já eram 30, e, até julho
2007, 50 ações penais estavam em andamento na Corte. Hoje esse número já dobrou. Do total de
Ações Penais analisadas desde a Emenda Constitucional 35/01, 12 foram julgadas improcedentes,
com a absolvição do réu. Outras 11 foram enviadas ao Ministério Público Federal (MPF) para
fins de intimação do procurador-geral da República quanto a informações juntadas ao processo,
ou para aguardar parecer da PGR. Outro dado de relevo é o equilíbrio entre o total de denúncias
recebidas e rejeitadas desde a aprovação da Emenda Constitucional 35/01. Desde então, 49
inquéritos foram rejeitados. Outros 45 tiveram a denúncia acolhida e foram convertidos em Ação
Penal. Dos 275 inquéritos, 76 estão no MPF, aguardando manifestação do procurador-geral.
Alguns estão no Ministério Público há mais de oito meses. Dos 378 inquéritos e ações penais em
curso no STF, 144 aguardam a realização de diligências processuais, como o cumprimento de
investigações da Polícia Federal e de cartas de ordem (quando um juiz é nomeado para praticar o
ato necessário ao processo).
Na edição do dia 26 de fevereiro de 2012, em matéria especial, o jornal Folha de São
Paulo, comprovou que “inquéritos que tiveram políticos brasileiros como alvo nos últimos anos
demoraram mais tempo do que o normal para chegar a uma conclusão, e processos abertos pelo
Supremo Tribunal Federal contra eles se arrastam há mais de dez anos sem definição.” De
acordo com o levantamento feito pelo jornal, “em média, a Polícia Federal leva pouco mais de
um ano para concluir uma investigação. Inquéritos analisados pela Folha que já foram
encerrados consumiram o dobro de tempo. O levantamento mostra que deficiências do aparelho
judiciário do país e falhas cometidas por juízes, procuradores e policiais estão na raiz da
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impunidade dos políticos brasileiros, provocando atrasos nas investigações e em outros
procedimentos necessários para o julgamento dos acusados. Durante quatro meses, a Folha
analisou 258 processos que envolvem políticos e estão em andamento no STF ou foram
arquivados pela corte recentemente, incluindo inquéritos ainda sem desfecho e ações penais à
espera de julgamento. Os processos envolvem 166 políticos que só podem ser investigados e
processados no Supremo, um privilégio garantido pela Constituição ao presidente da República
e seu vice, a deputados federais, senadores e outras autoridades. O senso comum sugere que esse
tipo de coisa acontece porque os políticos têm condições de pagar bons advogados para defendêlos na Justiça, mas a análise dos processos mostra que em muitos casos as investigações
simplesmente não andam, ou são arquivadas sem aprofundamento. Só dois casos do conjunto
analisado pelo jornal estão prontos para ir a julgamento.”
Na mesma edição, a Folha de São Paulo ouviu o Professor Pierpaolo Botini afirmou que
“os processos penais em andamento nos tribunais contra autoridades são pouco julgados. Em
2007, a Associação dos Magistrados Brasileiros apresentou pesquisa sobre o andamento dessas
ações, e os resultados mostraram baixíssimos índices de julgamento. Uma das razões é a
absoluta falta de vocação dos tribunais para conduzir esses processos penais. Os tribunais foram
criados para analisar teses jurídicas, discutir a vigência de normas e unificar sua interpretação.
O trabalho de ouvir testemunhas, determinar perícias, gravações telefônicas, busca e apreensão,
dentre outras ações para reunir evidências sobre a prática de um crime, é tarefa do juiz de
primeiro grau. Os tribunais não têm experiência para organizar a colheita de provas. Assim, ou
bem se acaba com a prerrogativa de foro ou os tribunais adotam medidas para se adaptar à
tarefa de produzir provas. Uma alternativa, já usada pelo Supremo Tribunal Federal, é delegar
a juízes de primeiro grau a colheita de depoimentos e outros elementos de prova, e reservar para
o tribunal a análise das evidências reunidas. Outra medida é o uso de tecnologias que facilitem a
produção de provas, como a videoconferência e a tramitação digital de documentos. A
prerrogativa não é um mal em si, mas essa falta de vocação dos tribunais dificulta o andamento
das ações penais, problema que pode ser superado com medidas de gestão que tornem mais ágil
a tramitação dos processos e evitem a impunidade.”
Na reportagem, revela-se “que na Índia, nas eleições para o Lok Sabha (Câmara dos
Representantes), em 2004, 1 em cada 4 candidatos eleitos tinha uma condenação na Justiça,
proporção que atingiu 1 em cada 3 nas eleições de 2009. No Brasil, 1 em cada 9 dos deputados
federais eleitos em 2010 era réu em ações penais por suspeita de crimes diversos, dentre os
7
quais estupro e homicídio. Há casos de indivíduos que buscam a eleição e a reeleição como
forma de garantir o foro privilegiado. Esse mecanismo dá a políticos um tratamento "político" e
elimina os custos reputacionais de eventuais condenações em instâncias inferiores.”
Na mesma matéria, em longa entrevista, o Ministro Celso de Mello afirmou, dentre outras
coisas, que era a favor da “supressão pura e simples de todas as hipóteses constitucionais de
prerrogativa de foro em matéria criminal. Mas, para efeito de debate, poderia até concordar
com a subsistência de foro em favor do presidente da República, nos casos em que ele pode ser
responsabilizado penalmente, e dos presidentes do Senado, da Câmara e do Supremo. E a
ninguém mais. Eu sinto que todas as autoridades públicas hão de ser submetidas a julgamento,
nas causas penais, perante os magistrados de primeiro grau. Ao contrário do STF, que é um
tribunal com 11 juízes, você tem um número muito elevado de varas criminais [na primeira
instância], e pelo Estado inteiro. Com essa pluralização, a agilidade de inquéritos policiais, dos
procedimentos penais é muito maior. Acho importante nós considerarmos a nossa experiência
histórica. Entre 25 de março de 1824, data da primeira carta política do Brasil, e 30 de outubro
de 1969, quando foi imposta uma nova carta pelo triunvirato militar, pela ditadura, portanto um
período de 145 anos, os deputados e os senadores não tiveram prerrogativa de foro. Mas nem
por isso foram menos independentes ou perderam a sua liberdade para legislar até mesmo
contra o sistema em vigor. A Constituição de 1988, pretendendo ser republicana, mostrou-se
estranhamente aristocrática, porque ampliou de modo excessivo as hipóteses de competência
penal originária.”
O Ministro afirmou, a respeito do Direito Comparado, que “algumas cortes
constitucionais europeias detêm competência penal originária. A Corte Constitucional italiana,
por exemplo, mas para hipóteses muito limitadas, quatro ou cinco, e nada mais. Na França, o
Conselho Constitucional detém competência penal originária em relação a pouquíssimas
autoridades, cinco, se tanto. Ou seja, são constituições republicanas, mas que refletem a mesma
parcimônia que se registrara na carta monárquica brasileira de 1824. No modelo norteamericano, já ao contrário, não há prerrogativa de foro. Temos algumas constituições que se
aproximam do modelo brasileiro, mas este é quase insuperável, quase invencível. Vale a pena
pegar algumas constituições estaduais do Brasil para ver as autoridades com foro junto ao
Tribunal de Justiça. Começa com o vice-governador e vai embora. Entra Deus e todo mundo.”
Para ele, “a prerrogativa de foro seria cabível apenas para os delitos cometidos em razão
do ofício. Isso significa que atuais titulares de cargos executivos, judiciários ou de mandatos
8
eletivos só teriam prerrogativa de foro se o delito pelo qual eles estão sendo investigados ou
processados tivessem sido praticados em razão do ofício ou no desempenho daquele cargo.”
Perguntado sobre o impacto, na rotina dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, nos casos
relativos ao foro, o Ministro foi enfático: “A situação é dramática. É verdade que os institutos da
repercussão geral e da súmula vinculante tiveram um impacto altamente positivo sobre a prática
processual no STF. Mas, por outro lado, no que se refere aos processos originários, vale dizer,
às causas que se iniciam desde logo, diretamente no Supremo, houve um aumento exponencial
desse volume, e isso se verifica no cotidiano da corte.”
Sobre a utilização de Juízes auxiliares, o Ministro disse ser contra a medida, “em primeiro
lugar, porque acho que o estudo tem que ser meu. Por isso é que acabo trabalhando essas 14
horas por dia. É um ato pessoal. Mas respeito a posição dos outros juízes, cada um tem seu
estilo de trabalho. Em segundo lugar, entendo que o magistrado, ou ele exerce suas funções
jurisdicionais, podendo acumulá-las com um cargo docente, como permite a Constituição, ou
não se lhe oferece qualquer outra alternativa. Acho que não tem sentido convocar um juiz para
atuar como um assessor de Ministro. A mim, não parece que a Constituição autorizaria isso.”
Pois bem.
Neste trabalho procuraremos fazer uma análise da evolução da matéria, desde a redação
original do Código de Processo Penal, passando pela Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal e,
naturalmente, analisando as disposições da Constituição Federal, além, é claro e principalmente,
da Lei nº. 10.628/2002.
Em debate realizado no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 03 de setembro, o jurista
Antonio Cláudio Mariz de Oliveira afirmou que “algumas situações específicas justificam o foro,
isso não afronta a igualdade. É preciso deixar claro que quem detém o foro não vai ser julgado
por um órgão de fora do Judiciário. Não se trata de um tribunal especial para julgar presidente,
governador, procurador-geral. São órgãos da estrutura do Poder Judiciário, compostos de juízes
que têm as mesmas garantias e obrigações de todos os juízes. O acusado será julgado por
alguém investido das funções de julgador. Algumas autoridades podem e devem ser julgadas de
forma diferenciada porque exercem funções especiais, com características especiais. Não posso
entender que um presidente de tribunal possa ser julgado por um juiz de primeira instância,
recém-ingresso na magistratura, inexperiente.” (...) O foro por prerrogativa é do Direito
brasileiro. Acho que essa discussão envereda por alguns segmentos interessados na
desmoralização do Judiciário, na diminuição da sua credibilidade. O Judiciário tem suas
9
mazelas, que precisam ser corrigidas. Mas é preciso reconhecer o lado bom do Judiciário,
porque do contrário vamos caminhar para uma situação muito perigosa. O foro não é prócorrupção. Essa imagem é errada, porque estão enlameando os membros dos tribunais
competentes. Os desembargadores e os ministros são homens de bem. Não fazem parte de um
tribunal de exceção. Os ministros são piores que juízes de primeiro grau? Estão colocando uma
pecha de que eles são adeptos da impunidade, e isso não é verdade. Há mais morosidade sim,
mas dizer que há impunidade não é correto. É ruim porque desmoraliza o Judiciário.” (...) Sou a
favor. Com relação aos prefeitos, a prerrogativa cria blindagem para impedir influências
políticas. Um problema muito sério é o da politização da Justiça, especialmente nas comarcas do
interior do Brasil, onde tanto o juiz como o promotor ficam sujeitos a influências e pressões. Isso
é real. Na apuração dos crimes de maior repercussão, muitas vezes juiz e promotor ficam
subjetivamente comprometidos emocionalmente com o fato. São seres humanos. Podem não se
imiscuir, mas sentirão toda aquela repercussão que está batendo à sua porta.” Fonte: Revista
Consultor Jurídico (04/09/2007).
É importante ressaltar que a prerrogativa de foro, por si só, não transfere para o respectivo
órgão superior as atribuições investigatórias (STF, INQ 2.411/MT, Relator Ministro GILMAR
MENDES), mas “a tramitação dos procedimentos investigatórios” deve ser acompanhada pelo
órgão jurisdicional competente para o julgamento do feito. Neste sentido é o entendimento do
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça:
“SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HC 82.507/SE – RELATOR: Ministro
SEPÚLVEDA PERTENCE - A competência penal originária por prerrogativa
não desloca por si só para o Tribunal respectivo as funções de polícia
judiciária. 2. A remessa do inquérito policial em curso ao Tribunal competente
para a eventual ação penal e sua imediata distribuição a um relator não faz
deste autoridade investigadora, mas apenas lhe comete as funções,
jurisdicionais ou não, ordinariamente conferidas ao juiz de primeiro grau, na
fase pré-processual das investigações. (...) É bem verdade que o Pretório
Excelso, em 10.10.2007, no julgamento do INQ 2.411/MT, Rel. Min. GILMAR
MENDES (Informativo 483 do STF), ainda que por maioria, firmou o
entendimento de que no exercício da competência penal originária do STF (art.
102, I, b da CF combinado com o art. 2º.. da Lei 8.038/90), a atividade de
supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a
tramitação das investigações, ou seja, desde a abertura dos procedimentos
investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo Ministério
Público, sob pena de esvaziamento da própria idéia dessa prerrogativa.”
“STJ – HC 99.773/RJ – (2008.0023461-6) – 5ª T.- Rel. Min. Napoleão Nunes
Maia Filho – DJe 17.03.2008 - A competência originária por prerrogativa de
jurisdição, isoladamente, não desloca para o Tribunal de Justiça as atribuições
10
de Polícia Judiciária, mas apenas lhe comete as funções, jurisdicionais ou não,
ordinariamente conferidas ao Magistrado de primeiro grau, na fase das
investigações.”
2) O Código de Processo Penal e a competência por prerrogativa de função
Diz o art. 69 deste código que uma das causas determinadoras da competência penal será
a prerrogativa de função. Este dispositivo foi complementado pelos arts. 84 a 87 do mesmo
diploma processual.
Como se disse anteriormente é natural que exista este critério determinador da
competência, pois a pessoa que exerce determinado cargo ou função, evidentemente, deve ser
preservada ao responder a um processo criminal, evitando-se, inclusive, ilegítimas injunções
políticas que poderiam gerar injustiças e perseguições nos respectivos julgamentos.
É razoável, portanto, que um Juiz de Direito, um Deputado Estadual ou um Promotor de
Justiça seja julgado pelo Tribunal de Justiça do respectivo Estado, e não por um Magistrado de
primeira instância, em razão da “necessidade de resguardar a dignidade e a importância para o
Estado de determinados cargos públicos”, na lição de Maria Lúcia Karam. Para ela, não há
“propriamente uma prerrogativa, operando o exercício da função decorrente do cargo ocupado
pela parte como o fator determinante da atribuição da competência aos órgãos jurisdicionais
superiores, não em consideração à pessoa, mas ao cargo ocupado.”7
Os arts. 86 e 87 do Código de Processo Penal estabelecem as pessoas que, em razão do
cargo, devem ser julgadas por órgãos superiores da Justiça, disposições estas que precisam ser
relidas à luz da Constituição Federal e das constituições estaduais.
3) A Constituição Federal
O art. 29, X da Constituição Federal determina o julgamento do Prefeito perante o
Tribunal de Justiça8. Se o Prefeito, porém, vier a cometer um delito da alçada da Justiça Comum
7
Competência no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3a. ed., 2002, pp. 30/31.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal julgou improcedente pedido de Habeas Corpus (HC) 88536 feito
pela defesa do ex-prefeito de Niquelândia (GO). Ele é acusado pela suposta prática do crime de homicídio. “A
prerrogativa de foro não visa proteger este ou aquele cidadão, visa proteger, sim, o cargo ocupado pelo cidadão”,
explica o relator do caso, Ministro Marco Aurélio. Segundo ele, a competência por prerrogativa de foro
consubstancia direito estrito, ou seja, é o que está na lei ou na Constituição “e nada mais”. O relator afirmou que a
circunstância de o crime ter sido praticado na época em que o acusado era prefeito, não leva à conclusão de que ele
devesse ser denunciado pelo procurador-geral de Justiça, uma vez que no momento da denúncia já não era mais o
8
11
Federal (por exemplo, desvio de recursos federais sujeitos à fiscalização da União) a competência
será do respectivo Tribunal Regional Federal, segundo entendimento firmado na jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal (RT 745/479 e JSTF 177/340). A propósito, há duas súmulas do
Superior Tribunal de Justiça e uma do Supremo Tribunal Federal, a saber:
“Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba
sujeita a prestação de contas perante órgão federal.” (Súmula 208).9
“Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e
incorporada ao patrimônio municipal.” (Súmula 209).
“A competência do Tribunal de Justiça para julgar Prefeitos restringe-se aos crimes de
competência da Justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao
respectivo tribunal de segundo grau.” (Súmula 702, STF).
O art. 96, III estabelece a competência dos Tribunais de Justiça para processar e julgar os
Juízes de Direito e os membros do Ministério Público estadual, ressalvando-se a competência da
Justiça Eleitoral (leia-se: dos Tribunais Regionais Eleitorais). Neste caso, ainda segundo
entendimento jurisprudencial respaldado principalmente no art. 108, I, “a” da Constituição
Federal, mesmo que o delito seja, em tese, da competência da Justiça Comum Federal, o
julgamento será perante o Tribunal de Justiça do Estado onde atue o autor do fato (JSTJ 46/532),
ainda que a infração penal tenha sido praticada em outro Estado da Federação, pois, a
competência pela prerrogativa de função sobrepõe-se, in casu, à territorial. Atentar, porém, que
os Juízes de primeira instância convocados para Tribunais de Justiça para exercer a função de
chefe do Executivo municipal, portanto, ausente a prerrogativa de foro. “O que cumpre perquirir é se, à época da
oferta da denúncia, o membro do Ministério Público tinha ou não a atribuição de formalizá-la e, inegavelmente,
tinha”, disse. Por essas razões, o ministro Marco Aurélio indeferiu o pedido, tendo sido acompanhado por
unanimidade pela Turma. Fonte: STF.
9
“A jurisprudência atual do colendo Superior Tribunal de Justiça e do egrégio Supremo Tribunal Federal é no
sentido de que a competência para processar e julgar os casos que envolvem desvio de verbas do Fundef, em se
tratando de matéria penal, pertence à Justiça Federal, aplicando-se a Súmula nº 208 daquela colenda Corte
Superior. É que os Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos Municípios devem fiscalizar o cumprimento do
disposto no art. 212 da Constituição, que trata do sistema de ensino no país, conforme dispõe o art. 11 da Lei
9.424/96. Assim, há competência fiscalizatória concorrente entre o Estado e a União, com base no disposto no
Regimento Interno do Tribunal de Contas da União e no artigo 5º da Lei instituidora do Fundef, Lei nº 9.424/96,
devendo, portanto, prevalecer a competência federal, de acordo com o disposto no artigo 78, IV, do Código de
Processo Penal.” (TRF 3ª R. – Órgão Esp..-Inq. 2007.03.00.099899-4 – rel. Suzana Camargo – j. 25.06.2008 – DJU
14.07.2008).
12
Desembargador não têm a prerrogativa de foro prevista no artigo 105 da Constituição Federal. A
prerrogativa é vinculada ao cargo e não ao eventual exercício da função em substituição. O
entendimento é da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça. A decisão da Corte Especial
ocorreu no julgamento de um Agravo Regimental em representação contra uma Juíza da Bahia.
Em decisão monocrática, o Ministro Arnaldo Esteves Lima já havia negado conhecimento à
representação por entender que a juíza não tem foro privilegiado no STJ. Por unanimidade, a
Corte Especial manteve o entendimento do Ministro Arnaldo Esteves Lima e negou o agravo. O
entendimento firmado no STJ é o de que o foro por prerrogativa de função visa proteger o cargo e
não seu ocupante eventual.10
Por sua vez, a competência para julgar os Juízes Federais, do Trabalho e Militares (da
Justiça Militar Federal11) e os membros do Ministério Público da União (salvo os que oficiem
perante Tribunais, que serão julgados pelo STJ) é do Tribunal Regional Federal da área da
respectiva jurisdição ou atribuições, ressalvando-se, também, a competência da Justiça Eleitoral
(art. 108, I, “a” da Constituição Federal).
Nos arts. 102, I, “b” e “c” e 105, I, “a”, vem estabelecida a competência criminal,
respectivamente, do Supremo Tribunal Federal12 e do Superior Tribunal de Justiça.
Segundo o Supremo Tribunal Federal, “os membros do Congresso Nacional, pela
condição peculiar de representantes do povo ou dos Estados que ostentam, atraem a
competência jurisdicional do Supremo Tribunal Federal. O foro especial possui natureza intuitu
funcionae, ligando-se ao cargo de Senador ou Deputado e não à pessoa do parlamentar.”13 A
prerrogativa decorre do ato de diplomação. Neste sentido, por unanimidade, o Supremo Tribunal
Federal confirmou decisão liminar da Corte que reconheceu a legalidade do recebimento de
denúncia feita contra acusados de envolvimento em supostos empréstimos fraudulentos
realizados pelo banco BMG ao Partido dos Trabalhadores e a um grupo de empresas. Os
Ministros indeferiram pedido de Habeas Corpus (HC 91593), onde se alegava que a denúncia
havia sido recebida pela primeira instância no dia em que um dos acusados foi diplomado
deputado federal. Quando da decisão liminar, os Ministros chegaram à conclusão que, ao
contrário do alegado, a denúncia foi devidamente recebida um dia antes da diplomação do
10
Fonte: Revista Consultor Jurídico (14/03/2008).
Os Juízes Auditores da Justiça Militar Estadual são julgados pelo respectivo Tribunal de Justiça, pois são Juízes de
Direito pertencentes à Justiça do Estado.
12
O foro por prerrogativa de função para Presidente do Banco Central está previsto na Lei nº. 11.036/2004, que o
equipara à categoria de Ministro de Estado.
13
AG.REG.INQ. 2453 – RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI.
11
13
deputado. O relator, Ministro Marco Aurélio, reafirmou esse entendimento. “Quando do
recebimento da denúncia não se tinha ainda o envolvimento do detentor da prerrogativa de
foro”, disse.14 Em outro caso o Ministro Celso de Mello, relator do Inquérito (Inq) 2754, em
curso no Supremo Tribunal Federal contra um Deputado Federal determinou que o processo fosse
reautuado como ação penal (AP 511) – tendo em vista que foi recebida a denúncia contra ele –,
bem como delegou à Justiça Federal em Brasília a oitiva das testemunhas arroladas pelo
Ministério Público na peça de acusação. Como o inquérito teve início antes da diplomação, Celso
de Mello aplicou jurisprudência do STF, validando todos os atos praticados no processo pelo juiz
da 5ª Vara Criminal da circunscrição Judiciária de Brasília.
“Cabe enfatizar que a diplomação do réu, como membro do Congresso Nacional, revelase apta a gerar, tão-somente, uma específica consequência de ordem processual, consistente no
deslocamento, para o STF, da competência penal originária para a persecutio criminis”,
observou o Ministro. “Isso significa, portanto, que a superveniência daquele fato jurídicoeleitoral – considerada a nova diretriz jurisprudencial firmada na matéria – não mais tem o
condão de afetar a integridade jurídica dos atos processuais, cuja validade há de ser aferida
com base no ordenamento positivo vigente à época de sua efetivação”, acrescentou Celso de
Mello, baseando-se no julgamento do Recurso em Habeas Corpus (RHC) 78026, relatado pelo
ministro Octavio Gallotti (aposentado). O Ministro Celso de Mello fundamentou-se, também, no
julgamento de questão de ordem suscitada no Inq 571/DF, relatado pelo ministro Sepúlveda
Pertence. Naquele julgamento, a Suprema Corte reformulou antiga orientação de jurisprudência
firmada nos inquéritos 141/SP e 342/PR, relatados, respectivamente, pelos ministros Soares
Muñoz e Octavio Gallotti. Pela antiga jurisprudência, a posse de membro do Congresso Nacional
implicava a anulação de atos processuais anteriormente praticados em processo contra ele. No
mesmo sentido, por unanimidade a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal indeferiu
Habeas Corpus (HC) 94705 e manteve em curso a ação penal que tramitava na Justiça do Rio de
14
Neste sentido, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello determinou a reautuação como Ação Penal
(AP 501) do Inquérito (Inq) 2546, que investigava suposto crime de responsabilidade cometido por um Deputado
Federal. O Ministro revelou, em sua decisão, que a denúncia foi recebida em março de 2000 pelo juiz de Direito da
Vara Criminal de Pato Branco (PR), quando o réu ainda não havia sido eleito para a Câmara dos Deputados. Por essa
razão, o órgão judiciário que recebeu a denúncia, à época, era o juiz natural da causa, “revestindo-se de
inquestionável validade jurídica o recebimento da peça acusatória”, frisou o Ministro. A diplomação do parlamentar
só tem o efeito processual de causar o deslocamento do processo para o Supremo Tribunal Federal, instância
competente para julgar e processar os membros do Congresso Nacional, explicou Celso de Mello. Na decisão, Celso
de Mello lembra que os réus na ação penal foram ouvidos, que houve defesa prévia, e ainda que já foi iniciada a
inquirição das testemunhas de acusação e de defesa. Dessa forma, o ministro determinou o prosseguimento da
instrução criminal, delegando competência para o juiz de Direito de Pato Branco para ouvir as testemunhas de defesa
que faltam ser ouvidas.
14
Janeiro. A defesa alegava que as provas que o levaram à prisão não foram obtidas pelo foro
adequado, uma vez que ele foi eleito deputado estadual. Sustentou que a ação penal deveria ser
anulada desde o início, porque não foi analisada pelo órgão especial do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, foro responsável por julgar parlamentares estaduais. Segundo o relator do HC,
ministro Ricardo Lewandowski, o Ministério Público informou que os atos considerados ilegais
pela defesa foram repetidos, antes mesmo do oferecimento da denúncia. A Primeira Turma
considerou ainda que os atos são anteriores à diplomação do paciente como deputado estadual, o
que não inviabiliza tais provas.
Na hipótese do acusado passar a ter prerrogativa de função no decorrer de uma ação
penal, o recurso já interposto deverá ser julgado pelo órgão ad quem competente; neste sentido,
confira-se esta decisão do Supremo Tribunal Federal:
“Inq N. 2.605-SP - RELATOR: MIN. MENEZES DIREITO - EMENTA Inquérito. Recurso em sentido estrito. Sentença que não recebe a denúncia. ExPrefeito. Não-pagamento de precatório. Descumprimento de ordem judicial.
Art. 1º, inciso XIV, segunda parte, do Decreto-Lei nº 201/67.1. Eleito o
denunciado como Deputado Federal durante o processamento do feito criminal,
compete ao Supremo Tribunal Federal julgar o recurso em sentido estrito
interposto pelo Ministério Público estadual contra a sentença de 1º grau que,
antes da posse do novo parlamentar, não recebeu a denúncia.”
Neste sentido, o Plenário do Supremo Tribunal Federal manteve decisão que deferiu a
realização de diligências requeridas pelo Ministério Público Federal, destinadas a elucidar o
possível envolvimento de um Deputado Federal nas irregularidades verificadas na execução de
convênios celebrados entre o Município de Contagem-MG e o Ministério Escola Jeová Jiré,
durante a gestão do Deputado, com o suposto objetivo de realizar um programa de recuperação
de dependentes químicos. A denúncia inicialmente feita contra o parlamentar foi rejeitada pelo
Juízo da 2ª. Vara Criminal da Comarca de Contagem-MG. Em razão da investidura do
denunciado no cargo de deputado federal, o julgamento do recurso interposto pelo Ministério
Público de Minas Gerais contra a decisão que rejeitou a denúncia foi apreciado pelo STF.
(Inquérito 2727).
Por outro lado, “uma vez iniciado o julgamento de Parlamentar nesta Suprema Corte, a
superveniência do término do mandato eletivo não desloca a competência para outra instância.”
(STF – Pleno – Inq. 2.295 – rel. Sepúlveda Pertence – rel. p/acórdão Menezes Direito – j.
23.10.2008 – DJ 05.06.2009).
15
Obviamente que a prerrogativa de função não se estende aos suplentes, pois “não se cuida
de prerrogativa intuitu personae, vinculando-se ao cargo, ainda que ocupado interinamente,
razão pela qual se admite a sua perda ante o retorno do titular ao exercício daquele.”15 Logo, “
a diplomação do suplente não lhe estende automaticamente o regime político-jurídico dos
congressistas, por constituir mera formalidade anterior e essencial a possibilitar à posse interina
ou definitiva no cargo na hipótese de licença do titular ou vacância permanente. (...) Embora
juntamente com cada senador sejam eleitos dois suplentes, a posse no cargo, que constitui ato
formal indispensável para o gozo das prerrogativas ligadas à função legislativa, dá-se apenas
com relação àquele que efetivamente o exerce, em caráter interino ou permanente (precedentes:
RE 120.133/MG, Rel. Min. Maurício Corrêa; MS 21.239/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence;
RHC 78.026/ES, Rel. Min. Octavio Gallotti; RMS 3.657/SE, Rel. Min. Antônio Villas Boas; RE
29.900, Rel. Min. Afrânio Costa).Aos suplentes, como se sabe, é vedado apresentar projetos de
lei, participar de deliberações, concorrer a cargos da Mesa Diretora ou das Comissões
Permanentes e Temporárias, não percebendo qualquer remuneração ou ajuda de custo antes de
assumirem o cargo.Em síntese, eles não fazem jus às prerrogativas inerentes ao cargo enquanto
o titular encontrar-se em exercício. Os suplentes, como tais, possuem mera expectativa de
direito, o de substituir, eventualmente, o senador com o qual foram eleitos.A diplomação dos
suplentes, cumpre notar, constitui mera formalidade anterior e necessária à eventual investidura
no cargo, nos termos dos arts. 4o e 5o do Regimento Interno do Senado, 1 não se 1 Art. 4o: “A
posse, ato público por meio do qual o Senador se investe no mandato, realizar-se-á perante o
Senado, durante reunião preparatória, sessão deliberativa ou não deliberativa, precedida da
apresentação à Mesa do diploma expedido pela Justiça Eleitoral, o qual será publicado no
Diário do Senado Federal. § 1o. A apresentação do diploma poderá ser feita pelo diplomado,
pessoalmente, por ofício ao Primeiro-Secretário, por intermédio do seu Partido ou de qualquer
Senador. § 2o. Presente o diplomado, o Presidente designará três Senadores para recebê-lo,
introduzi-lo no plenário e conduzi-lo até a Mesa, onde, estando todos de pé, prestará o seguinte
compromisso: ‘Prometo guardar a Constituição Federal e as leis do País, desempenhar fiel e
lealmente o mandato de Senador que o povo me conferiu e sustentar a união, a integridade e a
independência do Brasil’. § 3o. Quando forem diversos os Senadores a prestar o compromisso a
que se refere o § 2o, somente um o pronunciará e os demais, ao serem chamados, dirão: ‘Assim
o prometo’. § 4o. Durante o recesso, a posse realizar-se-á perante o Presidente, em solenidade
15
AG.REG.INQ. 2453 - RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI.
16
pública em seu gabinete, observada a exigência da apresentação do diploma e da prestação do
compromisso, devendo o fato ser noticiado no Diário do Senado Federal. § 5o. O Senador
deverá tomar posse dentro de noventa dias, contados da instalação da sessão legislativa, ou, se
eleito durante esta, contados da diplomação, podendo o prazo ser prorrogado, por motivo
justificado, a requerimento do interessado, por mais trinta dias. § 6o. Findo o prazo de noventa
dias, se o Senador não tomar posse nem requerer sua prorrogação, considerar-se-á como tendo
renunciado ao mandato, convocando-se o primeiro Suplente”.Art. 5o: “O primeiro Suplente,
convocado para a substituição de Senador licenciado, terá o prazo de trinta dias improrrogáveis
para prestar o compromisso, e, nos casos de vaga ou de afastamento nos termos do art. 39, II, de
sessenta dias, que poderá ser prorrogado, por motivo justificado, a requerimento do interessado,
por concluindo daí que se lhes aplique, automaticamente, o Estatuto dos Congressistas, isto é, “o
conjunto de normas constitucionais que estatui o regime jurídico dos membros do Congresso
Nacional, prevendo suas prerrogativas e direitos, seus deveres e incompatibilidades”,2 salvo se
assumirem o cargo interina ou definitivamente. (...) Se, dentro dos prazos estabelecidos neste
artigo, o Suplente não tomar posse e nem requerer sua prorrogação, considerar-se-á como tendo
renunciado ao mandato, convocando-se o segundo Suplente, que terá, em qualquer hipótese,
trinta dias para prestar o compromisso. § 2o. O Suplente, por ocasião da primeira convocação,
deverá prestar o compromisso na forma do art. 4o e, nas seguintes, o Presidente comunicará à
Casa a sua volta ao exercício do mandato”.2 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito
Constitucional. 27. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 535. agente público possa, no
exercício do cargo, ser expedito, desemaranhado, não tendo que se afastar dele para responder a
processos por qualquer ‘dá cá essa palha’. O que é prerrogativa senão um direito subjetivo?
Mas não é um direito subjetivo qualquer, conferido a uma série aberta de beneficiários. É um
direito subjetivo que se distingue por ser próprio de uma série fechada, restrita, de beneficiários.
Daí ser chamado de prerrogativa, que não é outra coisa senão, numa linguagem vernacular,
predicamento. Claro que a prerrogativa suscita em todos nós uma certa estranheza, porque
prerrogativa, em princípio, é um direito antirepublicano. Ela desnivela os cidadãos.(...)Mas quer
dizer que prerrogativa, por ser um direito especialíssimo conferido a uma categoria restrita de
pessoas, só comporta interpretação restritiva, não comporta interpretação ampliativa. No caso,
o Supremo disse em alto e bom som que prevalece, em matéria de prerrogativa de foro, o
princípio da atualidade do exercício da função, do cargo ou do mandato.(...)Agora, não
confundir pré-assunção, nem assunção, com apeamento do cargo, porque a prerrogativa é
17
intuitu funcionae, não é intuitu personae. O ex-titular do cargo, do mandato ou da função não
carrega consigo a prerrogativa como se carregasse consigo a sua roupa, a sua indumentária, a
sua vestimenta cotidiana”. (...) Por isso, há que fazer uma interpretação restritiva do art. 53, §
1o, da Carta Magna, já que dirigido a um seleto grupo de pessoas, quais sejam, os
representantes dos Estados (senadores) e do povo (deputados federais), a quem o texto confere,
em caráter excepcional, certas prerrogativas, não em benefício próprio, mas em prol do
exercício livre e desembaraçado do mandato. Caso quisesse o legislador constitucional estender
a referida proteção aos suplentes, certamente teria providenciado a sua inclusão na Carta
Magna ou, quiçá, remetido a sua disciplina para a legislação ordinária.”16
Reafirmando este entendimento, o Ministro Celso de Mello reconheceu que o Supremo
Tribunal Federal não tem competência originária para apreciar a Ação Penal (AP) 665, movida
pelo Ministério Público Federal suplente. Conforme o relator, o entendimento do STF é no
sentido de que o suplente não tem foro por prerrogativa de função, somente o titular do mandato
legislativo. O relator lembrou que o suplente, enquanto permanecer nessa condição, não dispõe
da garantia constitucional da imunidade parlamentar, nem da prerrogativa de foro prevista na
Constituição Federal (artigo 53, parágrafo 1º), que somente é aplicável a quem estiver no
exercício do mandato. Segundo o ministro Celso de Mello, o suplente, em sua posição de
substituto eventual do congressista, “não goza das prerrogativas constitucionais deferidas ao
titular do mandato legislativo, tanto quanto não se lhe estendem as incompatibilidades, que,
previstas no texto da Carta Política (CF, art. 54), incidem, apenas, sobre aqueles que estão no
desempenho do ofício parlamentar”. Os direitos inerentes à suplência, registra o relator,
abrangem unicamente o direito de substituição [em caso de impedimento] e o direito de sucessão
[na hipótese de vaga]. O Ministro Celso de Mello completa ressaltando que a Constituição
Federal vigente não atribuiu ao suplente de Deputado Federal ou de Senador da República a
prerrogativa de foro perante o STF. “É por tais razões que não se torna lícito estender, ao
suplente de deputado federal ou de senador da República, as prerrogativas parlamentares de
índole constitucional, pelo fato de que estas – por serem inerentes, apenas, a quem exerce o
mandato legislativo – não alcançam aquele, que, por achar-se na condição de mera suplência,
somente dispõe de simples expectativa de direito”, salientou o relator.
16
AG.REG.INQ. 2453 - RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI. No mesmo sentido, o Ministro Celso de
Mello, relator do Inquérito (INQ) 2639, proferiu decisão na qual considera que o STF não tem mais competência
penal originária para processar e julgar supostas irregularidades cometidas por um suplente de deputado federal. “O
indiciado já não mais ostenta – porque mero suplente – a condição de deputado federal”, justificou o Ministro
(Fonte: STF).
18
Ressalte-se que a investigação criminal em relação a quem tem prerrogativa de foro
perante o Supremo Tribunal Federal deve ser dirigida pela Corte, conforme decidiu ficou
decidido no Inquérito 2116, em que o Ministério Público Federal pedia a apuração de possível
envolvimento de um Senador em suposto esquema de desvio de verbas federais em obras
municipais. O Plenário decidiu que o Inquérito deverá prosseguir sob a fiscalização da Suprema
Corte. A decisão foi tomada, por maioria, contra os votos dos ministros Dias Toffoli, Luiz Fux,
Gilmar Mendes e Celso de Mello.
4) A Constituição do Estado da Bahia
No Estado da Bahia, a Constituição estabelece a competência “ratione personae” no art.
123, I, “a”, determinando ser do Tribunal de Justiça a competência para julgar o ViceGovernador, Secretários de Estado, Deputados Estaduais, o Procurador-Geral do Estado, os
Defensores Públicos, dentre outras autoridades públicas. Neste aspecto, a diferença entre os
diversos Estados da Federação, pode-se afirmar, é mínima.17
Impende afirmar que “o Estado-membro não tem competência para estabelecer regras de
imunidade formal e material aplicáveis a Vereadores. A Constituição Federal reserva à União
legislar sobre Direito Penal e Processual Penal.2. As garantias que integram o universo dos
membros do Congresso Nacional (CF, artigo 53, §§ 1º, 2º, 5º e 7º), não se comunicam aos
componentes
do
Poder
Legislativo
dos
Municípios.
Precedentes.Ação
direta
de
inconstitucionlidade procedente para declarar inconstitucional a expressão contida na segunda
parte do inciso XVII do artigo 13 da Constituição do Estado de Sergipe.” (ADI 371/SE, Rel.
Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJU 23/04/2004, p. 6).
Observamos que as pessoas cuja prerrogativa de função vem estabelecida exclusivamente
na Constituição Estadual, serão julgadas pelo Tribunal do Júri (e não pelo Tribunal de Justiça),
quando cometerem um crime doloso contra a vida (Súmula 721 do STF). Da mesma forma, se
cometerem crime eleitoral serão julgados pelo respectivo Tribunal Regional Eleitoral e se
17
Neste sentido, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes suspendeu, liminarmente, a ação penal
contra o médico-perito A.S.B., acusado de integrar suposta quadrilha que cometeria fraudes na agência da
Previdência Social em um município do Rio de Janeiro. A liminar foi concedida no Habeas Corpus (HC) 110496, de
relatoria do ministro. Segundo ele, o STF, em outros julgamentos, já firmou entendimento quanto à
constitucionalidade do dispositivo da Constituição do Rio de Janeiro, o qual estabelece aos vereadores e prefeitos
prerrogativa de foro, conferindo ao Tribunal de Justiça competência originária para julgá-los (artigo 161, inciso IV,
alínea “d”, número 3). Em sua decisão, o ministro destacou que "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é
firme no sentido de que dispositivo de constituição estadual que estabelece prerrogativa de foro a vereador é
constitucional e observa o princípio da simetria”.
19
praticarem delito da competência da Justiça Comum Federal (art. 109, CF/88), serão processados
e julgados perante o Tribunal Regional Federal, prevalecendo, então, as disposições da Carta
Magna (mutatis mutandis, e como muito mais razão, veja-se a Súmula 702 do STF).
Em relação aos Deputados Estaduais, observa-se que eles gozam das mesmas imunidades
dos Deputados Federais. Neste sentido, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello
concedeu liminar em favor de um Deputado Estadual alagoano e determinou a suspensão da
prisão preventiva decretada pelo Juiz de Direito da 17ª Vara Criminal de Maceió. O Ministro
lembrou, em sua decisão, que os integrantes dos poderes legislativos estaduais só podem ser
presos, “se e quando em situação de flagrância por crime inafiançável, vedada, em
consequência, contra eles, a efetivação de prisão temporária, de prisão preventiva ou de
qualquer outra modalidade de prisão cautelar”. Ao examinar o alcance das imunidades
garantidas aos congressistas pelo artigo 53 da Constituição Federal, estendidas a Deputados
Estaduais, o Plenário do STF assentou o entendimento de que o estatuto jurídico dos
parlamentares assegura um “estado de relativa incoercibilidade pessoal” (freedom from arrest),
segundo o qual Deputados só podem ser presos em flagrante, e por crime inafiançável. Ao
determinar a soltura do Deputado Estadual, o Ministro Celso de Mello ressaltou ainda que o foro
por prerrogativa de função é assegurado ao parlamentar, “ainda quando licenciado ou afastado
de suas funções”, e esse foro prevalece sobre a competência atribuída ao Tribunal do Júri, ainda
que o crime em questão tenha sido cometido, de forma intencional, contra a vida. (Reclamação
nº. 7936).
No mesmo sentido, veja-se este julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“Cuida-se de conflito de competência cuja essência é saber a quem cabe julgar
os crimes dolosos contra a vida quando praticados por deputado estadual, isto
é, se a prerrogativa de função desses parlamentares está inserida na própria
Constituição Federal ou apenas na Constituição do estado. A Seção, por
maioria, entendeu que as constituições locais, ao estabelecer para os deputados
estaduais idêntica garantia prevista para os congressistas, refletem a própria
Constituição Federal, não se podendo, portanto, afirmar que a referida
prerrogativa encontra-se prevista, exclusivamente, na Constituição estadual.
Assim, deve prevalecer a teoria do paralelismo constitucional, referente à
integração de várias categorias de princípios que atuam de forma conjunta, sem
hierarquia, irradiando as diretrizes constitucionais para os demais diplomas
legais do estado. Consignou-se que a adoção de um critério fundado na
aplicação de regras simétricas reforça a relevância da função pública protegida
pela norma do foro privativo. Ademais, a própria Carta da República institui,
em seu art. 25, o princípio da simetria, dispondo que os estados organizam-se e
se regem pelas constituições e leis que adotarem, observando-se, contudo, os
20
princípios por ela adotados. Diante desses fundamentos, por maioria, conheceuse do conflito e se declarou competente para o julgamento do feito o TJ.” (CC
105.227-TO, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/11/2010).
5) O Código Eleitoral
A Lei nº. 4.737/65, Código Eleitoral, recepcionada pela Constituição Federal de 198818
(art. 121, CF/88), estabelece a competência da Justiça Eleitoral para o julgamento dos crimes
eleitorais e daqueles a eles conexos (art. 35, II do Código Eleitoral).
É bem verdade que em face da Constituição Federal, algumas de suas disposições caíram
no vazio, tornaram-se inaplicáveis. Assim, o Tribunal Superior Eleitoral não tem mais
competência criminal originária (“ratione personae”), em que pese a redação do art. 22, I “d”,
pois os seus Ministros e os Juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais são julgados,
respectivamente, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça (arts. 102, I,
“c” e 105, I, “a”).
Neste sentido, o Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, reconheceu a
competência originária do Supremo para analisar pedido de habeas corpus de uma Deputada
Federal, questionando inquérito policial que instrui duas ações eleitorais que tramitavam contra
ela no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo. O reconhecimento da competência do STF
se dá em razão do foro especial por prerrogativa de função ao qual Suely Vidigal tem direito por
ser membro do Congresso Nacional, conforme estabelece o artigo 102 inciso I, alínea "d", da
Constituição Federal. Diante disso, o Ministro considerou flagrante o constrangimento ilegal
sofrido pela Deputada e concedeu liminar em Habeas Corpus (HC 109238) para suspender o
andamento do inquérito policial que serviu de base para a abertura das duas ações eleitorais
contra ela. Ao analisar o habeas corpus, o Ministro Dias Toffoli destacou que a competência de
um órgão julgador é definida pela Constituição ou pela lei mediante a indicação, em um rol
taxativo das causas que este teria a atribuição de processar e julgar. “Partindo dessa premissa, em
nosso ordenamento, somente se considera o juiz natural ou a autoridade competente aquele
órgão judiciário cujo poder de julgar decorra de fontes constitucionais diretas ou indiretas”,
observou o ministro ao afirmar a competência originária da Suprema Corte para processar e
julgar o habeas corpus, “tendo em vista ser a paciente membro do Congresso Nacional (art. 102,
inc. I, alínea “d”, da Constituição da República)”. Em outra oportunidade, por decisão do
18
Para alguns, inclusive, como Lei Complementar.
21
Ministro Gilmar Mendes, os autos de uma investigação aberta pela Polícia Federal contra um
Deputado Federal foram enviados para a Suprema Corte. A decisão liminar foi concedida em
Reclamação (RCL 10908) apresentada pelo próprio Deputado. O Ministro lembrou que foram
autorizadas pelo Juiz medidas investigatórias que afetam esfera jurídica do Deputado Federal e
que o órgão competente para o controle jurisdicional de investigações que envolvem suposta
prática de crimes por parlamentares, detentores de foro especial por prerrogativa de função, é o
Supremo. Esta liminar, por unanimidade de votos, foi confirmada pelo Plenário que julgou
procedente a Reclamação contra o deputado federal Bonifácio de Andrada tramitem no Supremo.
O parlamentar ajuizou a reclamação alegando que estaria ocorrendo usurpação da competência
do Supremo para processá-lo originariamente, uma vez que estaria sendo investigado por suposta
compra de votos (artigo 299 do Código Eleitoral). Isso porque, de acordo com o parlamentar,
quando os fatos começaram a ser apurados, ele já seria Deputado Federal, contando com foro por
prerrogativa de função, conforme prevê a Constituição Federal. Citando precedentes da Corte, o
ministro Gilmar Mendes votou pela procedência da reclamação, tornando definitiva a liminar,
para que os autos tramitem no STF.
Os Juízes Eleitorais, nos crimes eleitorais e conexos, continuam a ser julgados pelo
respectivo Tribunal Regional Eleitoral, como estabelece o art. 29, I, “d” do referido código. Da
mesma forma, ainda que não esteja assim estabelecido expressamente, os membros do Ministério
Público, Estadual ou da União, quando cometerem delitos desta natureza, também serão julgados
pelo respectivo Tribunal Regional Eleitoral (salvo os membros do Ministério Público da União
que atuem perante Tribunais, que serão julgados, mesmo por crime eleitoral, pelo Superior
Tribunal de Justiça – art. 105, I, “a”, in fine da Constituição Federal).
A propósito da Justiça Eleitoral o Supremo Tribunal Federal decidiu que o direito
constitucional garantido aos membros do Congresso Nacional de serem processados e julgados
originariamente pelo Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns não alcança as
investigações instauradas pela Justiça Eleitoral com o objetivo de constatar a prática de alegado
abuso de poder econômico na campanha. Isso porque tais investigações eleitorais, previstas no
artigo 22 da Lei Complementar 64/90, com a redação dada pela Lei da Ficha Limpa (LC
135/2010), têm natureza extrapenal, visto que sua finalidade restringe-se à imposição de sanções
típicas de direito eleitoral. Esse entendimento foi aplicado pelo decano do STF, ministro Celso de
Mello, para negar seguimento à Reclamação (RCL 13286) apresentada pela defesa de um
Deputado Federal, que teve seu sigilo bancário quebrado por ordem da Justiça Eleitoral nos autos
22
de investigação judicial eleitoral. De acordo com o Ministro Celso de Mello, “a Justiça Eleitoral,
como se sabe, dispõe de competência para ordenar a quebra do sigilo bancário, se essa medida
excepcional, reputada indispensável ao esclarecimento dos fatos, houver sido adotada no âmbito
de investigação judicial eleitoral (LC 64/90, art. 22) que tenha sido instaurada, por exemplo,
com o propósito de verificar a observância dos limites legais que condicionam a legítima
efetivação das doações eleitorais”, afirmou. O Ministro acrescentou que o Supremo tem
reconhecido que se inclui na esfera de atribuições da Justiça Eleitoral o poder de processar e
julgar representações de caráter extrapenal, mesmo contra membros do Congresso Nacional, que
visem apurar o “uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade,
ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou
de partido político”.
6) A Justiça Militar
A Lei nº. 8.457/92 que organiza a Justiça Militar da União estabelece que compete ao
Superior Tribunal Militar processar e julgar originariamente os oficiais-generais das Forças
Armadas, nos crimes militares definidos em lei (redação dada pela Lei nº 8.719, de 19/10/93). Ao
Conselho Especial de Justiça compete processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais, nos
delitos previstos na legislação penal militar e ao Conselho Permanente de Justiça processar e
julgar acusados que não sejam oficiais naqueles mesmos crimes.
No âmbito estadual, não há competência por prerrogativa de função da Justiça Militar,
salvo quando a Constituição estadual assim dispuser (vide art. 125, § 1º. da Constituição
Federal). Na Bahia, por exemplo, o art. 123 da respectiva Carta determina que caberá ao Tribunal
de Justiça processar e julgar, originariamente, os membros do Conselho da Justiça Militar,
inclusive os inativos e o auditor militar (óbvio, pois se trata de um Juiz de Direito).
Assim,
salvo estes casos, o oficial da Polícia Militar será julgado pela Justiça Militar de primeiro grau19,
salvo, evidentemente, naqueles Estados em que tenha sido criado o Tribunal de Justiça Militar20,
19
Observa-se que após a Emenda Constitucional nº. 45, há dois órgãos integrantes da Justiça Militar Estadual, no
primeiro grau: o Juiz de Direito do Juízo Militar (a quem cabe processar e julgar, singularmente, os crimes militares
cometidos contra civis, exceto os dolosos contra a vida) e o Conselho de Justiça (que julga os demais crimes
militares, próprios e impróprios). Neste sentido, art. 125, §§ 4º. e 5º., CF/88. Estranhamente esta modificação não foi
imposta para a Justiça Militar da União (art. 122 a 124 da Constituição).
20
No Brasil, só três Estados dispõem de Tribunal de Justiça Militar: Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo.
23
como permite o art. 125, § 3º. da Carta Magna, e haja expressa previsão na respectiva
Constituição do Estado.21
7) As Súmulas 394 e 451 do Supremo Tribunal Federal
A respeito do assunto duas súmulas foram editadas pelo Supremo Tribunal Federal. A de
nº. 451, ainda em vigor, estabelece que “a competência especial por prerrogativa de função não
se estende ao crime cometido após a cessação definitiva do exercício funcional.” Nada mais
natural, tendo em vista o fato que esta competência estabelece-se apenas em relação aos delitos
praticados no exercício e em razão da função. Assim, verbi gratia, crimes cometidos por um Juiz
de Direito ou um membro do Ministério Público já aposentado não serão conhecidos
originariamente pelo órgão superior, como já decidiu reiteradamente o Supremo Tribunal Federal
(RT 634/354 e 606/412; RTJ 79/742).
Assim, no julgamento do Habeas Corpus nº. 89677, por unanimidade, os Ministros da
Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal decidiram que um Juiz de Direito aposentado,
acusado de ser o mandante do homicídio de outro Juiz, em 2003, deveria ser julgado pelo
Tribunal do Júri, e não pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo. A decisão foi tomada no dia 11
de setembro de 2007. Em seu voto, o relator, Ministro Marco Aurélio ressaltou que, com a
aposentadoria, cessava a competência por prerrogativa de foro. Da mesma forma, o Plenário do
Supremo Tribunal Federal negou provimento a dois Recursos Extraordinários (RE 546609 e RE
21
A Argentina pôs em vigor em fevereiro de 2009 reforma da Justiça Militar que acabou com os tribunais especiais
para militares e com punições a homossexuais nas Forças Armadas, além de eliminar a pena de morte do
ordenamento jurídico local. A partir de agora todo militar que cometer crime comum será julgado em tribunais
federais, por juízes civis, e fica extinto o Código de Justiça Militar de 1951. A nova lei foi aprovada em 2008
passado pelo Congresso e demorou seis meses para entrar em vigor. "É um passo adiante na Argentina e na região
rumo ao controle civil das Forças Armadas", afirmou à Folha o diretor-executivo da ONG Cels (Centro de Estudos
Legais e Sociais), Gaston Chillier. Para Chillier, com a nova legislação a Argentina se coloca em um campo oposto
ao do Brasil, onde a Justiça Militar ainda dispõe de grande autonomia para julgar os crimes de militares, o que enseja
críticas de corporativismo. Muitas das normas agora extintas na Argentina já não estavam vigentes na prática -o
último caso de militar submetido a pena de morte, por exemplo, ocorrera em 1956. Militares que praticassem atos
homossexuais continuavam, contudo, sujeitos a expulsão da corporação ou prisão por até dois anos.A nova
legislação também impõe alterações no sistema disciplinar das Forças Armadas. O militar passa a ter direito a
advogado particular e a independência de opinião.As mudanças tiveram origem no caso do capitão da reserva
Rodolfo Correa Belisle, que testemunhou na Justiça comum contra superiores no caso da morte do soldado Omar
Carrasco, em 1994, e foi condenado pela Justiça Militar a três meses de prisão. O episódio da morte de Carrasco,
dentro de um quartel, foi determinante para o fim do serviço militar obrigatório na Argentina. O caso Belisle foi
levado à Comissão Intermericana de Direitos Humanos em 1997 por um grupo de advogados, que denunciaram a
violação de direitos do militar. A Argentina negou as acusações até 2004, quando passou a negociar "solução
amistosa" com a comissão, concretizada na reforma do sistema de Justiça Militar. (Fonte: Folha de São Paulo,
28/02/2009). Não seria o caso de seguirmos o exemplo de los hermanos? Ao menos para os chamados crimes
militares impróprios, entendemos que sim!
24
549560) interpostos por Desembargadores aposentados que pretendiam o reconhecimento do
direito ao foro por prerrogativa de função após a aposentadoria. Nos dois casos, a decisão foi por
maioria. O RE 549560, cujo julgamento iniciou-se em maio de 2010 e foi suspenso para aguardar
a composição completa da Corte, foi interposto por um Desembargador aposentado do Estado do
Ceará que respondia a ação penal por supostos delitos praticados no exercício da função. Devido
à prerrogativa de foro, a ação penal foi instaurada pela Corte Especial do Superior Tribunal de
Justiça. Após a jubilação do Desembargador, o relator da ação remeteu os autos à Justiça
Estadual do Ceará. Em situação semelhante, no RE 546609, um Desembargador do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal respondia, também no STJ, a ação penal por suposta participação em
esquema para a liberação de preso acusado de tráfico de drogas. Com a aposentadoria, o STJ
remeteu os autos à Justiça Criminal de primeiro grau do DF. O relator dos dois REs, Ministro
Ricardo Lewandowski, reiterou o voto proferido em 2010 no sentido de que a prerrogativa de
foro somente se aplica aos membros ativos da carreira. “A vitaliciedade dos magistrados
brasileiros não se confunde, por exemplo, com a ‘life tenure’ garantida a certos juízes norteamericanos, que continuam no cargo enquanto bem servirem ou tiverem saúde para tal”,
assinalou. “Para nós, no entanto, os juízes podem ser afastados do cargo por vontade própria,
sentença judiciária, disponibilidade e aposentadoria voluntária ou compulsória”. A prerrogativa,
segundo o Ministro Lewandowski, não deve ser confundida com privilégio. “O foro por
prerrogativa de função do magistrado existe para assegurar o exercício da jurisdição com
independência e imparcialidade”. Num paralelo com a imunidade dos parlamentares, seu voto
assinala que se trata, antes, de uma garantia dos cidadãos e, só de forma reflexa, de uma proteção
daqueles que, temporariamente, ocupam certos cargos no Judiciário ou no Legislativo – ou seja,
“é uma prerrogativa da instituição judiciária, e não da pessoa do juiz”. Seu voto foi seguido, nos
dois recursos, pelos ministros Rosa Weber, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Marco
Aurélio e Celso de Mello. Ficaram vencidos, no RE 549560, os Ministros Eros Grau e Menezes
Direito (que participaram da primeira sessão de julgamento, em 2010) e Gilmar Mendes e Cezar
Peluso. No RE 546609, ficaram vencidos os Ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Cezar
Peluso. O Ministro Luiz Fux, que participou do julgamento quando integrante da Corte Especial
do STJ, estava impedido. Na mesma sessão, o Plenário negou provimento aos agravos
regimentais na Ação Penal (AP 552) e no Inquérito (INQ 2811) apresentados por Ministro
aposentado do Superior Tribunal de Justiça e outros acusados contra decisão monocrática do
Ministro Gilmar Mendes, que determinou a remessa dos autos à Seção Judiciária do Rio de
25
Janeiro em razão da perda da prerrogativa de foro assegurada constitucionalmente aos
Magistrados. O Ministro Gilmar Mendes enfatizou a conclusão do julgamento dos Recursos
Extraordinários (REs 546609 e 549560), nos quais foi decidido que os Magistrados que se
aposentam perdem a prerrogativa de foro. “Considerando o decidido nos REs 549560 e 546609
nesta data, pelo Plenário, e reafirmando a orientação jurisprudencial, é o caso de negar-se
provimento aos agravos interpostos”.
Exatamente por isso, não se sustentava a primeira súmula referida (nº. 394), segundo a
qual “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por
prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação
daquele exercício.” Esta súmula, editada em 03 de abril do ano de 1964, “exigia uma relação de
contemporaneidade (crime cometido durante o exercício funcional), resguardando, desse modo a
perpetuatio jurisdicionis (processo iniciado numa Corte deveria nela continuar, apesar da
cessação da função).22
Este enunciado, absolutamente despropositado, finalmente, ainda que tarde, foi cancelado
no dia 25 de agosto de 1999 em decisão unânime proferida no Inquérito nº. 687-SP, tendo como
relator o Ministro Sidney Sanches. Do voto do relator destacamos os seguintes trechos:
“Observo que nem a Constituição de 1946, sob cuja égide foi elaborada a
Súmula 394, nem a de 1967, com a Emenda Constitucional nº. 1/69, atribuíram
competência originária ao Supremo Tribunal Federal, para o processo e
julgamento de ex-exercentes de cargos ou mandatos, que durante o exercício,
sim, gozavam de prerrogativa de foro, para crimes praticados no período.(...) A
jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente,
instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse
público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de
independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados
com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os
tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de
determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual
influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A
presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma
garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado. Essa correção,
sinceridade e independência moral com que a lei quer que sejam exercidos os
cargos públicos ficaria comprometida, se o titular pudesse recear que, cessada
a função, seria julgado, não pelo Tribunal que a lei considerou o mais isento, a
ponto de o investir de jurisdição especial para julgá-lo no exercício do cargo, e
sim, por outros que, presumidamente, poderiam não ter o mesmo grau de
isenção. Cessada a função, pode muitas vezes desaparecer a influência que,
antes, o titular do cargo estaria em condições de exercer sobre o Tribunal que o
22
Luiz Flávio Gomes, Juizados Criminais Federais e Outros Estudos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002, p. 147.
26
houvesse de julgar; entretanto, em tais condições, ou surge, ou permanece, ou
se alarga a possibilidade, para outrem, de tentar exercer influência sobre quem
vai julgar o ex-funcionário ou ex-titular de posição política, reduzido então,
freqüentemente, à condição de adversário da situação dominante. É, pois, em
razão do interesse público do bom exercício do cargo, e não do interesse
pessoal do ocupante, que deve subsistir, que não pode deixar de subsistir a
jurisdição especial, como prerrogativa da função mesmo depois de cessado o
exercício." (RTJ 22, págs. 50 e 51)." (...) Parece-me que é chegada a hora de
uma revisão do tema, ao menos para que se firme a orientação da Corte, daqui
para frente, ou seja, sem sacrifício do que já decidiu com base na Súmula 394,
seja ao tempo da Constituição de 1946, seja à época da E.C. nº 1/69, seja sob a
égide da Constituição atual de 1988. A tese consubstanciada na Súmula 394 não
se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I,
"b", estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para
processar e julgar ´os membros do Congresso Nacional´, nos crimes comuns.
Continua a norma constitucional não contemplando, ao menos expressamente,
os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o exPresidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os
ex-Ministros de Estado (art. 102, I, "b" e "c"). Em outras palavras, a
Constituição não é explícita em contemplar, com a prerrogativa de foro perante
esta Corte, as autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o
exercício do cargo ou do mandato. Dir-se-á que a tese da Súmula 394
permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se
protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi
praticado e o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância dessa
argumentação, que, por tantos anos, foi aceita nesta Corte. Mas também não se
pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a
garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce.
Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a
Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que
se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito
Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou
mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa
forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa
Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são,
também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos. Além disso, quando a
Súmula foi aprovada, eram raros os casos de exercício de prerrogativa de foro
perante esta Corte. Mas os tempos são outros. Já não são tão raras as hipóteses
de Inquéritos, Queixas ou Denúncias contra ex-Parlamentares, ex-Ministros de
Estado e até ex-Presidente da República. E a Corte, como vem acentuando seu
Presidente, o eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, em reiterados
pronunciamentos, já está praticamente se inviabilizando com o exercício das
competências que realmente tem, expressas na Constituição, enquanto se
aguardam as decantadas reformas constitucionais do Poder Judiciário, que, ou
encontram fortíssimas resistências dos segmentos interessados, ou não contam
com o interesse maior dos responsáveis por elas. E não se pode prever até
quando perdurarão essas resistências ou esse desinteresse. É de se perguntar,
então: deve o Supremo Tribunal Federal continuar dando interpretação
ampliativa a suas competências, quando nem pela interpretação estrita, tem
conseguido exercitá-las a tempo e a hora?Não se trata, é verdade, de uma
cogitação estritamente jurídica, mas de conteúdo político, relevante, porque
concernente à própria subsistência da Corte, em seu papel de guarda maior da
27
Constituição Federal e de cúpula do Poder Judiciário Nacional. Objetar-se-á,
ainda, que os processos envolvendo ex-titulares de cargos ou mandatos, com
prerrogativa de foro perante esta Corte, não são, assim, tão numerosos, de sorte
que possam agravar a sobrecarga já existente sem eles. Mas não se pode negar,
por outro lado, que são eles trabalhosíssimos, exigindo dos Relatores que atuem
como verdadeiros Juízes de 1º. grau, à busca de uma instrução que propicie as
garantias que justificaram a súmula. Penso que, a esta altura, se deva chegar a
uma solução oposta a ela, ao menos como um primeiro passo da Corte para se
aliviar das competências não expressas na Constituição, mas que ela própria se
atribuiu, ao interpretá-la ampliativamente e, às vezes, até, generosamente, sem
paralelo expressivo no Direito Comparado. Se não se chegar a esse
entendimento, dia virá em que o Tribunal não terá condições de cuidar das
competências explícitas, com o mínimo de eficiência, de eficácia e de
celeridade, que se deve exigir das decisões de uma Suprema Corte. Os riscos,
para a Nação, disso decorrentes, não podem ser subestimados e, a meu ver, hão
de ser levados em grande conta, no presente julgamento. Aliás, diga-se de
passagem, se nem a própria Câmara dos Deputados quis continuar permitindo
o exercício do mandato, pelo acusado, tanto que o cassou, ao menos em
hipótese como essa parece flagrantemente injustificada a preocupação desta
Corte em preservar a prerrogativa de foro. Nem se deve presumir que o extitular de cargo ou mandato, despojado da prerrogativa de foro, fique sempre
exposto à falta de isenção dos Juízes e Tribunais a que tiver de se submeter. E,
de certa forma, sua defesa até será mais ampla, com as quatro instâncias que a
Constituição Federal lhe reserva, seja no processo e julgamento da denúncia,
seja em eventual execução de sentença condenatória. E sempre restará a esta
Corte o controle difuso de constitucionalidade das decisões de graus inferiores.
E ao Superior Tribunal de Justiça o controle de legalidade. Além do que já se
faz nas instâncias ordinárias, em ambos os campos. Por todas essas razões,
proponho o cancelamento da Súmula 394.(...) Nesse sentido é meu voto, com a
ressalva de que continuam válidos todos os atos praticados e decisões
proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394.”
A partir deste julgamento histórico e louvável sob todos os aspectos, o Supremo Tribunal
Federal passou a entender que a competência por prerrogativa de função só se mantinha na
hipótese do autor do fato delituoso ainda se encontrar exercendo a sua função. Finda esta
circunstância, o ex-titular, por conseguinte, não mais contaria com o julgamento pelo órgão
superior. Com o cancelamento, inúmeros foram os processos e inquéritos devolvidos à inferior
instância.
8) A Lei nº. 10.628/2002
Ocorre que ao apagar das luzes do governo Fernando Henrique Cardoso, foi promulgada a
Lei nº. 10.628/02 (publicada no Diário Oficial da União do dia 26 de dezembro do ano de 2002),
restaurando em parte a Súmula nº. 394, a partir de uma modificação estabelecida no art. 84 do
28
Código de Processo Penal, acrescentando-lhe dois parágrafos. O primeiro deles estabelece que a
“competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente,
prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício
da função pública.”
Esta lei representou um lamentável retrocesso em nossa ordem jurídica, que havia
recebido com entusiasmo o cancelamento da referida súmula.
Ademais, ampliando a competência dos Tribunais Superiores, a referida lei incidiu em
flagrante inconstitucionalidade, pois “a competência expressa determinada pela Constituição
Federal não pode ser ampliada ou estendida, uma vez que o poder constituinte originário assim
o pretendia”23, salvo se o respectivo Tribunal, interpretando ampliativamente a competência
estabelecida constitucionalmente, ele próprio o admitir, como ocorreu, verbi gratia, quando da
edição da Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal.
Neste sentido, assim decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“PETIÇÃO 3.486-4 DISTRITO FEDERAL - RELATOR: MIN. CELSO DE
MELLO - EMENTA: LIBERDADE DE IMPRENSA (CF, ART. 5º, IV, c/c O ART.
220).
JORNALISTAS.
DIREITO
DE
CRÍTICA. PRERROGATIVA
CONSTITUCIONAL CUJO SUPORTE LEGITIMADOR REPOUSA NO
PLURALISMO POLÍTICO (CF, ART. 1º, V), QUE REPRESENTA UM DOS
FUNDAMENTOS INERENTES AO REGIME DEMOCRÁTICO. O EXERCÍCIO
DO DIREITO DE CRÍTICA INSPIRADO POR RAZÕES DE INTERESSE
PÚBLICO: UMA PRÁTICA INESTIMÁVEL DE LIBERDADE A SER
PRESERVADA CONTRA ENSAIOS AUTORITÁRIOS DE REPRESSÃO PENAL.
A CRÍTICA JORNALÍS! TICA E AS AUTORIDADES PÚBLICAS. A ARENA
POLÍTICA: UM ESPAÇO DE DISSENSO POR EXCELÊNCIA.DECISÃO: O
ora requerente postula seja instaurado procedimento penal contra jornalistas
da revista Veja (edição de 03/08/2005, págs. 75 e 125), por vislumbrar tenham
eles praticado, no exercício de sua atividade profissional (fls. 06/07), “crime de
subversão contra a segurança nacional, que está colocando em perigo o regime
representativo e democrático brasileiro, a Federação e o Estado de Direito e
crime contra a pessoa dos Chefes dos Poderes da União (...)” (fls. 02 – grifei).
Observo, no entanto, que as pessoas indicadas na petição de fls. 02/05 não
estão sujeitas à jurisdição imediata do Supremo Tribunal Federal, razão pela
qual nada justifica a tramitação originária, perante esta Suprema Corte, do
procedimento em causa. Cabe assinalar que a competência originária do
Supremo Tribunal Federal, por revestir-se de extração eminentemente
constitucional, sujeita-se, por tal razão, a regime de direito estrito, o que
impede venha ela a ser estendida a situações não contempladas no rol exaustivo
inscrito no art. 102, inciso I, da Constituição da República, consoante adverte a
doutrina (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à
Constituição Brasileira de 1988”, vol. 2/217, 1992, Saraiva) e proclama a
23
Luiz Flávio Gomes, Juizados Criminais Federais, seus reflexos nos Juizados Estaduais e outros estudos, São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 157.
29
jurisprudência desta própria Corte (RTJ 43/129 - RTJ 44/563 - RTJ 50/72 - RTJ
53/776 - RTJ 159/28): “(...) A COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL - CUJOS FUNDAMENTOS REPOUSAM NA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA - SUBMETE-SE A REGIME DE DIREITO ESTRITO- A
competência originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificar-se como
um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente
constitucional - e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida - não
comporta a possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os limites
fixados, em ‘numerus clausus’, pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da
Constituição da República. Precedentes. (...).”(RTJ 171/101-102, Rel. Min. !
CELSO DE MELLO, Pleno) A ´ratio` subjacente a esse entendimento, que
acentua o caráter absolutamente estrito da competência constitucional do
Supremo Tribunal Federal, vincula-se à necessidade de inibir indevidas
ampliações descaracterizadoras da esfera de atribuições institucionais desta
Suprema Corte, conforme ressaltou, a propósito do tema em questão, em voto
vencedor, o saudoso Ministro ADALÍCIO NOGUEIRA (RTJ 39/56-59, 57).
Desse modo, os fundamentos ora expostos levam-me a reconhecer a
impossibilidade de tramitação originária deste procedimento perante o Supremo
Tribunal Federal.” (Grifos nossos).
O próprio STF aceita a sua competência para julgar outras pessoas além daquelas
estabelecidas na Constituição Federal, como ocorreu no famoso caso “que envolveu o exPresidente Collor e PC Farias, quando este também foi julgado pela Suprema Corte, não
obstante a ausência de permissivo constitucional.”24
Neste sentido, também conferir RTJ,
84/713 e Inquérito nº. 184-8/DF. Observe-se, porém, que, nestes casos, além da evidente
continência que obrigaria ao simultaneus processus (art. 77, I, Código de Processo Penal), o
próprio STF admitiu processar e julgar os demais acusados, interpretando ampliativamente os
dispositivos constitucionais. Aliás, recentemente, a Suprema Corte editou a Súmula 704, in
verbis: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a
atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função
de um dos denunciados.”
Atenta, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP interpôs
Ação Direta de Inconstitucionalidade para tentar retirar a eficácia dos dois parágrafos
acrescentados pela lei. Da petição inicial, vejamos alguns trechos:
“Com esses dispositivos, o legislador ordinário arvorou-se em Poder
Constituinte e acrescentou mais uma competência originária ao rol exaustivo de
competências de cada tribunal, além de se arvorar, desastradamente, em
intérprete maior da Constituição. Com efeito, é cediço que constitui tradição
24
Fernando da Costa Tourinho Filho, Código de Processo Penal Comentado, Vol. 01, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed.,
2001, p. 209.
30
vetusta do ordenamento jurídico pátrio que a repartição da competência
jurisdicional, máxime da competência originária para processo e julgamento de
crimes comuns e de responsabilidade, é fixada na Constituição da República, de
forma expressa e exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva. Se assim é
com relação ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores, aos
tribunais regionais federais e aos juízes federais, também o é com relação aos
tribunais estaduais, cuja competência também há de ser fixada em sede
constitucional estadual, segundo expresso mandamento da Constituição Federal
(...). Ora, definir é pôr limites e, se os limites da competência dos tribunais estão
no texto constitucional, quer federal, quer estadual, não pode o legislador
ordinário ultrapassá-los, acrescentando nova competência ao rol exaustivo
posto na Constituição, como se poder constituinte fosse. (...) Não pode, pois, a
lei ordinária, como o Código de Processo Penal, regular matéria que só pode
ter sede constitucional. O que já se expôs é bastante para demonstrar a
inconstitucionalidade de ambos os parágrafos, aqui questionados.
Especificamente quanto ao § 1º., ora impugnado, o legislador ordinário se
arvora em intérprete do texto constitucional, no que diz respeito à própria
competência dos tribunais, inclusive dessa Suprema Corte, dando-lhe
interpretação divergente daquela já firmada por esse Tribunal Maior,
consubstanciada no cancelamento da Súmula 394 (...). Ora, se o intérprete
maior da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, já decidiu, há quase um
lustro, que o texto constitucional não contempla a hipótese de prorrogação do
foro por prerrogativa de função, quando cessado o exercício desta, não pode o
legislador ordinário editar norma de natureza constitucional, como se esta
tivesse o condão de compelir a Suprema Corte a voltar à interpretação, já
abandonada, de uma norma da Constituição.” (ARISTIDES JUNQUEIRA
ALVARENGA - OAB/DF 12.500).
Nesta ação, o parecer exarado pelo Ministério Público Federal, subscrito pelo ProcuradorGeral da República, também concluiu pela inconstitucionalidade (formal) da lei, em que pese sob
diferente fundamento. Eis um trecho:
“Contudo vislumbra-se sério obstáculo que redunda na inconstitucionalidade
formal a macular a norma inserta no § 1.º do art. 84 do Código de Processo
Penal, com a redação dada pela Lei n.º 10.628/02, pois somente o próprio
Supremo Tribunal Federal é que teria que adotar tal exegese da norma
constitucional sobre sua própria competência originária e não o legislador
ordinário. Há, assim, a nosso ver, violação do disposto no art. 2.º, da
Constituição da República. O § 1º. viola o princípio da independência e
harmonia dos poderes e usurpa a competência do Supremo Tribunal Federal
enquanto guardião máximo da Constituição, segundo o caput do art. 102. A lei
neste ponto interpreta a Constituição, na verdade, revogando a exegese mais
recente do Supremo Tribunal Federal e lembra o caso emblemático Marbury v.
Madison da Suprema Corte Americana. Aliás, como se sabe, toda a teoria
judicial review começa com a inconstitucionalidade formal naquele caso, sob
inspiração do Chief Justice MARSHALL, quando o Congresso Americano
pretendeu, por lei, criar competência originária para a Suprema Corte relativa
ao writ of mandamus. A competência originária daquela corte é somente a
definida no próprio texto da Constituição e não em leis (´Statutes´) do
31
Congresso. A situação aqui não é exatamente a mesma, porque havia
jurisprudência consolidada em Súmula do Supremo Tribunal Federal
interpretando a Constituição de 1946 e leis federais, convivendo com a vigência
da Constituição Federal de 1988 durante mais de dez anos. E, além disso, a lei
não criou competência originária propriamente, mas, na verdade, a recriou,
após abolida por interpretação da CF 88 pelo próprio Supremo Tribunal
Federal. A decisão majoritária proferida pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal na Questão de Ordem no Inquérito n.º 687-4, de que foi relator o
eminente Ministro SYDNEY SANCHES, estabeleceu que ´A tese substanciada
nessa Súmula [394] não se refletiu na Constituição de 1988´, acompanhando o
relator os eminentes Ministros MOREIRA ALVES, OCTAVIO GALLOTTI,
CELSO DE MELLO, MARCO AURÉLIO e, o então Presidente, CARLOS
VELLOSO. Não vejo, pois, como deixar de considerar que o § 1.º do art. 84, do
Código de Processo Penal, introduzido pela recentíssima Lei n.º 10.628, de 24
de dezembro de 2002, tenha afrontado a decisão do Supremo Tribunal Federal,
que cancelou a Súmula 394, por maioria de votos, ainda que entenda, como
entendo, ser correta a posição minoritária da Corte. É verdade que, como
acentua o ilustre constitucionalista de Harvard Professor LAURENCE TRIBE,
podem existir ´competing interpretations´ da Constituição pelos três Poderes.
Nas suas próprias palavras: ´And it is clear that, despite the growth of federal
judicial power, the Constitution remains in significant degree a democratic
document – not only written, ratified and amended through essentially
democratic processes but indeed open at any given time to competing
interpretations limited only by the values which inform the Constitution´s
provisions themselves, and by the complex political processes that the
Constituition creates – processes which on various occasions give the Supreme
Court, Congress, the President, or the states, the last word in constitutional
debate.´ (Vide American Constitutional Law, 2nd. ed.; The Foundation Press,
New York, 1988, p. 41-42). Mas é da essência do controle jurisdicional de
constitucionalidade, em caso de confronto, que a última palavra sobre a
Constituição (ainda mais quando se trata de definição de sua competência
originária) seja da Suprema Corte, como reconhece TRIBE, sendo obrigatória
para os demais Poderes suas interpretações da Constituição (´The Court´s
interpretations of the Constitution are binding on other government actors´)
(ibid. p. 35). (Vide ainda LAURENCE H. TRIBE, Constitutional Choices,
Harvard University Press, Cambridge and London, 1995; e On Reading the
Constitution, id., 1991). Há ainda inúmeras decisões da Suprema Corte dos
EUA – a despeito de ser competência do Congresso Americano definir em lei a
jurisdição das cortes federais inferiores – tendo como inconstitucionais normas
legais restringindo o âmbito da competência em razão de decisões judiciais
sobre matérias politicamente controvertidas (como aborto, ação afirmativa e
outros) cujo mérito contrariam interesses e posições de facções eventualmente
majoritárias no Congresso Americano (Vide Tinsley E. Yarbrough, The
Rehnquist Court and The Constitution, Oxford University Press, 2000). Assim, é
que deve ser declarado inconstitucional o § 1.º, do art. 84, do CPP, introduzido
pela Lei n.º 10.628/02, bem como a expressão "observado o disposto no § 1.º ",
constante do § 2.º, in fine, por violar o art. 2.º e o caput, do art. 102, da
Constituição da República, na medida em que constituem afronta à exegese da
norma constitucional (art. 102, I, b e c) adotada pelo Supremo Tribunal Federal
ao cancelar a Súmula 394 e expressamente estabelecer que a tese nela
substanciada não se refletiu na Constituição de 1988. É possível que o Supremo
Tribunal Federal novamente reveja sua posição, com a nova composição da
32
Corte (com os votos da eminente Ministra ELLEN GRACIE e do eminente
Ministro GILMAR MENDES), inclusive no julgamento desta ação,
restabelecendo em parte o entendimento anterior mediante a adoção de nova
Súmula nos termos do voto do eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE na
citada Questão de Ordem. Se isso ocorrer, já serão os votos de cinco Ministros
restando apenas um dos Ministros que já votaram na referida Questão de
Ordem reconsiderar sua posição para aderir à proposta de nova Súmula. Nesta
hipótese, inexistindo incompatibilidade entre a norma legal e a interpretação do
Supremo Tribunal Federal não se poderá considerá-la formalmente
inconstitucional, por não mais se configurar confronto com o Judiciário,
podendo ser convalidada pelo próprio Supremo Tribunal Federal.” (Dr. Geraldo
Brindeiro).
A jurisprudência posicionou-se, em sua maioria, contra a lei. No Tribunal de Justiça do
Paraná, por exemplo, decidiu-se:
“PRERROGATIVA DE FORO – LEI Nº. 10.628/02 – EX-AGENTES
INCONSTITUCIONALIDADE – COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE 1º. GRAU. Se a Constituição Federal prescreve que ´a competência dos tribunais
estaduais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização
judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça´ [art. 125, § 1º], é manifesta a
inconstitucionalidade da lei nº. 10.628/02, que concedeu prerrogativa de foro a
ex-agentes, ampliando o rol de competência dos tribunais, o que só poderia ser
feito pelo poder constituinte derivado, e nunca pelo legislador ordinário. Tratase de habeas corpus impetrado em favor do ex-secretário de Estado da Fazenda
do Paraná, contra decisão do juiz da Central de Inquéritos, que decretou a
prisão preventiva do paciente e de outros. Os impetrantes sustentam que,
estando em vigor a lei 10.628/02, que alterou o art. 84 do CPP, o juízo de 1º
grau é incompetente, pois a investigação diz respeito a fatos ocorridos quando o
paciente exercia o cargo de secretário de Estado da Fazenda. Salientam, ainda,
que o decreto de prisão preventiva carece de fundamentação, sendo, ademais,
desnecessária a custódia. (...) A Procuradoria Geral de Justiça opinou pela
inconstitucionalidade do § 1º do art. 84, com redação dada pela Lei 10.628/02
e, ainda, pela revogação da liminar concedida. (...) Cumpre, de início, salientar
que não está em discussão a conveniência e necessidade ou não da prerrogativa
de foro – a qual diz respeito à função exercida pelo agente e não tem conotação
pessoal, sendo, portanto, equivocado o uso da expressão ´privilégio´ -, mas
apenas o aspecto formal de constitucionalidade da lei 10.628/02. Referida lei
alterou a redação do art. 84 do CPP, acrescentando-lhe, ainda, dois
parágrafos, ao estabelecer que a ação relativa a atos administrativos do agente
e de improbidade deverão ser propostas perante o tribunal competente para
processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade, na hipótese de
prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, ainda que o
inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da
função pública. (...) No entanto, cabe à Constituição Federal e à Constituição
Estadual a definição a respeito da competência, bem como as circunstâncias e
pessoas que estão sujeitas à prerrogativa de foro. A lei 10.628/02, ao conceder
prerrogativa de foro a ex-agentes, ampliou o rol de competências dos tribunais,
o que só poderia ser feito pelo poder constituinte derivado, e nunca pelo
legislador ordinário. Houve, dessa forma, violação aos arts. 102, I; 105, I; 108,
33
I e 125, § 1º, todos da Constituição Federal e que regulamentam a competência
do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunais
Regionais Federais e Tribunais de Justiça, respectivamente. Especificamente em
relação à competência dos Tribunais de Justiça, diz o § 1º do art. 125 da
Constituição Federal que ´será definida na Constituição do Estado´, de modo
que não pode ser ampliada pelo legislador ordinário. (...) ALEXANDRE DE
MORAES salienta que: ´A citada lei [referindo-se à de nº 10.628/02]
estabeleceu, ainda, que essa competência especial por prerrogativa de função
deverá prevalecer ainda que o inquérito ou a ação judicial se iniciem após a
cessação do exercício da função pública, revigorando, no campo civil, a antiga
regra da contemporaneidade fato/mandato prevista na Súmula 394 do STF, hoje
cancelada. Essa perpetuação de competência, igualmente, fere a interpretação
dada pelo STF à questão dos foros especiais e, conseqüentemente, deverá ser
declarada inconstitucional.´ Ressalte-se, ademais, que a alteração promovida
pela lei 10.628/2002 incide sobre o conteúdo de norma constitucional. Com
efeito, o art. 102 da CF estabelece que ´compete ao STF, precipuamente, a
guarda da Constituição´. Dessa forma, exercendo sua função jurisdicional, o
STF interpreta a Carta Maior e estabelece seu alcance. O resultado da
interpretação de norma constitucional tem, por óbvio, força normativa de
Constituição, pelo que não pode ser alterado pelas vias ordinárias. (...) Ao
cancelar a Súmula 394, o Excelso Pretório fixou nova interpretação ao art. 102
da CF, segundo a qual cessado o exercício da função ensejadora da
prerrogativa de foro, esta também desaparece. Sendo tal interpretação parte da
Constituição, fadada à inconstitucionalidade está a norma de lei ordinária que
dispuser o contrário, como pretendeu a Lei 10.628/2002. Ademais, o
procedimento do legislador que, descontente com a alteração de
posicionamento do STF relativamente à matéria ventilada, pretende impor sua
noção de justiça por meio de edição de nova norma de hierarquia inferior,
afronta o disposto no art. 2º da CF [relativo ao princípio da harmonia e
independência entre os poderes], pois visa a embaraçar o livre exercício da
função jurisdicional de nossa Corte Constitucional. (...) Dessa forma, são
inconstitucionais as normas dos §§ 1º e 2º do art. 84 do CPP, na redação dada
pela Lei 10.628/2002, quando estendem a ex-agentes públicos prerrogativa de
foro. Portanto, competente para processar e julgar o paciente é o juízo de
primeiro grau. (...) Diante do exposto, ACORDAM os integrantes do Órgão
Especial do Tribunal de Justiça do Paraná, preliminarmente, por maioria, em
reconhecer a inconstitucionalidade da lei nº 10.628/02, bem como a
competência do Juízo de 1º grau para o julgamento da ação penal e determinar
a devolução dos autos à colenda 2ª Câmara Criminal (...).
De toda maneira, atente-se que a lei referia-se expressamente “a atos administrativos do
agente”, de forma que caso a infração penal não dissesse respeito diretamente às suas funções,
não prevaleceria a competência por prerrogativa de função se ele não mais ocupasse a função
pública respectiva.
O crime, portanto, deveria ter estreita e indissociável ligação com ato
administrativo do agente, isto é, ter a natureza de delito tipicamente funcional. Exemplificando:
se um ex-Prefeito ou um ex-Ministro cometesse um homicídio culposo na direção de veículo
automotor somente seria processado perante o Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal
34
enquanto durasse o mandato ou estivesse no Ministério, respectivamente. Cessadas estas
circunstâncias, o processo deveria ser encaminhado ao Juízo de 1º. grau competente, a saber, o do
local onde se consumou o crime (art. 70 do Código de Processo Penal), pois o homicídio culposo
não dizia respeito às suas funções administrativas. Contrariamente, se o crime praticado fosse,
verbi gratia, peculato ou corrupção passiva, ainda sim, mesmo após o término da função pública,
haveria a perpetuatio jurisdictionis e a ação penal continuaria na superior instância até final
julgamento.
Aliás, a Ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, determinou a remessa do
Inquérito nº. 1984, instaurado contra um ex-Deputado Federal, à Justiça Comum de 1º. Grau de
São Paulo. Ele era investigado por crimes contra a ordem tributária e contra o sistema financeiro
nacional. Naquela decisão, a Ministra, acolhendo o parecer do Ministério Público, afirmou que
“apesar de as condutas imputadas a (...) terem sido praticadas durante o mandato de deputado
federal, não guardam qualquer relação com a função pública por ele exercida”. Ainda segundo a
Ministra, em sessão de 23 de abril do ano de 2003, o Plenário do STF fixou o entendimento de
que “somente se mantém a prerrogativa de foro após a saída do cargo nos casos em que a
conduta delitiva se relacione com os atos administrativos do agente”.
Neste mesmo sentido, veja-se outra decisão do Pretório Excelso:
“Inq 718 QO / SP - SÃO PAULO. QUESTÃO DE ORDEM NO INQUÉRITO.
Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Julgamento: 23/04/2003
Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJ DATA-16-05-2003 PP00092 EMENT VOL-02110-01 PP-00010. Ementa: EMENTA: Supremo
Tribunal Federal: competência penal originária por prerrogativa de função
após a cessação da investidura: L. 10628/02. 1. O art. 84, § 1º. C.Pr.Pen,
introduzido pela L. 10628/02 não restabeleceu integralmente a cancelada Súm.
394: segundo o novo dispositivo a competência especial por prerrogativa de
função só se estende após cessada a investidura determinante se a imputação
for "relativa a atos administrativos do agente". 2. Por isso, independentemente
do juízo sobre a constitucionalidade ou não da lei nova - objeto da ADIn 2797 -,
não compete ao STF a supervisão judicial de inquérito em que indiciado exDeputado Federal por suspeita de participação de desvio de subsídios da União
a entidade privada de assistência social, cuja direção integrava. Observação:
Votação: unânime. Resultado: determinada a competência para o Superior
Tribunal de Justiça. Acórdãos citados: Inq-687-QO, (RTJ-179/712), Inq-1772,
ADI-2797.”
Em outra oportunidade, ao negar uma liminar na Reclamação nº. 2.984-1, o Ministro
Gilmar Mendes decidiu que para o reconhecimento da prerrogativa de função deve estar
demonstrada, “de modo inequívoco, a correlação entre os atos imputados ao reclamante e o
35
exercício do cargo de Prefeito.” Nesta mesma decisão, o Ministro afirmou que, apesar de
considerar “que a expressão ´atos administrativos` deva ser entendida em sentido amplo”, deve
restar presente “a correlação entre as condutas supostamente criminosas que seriam objeto
daqueles procedimentos criminais com o exercício do cargo de Prefeito.” (Brasília, 26 de
novembro de 2004). Fonte: STF.
Neste mesmo sentido, em sessão realizada no dia 17 de maio de 2005, a 1ª. Turma do
Supremo Tribunal Federal indeferiu o Habeas Corpus nº. 85675, impetrado pela defesa do
Secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Ele responde a uma ação penal por suposta
prática de crime contra a honra cometido quando exercia o mandato de Governador do Estado e
pedia para ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça. Inicialmente, o relator do processo,
Ministro Marco Aurélio, trouxe à Turma o julgamento de questão de ordem sobre a incidência ou
não, no caso, do artigo 84 do Código de Processo Penal que confere foro especial por
prerrogativa de função a ex-ocupantes de cargos públicos. A queixa-crime contra o então
Governador foi oferecida originalmente no STJ. No entanto, após a sua renúncia ao cargo para
disputar as eleições presidenciais de 2002, o STJ enviou o processo para a Justiça estadual. A
defesa sustentou que a Lei nº. 10.628/02 deveria ser aplicada para o retorno do processo ao
tribunal superior. Os Ministros decidiram, vencido o relator, que o ato praticado pelo Secretário
de Estado não se relacionava com o exercício do cargo de Governador e que, nesse sentido, não
se aplicaria o foro especial previsto no artigo 84 do CPP, independentemente da discussão de sua
constitucionalidade ou não contestada no Supremo na ADI 2797. Após julgada a questão de
ordem, a Turma, em decisão unânime, indeferiu o habeas corpus mantendo a decisão do STJ que
encaminhou o processo para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, órgão competente para
julgar ação contra Secretário de Estado. Observe-se que neste caso concreto, a queixa-crime teria
sido formulada em razão de uma declaração do então Governador, durante uma reunião política,
contra a vice-governadora. Fonte: STF.
“HABEAS CORPUS Nº 42.867 - ES (2005/0050371-5) - RELATOR: MINISTRO
JOSÉ ARNALDO DA FONSECA. EMENTA: HABEAS CORPUS. PRISÃO
PREVENTIVA. EX-DEPUTADO ESTADUAL. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA.
ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO SINGULAR. NATUREZA E
EXTENSÃO DAS INFRAÇÕES PENAIS QUE EXCEDERAM ATOS
MERAMENTE ADMINISTRATIVOS. INAPLICABILIDADE DO § 1º DO ART.
84 DO CPP. A prerrogativa de função após o término do mandato para
julgamento dos crimes praticados no exercício deste somente pode ser
considerada se a natureza e a extensão das infrações guardam estreito contato
com a prática de atos meramente administrativos por parte do agente. Por isso,
36
exorbitando a ação do munus público, por meio de variada atuação criminosa,
não há por certo a prevalência do foro privilegiado, consoante previsto pelo §1º
do art. 84 do CPP, alterado pela Lei n.º 10.628/02. Ordem denegada.”
Em sessão realizada no dia 13 de agosto de 2003, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça
de São Paulo declarou inconstitucional o § 1.º do art. 84 do Código de Processo Penal. Esta
decisão foi tomada por unanimidade (24 votos a 0). Em conseqüência, todos os processos
criminais movidos contra ex-prefeitos no Estado serão devolvidos à primeira instância. A
primeira decisão de mérito no País pela inconstitucionalidade da lei foi de uma Câmara Criminal
do TJSP, em janeiro, quando esta negou o foro privilegiado para um ex-prefeito do interior. Em
março, a desembargadora Tereza Ramos Marques, do Tribunal de Justiça de São Paulo também
negou foro privilegiado numa ação cível para o Deputado Federal Luiz Antonio Fleury Filho
(PTB) e outros 22 ex-diretores do Banespa. Eles são acusados de conceder empréstimos
irregulares, entre 1991 e 1992, no valor de R$ 107 milhões, à Paraquímica S.A.25
Em decisão exarada nos autos da Reclamação nº. 2657 MC/PR, o seu Relator, Ministro
Celso de Mello, deixou consignado textualmente o seguinte:
“(...) Pessoalmente, entendo revelar-se altamente duvidosa a legitimidade
jurídico-constitucional da Lei nº 10.628/2002, especialmente se for ela
analisada na perspectiva das atribuições jurisdicionais deferidas, a esta
Suprema Corte, pela própria Constituição, considerando-se, para esse efeito,
de um lado, razões de ordem doutrinária (ALEXANDRE DE MORAES, "
Constituição do Brasil Interpretada", p. 2.681/2.683, item n. 17.3, 2ª ed.,
2003, Atlas; RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, "Ação Popular", p.
120/130, 1994, RT; HUGO NIGRO MAZZILLI, "O Inquérito Civil", p.
83/84, 1999,
Saraiva;
MARCELO
FIGUEIREDO, "Probidade
Administrativa", p. 91, 3ª ed., 1998, Malheiros; WALLACE PAIVA MARTINS
JÚNIOR, "Probidade Administrativa", p. 318/321, item n. 71, 2001, Saraiva;
MARINO PAZZAGLINI FILHO, "Lei de
Improbidade Administrativa
Comentada", p. 173/175, item n. 3.5, 2002, Atlas; JOSÉ AFONSO DA SILVA,
"Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 558, item n. 7, 23ª ed., 2004,
Malheiros, v.g.), e tendo em vista, de outro, que a competência do Supremo
Tribunal Federal, precisamente por revestir-se de extração constitucional,
submete-se, por isso mesmo, a regime de direito estrito (RTJ 43/129 / RTJ
44/563 - RTJ 50/72 / RTJ 53/766 - RTJ 94/471 - RTJ 121/17 / RTJ 141/344 ?
RTJ 171/101-102, v.g.), não podendo, desse modo, ser ampliada, nem
restringida, por legislação meramente comum (ordinária ou complementar),
sob pena de frontal desrespeito ao texto da Lei Fundamental da República.
Impende assinalar que a discussão em torno da validade constitucional, ou
não, da Lei nº 10.628/2002 - consideradas as premissas em que esse debate se
trava, versando a possibilidade, ou não, de a lei ordinária ampliar a
25
Fonte: Jornal O Estado de São Paulo (http://www.estado.com.br). Data 14/08/2003. Íntegra da notícia:
http://www.estado.estadao.com.br/editorias/2003/08/14/pol023.html
37
competência do Supremo Tribunal Federal (e de outras Cortes judiciárias cujas
atribuições também se achem unicamente definidas em sede constitucional) confere impressionante atualidade ao precedente histórico que a Suprema Corte
dos Estados Unidos da América firmou no caso "Marbury v. Madison", em
1803, quando aquela Alta Corte enfaticamente
assinalou que o
delineamento constitucional de suas atribuições originárias foi concebido
pelos "Founding Fathers" com o claro propósito de inibir a atuação do
Congresso dos Estados Unidos da América, impedindo-o de proceder, em
sede de legislação meramente ordinária, a indevidas ampliações da
competência daquele Tribunal, fazendo, do rígido círculo traçado pelo
Artigo III da Constituição americana, um instrumento de proteção do órgão
de cúpula do Poder Judiciário, em face do Poder Legislativo daquela
República. Vale mencionar, neste ponto, a observação feita por BERNARD
SCHWARTZ ("A Commentary on the Constitution of the United States", Part I,
p. 367, n. 143, 2ª ed., 1963, The Macmillan Company, New York), a propósito
do alto significado político-jurídico de que se revestiu a decisão proferida em
"Marbury v. Madison": ´Even more important, as a consequence of the
original jurisdiction of the highest Court being derived from the basic
document itself, is the placing of such jurisdiction beyond Congressional
control. This has been settled ever since Marbury v. Madison. The statute
held unconstitutional there was one which was construed as vesting the Supreme
Court with the original jurisdiction to issue writs of mandamus. Chief
Justice Marshall rejected the contention that, since the organic clause
assigning original jurisdiction to the high bench contained no express
negative or restrictive words, the power remained in the legislature to assig
original jurisdiction in that Court in cases other than those specified. On
the contrary, said Marshall, a negative or exclusive sense must be given to the
cases of original jurisdiction spelled ou in Article III. The statute at issue in
Marbury v. Madison, was ruled invalid because it sought to give the Supreme
Court original jurisdiction in a case not specified by Article III. Under Marbury
v. Madison, then, the Congress may not enlarge the original jurisdiction of the
high bench. But the reasoning of that great case applies with equal force to
legislative attempts to restrict the Supreme Court's original jurisdiction. The
constitutional definition of such jurisdiction deprives Congress of any
power to define it. The legislative department may neither extend nor limit
the terms of the organic grant.` (grifei). É importante rememorar, neste ponto,
que o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 17 de agosto de
1895 (Acórdão n. 5, Rel. Min JOSÉ HYGINO), já advertia, no final do
século 19, não ser lícito ao Congresso
Nacional, mediante atividade
legislativa comum, ampliar, suprimir ou reduzir a esfera de competência da
Corte Suprema, pelo fato de tal complexo de atribuições jurisdicionais derivar,
de modo imediato, do próprio texto constitucional, proclamando, então,
naquele julgamento, a impossibilidade de tais modificações por via meramente
legislativa, ´por não poder qualquer lei ordinária augmentar nem
diminuir as atribuições do Tribunal (...)` (Jurisprudência/STF, p. 100/101,
item n. 89, 1897, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, grifei). Brasília, 21 de
junho de 2004.” (Decisão publicada no DJU de 25.6.2004).
O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, pareceu ter adotado entendimento diverso,
pois a sua Corte Especial recebeu, em decisão unânime, a denúncia do Ministério Público
38
Federal contra um ex-governador do Estado do Acre, acusado de desviar valores descontados das
folhas de pagamento dos servidores públicos estaduais. A Corte também considerou válidos todos
os atos realizados pelas instâncias judiciárias anteriores. Anteriormente, o próprio STJ havia
reconhecido a sua incompetência diante da revogação da súmula 394 pelo STF. A denúncia,
então, foi encaminhada ao Juízo Federal da 3ª. Vara da Seção Judiciária do Acre que, por sua vez,
enviou-a à Justiça Estadual. Ao receber os autos, o Juízo Estadual, já diante da nova lei,
determinou o reenvio da denúncia para o STJ. A denúncia, então, foi analisada pela Corte
Especial, tendo como relator o Ministro Antonio de Pádua Ribeiro. Ao votar pelo recebimento da
peça acusatória, o relator também considerou “válidos todos os atos praticados antes da
alteração da competência, acolhendo o parecer no sentido da desnecessidade de oferecimento de
nova defesa, já ofertada por duas vezes nas instâncias ordinárias (Juízos por onde o processo
passou antes de voltar ao STJ).” Neste aspecto, o Ministro lembrou precedente da Corte Especial
no mesmo sentido do seu voto de que "a mudança de competência originária em razão do foro
privilegiado não importa em nulidade dos atos anteriormente praticados". (APN nº 282 - com
informações do STJ). Agora recentemente (15 fevereiro de 2005), o mesmo Superior Tribunal de
Justiça determinou, em decisão liminar concedida em sede de habeas corpus, que o Tribunal de
Justiça de São Paulo julgue o ex-prefeito de Buritama, no Noroeste do Estado de São Paulo. O
prefeito, que é acusado de desviar recursos públicos por meio de contratos fraudulentos com o
Instituto de Tecnologia Aplicada à Informação (Iteai), teve em janeiro o processo remetido pelo
Tribunal de Justiça de volta à Buritama, depois que não conseguiu se reeleger. A liminar foi
concedida pelo Ministro Gilson Dipp, da 5.ª Turma do STJ.
Esta mesma Corte, porém, em outra oportunidade negou o direito ao foro especial a um
ex-Governador, reafirmando que a prerrogativa de função só subsistia em relação a fatos
relacionados com as funções do acusado. Segundo voto do relator, Ministro Peçanha Martins,
"não obstante os fatos tidos como ofensivos terem ocorrido quando o impetrante era governador
de Estado, sua renúncia ao cargo resultou na perda do foro especial. No caso, a lei não socorre
ao impetrante, porque se trata de queixa-crime contra a honra, e a lei somente se aplicaria aos
crimes decorrentes de atos administrativos do agente.” (AgRg no HC 31.651-RJ).
De toda maneira, na sessão plenária realizada no dia 15 de setembro do ano de 2005, por
maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade dos §§ 1º. e 2º. do
art. 84 do Código de Processo Penal. O relator, Ministro Sepúlveda Pertence, julgou procedente a
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2797 e 2860) proposta pela Associação Nacional dos
39
Membros do Ministério Público (Conamp) e pela Associação Nacional dos Magistrados (AMB).
Acompanharam esse voto os Ministros Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso,
Marco Aurélio, Carlos Velloso e Celso de Mello.Os Ministros Eros Grau, Gilmar Mendes e Ellen
Gracie divergiram do relator. Leia, no final do artigo, a íntegra do voto do Ministro Celso de
Mello. Infelizmente, já existe uma Proposta de Emenda Constitucional, PEC 358/2005,
acrescentando à Constituição Federal o art. 97-A, caput e parágrafo único, ampliando o foro por
prerrogativa de função para ex-autoridades e para a ação de improbidade administrativa. Depois
desta histórica decisão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, que decidiu
preservar a validade de todos os atos processuais que eventualmente tenham sido praticados em
processos de improbidade administrativa e ações penais contra ex-detentores de cargos públicos e
de mandatos eletivos, julgados anteriormente, ao abrigo dos parágrafos 1º e 2ª do artigo 84 do
CPP, isto é, no período de vigência da Lei 10.628, que foi de 24 de dezembro de 2002 até 15 de
setembro de 2005. A decisão foi tomada no julgamento de recurso de embargos de declaração
opostos pelo procurador-geral da República em relação à decisão de setembro de 2005, nos autos
da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2797. O procurador-geral pediu a modulação dos
efeitos da decisão a partir da declaração de inconstitucionalidade da lei, preocupado com a
segurança jurídica, pois questionava como ficariam os processos julgados na vigência da lei
declarada inconstitucional.
Coerentemente, e por sete votos a quatro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu
que não cabe ao STF, mas sim ao Juízo Criminal da Comarca de João Pessoa julgar a ação penal
em que um ex-Deputado Federal, acusado de crime de homicídio qualificado, na modalidade
tentada, contra um ex-Governador da Paraíba. A decisão foi tomada durante o julgamento
de questão de ordem levantada pelo relator da Ação Penal (AP) 333, Ministro Joaquim Barbosa,
diante do fato de que o réu renunciou ao mandato parlamentar cinco dias antes do início do
julgamento da ação penal. Em outra questão de ordem, esta levantada pela defesa do exparlamentar, questionando a competência do STF para julgar ação penal envolvendo crime
doloso contra a vida, os onze ministros que integram a Corte votaram pela competência do
Supremo, quando se tratar de acusado com foro especial. Os Ministros que defenderam o
julgamento do ex-deputado pelo STF disseram entender que a renúncia dele cinco dias antes do
início do julgamento constituiu “abuso de direito” e teve o evidente propósito de frustrar o
julgamento pelo STF. Quando a votação estava empatada por 4 votos a 4, os Ministros Gilmar
Mendes e Celso de Mello determinaram o resultado, votando pela transferência do julgamento
40
para a Paraíba. Gilmar Mendes considerou que o ato de renúncia foi um gesto legítimo, dentro do
que preceitua a Constituição e, uma vez que Cunha Lima renunciou ao mandato, cessa a
competência do STF para julgá-lo. Disse, ainda, que não compartilha do argumento de que a
renúncia teria sido abuso de direito. No mesmo sentido, o ministro Celso de Mello entendeu que
a renúncia produziu plenas conseqüências, vez que o parlamentar a formulou de forma oficial à
Câmara, que declarou a vacância do cargo e convocou o suplente. “A renúncia é inquestionável”,
afirmou Celso de Mello. “Foi recebida e gerou efeitos, antes do julgamento final do processo em
curso, sendo um desses efeitos a cessação da competência do STF para julgá-lo.” Celso de Mello
defendeu o respeito do princípio do juiz natural previsto na Constituição, afirmando que ele é, por
um lado, garantia processual para qualquer pessoa em ação penal e, por outro lado, uma limitação
jurídica sobre os órgãos com poder para processar e julgar. Nesse sentido, segundo ele, o STF é
juiz natural para processar e julgar os membros do Congresso Nacional, quaisquer que sejam as
razões penais, segundo prevê a Constituição Federal. Portanto, não sendo mais deputado, Cunha
Lima não deveria ser julgado pelo STF. O Ministro Marco Aurélio alertou que a renúncia foi
legítima e ocorreu no momento em que o acusado sequer havia sido julgado. ”Ao STF compete
somente constatar o fato de que não há mais ação penal contra um deputado, mas sim contra um
cidadão comum, afastando a prerrogativa de foro”, afirmou (Fonte: STF).
Em outra oportunidade, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto
acolheu parecer do Ministério Público Federal e determinou o envio, para o Tribunal de Justiça
de São Paulo, da Ação Penal (AP 502) que tramitava na Corte contra um ex-Deputado Federal
por crime contra as finanças públicas. O Ministro explicou que, como o réu renunciou ao
mandato parlamentar para assumir a prefeitura de Santana de Parnaíba, cargo para o qual foi
eleito nas eleições de 2008, cessou a competência do STF para processar e julgar o caso. O
Ministro citou jurisprudência da Corte, no sentido de que “a prerrogativa de foro perde sua
função de ser se aquele contra quem foi instaurada a persecução penal não mais detém o ofício
público cujo exercício representava o único fator de legitimação constitucional da competência
penal originária do STF, mesmo que a prática delituosa tenha ocorrido durante o período de
atividade funcional”. Fonte: STF.
Posteriormente, no entanto, por 8 votos a 1, o Plenário do Supremo Tribunal Federal
decidiu que a renúncia de um Deputado Federal ao mandato, ocorrida no dia anterior ao seu
julgamento pelo Supremo Tribunal Federal não retira a competência da Suprema Corte para
julgar a Ação Penal (AP) 396, em curso contra o ex-parlamentar, sob acusação de formação de
41
quadrilha e peculato.A decisão foi tomada no julgamento de uma questão de ordem suscitada no
processo pelo fato de, na véspera do julgamento do parlamentar, sua defesa haver encaminhado à
relatora, ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, duas petições (uma às 17h42 e a outra, às
18h19), informando que o deputado acabara de apresentar renúncia formal ao mandato e
pleiteando a transferência do processo para a Justiça de primeiro grau.Nessas petições, a defesa
alegou que não seria razoável que o réu fosse julgado em instância única (STF), mesmo porque
dentro de três meses, de qualquer modo, ele concluiria seu mandato. Diante disso, veria
prejudicado o seu direito de ampla defesa, que ele poderia melhor exercer se o processo fosse
transferido para a Justiça de primeiro grau. Daí porque a defesa pediu que a Corte reconhecesse a
perda superveniente de sua competência para continuar julgando a AP.Ao apresentar a questão de
ordem, a ministra Cármen Lúcia disse que se trata de “fraude processual inaceitável”, uma vez
que a renúncia teria, em primeiro lugar, o objetivo de fugir à punição pelo crime mais grave de
que o ex-parlamentar é acusado (formação de quadrilha – artigo 288 do Código Penal ), que
prescreveria no mês seguinte.Ademais, contrariando os argumentos da defesa de que o réu
deixou de exercer mandato parlamentar, o agora ex-deputado concorreu às eleições de outubro
passado e obteve votação suficiente para elegê-lo a novo mandato. Entretanto, seu registro foi
negado com base na Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 13 5/2009) e está sub judice
(sendo julgado pela Justiça Eleitoral). Portanto, se vier a obter uma decisão judicial favorável,
voltará à Câmara dos Deputados.Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia citou o ministro Evandro
Lins e Silva (aposentado) que, em julgamento semelhante, afirmou que “os crimes não se
evaporam com a extinção do mandato”. Para ela, a renúncia exatamente na véspera do
julgamento da ação penal pela Suprema Corte teve claro objetivo de frustrar a atuação
jurisdicional do Estado, e foi uma tentativa de tornar o STF refém da opção pessoal do exparlamentar.Ao observar que “os motivos e fins da renúncia dão conta da insubmissão do réu ao
julgamento”, a ministra relatora lembrou que o processo contra o deputado tramita há 14 anos (e
se encontra no STF desde 2005) e, em nenhum momento antes, o parlamentar manifestou o
desejo de ser julgado pela Justiça de primeiro grau. Portanto, segundo ela, ficou c laro que se
trata de um “abuso de direito, ao qual não dá guarida o sistema constitucional vigente”.Ela
lembrou que, no seu voto no julgamento da AP 333, em que o réu renunciou cinco dias antes do
julgamento de processo contra ele no STF, afirmou que “a Constituição Federal garante
imunidade, mas não impunidade” aos detentores de mandato eletivo. Naquele processo, a
Suprema Corte encaminhou ao Juízo Criminal da Comarca de João Pessoa (PB) o julgamento do
42
então deputado Ronaldo Cunha Lima (PMDB-PB), acusado de homicídio qualificado, na
modalidade tentada, contra o ex-governador da Paraíba Tarcísio Burity (PMDB).Ao acompanhar
o voto da relatora pela continuidade do julgamento no STF, o ministro José Antonio Dias Toffoli
propôs que se adotasse como parâmetro para impossibilitar a transferência de julgamentos
semelhantes para instância inferior a data em que o processo for colocado em pauta.Já o ministro
Joaquim Barbosa, que também acompanhou o voto da relatora, propôs, como limite, a data em
que os autos forem encaminhados conclusos ao relator (isto é, por ocasião do fim da instrução do
processo, quando ele estiver em mãos do relator para elaboração de relatório e voto).O ministro
Gilmar Mendes lembrou que, após a edição da Emenda Constitucional nº 35/2001, que atribuiu
ao STF poderes para processar parlamentares sem prévio consentimento da Câmara e do Senado,
os processos contra parlamentares não ficam mais parados na Suprema Corte, o que tem
aumentado as condenações e, como consequência, o "temor" de serem julgados pelo
STF.Também o ministro Ricardo Lewandowski viu na renúncia uma clara tentativa de fraude à
lei. Por isso, ele acompanhou o voto da relatora, ao contrário de seu voto na AP 333, quando ele
concluiu que o ex-deputado Ronaldo Cunha Lima deveria ser julgado por um Tribunal do Júri da
Paraíba.Ao também acompanhar o voto do relator, lembrando que há previsão constitucional para
casos como a AP 396, o ministro Carlos Ayres Britto citou afirmação do jurista romano Ulpiano
(Eneo Domitius Ulpianus, que viveu de 150 a 228 d.C.), segundo o qual “não se pode tirar
proveito da própria torpeza”.Ao votar com a relatora, a ministra Ellen Gracie afirmou que “o
Tribunal não pode aceitar manipulação de instâncias para efeito de prescrição”. No mesmo
sentido se pronunciou o presidente da Corte, ministro Cezar Peluso. Segundo ele, aceitar a
manobra do ex-parlamentar transformaria o STF em categoria de juízes preparadores de primeiro
grau. Isso porque a Corte faria o trabalho mais demorado, que é a instrução, para os juízes de
primeiro grau julgarem.Ao concordar que o estratagema da defesa constituiu um “abuso”, o
ministro disse que “não há direito subjetivo nenhum, quando o ato é eticamente pouco
sustentável”. Segundo ele, trata-se de uma clara fraude à lei, isto é, uma tentat iva de frustar a
aplicação da lei, “absolutamente caracterizada, no caso”.Único voto discordante, o ministro
Marco Aurélio defendeu a transferência do processo para a Justiça de primeiro grau em
Rondônia. “Por sermos guardiões maiores da Constituição Federal, não podemos aditá-la”,
sustentou. Segundo ele, “cumpre constatar o fato: não ser mais o réu membro do Congresso
Nacional”.“Com a renúncia, cessou a competência da Corte”, sustentou. “A renúncia é um
43
direito potestativo”, observou, e, como tal, deve ser analisada dentro do direito de ampla defesa
do réu.
9) O art. 85 do Código de Processo Penal
A respeito do tema, merece destaque o art. 85 do Código de Processo Penal, intimamente
ligado à questão da competência por prerrogativa de função.
Como se sabe, dos crimes contra a honra tipificados em nosso Código Penal, apenas a
injúria não admite a exceptio veritatis. Já a difamação a aceita, tão-somente, quando o “ofendido
é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções” (parágrafo único do art.
139 do Código Penal), pois, neste caso, “a Administração tem interesse em saber a verdade, pois
o funcionário deve ser digno do cargo que ocupa.”26 Na calúnia, por sua vez, a possibilidade da
fides veri é a regra, sendo inadmissível apenas nos casos do art. 138, § 3º. do Código Penal.
Dispõe o art. 85 do Código de Processo Penal que nos processos por crime contra a honra,
em que forem querelantes as pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição dos Tribunais de
Justiça, a estes caberá o julgamento, quando oposta e admitida a exceção da verdade.
Este dispositivo comporta alguns esclarecimentos já enfrentados pelos nossos
doutrinadores e, principalmente, pelo Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, ainda que o referido artigo use a expressão querelante, é evidente a
possibilidade de sua aplicação quando o processo por crime contra a honra iniciar-se mediaComo
se sabe, dos crimes contra a honra tipificados em nosso Código Penal, apenas a injúria não
admite a exceptio veritatis. Já a difamação a aceita, tão-somente, quando o “ofendido é
funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções” (parágrafo único do art.
139 do Código Penal), pois, neste caso, “a Administração tem interesse em saber a verdade, pois
o funcionário deve ser digno do cargo que ocupa.”27 Na calúnia, por sua vez, a possibilidade da
fides veri é a regra, sendo inadmissível apenas nos casos do art. 138, § 3º., I, II e III do Código
Penal. Estas três ressalvas, justificam-se, respectivamente: a) para preservar a vítima do strepitus
judicii, b) por questões políticas e institucionais e c) tendo em vista a impossibilidade em nosso
País da revisão criminal pro societate.
26
Fernando da Costa Tourinho Filho, Código de Processo Penal comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2001,
p. 243.
27
Fernando da Costa Tourinho Filho, Código de Processo Penal comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2001,
p. 243.
44
Dispõe o art. 85 do Código de Processo Penal que nos processos por crime contra a honra,
em que forem querelantes as pessoas que a Constituição sujeita à jurisdição dos Tribunais de
Justiça, a estes caberá o julgamento, quando oposta e admitida a exceção da verdade.
Este dispositivo comporta alguns esclarecimentos já enfrentados pelos nossos
doutrinadores e, principalmente, pelo Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, ainda que o referido artigo use da expressão querelante, é evidente a
possibilidade de sua aplicação quando o processo por crime contra a honra iniciar-se mediante
denúncia e não queixa. Outro entendimento, aliás, não seria possível, senão este: o art. 85 do
Código de Processo Penal aplica-se nas ações penais de iniciativa privada e nas ações penais
públicas.
É de Espínola Filho a seguinte opinião:
“A despeito de usada, no artigo, a expressão – querelante -, a regra não poderá
ser afastada, se a ação penal tiver sido promovida por denúncia, mediante
representação de pessoa sujeita à jurisdição do STF ou do Tribunal de Justiça,
a qual haja sido vítima de crime contra a honra, opondo-lhe o agente a exceção
da verdade, que tenha sido admitida.”28
A propósito, Guilherme Nucci afirma que o termo querelante deve ser entendido “como a
vítima do crime contra a honra. Nem sempre, no entanto, o crime contra a honra terá, no pólo
ativo, o ofendido. Pode ocorrer de o Ministério Público assumir a titularidade da causa, nos
casos em que haja representação da vítima, funcionário público ofendido no exercício de suas
funções (art. 145, parágrafo único, do Código Penal).”29
Uma outra questão, no entanto, impõe-se: o art. 85 aplica-se às ações penais pelos crimes
de difamação e calúnia (excluída, por força de lei, a injúria), ou apenas quanto ao segundo delito?
Em outras palavras: é possível em um processo-crime por difamação, sendo oposta a
demonstratio veri, invocar-se o art. 85, deslocando-se a competência do seu julgamento para a
Superior Instância, ou isto só será juridicamente viável tratando-se de calúnia? Qual teria sido a
verdadeira intenção do legislador ao estabelecer esta prorrogação obrigatória da competência?
Respondendo a tais indagações, observa-se, desde logo, ser posição tranqüila atualmente
no Supremo Tribunal Federal que este dispositivo do Código de Processo Penal só é aplicável
28
29
Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Vol. II, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 5ª. ed., 1959, p. 220.
Código de Processo Penal Comentado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 223.
45
quando a fides veri referir-se ao delito de calúnia, não à difamação, entendimento, aliás,
compartilhado por dois dos nossos maiores processualistas, senão vejamos.
É de Frederico Marques esta lição:
“Em se tratando, porém, do art. 85 do CPP, apresenta-se como relevante, para
deslocar a competência penal do juízo de primeiro grau para o foro privilegiado
das jurisdições superiores, exclusivamente a exceção da verdade oposta e
admitida em processo por crime de calúnia. Quando a acusação tiver por objeto
crime de difamação, inaplicável é a norma contida no citado preceito legal.
“Certo é que o art. 85, citado, não faz distinção de espécie alguma. Todavia,
não se pode olvidar da ratio essendi da regra ali contida. A exceptio veritatis,
na calúnia, torna competente, por força daquele preceito legal, a jurisdição
superior, porque, admitida que seja essa defesa, pode ocorrer, secundum
eventum litis, que a justiça penal profira uma decisão de natureza declaratória,
em que se reconheça que o sujeito passivo do crime não praticou o delito que
lhe é imputado pelo autor da ofensa caluniosa. Essa decisão negativa, de
caráter declaratório, constitui pronunciamento jurisdicional definitivo, com a
imutabilidade resultante da res judicata, a respeito da relação jurídico-penal
contida no jus puniendi que surgiria, para o Estado, se a vítima da calúnia não
estivesse sendo, realmente, caluniada, visto ter cometido, de fato, a infração
penal que lhe foi atribuída.
“Ora, se determinadas pessoas não podem ser julgadas, em matéria acusatóriopenal, a não ser pelos tribunais superiores, só esses órgãos judiciários, também,
é que lhes podem dar a imunidade resultante da declaração de inexistência do
‘direito de punir’, por acolhimento da exceptio veritatis. Na difamação, o art.
85 do CPP é inaplicável, porque a exceptio veritatis não tem por objetivo
provar a existência de crime, e por isso a réplica do acusador não dará origem
a julgamento penal de caráter declaratório-negativo em que se afirme não
existir crime. Isto significa que o excepto não irá ser julgado por infração penal
alguma, em decisão apenas declaratória, ao contrário do que sucede quando
essa forma de defesa é oposta por excipiente acusado de ter praticado o crime
de calúnia.”30
Outra não é a lição de Tourinho Filho:
“Registre-se, ainda, que não obstante o parágrafo único do art. 139 do CP
permita a exceção da verdade quando o ofendido for funcionário público e a
ofensa diga respeito ao exercício da função, o direito pretoriano só admite a
aplicação do art. 85 na exclusiva hipótese de calúnia. E a razão é esta: se o
excipiente demonstrar que a pretensa vítima realmente cometeu o crime que lhe
foi imputado, o julgamento desse crime caberá ao órgão superior sob cuja
jurisdição ele estiver.
30
Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, pp. 269/270.
46
“É certo que na difamação também é possível a argüição da exceptio veritatis,
na exclusiva hipótese tratada no parágrafo único do art. 139 do CPP. Mas,
nesse caso, como se cuida de imputação de fato que não constitui infração
penal, a doutrina dominante, inclusive o direito pretoriano, não permite a
aplicação do art. 85.”31
No Supremo Tribunal Federal, como se frisou, esta é posição pacífica, bastando citar, por
todos, este julgado:
“É inaplicável ao crime de difamação o art. 85 do CPP, ainda que haja exceção
da verdade, uma vez que neste crime não é imputado à vítima a prática de fato
definido como ‘crime’, mas apenas um fato ofensivo à reputação.” (RTJ
68/316).
Ressalte-se que cabe ao Tribunal, tão-somente, o julgamento da exceção da verdade, pois
“tanto o fato principal, objeto da denúncia ou queixa, como a demonstratio veri devem ser
apreciados conglutinadamente. O Magistrado, na instrução, colhe informações sobre o fato
principal e sobre a sua veracidade ou não. Concluída a instrução criminal, os autos (se foi
oposta e admitida a exceção da verdade), segundo entendimento pacífico e remansoso do STF,
devem ser encaminhados ao Tribunal sob cuja jurisdição estiver o ofendido para o julgamento
apenas da ‘exceção’. Todas as provas já foram colhidas. Se o Tribunal considerar que a exceção
é procedente, cumprir-lhe-á não só determinar a extração de peças do processo, nos termos e
para os fins do art. 40 do CPP, como também devolver os autos à instância de origem com a
informação de que a exceção foi julgada procedente (...).”32
Vê-se, portanto, cabe ao juízo de origem, e não à Corte Superior, julgar admissível a
exceção e instruí-la, remetendo-se, somente então, os autos à Superior Instância para o
julgamento apenas da exceção. Assim, após a colheita das provas é que se desloca a competência
para o Tribunal de Justiça, julgando-se procedente ou não a demonstratio veri. Neste sentido, o
Supremo Tribunal Federal já decidiu que a “a competência do Tribunal é apenas para o
julgamento da exceção.” (1ª. Turma, HC 74.649/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, unânime, DJ
11.04.1997). Este entendimento é pacífico no STF, bastando conferir os votos dos Ministros
Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio (RT 698/432-433). No mesmo sentido, STF, Ação Penal
305, DF, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 12/08/93, v.u. e tantos outros (Exceção da Verdade
601, Mato Grosso, Pleno, Rel. Min. Paulo Brossard, 26/08/93, DJ 08/04/94, p. 7.223 e a de nº.
31
32
Tourinho Filho, obra citada, pp. 243/244.
Tourinho Filho, idem, p. 244.
47
522, Rio de Janeiro, Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 04/08/93, v.u., DJ 03/09/93, p. 17.742).
Veja-se este julgado do Supremo Tribunal Federal, reafirmando que retrata uma posição
tranqüila desta Corte em relação ao assunto:
“Nos processos por crime contra a honra, em que forem querelantes pessoas
que a Constituição sujeita à jurisdição dos Tribunais de Justiça, compete a estes
o julgamento da exceção da verdade, quando oposta é admitida. A esse
julgamento, porém, limita-se tal competência, consoante jurisprudência
reiterada do STF.” (RTJ 73/984).
Igualmente o Superior Tribunal de Justiça:
“SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - HABEAS CORPUS Nº. 53.301 - PR
(2006/0017269-0) - RELATOR: MINISTRO FELIX FISCHER – EMENTA:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CALÚNIA.
FUNCIONÁRIO PÚBLICO. JUIZ FEDERAL. EXCEÇÃO DA VERDADE.
PRERROGATIVA DE FORO. PROCESSAMENTO. COMPETÊNCIA. WRIT
IMPETRADO PERANTE O E. TRIBUNAL A QUO AINDA NÃO APRECIADO.
DENEGAÇÃO DE LIMINAR. I - "Não compete ao Supremo Tribunal Federal
conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas
corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar" (Súmula nº 691/STF).
II - No caso concreto, em que se cuida de acusação da prática de crime de
calúnia contra juízes federais, a decisão do juízo de primeiro grau de
reconhecer sua competência para o processamento da exceção da verdade e
ressalvar a competência do e. Tribunal a quo apenas para o julgamento do
incidente, está em consonância com a jurisprudência assente desta Corte e do
Pretório Excelso, não se vislumbrando qualquer ilegalidade. Por tal razão, se
mostra descabido o uso de habeas corpus para cassar a r. decisão que indeferiu
o pedido liminar. Writ não conhecido. Liminar revogada.” VOTO: (...) O
impetrante sustenta ser da competência do Tribunal Regional Federal processar
e julgar a exceção da verdade proposta pelo paciente, tendo por base o disposto
no artigo 85 do Código de Processo Penal. Destaca, ainda, o artigo 108 da
Constituição Federal e o artigo 199 do Regimento interno desta Corte. A
decisão combatida foi lançada como segue (fls. 55-57): Dispõe o art. 85 do
Código de Processo Penal que a exceção da verdade, quando oposta em
processos de crime contra a honra, contra pessoas sujeitas à jurisdição dos
Tribunais de Apelação, a este competirá o julgamento da exceção, quando
admitida. 2. interpretando este dispositivo, consolidou-se a jurisprudência do e.
Supremo Tribunal Federal no sentido de que, nestas hipóteses, ao respectivo
tribunal compete tão somente o julgamento definitivo da exceção da verdade,
devendo o juízo de admissibilidade, bem como o processamento da exceção, ser
realizado pela instância ordinária inclusive com a respectiva instrução
probatória (STF, APQO n° 305/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello,
DJU, 10.09.1993). Neste mesmo julgado, entendeu o e. Supremo Tribunal
Federal que o deslocamento da competência é cabível apenas nas hipóteses em
que o excipiente é denunciado pelo crime de calúnia, não havendo tal
deslocamento de competência nos casos de difamação.(...) Configurando os
fatos narrados na denúncia o crime de calúnia, a competência para o juízo de
48
admissibilidade da exceção da verdade, bem como de seu processamento, é
deste juízo de primeira instância, ao passo que o julgamento definitivo da
exceção competirá ao e. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, uma vez que
os exceptos estão sujeitos à jurisdição daquela Corte, na forma do art. 108, inc.
I, 'a', da Constituição da República. O precedente do egrégio Supremo Tribunal
Federal referido pela autoridade impetrada foi ementado como segue: CRIME
ELEITORAL - EXCEÇÃO DA VERDADE – EXCETO QUE DISPÕE DE
PRERROGATIVA DE FORO PERANTE O STF NOS CRIME COMUNS DISCIPLINA RITUAL DA ESCEPTIO VERITATIS - EXCEÇÃO DA VERDADE
EM CRIME DE DIFAMAÇÃO - HIPÓTESE EM QUE O STF É
INCOMPETENTE PARA JULGÁ-LA -DEVOLUÇÃO DOS AUTOS À ORIGEM.
- A formalização da exceptio veritatis contra aquele que goza de prerrogativa de
foro ratio muneris perante o Supremo Tribunal Federal desloca, para esta
instância jurisdicional, somente o julgamento da exceção oposta. Para esse
efeito, impõe-se que a exceção da verdade, de competência do Supremo
Tribunal Federal, seja previamente submetida a juízo de admissibilidade que se
situa na instância ordinária. Resultando positivo esse juízo de admissibilidade,
a exceptio veritatis deverá ser processada perante o órgão judiciário inferior,
que nela promoverá a instrução probatória pertinente, eis que a esta Corte
cabe, tão-somente, o julgamento dessa verdadeira ação declaratória incidental.
- A competência do Supremo Tribunal Federal para o julgamento da exceção da
verdade resume-se, na linha da jurisprudência desta Corte, aos casos em que a
demonstratio veri disser respeito ao delito de calúnia, no qual se destaca, como
elemento essencial do tipo, a imputação de fato determinado revestido de
caráter delituoso. Tratando-se de difamação - hipóteses em que se revela
inaplicável o art. 85 do Código de Processo Penal -, a exceção da verdade, uma
vez deduzida e admitida, deverá ser processada e julgada pelo próprio juízo
inferior, ainda que o exceto disponha, nos termos do art. 102, I, b e c, da
Constituição, de prerrogativa de foro perante o Supremo tribunal Federal.
Precedentes da Corte. Colhe-se do voto condutor do julgado, de autoria do
eminente Ministro Celso de Mello, o seguinte trecho: Por isso mesmo, o em.
Min. ASSIS TOLEDO, ao proferir, no Superior Tribunal de Justiça, como
Relator, decisão que bem reflete esse magistério jurisprudencial, deixou
corretamente assentado no tema que, verbis: “Segundo entendimento firmado
pela jurisprudência, quando o excepto gozar de competência por prerrogativa
de função, admitida a exceção da verdade, compete ao juiz processá-la,
colhendo provas e depoimentos requeridos pelas partes. Após essas
providências, caberá ao Tribunal o julgamento da exceção, A esse julgamento,
porém, limita-se a competência do Tribunal (...). Ante o exposto, converto o
processo em diligência para que o juiz se manifeste sobre a admissibilidade da
exceção oposta e, em caso qfirmativo, proceda a sua instrução com a coleta de
provas e oitivas de testemunhas arroladas. Após, retornem os autos para
julgamento.” (Exceção da Verdade n° 12-RO, DJU de 09/06/92, p. 8779). No
mesmo sentido é o julgado que segue transcrito: PENAL. CALUNIA. EXCEÇAO
DA VERDADE. 1- DESNECESSÁRIO O PRÉVIO EXAURIMENTO DA VIA
PROBATÓRIA A ADMISSIBILIDADE DA EXCEÇÃO DA VERDADE. 2COMPETÊNCIA DO STJ PARA JULGAMENTO DA EXCEPTIO, CABENDO
AO MM JUÍZA QUO A DECISÃO DE ADMISSIBILIDADE E A COLETA DE
PROVAS. 3- RECURSO CONHECIDO EM PARTE E, NESTA EXTENSÃO,
PROVIDO. (REsp n” 79. 046/CE, STJ, 6ª Turma, rel. Min. Fernando Carvalho,
DJU, ed. 02-03-1998, p. 154) (...) É o voto.”
49
Também sobre o tema, vale salientar que o Ministro Celso de Mello, do Supremo
Tribunal Federal, determinou a devolução dos autos da Ação Penal (AP 602) - que envolvia um
Deputado Federal como querelante e um jornalista como querelado) - ao juízo da 1º. Vara
Criminal da Comarca de Joinville (SC), para que lá seja processada a exceção da verdade. De
acordo com o Ministro Celso de Mello, a exceção da verdade, quando deduzida nos crimes contra
a honra que autorizam a sua oposição, deve ser admitida, processada e julgada, ordinariamente,
pelo juízo competente para apreciar a ação penal condenatória. Mas, quando se trata de exceção
da verdade deduzida contra pessoa que dispõe de prerrogativa de foro perante o STF (art. 102, I,
‘b’ e ‘c’), a atribuição da Corte será restrita ao julgamento da referida exceção. “A atribuição da
Suprema Corte restringir-se-á, unicamente, ao julgamento da referida exceção, não assistindo, a
este Tribunal, competência para admiti-la, processá-la ou sequer instruí-la, razão pela qual os
atos de dilação probatória pertinentes a esse procedimento incidental deverão ser promovidos
na instância ordinária competente para apreciar a causa principal (ação penal condenatória)”,
explicou o Ministro, que não conheceu da exceção da verdade encaminhada ao STF. De acordo
com o relator, o Juiz da 1ª. Vara Criminal de Joinville não só deixou de efetuar controle de
admissibilidade sobre a exceção da verdade, mas também sequer procedeu à instrução probatória.
“Impende assinalar, ainda, por necessário, que os atos de instrução probatória pertinentes à
exceptio veritatis (exceção da verdade) deverão efetivar-se com observância da cláusula
constitucional do due process of Law, assegurando-se, aos sujeitos processuais, em
consequência, o respeito à garantia do contraditório”, afirmou. Como a competência penal
originária do STF está restrita ao julgamento da exceção da verdade relativa ao delito de calúnia,
o Ministro Celso de Mello determinou que, somente após a realização dos atos de instrução
probatória, o processo seja encaminhado ao Supremo.
Em outro julgamento, o Supremo Tribunal Federal negou pedido de exceção da verdade
apresentado por querelado na Petição 4898, tendo como relator o Ministro Ricardo
Lewandowski. A petição, embora ajuizada na primeira instância, foi enviada à Suprema Corte
exatamente pelo fato de envolver um Deputado Federal. Segundo o Supremo Tribunal Federal, a
exceção da verdade, quando deduzida nos crimes contra a honra que autorizam a sua oposição,
deve ser admitida, processada e julgada, ordinariamente, pelo juízo competente para apreciar a
ação penal condenatória e quando se trata de exceção da verdade deduzida contra pessoa que
dispõe de prerrogativa de foro perante o STF (art. 102, I, "b" e "c"), a atribuição da Corte será
restrita ao julgamento da referida exceção.
50
Para finalizar, resta-nos questionar se a decisão proferida pelo Tribunal, na exceção da
verdade, vinculará o Juiz a quo; pergunta-se, então: o Juiz de Direito de 1ª. instância, ao decidir a
ação penal, pode dizer contrariamente ao que disse o Tribunal? Pode, por exemplo, na respectiva
fundamentação, dizer que o excipiente não logrou provar a afirmação feita, quando a superior
instância entendeu que ele havia conseguido? Ou vice-versa?
Entendemos que, apesar de se tratar de uma questão incidente, ela não poderá mais ser
rediscutida no mesmo processo (por força da coisa julgada formal). Assim, se o Tribunal julgou
procedente a exceção da verdade, a sentença absolutória se impõe; ao contrário, se a exceção foi
julgada improcedente, o querelado deve, a princípio, ser condenado (salvo a hipótese de extinção
da punibilidade ou se houver outro fundamento para uma sentença absolutória, como o
reconhecimento de uma excludente, por exemplo).
Tal conclusão não significa que em uma outra ação penal o fato não possa ser novamente
discutido, pois a decisão proferida pelo Tribunal não faz coisa julgada material; assim, caso o
Tribunal tenha declarado (incidenter tantum) que o querelado provou a imputação feita ao
querelante, na futura ação penal a ser instaurada em relação a este, os fatos podem ser
rediscutidos, em cognição plena.
Segundo Cândido Rangel Dinamarco: “as decisões dos tribunais de superposição operam
em face dos juízes e tribunais locais um fenômeno que se qualifica como preclusão, consistente
em impedi-los de voltar a decidir sobre o que já haja sido superiormente decidido. Ainda quando
se trate de matéria ordinariamente insuscetível de precluir, cabendo ao Juiz o poder-dever de
voltar a ela sempre que haja pertinência e mesmo que já se tenha pronunciado a respeito
(incompetência absoluta, condições da ação etc.: art. 267, § 3º., do CPC), essa liberdade de
atuação deixa de existir se sobre ela já houver um pronunciamento superior sobre o tema.”33
Mutatis mutandis, vejamos a lição de Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da
Cunha:
“Após a decisão do incidente, conforme foi dito, a causa volta ao órgão
julgador originário, que deve ultimar o julgamento do feito, resolvendo as
demais questões incidentes e decidindo a questão principal. O órgão originário
fica vinculado à solução que o colegiado maior deu à questão incidente – a
solução ´incorpora-se no julgamento do recurso ou da causa, como premissa
inafastável`34. Note-se que, assim, a decisão final será produto do trabalho de
dois órgãos julgadores: o órgão originário, que ficou responsável pela decisão
33
34
Apud José Henrique Mouta Araújo, in Repertório de Jurisprudência IOB, nº. 08/2005, vol. III, p. 242).
Moreira, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 12a ed., cit., p. 48.
51
da questão principal e de algumas questões incidentes, e o órgão colegiado
maior, que resolveu a questão de direito objeto do incidente que fora suscitado.
Trata-se, então, de exemplo de julgamento subjetivamente complexo. (...)
Exatamente porque o seu objeto é uma questão não-principal, a decisão do
incidente comporá a fundamentação da decisão final e, portanto, não está apta
a ficar imune pela coisa julgada material. A coisa julgada material não recai
sobre a resolução das questões que se encontram na fundamentação da decisão
(art. 469, CPC). A decisão do incidente é irrecorrível, porque ainda não há
decisão final. Trata-se, como visto, de decisão sobre uma questão incidente.
Recorrível é o acórdão do órgão originário que completar o julgamento. É
possível, porém, admitir o cabimento de embargos de declaração35, para o
esclarecimento de alguma obscuridade ou contradição porventura existente no
acórdão que julgar o incidente.”36
Louvamo-nos, mais uma vez, no magistério de Fredie Didier:
“Como visto, é importante frisar uma distinção: há questões que são postas
como fundamento para a solução de outras e há aquelas que são colocadas
para que sobre elas haja decisão judicial. Em relação a todas haverá cognição
(cognitio); em relação às últimas, haverá também iudicium. Todas compõem o
objeto de conhecimento do magistrado, mas somente as últimas compõem o
objeto de julgamento (thema decidendum). As primeiras são as questões
resolvidas incidenter tantum; esta forma de resolução não se presta a ficar
imune pela coisa julgada. O magistrado tem de resolvê-las como etapa
necessária do seu julgamento, mas não as decidirá. São as questões cuja
solução comporá a fundamentação da decisão. Sobre essa resolução, não
recairá a imutabilidade da coisa julgada. Os incisos do art. 469 do CPC
elucidam muito bem o problema: não fazem coisa julgada os motivos, a verdade
dos fatos e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no
processo. Há questões, no entanto, que devem ser decididas, não somente
conhecidas. São as questões postas para uma solução principaliter tantum:
compõem o objeto do juízo. Somente em relação a estas é possível falar-se de
coisa julgada. É o que se retira do art. 468 do CPC: a decisão judicial tem
força de lei, nos limites da lide deduzida e das questões decididas.”37
10) Os atos de improbidade administrativa
Como se disse, a lei em questão também acrescentou um segundo parágrafo ao art. 84 do
Código de Processo Penal, para estabelecer que a ação de improbidade administrativa (Lei nº.
35
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, 12a ed., cit., p. 48-49; GRECO
FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 16a ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 2, p. 364; SOUZA,
Bernardo Pimentel. “Da uniformização de jurisprudência no Código de Processo Civil”. Leituras complementares de
processo civil. 3a ed. Salvador: Edições JUS Podivm, 2005, p. 113.
36
Curso de direito processual civil. Salvador: Edições JUS PODIVM, 2006, v. 3, p. 366-368.
37
Curso de direito processual civil. 6a ed. Salvador: Edições JUS PODIVM, 2006, v. 1, p. 252-253.
52
8.429/92)38 será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o
funcionário.
38
A propósito da Lei de Improbidade Administrativa, o Supremo Tribunal Federal, exercendo sua competência para
julgar crime de responsabilidade contra ex-Ministro, decidiu que não caberia o seu julgamento pela justiça comum.
A dúvida sobre a ocorrência ou não de foro por prerrogativa de função a ex-ministro de estado foi levantada na
Reclamação (RCL) 2138, proposta pela União Federal, em agosto de 2002, contra o Juiz da 14ª Vara do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região.O juízo federal acolheu denúncia contra o ex-ministro de Ciência e Tecnologia, atual
chefe da Missão Diplomática Permanente junto à Organização das Nações Unidas (ONU), condenando-o a ressarcir
o erário público e à perda dos direitos políticos por oito anos, por ter utilizado indevidamente aeronaves da Força
Aérea Brasileira. A ação de improbidade administrativa contra o ex-ministro junto à Justiça Federal é contestada na
RCL, com base no artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c”, da Constituição Federal. Para a União, Ministro de estado
não se sujeita à lei de improbidade administrativa, respondendo, neste ponto, por crime de responsabilidade, junto ao
Supremo. O relator, Ministro Nelson Jobim (aposentado), em sessão plenária de novembro de 2002, votou pela
competência do STF para o julgamento da ação de improbidade e declarou extinto o processo que gerou a
Reclamação. Também os Ministros Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Maurício Corrêa (aposentado), Ilmar Galvão
(aposentado) e Cezar Peluso votaram no mesmo sentido. Já o Ministro Carlos Velloso (aposentado) votou pela
improcedência da Reclamação. Anteriormente, em 14 de dezembro de 2005, o Ministro Joaquim Barbosa havia
pedido vista dos autos e na sessão do dia 13/06/2007 proferiu seu voto. Para o Ministro, apesar da maioria que já se
formava quando do último julgamento pela procedência da reclamação, com os votos do relator, Ministro Nelson
Jobim e dos Ministros Maurício Corrêa e Ilmar Galvão (aposentados), da Ministra Ellen Gracie e dos Ministros
Gilmar Mendes e Cezar Peluso, seu entendimento foi pela improcedência da reclamação, no mesmo rumo do voto
divergente do Ministro Carlos Velloso (também aposentado). O Ministro ponderou que a tese até agora
preponderante é a de que “a competência do Supremo para processar e julgar ministros de estado por crimes de
responsabilidade atrairia, por abrangência de tipificação, o processamento e julgamento dos titulares desses
cargos, também pelos atos de improbidade administrativa”. No entanto, Joaquim Barbosa concordou com o
posicionamento divergente do Ministro Carlos Velloso sobre a necessidade da observância do princípio da
moralidade, quando entendeu que a tipificação da lei dos crimes de responsabilidade não abrangeria os tipos de
delitos previstos na lei de improbidade, pelos quais o ex- Ministro Ronaldo Sardemberg foi condenado.O Ministro
Joaquim Barbosa leu em Plenário os atos pelos quais Sardemberg foi condenado, entre eles, os delitos previstos no
artigo 9º, da Lei 8.429 [auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo,
mandato, função, emprego ou atividades no poder público] e, conforme o inciso IV do mesmo artigo, utilizar, em
obra ou serviço particular, veículos máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à
disposição do poder público ou o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros pagos pelo erário.Para
Joaquim Barbosa, as tipificações da lei de improbidade administrativa não se enquadram como crime de
responsabilidade da Lei 1.079/50, a não ser que se interprete, por extensão, ao proceder de modo incompatível com a
dignidade, a honra e o decoro do cargo. No caso, réu responde por delitos que não se enquadram nos dispositivos da
Lei 1.079, nem mesmo nos delitos previstos no título II, artigo 13º da mesma lei, que trata de crimes específicos de
ministro de estado.Assim, de acordo com Joaquim Barbosa, os fatos que levaram o Ministério Público a propor ação
de improbidade contra o embaixador, não se enquadram na legislação citada, e não se trata de responsabilização
política, não podendo ser aplicado o disposto no artigo 102, inciso I, alínea “c” da Constituição, motivo pelo qual
acompanhou o voto do ministro Carlos Velloso.Segundo o Ministro, “existe no Brasil uma dupla normatividade em
matéria de improbidade (ou probidade) com objetivos distintos, uma específica da Lei 8.429/92 de tipificação
cerrada e incidência sobre um vasto rol de acusados, incluindo até pessoas sem nenhum vínculo com a
administração pública”. A outra, relacionada à exigência de probidade, decorrente de preceito constitucional,
dirigida aos agentes políticos, especialmente ao chefe do Poder Executivo e os Ministros de estado. É o caso do
artigo 85, inciso V da Constituição Federal, se completando com a Lei nº. 1.079/50. São disciplinas diversas que
visam o mesmo valor ou princípio constitucional – a moralidade na administração pública, mas têm objetivos
constitucionais diversos e buscam coibir a prática de atos desonestos e antiéticos. No entanto, de acordo com
avaliação do ministro, existe um contraste quando a legislação se dirige aos fins de apuração da responsabilização
política, quando o tratamento é outro, conforme o artigo 85 da Constituição e na Lei nº. 1.079/50. Nesses casos, o
objetivo constitucional visado é muito mais elevado, tratando-se de responsabilizar os agentes políticos com
penalidades que “podem parecer brandas, se comparadas às previstas na Lei de Improbidade Administrativa, pois o
objetivo da punição é lançar no ostracismo político o agente faltoso, especialmente o Chefe de Estado, cujas ações
configurem um risco para o estado de direito, a estabilidade das instituições e, em suma a confiança da Nação”. Por
isso, ao agente condenado por esses crimes são aplicadas apenas duas punições: a perda do cargo e da perda de
53
Inicialmente, atente-se para a impropriedade da disposição encontrar-se em um código
processual penal, quando se sabe que os atos de improbidade administrativa não são ilícitos
penais, mas infrações de outra natureza (civil, administrativa e política). Logo, a previsão deveria
estar contida em outro diploma, jamais no Código de Processo Penal, livro reservado à disciplina
da persecutio criminis e de seus consectários.
Maria Sylvia Zanella di Pietro esclarece que “a natureza das medidas previstas no
dispositivo constitucional está a indicar que a improbidade administrativa, embora possa ter
conseqüência na esfera criminal, com a concomitante instauração de processo criminal (se for o
caso) e na esfera administrativa (com a perda da função pública e a instauração de processo
administrativo concomitante) caracteriza um ilícito de natureza civil e política, porque pode
implicar a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento dos
danos causados ao erário.”39 Aliás, o art. 37, § 4º. da Constituição Federal é expresso no sentido
de que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a
perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (grifo nosso). Observa-se que o
próprio texto constitucional nitidamente faz a distinção.
direitos políticos por oito anos. Joaquim Barbosa concluiu seu voto declarando que “não há impedimento à
coexistência entre os dois sistemas de responsabilização dos agentes do estado”, razão pela qual julgou que a ação
de improbidade administrativa deveria seguir seu curso normal perante as instâncias ordinárias, com exceção da
destituição do embaixador de seu cargo público. Para ele, não cabe ao juízo de 1º grau punir com perda de cargo,
pois configuraria um fator de desestabilização político-institucional. Dessa forma, o Ministro acompanhou a
divergência aberta pelo Ministro Carlos Velloso, assim como os Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e
Sepúlveda Pertence.A tese que prevaleceu, do ministro-relator Nelson Jobim, pela procedência da Reclamação,
obteve a maioria de votos do Plenário, vencendo por 6 votos a 5.Não votaram nesse julgamento os Ministros Carlos
Ayres Britto, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e a Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, por sucederem os
Ministros aposentados que já haviam proferido seus votos. Fonte: STF (13/06/2007). Após esta decisão, a Ministra
Ellen Gracie, então Presidente do Supremo Tribunal Federal determinou o arquivamento das Reclamações 5389,
5391 e 5393, ajuizadas por três prefeitos do estado do Pará que queriam que o STF estendesse para eles os efeitos da
decisão na Reclamação 2138, que determinou não ser aplicável a agentes públicos –somente naquele caso - a lei de
improbidade administrativa. Os prefeitos dos municípios paraenses de Altamira, Brasil Novo e Vitória do Xingu
respondem a ações por improbidade administrativa. As reclamações se baseam nos mesmos argumentos. Os prefeitos
afirmam que as decisões em seus processos estariam em divergência com a jurisprudência do Supremo, que segundo
eles teria sido firmado no julgamento da RCL 2138, e que o resultado daquele julgamento deveria possuir efeito
vinculante. Em sua decisão, a Ministra Ellen Gracie ressaltou que a decisão do julgamento da RCL 2138 - que
tratava do caso do ex-ministro Ronaldo Motta Sardenberg, não possui efeito vinculante e nem eficácia erga omnes
(sobre todos), e que como os prefeitos não figuravam como partes naquele julgamento, a decisão não vale para eles.
Nesse mesmo sentido, o ex-secretário de Administração de Vila Velha (ES) ajuizou no STF a Reclamação 5378.
Além de citar a RCL 2138, O ex-secretário capixaba alegou a possibilidade da Lei 8429/92 (Lei de improbidade
administrativa) vir a ser declarada inconstitucional no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
2182. A Ministra lembrou, contudo, que não existe afronta à autoridade de decisão do STF, já que o julgamento da
ADI 2182 ainda não foi concluído. Da mesma forma e com os mesmos argumentos, a Ministra negou seguimento à
Reclamação 5378. Fonte: STF (23/07/2007).
39
Ob. cit., p. 678.
54
Observa-se que o conceito de infração penal (crime e contravenção) é dado pela Lei de
Introdução ao Código Penal que define crime como sendo “a infração penal a que a lei comina
pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a
pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão
simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.” (art. 1o. do Decreto-Lei n.
3.914/41).
Estas definições, por se encontrarem na Lei de Introdução ao Código Penal,
evidentemente regem e são válidas para todo o sistema jurídico–penal brasileiro, ou seja, do
ponto de vista do nosso Direito Positivo quando se quer saber o que seja crime ou contravenção,
deve-se ler o disposto no art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal.
O mestre Hungria já se perguntava e ele próprio respondia:
“Como se pode, então, identificar o crime ou a contravenção, quando se trate de
ilícito penal encontradiço em legislação esparsa, isto é, não contemplado no
Código Penal (reservado aos crimes) ou na Lei das Contravenções Penais? O
critério prático adotado pelo legislador brasileiro é o da “distinctio delictorum
ex poena” (segundo o sistema dos direitos francês e italiano): a reclusão e a
detenção são as penas privativas de liberdade correspondentes ao crime, e a
prisão simples a correspondente à contravenção, enquanto a pena de multa não
é jamais cominada isoladamente ao crime.”40
Por sua vez, Tourinho Filho afirma:
“Não cremos, data venia, que o art. 1º. da Lei de Introdução ao Código Penal
seja uma lex specialis. Trata-se, no nosso entendimento, de regra elucidativa
sobre o critério adotado pelo sistema jurídico brasileiro e que tem sido
preferido pelas mais avançadas legislações; (...) Veja-se, no particular, Marcelo
Jardim Linhares, Contravenções penais, Saraiva, 1980, v. 3, p. 781: ´Assim,
quando a infração eleitoral é apenada com multa, estamos em face de uma
contravenção´.”41
Manoel Carlos da Costa Leite também trilha na mesma linha, afirmando:
“No Direito brasileiro, as penas cominadas separam as duas espécies de
infração. Pena de reclusão ou detenção: crime. Pena de prisão simples ou de
multa ou ambas cumulativamente: contravenção.”42
40
Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 4ª ed., p. 39.
Processo penal, Vol. 4, São Paulo: Saraiva, 20ª. ed., p.p. 212-213.
42
Manual das Contravenções Penais, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 03.
41
55
Eis outro ensinamento doutrinário:
“Como é sabido, o Brasil adotou o sistema dicotômico de distinção das
infrações penais, ou seja, dividem-se elas em crimes e contravenções penais. No
Direito pátrio o método diferenciador das duas categorias de infrações é o
normativo e não o ontológico, valendo dizer, não se questiona a essência da
infração ou a quantidade da sanção cominada, mas sim a espécie de punição.”43
Luiz Flávio Gomes afirma: “Por força do art. 1o. da Lei de Introdução ao Código Penal,
infração punida tão-somente com multa é contravenção penal (não delito).”44
Vê-se, às escâncaras, que aqueles tipos elencados na Lei de Improbidade Administrativa,
decididamente, não são infrações penais, mas infrações político-administrativas. Logo, sequer
sistematicamente seria cabível delas tratar em sede processual penal.
Mas, não só por este equívoco legislativo-formal peca a nova lei. Com efeito, e ainda
segundo a lição de Luiz Flávio Gomes, “a competência por prerrogativa de função versa
exclusivamente sobre atividades criminais. Não se estende à investigação de natureza civil.”45
A respeito, o Superior Tribunal de Justiça já deixou assentado que “conquanto caiba ao
STJ processar e julgar, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, os membros dos Tribunais
Regionais do Trabalho (art. 105, I, a), não lhe compete, porém, explicitamente, processá-los e
julgá-los por atos de improbidade administrativa. Implicitamente, sequer, admite-se tal
competência, porquanto, aqui, trata-se de ação civil, em virtude de investigação de natureza
civil. Competência, portanto, de juiz de primeiro grau.”46
Naquela referida Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pela CONAMP, ficou
também consignado na petição inicial que “o rol de competência dos tribunais é de direito estrito
e tem fundamento constitucional trata-se de entendimento reiteradamente proclamado por essa
excelsa Corte, como se extrai, a título exemplificativo, da ementa do v. acórdão relativo à
Petição 693 AgR/SP, Relator o eminente Ministro Ilmar Galvão, assim redigida:
‘COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA CONTRA
PRESIDENTE DA REPÚBLICA. LEI Nº. 7.347/85. A competência do Supremo Tribunal Federal
é de direito estrito e decorre da Constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102
e incisos. A circunstância de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para
43
Eduardo Reale Ferrari e Christiano Jorge Santos, “As Infrações Penais Previstas na Lei Pelé”, Boletim do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n. 109, dezembro/2001.
44
Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n. 110, janeiro/2002.
45
Ob. cit., p. 162.
46
STJ, Reclamação591-SP, Rel. Min. Nilson Naves, DJ 15/05/2000, p. 00112.
56
os feitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da competência
originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida autoridade. Agravo
regimental improvido.’ Inúmeros são, também, os julgados desse colendo Supremo Tribunal
Federal, relativamente à falta de sua competência originária para processo e julgamento de
ação popular contra o Presidente da República, por se tratar de matéria não contemplada no
exaustivo rol de competência fixado em sede constitucional.”
A respeito especificamente deste § 2º. informamos que a 9ª. Câmara de Direito Público do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos do Agravo de Instrumento n.º 313.238511, tendo como relator o Desembargador Antônio Rulli, unanimemente, decidiu pela
inconstitucionalidade da referida lei, reconhecendo expressamente que o processo por ato de
improbidade administrativa deveria permanecer na primeira instância. Na oportunidade, ficou
decidido o seguinte: “a Lei Federal nº. 10.628/2002 não encontra fundamento na Constituição
Federal de 1988. O art. 37, § 4º, da Magna Carta trata da suspensão dos direitos políticos,
perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao Erário, para os atos de
improbidade administrativa, sem prejuízo da ação penal cabível. A ação proposta tem natureza
eminentemente civil, não obstando possa ser ajuizada a competente ação penal. Aliás, cumpre
transcrever o comentário do mestre constitucionalista Alexandre de Morais ao art. 29, inciso X,
da CF/88, na obra intitulada 'Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional': '...
salientamos que a Constituição Federal prevê a competência originária do Tribunal de Justiça,
salvo as exceções anteriormente analisadas, somente para o processo e julgamento das infrações
penais comuns ajuizadas contra o Prefeito Municipal, não se admitindo ampliação interpretativa
no sentido de considerar-se a existência de foro privilegiado para as ações populares, ações
civis públicas e demais ações de natureza cível. Da mesma forma, inexiste foro privilegiado para
o ajuizamento de ações por prática de atos de improbidade administrativa em face de prefeitos
municipais, por ausência de previsão constitucional específica, devendo, portanto, ser ajuizadas
perante a 1ª instância'".”
Mais recentemente, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou extinta
ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal contra o ex-advogado-geral da União
Gilmar Mendes, hoje Ministro do próprio STF, por improbidade administrativa, e determinou a
devolução do processo com igual acusação quanto ao ex-procurador-geral da União Walter do
Carmo Barletta à 9ª Vara da Circunscrição Judiciária do Distrito Federal.Antes desta decisão, a
maioria, vencido o relator, ministro Marco Aurélio, proclamou sua competência para julgar
57
ministro do STF em todos os processos que não envolvam crime de responsabilidade, porque este
julgamento é de competência do Senado Federal, conforme dispõe a Constituição Federal (CF,
em seu artigo 52, inciso II). Relator da petição, o ministro Marco Aurélio votou pela devolução
do processo para a primeira instância, à 9ª Vara da Justiça do DF, também relativamente a Gilmar
Mendes, fundamentando-se para isso no artigo 102, I, b, da CF. Ele argumentou que a
Constituição não teria atribuído esta competência ao STF.A decisão foi tomada no julgamento da
Petição (PET) 3211. Com fundamento nos parágrafos 1º e 2º do artigo 84, do Decreto-lei nº
3.689/41, introduzidos pela Lei nº 10.628/2003, o juiz da 9ª Vara do DF alegou sua
incompetência absoluta para julgar a ação e determinou a remessa dos autos ao STF. Entretanto,
ante o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2797 e 2860, nas quais se declarou
a inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º, inseridos no Código Penal pela Lei nº
10.628/2003, foi afastado o sobrestamento do feito anteriormente determinado. Ao abrir a
divergência na votação da Pet, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito argumentou que
submeter um ministro do Supremo a julgamento de um juiz de primeira instância seria subverter
a ordem. Ao votar no mesmo sentido, o ministro Ricardo Lewandowski disse que isso não
competiria a um juiz de primeiro grau “o julgamento de um ministro do STF, em causa que
envolve a perda do cargo”. É que uma eventual condenação por improbidade administrativa
acarreta, entre outras sanções, a perda do cargo ou função pública.A ministra Cármen Lúcia
Antunes Rocha votou no mesmo sentido e pela extinção do processo relativamente a Gilmar
Mendes, lembrando que a Procuradoria Geral da República havia feito pronunciamento
semelhante. Foi acompanhada pela maioria, com exceção do ministro Marco Aurélio.O ministro
Cezar Peluso, partidário do mesmo entendimento, disse que, consoante estabelece a Constituição,
cabe ao Senado julgar ministro do STF, quando estiver em julgamento crime de responsabilidade.
Nos demais casos, o julgamento é de competência do próprio tribunal. Fonte: STF.
Em sessão posterior, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes,
determinou o arquivamento de duas ações de reparação de danos por improbidade administrativa
ajuizadas pelo Ministério Público Federal na 20ª e na 22ª Varas Federais do Distrito Federal
contra os ex-ministros da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Casa Civil, além
de ex-presidentes e diretores do Banco Central. A decisão foi tomada por Gilmar Mendes na
Reclamação (RCL) 2186, em que os ex-ministros do governo do então Presidente Fernando
Henrique Cardoso apontavam a usurpação da competência do STF pelos dois juízos federais em
Brasília. A defesa se fundamentou no artigo 102, inciso I, letra c, da Constituição Federal,
58
segundo o qual cabe ao STF processar e julgar, originariamente, os Ministros de Estado, “nas
infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade”. Invocou, nesse sentido, decisão
liminar proferida pelo ministro Nelson Jobim (aposentado), nos autos da RCL 2138. Ao
determinar o arquivamento dos dois processos, o Ministro Gilmar Mendes observou que,
conforme decisão tomada pelo STF no julgamento da Reclamação 2138, invocada pela defesa, o
STF deixou claro que os atos de improbidade descritos na Lei nº. 8.429/1992 “constituem
autênticos crimes de responsabilidade", contendo, "além de forte conteúdo penal, a feição de
autêntico mecanismo de responsabilização política”. Entretanto, segundo Gilmar Mendes, em se
tratando de Ministros de Estado, “é necessário enfatizar que os efeitos de tais sanções em muito
ultrapassam o interesse individual dos ministros envolvidos”. Nesse sentido, ele chamou atenção
para o valor da condenação imposta aos ex-ministros e ex-dirigentes do BC pelo juiz da 20ª Vara
Federal do DF, de quase R$ 3 bilhões, salientando que este valor, “dividido entre os 10 réus, faz
presumir condenação individual de quase R$ 300 milhões”. Segundo ele, “estes dados, por si
mesmos, demonstram o absurdo do que se está a discutir”. Ele observou, ainda, que esses valores
“são tão estratosféricos” que, na sentença condenatória, os honorários advocatícios foram
arbitrados em mais de R$ 200 milhões, sendo reduzidos pela metade, ou seja, quantia em torno de
R$ 100 milhões. Portanto, conforme o Ministro Gilmar Mendes, os Ministros de Estado não se
sujeitam à disciplina de responsabilização de que trata a Lei nº. 8.429/1992, mas sim à da Lei
1.079/50, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.
E este julgamento, em grau originário, é de exclusiva competência do STF. Assim, à época em
que os reclamantes eram Ministros de Estado, não se sujeitavam à Lei nº. 8.429/1992, pela qual
foram processados e condenados.
Na esteira do Supremo Tribunal Federal, a 21ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, entendeu que a Lei nº. 8.429/92 não pode ser aplicada contra Prefeitos. Para
os Desembargadores, Prefeitos não podem ser submetidos a dois regimes diferentes de imputação
de delitos de responsabilidade. Os agentes políticos são regidos, no caso, pelo Decreto-Lei
201/67, que impõe severas punições. Assim, com o entendimento da maioria, a ação foi extinta
por “absoluta incompetência da primeira instância para processar e julgar a ação, tendo em
vista a inaplicabilidade da Lei 8.429/92 — Lei de Improbidade Administrativa — aos agentes
políticos”. O relator, Desembargador Genaro José Baroni Borges, citando recente decisão do
Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, destacou que “as sanções de suspensão
de direitos políticos e de perda da função pública demonstram, de modo inequívoco, que as
59
ações de improbidade possuem, além de forte conteúdo penal, a feição de autêntico mecanismo
de responsabilização política”. Para o Desembargador, os Prefeitos são agentes políticos e, como
tal, “exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais,
conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua
competência”. “São autoridades públicas supremas do Governo e da Administração na área de
sua atuação, pois não são hierarquizadas, sujeitando-se apenas aos graus e limites
constitucionais e legais de jurisdição. Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade
funcional, equiparável à independência dos juízos nos seus julgamentos, e, para tanto, ficam a
salvo de responsabilidade civil por seus eventuais erros de atuação, a menos que tenham agido
com culpa grosseira, má fé ou abuso de poder”, destacou. Ele ressaltou, ainda, que as
prerrogativas que se concedem aos agentes políticos não são privilégios pessoais e sim garantias
necessárias ao pleno exercício de suas altas e complexas funções governamentais e decisórias.
Para ele, “sem essas prerrogativas funcionais os agentes políticos ficariam tolhidos na sua
liberdade de opção e decisão, ante o temor de responsabilização pelos padrões comuns da culpa
civil e do erro técnico a que ficam sujeitos os funcionários profissionalizados”. Por fim, destacou
que é impensável sujeitar o agente político à sanção da perda dos direitos políticos e do cargo, até
em sede de liminar, por decisão de um juiz de primeira instância. (Processo: 700.228.958-74).
No dia 15 de julho de 2008, um Deputado Federal teve pedido de liminar negado nos
autos da Reclamação (RCL) 6254. Por meio da ação, ajuizada no Supremo Tribunal Federal, ele
pleiteava a suspensão imediata de 29 ações civis públicas em curso contra ele no Juízo da 2ª Vara
Federal da Subseção Judiciária de Governador Valadares (MG) e no juízo Federal da Vara Única
da Subseção Judiciária Federal de Ipatinga (MG). A decisão, pelo indeferimento da liminar, foi
do Ministro Gilmar Mendes. Ele esclareceu que o STF, no julgamento definitivo da RCL 2138
realizado em 13 de junho de 2007, assentou entendimento segundo o qual os ministros de Estado,
por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, “c”; Lei n°
1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de
Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/1992). Na ocasião, consignou-se, ainda, que compete
exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar os delitos políticoadministrativos, na hipótese do artigo 102, inciso I, alínea “c”, da Constituição. Assim, somente o
STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e, assim,
eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos. No entanto,
Gilmar Mendes ressaltou que esses entendimentos não se aplicam ao caso em questão. Isto
60
porque, a hipótese é de ações civis públicas por improbidade administrativa contra deputado
federal, que não se submete ao regime especial de responsabilidade político-administrativa
previsto na Lei n° 1.079/1950. “No julgamento da RCL nº 2.208/SP, o Ministro Marco Aurélio
consignou o entendimento segundo o qual escapa da competência originária desta Corte
processar e julgar Deputados Federais e Senadores por crimes de responsabilidade”, disse o
Ministro, ao indeferir a liminar. Ele lembrou também que o Supremo confirmou esse
entendimento no julgamento de recurso (agravo regimental) na RCL 5126. Fonte: STF.
Em outra decisão, o Ministro Ricardo Lewandowski devolveu à vara de origem, no
Amazonas, os autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público daquele estado contra
seis servidores públicos, por improbidade administrativa. O juiz de primeiro grau se julgou
incompetente para julgar o feito, porque à época em que foi iniciado, um dos réus, um ex-senador
(também ex-ministro dos Transportes e ex-prefeito de Manaus) tinha foro por prerrogativa da
função, ou seja, o direito de ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, por ser parlamentar. A
decisão foi tomada na apreciação da Petição (PET) 4497. Ao devolver o processo ao juízo de
origem, o ministro Ricardo Lewandowski lembrou que “entendimento recente do Supremo
Tribunal Federal consigna a competência do Juízo de 1º grau para processar e julgar os casos
de improbidade administrativa, eis que se trata de questão diversa do crime de responsabilidade,
disciplinado pelo Decreto-lei 201/67”. Nesse sentido, o ministro citou o julgamento, pelo
Plenário do STF, da PET 3923, relatada pelo ministro Joaquim Barbosa. Naquele julgamento, a
Corte entendeu que as condutas descritas na lei de improbidade administrativa, quando imputadas
a autoridades detentoras de prerrogativa de foro, não se convertem em crimes de
responsabilidade. Além disso, estando o processo em fase de execução de sentença condenatória,
o STF não tem competência para o prosseguimento da execução. Uma outra ação civil pública
por improbidade administrativa, esta contra o Ministro dos Transportes, foi devolvida para a
primeira instância, também por decisão do Ministro Ricardo Lewandowski. O processo, autuado
na Corte como Petição (PET 4498), foi encaminhado ao Supremo pelo juiz da vara, que levou em
consideração a existência de prerrogativa de foro, uma vez que o Ministro era senador licenciado
pelo estado de Amazonas. De acordo com Lewandowski, o STF é realmente a instância
competente para processar e julgar certos agentes políticos – como os integrantes do Congresso
Nacional, nos crimes comuns, e ministros de Estado. Mas, segundo o Ministro, a Corte tem
mantido o entendimento de que a Constituição não inclui na lista das competências do Supremo o
processamento de ações por improbidade administrativa, mesmo havendo prerrogativa de foro,
61
uma vez que estas não são de natureza criminal. Também no julgamento da Petição 4553 o
Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello determinou o arquivamento da ação
lembrando que não cabe ao STF processar e julgar, originariamente, ação de reparação civil
proposta contra o presidente da República, uma vez que a prerrogativa de foro para o cargo só
abrange infrações penais. Em outra sessão, o Ministro Menezes Direito determinou a devolução,
ao Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Sapiranga (RS), dos autos de ação civil pública ajuizada
pelo Ministério Público do estado do Rio Grande do Sul contra um Deputado Federal; a decisão
foi tomada pelo na Petição (PET) 4520, sendo que o processo chegou ao Supremo em função de
decisão do juízo da 2ª Vara Cível daquela cidade gaúcha, que determinou a remessa dos autos ao
STF. Ao decidir, o Ministro Menezes Direito reportou-se a parecer do procurador-geral da
República, Antonio Fernando Souza, pela devolução dos autos à vara de origem. Ele alegou que
se trata de ação civil pública por ato de improbidade administrativa e que afetar o caso ao STF
seria ampliar a competência da Suprema Corte por uma lei ordinária (o que não é possível, tendo
em vista que a competência do STF é estabelecida na Constituição Federal). Nesse sentido, ele se
reportou ao julgamento da ADI 2797 e da Reclamação 5126. Fonte: STF.
Em outra decisão, o Ministro José Antonio Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal,
deferiu liminar no Mandado de Segurança (MS 28607) impetrado pelo Ministro Emmanoel
Pereira, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e determinou a suspensão do inquérito policial
instaurado a pedido da Procuradoria da República no Rio Grande do Norte para investigar as
circunstâncias da requisição de um servidor da Câmara Municipal de Macaíba (RN) para
trabalhar em seu gabinete no TST. Segundo o Ministério Público, o requisitado teria se passado
por servidor público municipal para viabilizar sua requisição pela Justiça do Trabalho e, com
isso, receber vencimentos no TST de forma ilegítima. Ele não tinha vínculo estatutário com a
Câmara Municipal, seu contrato de trabalho era regido pela CLT. Em sua decisão, o ministro
Dias Toffoli afirma que, “considerando o estágio atual da jurisprudência e a natureza preliminar
desta fase processual, é de ser entendido que o foro para as investigações em curso é o Supremo
Tribunal Federal”. O ministro salientou que sua decisão tem caráter cautelar e, portanto, ele não
estava se comprometendo com a tese de fundo. O primeiro precedente citado pelo ministro em
sua decisão foi a Petição 3211, em que o STF declarou-se o foro competente para julgar seus
próprios ministros, em caso de acusação de improbidade. Embora com suporte fático diferente,
por se tratar de ministro de Estado, Dias Toffoli citou a RCL 2138, em que o STF afastou a
competência do juízo de primeiro grau para processar e julgar ação de improbidade
62
administrativa. No mérito, o ministro do TST espera que seja declarada a competência do STF
para processá-lo. “Em suma, a persistência das investigações no primeiro grau de jurisdição,
especialmente quando a própria autoridade coatora afirma discordar das conclusões do STF na
Questão de Ordem na Pet 3211, é contrária à aparência de bom direito do impetrante, sem
embargo de lhe causar constrangimentos desnecessários e riscos à sua integridade pessoal.
Some-se a isso o fato de não haver prejuízo real à investigação dos fatos, que possuem efetivo
relevo para a causa pública, dada a legitimidade do procurador-geral da República em as
conduzir”, afirmou o ministro Dias Toffoli. O mandado de segurança foi impetrado contra ato do
procurador-geral República, Roberto Gurgel, que recebeu os autos depois que as investigações
apontaram que o pagamento dos vencimentos ao suposto agente público poderia configurar
prática de improbidade administrativa por parte do ministro do TST. Mas Roberto Gurgel
devolveu os autos à origem, sob o entendimento de que os procuradores da República no Rio
Grande do Norte detinham a atribuição para imputar a prática de ato conceituável como
improbidade administrativa por parte de ministro de tribunal superior perante o primeiro grau de
jurisdição. A defesa do ministro do TST invoca o disposto no artigo 102 da Constituição,
segundo o qual cabe ao STF processar e julgar ministro de tribunais superiores, entre outras
autoridades, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade. No Mandado de
Segurança, também é feita uma relação entre a Lei nº 1.079/50, que define os crimes de
responsabilidade, e a Lei nº 8429/92, que trata das sanções por atos de improbidade praticados
por agente público. Para os advogados do ministro do TST, ao encaminhar os autos aos
procuradores da República no Rio Grande do Norte para que a conduta de improbidade atribuída
a Emmanoel Pereira fosse apurada sob o controle de juiz federal ou mesmo de Tribunal Regional
Federal, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, violou seu direito líquido e certo de
responder, originariamente, perante o STF.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA DESTE ARTIGO:
MOREIRA, Rômulo de Andrade. A competência por prerrogativa de função. Revista
Diálogo
Jurídico,
Salvador,
nº.
18,
2012.
Disponível
em:<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: ___ de ___________ de _____.
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ADENDO
(VOTO DO MINISTRO CELSO DE MELLO NA ADIN)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.797-2 DISTRITO FEDERAL. V O T O: O
SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Trata-se de ação direta na qual se questiona a
validade jurídico-constitucional dos §§ 1º e 2º que foram acrescidos ao art. 84 do Código de
Processo Penal pela Lei nº 10.628, de 24/12/2002. Eis o teor dos dispositivos ora impugnados na
presente sede de controle normativo abstrato: “Art. 84. (...)§ 1º A competência especial por
prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o
inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.
§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta
perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou
autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública,
observado o disposto no § 1º.” (grifei)
A autora (CONAMP), ao questionar a legitimidade constitucional das normas objeto da presente
ação direta, assim expôs, em seus aspectos essenciais, as razões consubstanciadoras de sua
pretensão de inconstitucionalidade:
“Com esses dispositivos, o legislador ordinário arvorou-se em Poder Constituinte e acrescentou
mais uma competência originária ao rol exaustivo de competências de cada tribunal, além de se
arvorar, desastradamente, em intérprete maior da Constituição.
Com efeito, é cediço que constitui tradição vetusta do ordenamento jurídico pátrio que a
repartição da competência jurisdicional, máxime da competência originária para processo e
julgamento de crimes comuns e de responsabilidade, é fixada na Constituição da República, de
forma expressa e exaustiva, vedada qualquer interpretação extensiva.
64
Se assim é com relação ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores, aos tribunais
regionais federais e aos juízes federais, também o é com relação aos tribunais estaduais, cuja
competência também há de ser fixada, em sede constitucional estadual, segundo expresso
mandamento da Constituição Federal (...).
..................................................
Ora, definir é pôr limites e, se os limites da competência dos tribunais estão no texto
constitucional, quer federal, quer estadual, não pode o legislador ordinário ultrapassá-los,
acrescentando nova competência ao rol exaustivo posto na Constituição, como se poder
constituinte fosse.
..................................................
Inúmeros são, também, os julgados desse colendo Supremo Tribunal Federal, relativamente à
falta de sua competência originária para processo e julgamento de ação popular contra o
Presidente da República, por se tratar de matéria não contemplada no exaustivo rol de
competência fixado em sede constitucional.
Não pode, pois, a lei ordinária, como o Código de Processo Penal, regular matéria que só pode
ter sede constitucional.
O que já se expôs é bastante para demonstrar a inconstitucionalidade de ambos os parágrafos,
aqui questionados.
Especificamente quanto ao § 1°, ora impugnado, o legislador ordinário se arvora em intérprete
do texto constitucional, no que diz respeito à própria competência dos tribunais, inclusive dessa
Suprema Corte, dando-lhe interpretação divergente daquela já firmada por esse Tribunal Maior,
consubstanciada no cancelamento da Súmula 394, que tinha o seguinte enunciado:
65
‘Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por
prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação
daquele exercício.’
Ora, se o intérprete maior da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, já decidiu, há quase um
lustro, que o texto constitucional não contempla a hipótese de prorrogação do foro por
prerrogativa de função, quando cessado o exercício desta, não pode o legislador ordinário
editar norma de natureza constitucional, como se esta tivesse o condão de compelir a Suprema
Corte a voltar à interpretação, já abandonada, de uma norma da Constituição.
Já quanto ao § 2°, o legislador ordinário, a par de travestir-se em poder constituinte e, também
em intérprete da Constituição, tal como quanto ao § 1º, pretende revelar, ainda, poderes
premonitórios ou servir-se do seu mister legislativo como forma de pressão sobre esse Supremo
Tribunal Federal, pois o tema nele posto constitui questão que é objeto de julgamento em curso.
Assim, ambos os parágrafos ora impugnados ofendem não apenas o artigo 102, I; 105, I; 108, I e
125, § 1°, da Constituição Federal, mas também a independência e a harmonia dos poderes do
Estado, cravado no artigo 2° da mesma Constituição Republicana.” (grifei) Vê-se, pois, que a
controvérsia jurídica ora em exame, analisada em seus aspectos essenciais, põe em evidência um
ponto que se revela impregnado de inquestionável relevo, consistente no reconhecimento da
possibilidade, ou não, de o Congresso Nacional, mediante legislação comum, alterar, reduzir ou
ampliar - como na espécie - a competência originária do Supremo Tribunal Federal, do Superior
Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados.
Ou, em outras palavras, considerado o contexto ora em exame, cabe formular a seguinte
indagação: pode, o Congresso Nacional, no exercício de sua competência legislativa comum,
mediante simples lei ordinária, modificar, sob qualquer aspecto, o rol de atribuições
jurisdicionais originárias das Cortes acima referidas, para, nesse complexo de poderes,
introduzir novas competências, sem incidir, com tais alterações, em violação ao texto
constitucional? Tenho para mim, Senhora Presidente, que o Congresso Nacional não dispõe
desse poder, tal como pude assinalar, nesta Suprema Corte, em despacho cujo teor está assim
ementado:“IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (LEI Nº 8.429/92). AÇÃO CIVIL PÚBLICA
PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. RÉU QUE É DEPUTADO FEDERAL.
66
PRETENDIDO RECONHECIMENTO DE SUA PRERROGATIVA DE FORO PERANTE O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MESMO TRATANDO-SE DE PROCESSO DE NATUREZA
CIVIL. POSTULAÇÃO QUE BUSCA SUPORTE JURÍDICO NA LEI Nº 10.628/2002.
IMPOSSIBILIDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, MEDIANTE SIMPLES LEI ORDINÁRIA,
REDUZIR, AMPLIAR OU MODIFICAR A COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL. INTANGIBILIDADE DESSE COMPLEXO DE ATRIBUIÇÕES
JURISDICIONAIS MEDIANTE ATIVIDADE LEGISLATIVA ORDINÁRIA, EIS QUE AS
HIPÓTESES DEFINIDORAS DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DA SUPREMA CORTE
RESULTAM DE MATRIZ CONSTITUCIONAL. ENTENDIMENTO QUE TEM APOIO EM
ANTIGO PRECEDENTE FIRMADO POR ESTA SUPREMA CORTE (1895).A QUESTÃO DA
PRERROGATIVA DE FORO ‘RATIONE MUNERIS’. O SIGNIFICADO REPUBLICANO DAS
INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS: UM VALOR NECESSÁRIO À CONSTRUÇÃO DA
IGUALDADE. RELEVÂNCIA HERMENÊUTICA DA IDÉIA REPUBLICANA. DOUTRINA
JURISPRUDÊNCIA. A QUESTIONÁVEL CONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 10.628/2002.
IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DESSE VÍCIO JURÍDICO, POR DECISÃO
MONOCRÁTICA
DO
RELATOR,
NO
ÂMBITO
DOS
TRIBUNAIS.
NECESSÁRIA
OBSERVÂNCIA, NO CASO, DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE
PLENÁRIO (CF, ART. 97). PRÉVIA AUDIÊNCIA, PARA ESSE EFEITO, DO SENHOR
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA.”
(Pet 3.270/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in” Informativo/STF nº 370/2004). É por tal
razão que entendo revelar-se desvestida de legitimidade jurídico-constitucional a Lei nº
10.628/2002, especialmente se esse diploma legislativo for analisado na perspectiva das
atribuições jurisdicionais que a própria Constituição da República deferiu a esta Suprema
Corte, considerando-se, para esse efeito, de um lado, razões de ordem doutrinária
(ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 2.681/2.683, item n.
17.3, 2ª ed., 2003, Atlas; RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, “Ação Popular”, p. 120/130,
1994, RT; HUGO NIGRO MAZZILLI, “O Inquérito Civil”, p. 83/84, 1999, Saraiva; MARCELO
FIGUEIREDO, “Probidade Administrativa”, p. 91, 3ª ed., 1998, Malheiros; WALLACE PAIVA
MARTINS JÚNIOR, “Probidade Administrativa”, p. 318/321, item n. 71, 2001, Saraiva;
MARINO PAZZAGLINI FILHO, “Lei de Improbidade Administrativa Comentada”, p. 173/175,
item n. 3.5, 2002, Atlas; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”,
67
p. 558, item n. 7, 23ª ed., 2004, Malheiros; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO,
“Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, Vol. 2, p. 117, 1992, Saraiva; SÉRGIO
MONTEIRO MEDEIROS, “Lei de Improbidade Administrativa”, p. 176/177, 1ª ed., 2003, Juarez
de Oliveira; FRANCISCO RODRIGUES DA SILVA, “Foro Privilegiado para Julgamento de
Atos de Improbidade Administrativa, Seu Casuísmo e Atecnias Flagrantes”, “in” Jornal
Trabalhista, JTb Consulex, p. 11/12, XX/963, v.g.), e tendo em vista, de outro, que a competência
do Supremo Tribunal Federal – precisamente por revestir-se de extração constitucional (à
semelhança do que sucede com a competência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais
Regionais Federais) – submete-se, por isso mesmo, a regime de direito estrito (RTJ 43/129 – RTJ
44/563 - RTJ 50/72 – RTJ 53/766 - RTJ 94/471 - RTJ 121/17 – RTJ 141/344 - RTJ 159/28 - RTJ
171/101-102, v.g.), não podendo, desse modo, ser ampliada nem restringida por legislação
meramente comum (ordinária ou complementar), sob pena de frontal desrespeito ao texto da Lei
Fundamental da República. Veja-se, portanto, que a impossibilidade jurídica de ampliar-se ou
de modificar-se a competência originária do Supremo Tribunal Federal incide, diretamente,
sobre o Congresso Nacional, quando no exercício de suas funções legislativas ordinárias, pois –
insista-se – é de direito estrito a definição constitucional das hipóteses que se referem às
atribuições jurisdicionais originárias desta Corte Suprema.
A razão de ser que justifica esse entendimento apóia-se em um dado de extremo relevo, fundado
na necessidade de se estabelecer, em torno desse complexo de atribuições jurisdicionais
originárias do Supremo Tribunal Federal, um círculo de proteção que impeça indevida
ingerência normativa, em sede meramente legislativa, do Congresso Nacional, de cujas funções
ordinárias excluiu-se a possibilidade de validamente interferir, mediante legislação comum, na
esfera de competência originária desta Suprema Corte.
Diversa, no entanto, bem diversa, é a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, atuando em
sua condição de intérprete final da Constituição, proceder à construção exegética do alcance e
do significado das cláusulas constitucionais que definem a própria competência originária desta
Corte. Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que
se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos
Estados Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que
a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento
implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe
foram atribuídos.
68
Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o autorizado magistério de MARCELO
CAETANO (“Direito Constitucional”, vol. II/12-13, item n. 9, 1978, Forense), cuja observação,
no tema, referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional – e não aos processos de
elaboração legislativa - assinala que, “Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas
físicas ou jurídicas, admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela
determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente atribuídos” (grifei).
Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional - consoante adverte
CASTRO NUNES (“Teoria e Prática do Poder Judiciário”, p. 641/650, 1943, Forense) - deve ter
presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes
implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir
eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as
atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais
Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, tais como expressamente relacionadas no texto
da própria Constituição da República.
Não constitui demasia relembrar, neste ponto, Senhora Presidente, a lição definitiva de RUI
BARBOSA (“Comentários à Constituição Federal Brasileira”, vol. I/203-225, coligidos e
ordenados por Homero Pires, 1932, Saraiva), cuja precisa abordagem da teoria dos poderes
implícitos - após referir as opiniões de JOHN MARSHALL, de WILLOUGHBY, de JAMES
MADISON e de JOÃO BARBALHO - assinala:
“Nos Estados Unidos, é, desde MARSHALL, que essa verdade se afirma, não só para o nosso
regime, mas para todos os regimes. Essa verdade fundada pelo bom senso é a de que - em se
querendo os fins, se hão de querer, necessariamente, os meios; a de que se conferimos a uma
autoridade uma função, implicitamente lhe conferimos os meios eficazes para exercer essas
funções. (...).
...................................................
Quer dizer (princípio indiscutível) que, uma vez conferida uma atribuição, nela se consideram
envolvidos todos os meios necessários para a sua execução regular.
69
Este, o princípio; esta, a regra.
...................................................
Trata-se, portanto, de uma verdade que se estriba ao mesmo tempo em dois fundamentos
inabaláveis, fundamento da razão geral, do senso universal, da verdade evidente em toda a parte
- o princípio de que a concessão dos fins importa a concessão dos meios (...).
...................................................
A questão, portanto, é saber da legitimidade quanto ao fim que se tem em mira. Verificada a
legitimidade deste fim, todos os meios que forem apropriados a ele, todos os meios que a ele
forem claramente adaptáveis, todos os meios que não forem proibidos pela Constituição,
implicitamente se têm concedido ao uso da autoridade a quem se conferiu o poder.” (grifei)
Essa percepção do tema, no entanto, porque peculiar ao processo de interpretação
constitucional, notadamente aquela dada pelo Poder Judiciário, não legitima a possibilidade de
o Congresso Nacional, mediante utilização da teoria dos poderes implícitos ou decorrentes,
formular, no plano de suas funções, leis ordinárias interpretativas da própria Constituição da
República.
Vê-se, portanto, que são inconfundíveis – porque inassimiláveis tais situações - a possibilidade
de interpretação, sempre legítima, pelo Poder Judiciário, das normas constitucionais que lhe
definem a competência e a impossibilidade de o Congresso Nacional, mediante legislação
simplesmente ordinária, ainda que editada a pretexto de interpretar a Constituição, ampliar,
restringir ou modificar a esfera de atribuições jurisdicionais originárias desta Suprema Corte,
do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça
estaduais, por tratar-se de matéria posta sob reserva absoluta de Constituição.
Vale ter presente, no ponto, ante sua inquestionável pertinência, a precisa lição de ROGÉRIO
PACHECO ALVES (“Improbidade Administrativa”, p. 734/735, Capítulo II, item n. 7.1.2, 2ª ed.,
70
2004, Lumen Juris), em magistério no qual põe em destaque as claras limitações constitucionais
que incidem e restringem a função legislativa ordinária do Congresso Nacional:
“Cumpre asseverar, de pronto, a evidente inconstitucionalidade das inovações introduzidas pela
Lei nº 10.628/2002 uma vez que não é possível estender as hipóteses de competência originária
ratione personae do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais
Regionais Federais, previstas taxativamente na Constituição Federal (arts. 102, 105 e 108),
através de lei ordinária. Nessa linha, é importante perceber que sempre que a Constituição
Federal desejou cometer ao legislador ordinário a disciplina do tema fez-se expressa referência
neste sentido, bastando verificar, por exemplo, o que estabelecem os seus arts. 111, § 3º, 121 e
124, parágrafo único, relativamente à competência das Justiças do Trabalho, Eleitoral e Militar.
Em resumo, somente por intermédio de emenda ao texto constitucional tornar-se-á possível o
disciplinamento do foro por prerrogativa de função em moldes diversos dos atuais, havendo
caudalosa jurisprudência do STF no sentido de seu caráter de direito estrito (previsão numerus
clausus).
Relativamente aos Tribunais de Justiça, também é vedado à lei ordinária federal ampliar sua
competência originária, sendo o § 1º do art. 125 da Constituição Federal bastante claro ao
estabelecer que ‘A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a
lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça’, o que decorre da própria
conformação federativa.” (grifei)
Cabe referir, também, quanto ao tema ora em análise, o autorizado magistério doutrinário de
CÁSSIO SCARPINELLA BUENO (“O Foro Especial para as Ações de Improbidade
Administrativa e a Lei 10.628/02”, “in” Improbidade Administrativa - questões polêmicas e
atuais, p. 438/461, 442, item n. 3, 2ª ed., 2003, Malheiros):
“A competência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais
Regionais Federais foi estabelecida, taxativa e restritivamente, pela Constituição Federal. Não
há como, sem contrariar os arts. 102, 105 e 108, entender que a lei federal possa definir
competência para aqueles Tribunais ou ampliá-las para além dos limites já traçados pelo
legislador constituinte. Mudar competência destes Tribunais é objeto de Emenda Constitucional.
71
Nunca de lei ordinária federal.” (grifei) Essa mesma abordagem da matéria é exposta pelo
eminente Ministro ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, em obra doutrinária (“Jurisdição e
Competência”, p. 63, item n. 46, 13ª ed., 2004, Saraiva) da qual extraio a seguinte e expressiva
passagem: “A competência fixada na Constituição apresenta-se exaustiva e taxativa: dispositivo
algum de lei, ordinária ou complementar (salvante, evidentemente, emenda à própria
Constituição), poderá reduzir ou ampliar tal competência.” (grifei)O ilustre Professor FÁBIO
KONDER COMPARATO (“Competência do Juízo de 1º Grau”, “in” “Improbidade
Administrativa – 10 Anos da Lei n. 8.429/92”, p. 119/129, 124, 2002, Del Rey – ANPR), por sua
vez, também conclui, acertadamente, pela impossibilidade de o legislador comum criar novas
hipóteses de prerrogativa de foro ratione muneris, asseverando, para tanto, que, “no regime
constitucional brasileiro em vigor, seguindo a linha diretriz de todas as nossas Constituições
republicanas, mas diversamente do que dispunha a Carta Imperial, o sistema é de reserva
exclusivamente constitucional para a criação de privilégios de foro. (...). O legislador não tem
competência para tanto” (grifei). Esse mesmo correto entendimento – que não reconhece, ao
legislador ordinário, a possibilidade de outorgar prerrogativa de foro, ratione muneris, a
determinados réus, nas ações civis por improbidade administrativa - tem sido prestigiado pela
jurisprudência dos Tribunais em geral, como o evidenciam, dentre outras, as seguintes decisões:
“COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Ação de improbidade
administrativa. Conselheiro do Tribunal de Contas. Não é da competência originária do
Superior Tribunal de Justiça processar e julgar ação de improbidade administrativa fundada na
Lei 8429/92, ainda que o réu tenha privilégio de foro para as ações penais. Nos termos do art.
105, I, a, da Constituição da República, a competência originária deste Tribunal é para a ação
penal, o que não se confunde com a ação judicial para apuração de ato de improbidade
administrativa, de natureza administrativa. Nesse contexto, também não é do STJ a competência
para decidir medida cautelar preparatória daquela ação.
Improcedência da reclamação.”
(Reclamação 780/AP, Rel. p/ o acórdão Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, Corte Especial do E.
STJ - grifei)
72
“Ação penal promovida contra ex-delegado geral da polícia civil do Estado. Competência por
prerrogativa de função estabelecida pelo art. 74, II, da Constituição Estadual, atribuindo ao
Tribunal de Justiça a competência para o julgamento nas infrações penais comuns e nos crimes
de responsabilidade imputados ao delegado geral da polícia civil. Cessação do exercício do
cargo de delegado geral da polícia civil. Não prevalecimento da competência por prerrogativa
de função. Revogação, pelo Excelso Pretório, da Súmula 394. Entendimento do colendo Supremo
Tribunal Federal de que a edição da lei n. 10.628, de 24 de dezembro de 2002, não importou na
repristinação da Súmula 394. (Inq. (QO) 718-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 23.4.2003).
Delegado Geral da Polícia Civil, que deixa a função, não é mais delegado geral, mas delegado
em favor de quem a Constituição Estadual não estabeleceu foro por prerrogativa de função. A
competência por prerrogativa de função só pode ser estabelecida por norma constitucional. (...).
A competência originária do Tribunal de Justiça é estabelecida pela Constituição Estadual, na
forma do art. 125, § 1º da Constituição Federal, e a competência originária dos Tribunais
Federais foi estabelecida pela Constituição Federal. A modificação de norma constitucional só
pode ser feita pelo legislador constitucional e não pelo legislador ordinário. A interpretação das
normas constitucionais e legais a respeito da competência compete aos juízes e Tribunais, e não
ao legislador ordinário. (...).” (JTJ/SP, Lex, vol. 274/562-563, Rel. Des. PAULO SHINTATE grifei)
Cabe advertir, de outro lado, que a competência originária dos Tribunais estaduais “será
definida na Constituição do Estado” (CF, art. 125, § 1º) e regulada, no ponto, por lei estadual
de organização judiciária, de iniciativa do Tribunal de Justiça local.
As únicas exceções à cláusula inscrita no art. 125, § 1º, da Constituição Federal acham-se
descritas no próprio texto da Lei Fundamental da República, no ponto em que esta fixa,
diretamente, em “numerus clausus”, hipóteses de competência originária das Cortes judiciárias
locais: (a) para o julgamento de ações penais originárias promovidas contra Prefeitos
Municipais (CF, art. 29, X) e contra Juízes estaduais e membros do Ministério Público local,
ressalvada, quanto a estes últimos, a competência da Justiça Eleitoral (CF, art. 96, III) e (b)
para o exame da ação direta interventiva ajuizada com a finalidade de viabilizar a intervenção
do Estado-membro no Município (CF, art. 35, IV).
73
O fato, Senhora Presidente, é que a competência dos Tribunais de Justiça locais, notadamente
aquela de caráter originário, é regida por normas fundadas na Constituição da República, na
Carta Política dos próprios Estados-membros e nas leis estaduais de organização judiciária.
É por essa razão, como salientam os autores (CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, “op. cit.”, p.
444, item n. 3, v.g.) – que o próprio Código de Processo Civil não define as causas sujeitas à
competência originária dos Tribunais estaduais (art. 93), precisamente por respeitar, no tema, a
cláusula de reserva de Constituição, que exclui, da esfera do legislador comum da União, a
definição das matérias que podem ser incluídas no âmbito das atribuições jurisdicionais
originárias dessas mesmas Cortes judiciárias estaduais.
Não se pode desconsiderar que a Constituição Federal, no art. 125, § 1º, expressamente
outorgou, ao Estado-membro, a possibilidade de definir, no texto de sua própria Constituição, a
competência do Tribunal de Justiça local. Não cabe, desse modo, ao legislador comum da
União, tal como este o fez, impropriamente, ao editar a Lei nº. 10.628/2002, modificar, ampliar
ou reduzir o rol de competências originárias das Cortes judiciárias locais, pois essa tarefa foi
explicitamente deferida, com exclusividade, pelo legislador constituinte, aos próprios Estadosmembros. Cabe ter presente, neste ponto, o autorizado magistério de UADI LAMMÊGO BULOS
(“Constituição Federal Anotada”, p. 1.074, 5ª ed., 2003, Saraiva), para quem “Cabe à
Constituição do Estado regular a competência dos Tribunais de Justiça (...)”, sem prejuízo da
regulação, por legislação estadual, dos demais temas pertinentes à organização judiciária local.
Impende referir, de outro lado, a precisa lição de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO
(“Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, p. 34, 2ª ed., 1999, Saraiva), segundo a qual
“Quer a Constituição que a competência dos tribunais estaduais seja fixada pela respectiva
Carta Magna, e, assim, não fique a mercê da legislação ordinária. O fito dessa norma é dar
maior estabilidade a essas regras” (grifei). Cumpre assinalar, ainda, por necessário, na linha
desse entendimento, que a jurisprudência desta Suprema Corte (RTJ 140/26, Rel. Min. MARCO
AURÉLIO – RTJ 175/548, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA), com fundamento no art. 125, § 1º,
da Constituição Federal, tem enfatizado caber, às próprias Constituições Estaduais, a fixação da
competência originária das Cortes judiciárias locais:
“Justiça dos Estados: competência originária dos tribunais locais: matéria reservada às
Constituições estaduais. 1. A demarcação da competência dos tribunais de cada Estado é uma
74
raríssima hipótese de reserva explícita de determinada matéria à Constituição do Estadomembro, por força do art. 125, § 1º, da Lei Fundamental da República; o âmbito material dessa
área reservada às constituições estaduais não se restringe à distribuição entre os tribunais
estaduais da competência que lhes atribua a lei processual privativa da União; estende-se –
quando a não tenha predeterminado a Constituição Federal – ao estabelecimento de
competências originárias ratione muneris, assim, as relativas ao mandado de segurança segundo
a hierarquia da autoridade coatora. 2. Não confiada pela Constituição respectiva a um dos
tribunais estaduais, a competência originária para certo tipo de processo, há de seguir-se a
regra geral de sua atribuição ao juízo de primeiro grau, que não pode ser elidida por norma
regimental.” (RTJ 185/711, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)
Cabe acentuar, por pertinente, que a discussão em torno da validade constitucional da Lei nº
10.628/2002 - consideradas as premissas em que esse debate se trava, versando a possibilidade,
ou não, de a lei ordinária ampliar a competência originária do Supremo Tribunal Federal (e de
outras Cortes judiciárias cujas atribuições também se achem unicamente definidas em sede
constitucional) - confere impressionante atualidade ao precedente histórico que a Suprema Corte
dos Estados Unidos da América firmou no caso “Marbury v. Madison”, em 1803, quando aquela
Alta Corte enfaticamente assinalou que o delineamento constitucional de suas atribuições
originárias foi concebido pelos “Founding Fathers” com o claro propósito de inibir a atuação
do Congresso dos Estados Unidos da América, impedindo-o de proceder, em sede de legislação
meramente ordinária, a indevidas ampliações da competência daquele Tribunal, fazendo, do
rígido círculo traçado pelo Artigo III da Constituição americana, um instrumento de proteção do
órgão de cúpula do Poder Judiciário, em face do Poder Legislativo daquela República.
Vale mencionar, neste ponto, a observação feita por BERNARD SCHWARTZ (“A Commentary
on the Constitution of the United States”, Part I, p. 367, n. 143, 2ª ed., 1963, The Macmillan
Company, New York), a propósito do alto significado político-jurídico de que se revestiu a
decisão proferida em “Marbury v. Madison”:
“Even more important, as a consequence of the original jurisdiction of the highest Court being
derived from the basic document itself, is the placing of such jurisdiction beyond Congressional
control. This has been settled ever since Marbury v. Madison. The statute held unconstitutional
75
there was one which was construed as vesting the Supreme Court with the original jurisdiction to
issue writs of mandamus. Chief Justice Marshall rejected the contention that, since the organic
clause assigning original jurisdiction to the high bench contained no express negative or
restrictive words, the power remained in the legislature to assign original jurisdiction in that
Court in cases other than those specified. On the contrary, said Marshall, a negative or exclusive
sense must be given to the cases of original jurisdiction spelled out in Article III.
...................................................
The statute at issue in Marbury v. Madison, was ruled invalid because it sought to give the
Supreme Court original jurisdiction in a case not specified by Article III. Under Marbury v.
Madison, then, the Congress may not enlarge the original jurisdiction of the high bench. But the
reasoning of that great case applies with equal force to legislative attempts to restrict the
Supreme Court’s original jurisdiction. The constitutional definition of such jurisdiction deprives
Congress of any power to define it. The legislative department may neither extend nor limit the
terms of the organic grant.” (grifei)
É importante rememorar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, há 110 anos, em decisão
proferida em 17 de agosto de 1895 (Acórdão n. 5, Rel. Min. JOSÉ HYGINO), já advertia, no
final do século 19, não ser lícito ao Congresso Nacional, mediante atividade legislativa comum,
ampliar, suprimir ou reduzir a esfera de competência da Corte Suprema, pelo fato de tal
complexo de atribuições jurisdicionais derivar, de modo imediato, do próprio texto
constitucional, proclamando, então, naquele julgamento, a impossibilidade de tais modificações
por via meramente legislativa, “por não poder qualquer lei ordinária aumentar nem diminuir as
atribuições do Tribunal (...)” (“Jurisprudência/STF”, p. 100/101, item n. 89, 1897, Rio de
Janeiro, Imprensa Nacional – grifei).
Em suma, Senhora Presidente, o Congresso Nacional não pode - simplesmente porque não
dispõe, constitucionalmente, dessa prerrogativa – ampliar (tanto quanto reduzir ou modificar),
mediante legislação comum, a esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal,
do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça
dos Estados. Nem se diga, de outro lado, que o Congresso Nacional, revivendo uma prática que
76
pertenceu ao Poder Legislativo sob a Carta Política do Império do Brasil (art. 15, incisos VIII e
IX), poderia, hoje, anacronicamente, mediante atividade legislativa, interpretar a Constituição,
tal como sucedeu, p. ex., já no final do período regencial, com a Lei nº 105, de 12/05/1840 (a
denominada Lei de Interpretação), que fixou a exegese de determinados preceitos da
Constituição imperial, consubstanciados no Ato Adicional de 1834.
Menos viável, ainda, revelar-se-á tal possibilidade, se se considerar que a interpretação
consubstanciada na Lei nº 10.628/2002 afeta exegese que o Supremo Tribunal Federal, em sua
condição institucional de guardião da Lei Fundamental, deu ao próprio texto da Carta Política.
A esse respeito, cabe rememorar as procedentes razões que foram expostas no douto voto do
eminente Relator:
“46. A indagação que assim logo se põe é saber se lei ordinária é instrumento normativo apto a
alterar jurisprudência assente do Supremo Tribunal Federal, fundada direta e exclusivamente na
interpretação da Constituição da República.
47. A resposta é negativa.
...................................................
50. O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da
Constituição.
...................................................
57. De tudo resulta que a lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência
da Constituição é, só por isso, formalmente
inconstitucional.
58. Tanto pior se, de sobra, contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal: aí, é claro, haverá
indício veemente de inconstitucionalidade material, salvo recuo da Corte.
77
...................................................
62. Coisa diversa, convém repisar, é a lei pretender impor, como seu objeto imediato, uma
interpretação da Constituição: aí, a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda
norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação de norma de hierarquia
superior.
63. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição
acresça o de opor-se ao entendimento da jurisdição constitucional, às razões dogmáticas
acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação
pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental.
...................................................
65. Quando, ao contrário, a lei ordinária (ou o ato de governo) é que pretendam inverter a
leitura da Constituição pelo órgão da jurisdição constitucional, não pode demitir-se este do seu
poder-dever de opor o seu veto à usurpação do seu papel.
...................................................
67. Admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição
seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do
legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em
guarda da sua supremacia – só constituiria a Lei Suprema na medida da inteligência que lhe
desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames.
68. Tenho, pois, por inconstitucional o § 1º do art. 84 CPrPenal, acrescido pela lei
questionada.”
(grifei)
78
Daí a correta lição expendida pelo ilustre magistrado ANDRÉ GUSTAVO C. DE ANDRADE
(“Revista de Direito Renovar”, vol. 24/78-79, set/dez 02), que também recusa, ao Poder
Legislativo, a possibilidade de, mediante verdadeira “sentença legislativa”, explicitar, em texto
de lei ordinária, o significado da Constituição.
Diz esse ilustre autor:
“Na direção inversa – da harmonização do texto constitucional com a lei – haveria a
denominada ‘interpretação da Constituição conforme as leis’, mencionada por Canotilho como
método hermenêutico pelo qual o intérprete se valeria das normas infraconstitucionais para
determinar o sentido dos textos constitucionais, principalmente daqueles que contivessem
fórmulas imprecisas ou indeterminadas. Essa interpretação de ‘mão trocada’ se justificaria pela
maior proximidade da lei ordinária com a realidade e com os problemas concretos.
O renomado constitucionalista português aponta várias críticas que a doutrina tece em relação a
esse método hermenêutico, que engendra como que uma ‘legalidade da Constituição a sobreporse à constitucionalidade das leis’.
Tal concepção leva ao paroxismo a idéia de que o legislador exercia uma preferência como
concretizador da Constituição. Todavia, o legislador, como destinatário e concretizador da
Constituição, não tem o poder de fixar a interpretação ‘correta’ do texto constitucional. Com
efeito, uma lei ordinária interpretativa não tem força jurídica para impor um sentido ao texto
constitucional, razão pela qual deve ser reconhecida como inconstitucional quando contiver uma
interpretação que entre em testilha com este.”
(grifei)
Cabe enfatizar, de outro lado, por necessário, que o § 1º do art. 84 do CPP, tal como redigido,
traduz hipótese virtualmente idêntica àquela prevista na Súmula 394 do Supremo Tribunal
Federal, que foi cancelada quando do julgamento do Inq 687-QO/SP, Rel. Min. SYDNEY
SANCHES (RTJ 179/912-913), ocasião em que esta Corte, fundada no princípio republicano,
corretamente assinalou que “as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma,
conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar
79
igualmente os cidadãos comuns, como o são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou
mandatos” (grifei).
Entendo, Senhora Presidente, que o § 1º do art. 84 do CPP, introduzido pela Lei nº 10.628/2002,
ao ampliar, indevidamente, a esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal (e
de outras Cortes judiciárias), também incide em outra grave violação constitucional, além
daquela referida no início deste voto, pois o diploma legislativo em causa – ao estender, a exocupantes de cargos públicos, a prerrogativa de foro – ofende o princípio republicano, que
traduz postulado essencial de nossa organização político- -constitucional.
A evolução histórica do constitucionalismo brasileiro, analisada na perspectiva da outorga da
prerrogativa de foro, demonstra que as sucessivas Constituições de nosso País, notadamente a
partir de 1891, têm se distanciado, no plano institucional, de um modelo verdadeiramente
republicano.
Na realidade, as Constituições republicanas do Brasil não têm sido capazes de refletir, em
plenitude, as premissas que dão consistência doutrinária, que imprimem significação ética e que
conferem substância política ao princípio republicano, que se revela essencialmente
incompatível com tratamentos diferenciados, fundados em ideações e práticas de poder que
exaltam, sem razão e sem qualquer suporte constitucional legitimador, o privilégio pessoal e que
desconsideram, por isso mesmo, de modo inaceitável, um valor fundamental à própria
configuração da idéia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade.
Daí a afirmação incontestável de JOÃO BARBALHO (“Constituição Federal Brasileira”, p.
303/304, edição fac-similar, 1992, Brasília), que associa, à autoridade de seus comentários, a
experiência de membro da primeira Assembléia Constituinte da República e, também, a de
Senador da República e a de Ministro do Supremo Tribunal Federal:
“Não há, perante a lei republicana, grandes nem pequenos, senhores nem vassalos, patrícios
nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem fracos, porque a todos irmana e nivela o direito (...).”
(grifei) Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. Nada deve justificar
a outorga de tratamento seletivo que vise a dispensar determinados privilégios, ainda que de
80
índole funcional, a certos agentes públicos que não mais se achem no desempenho da função
pública cujo exercício lhes assegurava a prerrogativa de foro “ratione muneris”.
É certo que a prerrogativa de foro - cuja existência é justificada pela necessidade de preservarse a dignidade da função e de proteger-se a independência de seu exercício – acha-se instituída
em nosso sistema constitucional. Mas instituída, Senhora Presidente, considerado o que dispõe a
própria Constituição (e somente esta), unicamente para aqueles que se encontrem “in officio”,
nunca para os que não mais detenham determinadas titularidades funcionais no aparelho de
Estado.
As atribuições constitucionais das Cortes judiciárias, por isso mesmo, devem merecer
interpretação que impeça a expansão indevida, mediante atividade legislativa comum, da
competência originária dos Tribunais superiores, para que não se privilegiem, de um lado, os
ex-ocupantes de cargos públicos, e para que se não iniba, de outro, a aplicação ordinária do
postulado do juiz natural.
Entendo importante destacar, neste ponto, Senhora Presidente, que a vigente Constituição do
Brasil – ao pluralizar, de modo excessivo, as hipóteses de prerrogativa de foro – incidiu em
verdadeiro paradoxo institucional, pois, pretendendo ser republicana, mostrou-se estranhamente
aristocrática. Na verdade, o constituinte republicano, ao demonstrar essa visão aristocrática e
seletiva de poder, cometeu censurável distorção na formulação de uma diretriz que se pautou
pela perspectiva do Príncipe (“ex parte principis”) e que se afastou, por isso mesmo, do
postulado da igualdade.
Ninguém ignora que a Carta Política do Império do Brasil, de 1824, consagrou apenas cinco (5)
hipóteses de prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal de Justiça, que era o órgão de
cúpula do Poder Judiciário do regime monárquico (art. 164, II). A Constituição promulgada em
1988, no entanto, não foi capaz de igual parcimônia, ao ampliar, para quase 20 (vinte), as
hipóteses de privilégio de foro, além de conferir autorização aos Estados-membros para incluir,
nas Cartas estaduais, outras novas hipóteses de prerrogativa de foro perante os respectivos
Tribunais de Justiça, com ressalva, apenas, para os casos de competência do Júri (Súmula
721/STF).
81
É certo que a prerrogativa de foro, tal como prevista na Constituição da República, acha-se
estabelecida “ratione muneris”, destinada a compor o estatuto jurídico de determinados agentes
públicos, enquanto ostentarem essa particular condição funcional, porque vocacionada, sempre
nas hipóteses definidas no texto constitucional, a proteger aquele que está a exercer ou a
titularizar
determinada
função
pública,
não
se
estendendo,
porém,
por
absoluta
incompatibilidade com o princípio republicano, aos ex- -ocupantes de certos cargos públicos.
É por tal razão que esta Suprema Corte já se manifestou no sentido de que, tratando-se de
determinados ocupantes de cargos públicos, inexiste, quanto a eles, situação de privilégio de
caráter pessoal. Trata-se, ao contrário, de uma prerrogativa de ordem estritamente funcional,
que, prevista em sede constitucional, destina-se a proteger – enquanto derrogação
extraordinária dos postulados da igualdade e do juiz natural – aquele que se acha e que ainda se
encontra no desempenho de determinado ofício público. Na verdade, o que deve legitimar o
reconhecimento da competência originária do Supremo Tribunal Federal (e das demais Cortes
judiciárias) deve ser, unicamente, a atualidade do exercício do mandato ou da titularidade de
determinadas funções públicas que justificam a prerrogativa de foro. Nada deve conduzir à
preservação dessa competência originária, ainda que mediante invocação da “perpetuatio
jurisdictionis”, quando cessado o desempenho funcional do cargo ou do mandato cuja
titularidade justificava a aplicação, sempre excepcional, da regra constitucional concernente à
prerrogativa de foro.
Por isso mesmo, Senhora Presidente, e considerando que o princípio republicano já se encontra
por demais mitigado no atual texto constitucional, entendo que não deva ele sofrer, uma vez
mais, nova derrogação, notadamente por via legislativa meramente ordinária, que objetiva
conferir, a ex-ocupantes de cargos públicos ou de mandatos eletivos, o foro por prerrogativa de
função, que traduz, em minha opinião - não obstante sua larga utilização pela Carta da
República - situação excepcional que só deve ser permitida nas hipóteses estritamente
autorizadas pela própria Constituição Federal.
Nem se diga, finalmente, Senhora Presidente, que as sanções imponíveis em sede de ação civil
por improbidade administrativa revestem-se de natureza penal, em ordem a justificar, com tal
82
qualificação, o reconhecimento, na espécie, da legitimidade constitucional do diploma normativo
impugnado nesta sede de fiscalização normativa abstrata.
Não se questiona que os atos de improbidade administrativa podem induzir a responsabilidade
penal de seu autor, assumindo, na diversidade dos tipos penais existentes, múltiplas formas de
conduta delituosa.
Ocorre, no entanto, que os atos de improbidade administrativa também assumem qualificação
jurídica diversa daquela de caráter penal, apta, por isso mesmo, a viabilizar, no contexto da
pertinente ação civil pública, a imposição das sanções previstas, expressamente, no art. 37, § 4º,
da Constituição Federal, que assim dispõe:
“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda
da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.” (grifei) Vê-se, da simples leitura
do preceito constitucional em questão, que este distingue, de maneira muito clara, entre as
sanções de índole civil e político-administrativa, de um lado, e aquelas de natureza criminal, de
outro.
Daí a correta advertência formulada por ALEXANDRE DE MORAES (“Constituição do Brasil
Interpretada”, p. 2.648, 2ª ed., 2003, Atlas):
“A natureza civil dos atos de improbidade administrativa decorre da redação constitucional, que
é bastante clara ao consagrar a independência da responsabilidade civil por ato de improbidade
administrativa e a possível responsabilidade penal, derivadas da mesma conduta, ao utilizar a
fórmula ‘sem prejuízo da ação penal cabível’.
Portanto, o agente público, por exemplo, que, utilizando-se de seu cargo, apropria-se
ilicitamente de dinheiro público, responderá, nos termos do artigo 9º da Lei nº 8.429/92, por ato
de improbidade, sem prejuízo da responsabilidade penal por crime contra a administração,
prevista no Código Penal ou na legislação penal especial.” (grifei) É tempo de concluir o meu
voto, Senhora Presidente. E, ao fazê-lo, peço vênia para julgar integralmente procedente a
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presente ação direta, em ordem a declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 10.628, de
24/12/2002, que acresceu, ao art. 84 do CPP, os respectivos §§ 1º e 2º, acompanhando, portanto,
o doutíssimo voto proferido pelo eminente Relator. É o meu voto.”
No mesmo sentido, transcrevemos o voto proferido pelo
Ministro Celso de Melo, em 07 de março de 2007, no Agravo Regimental no Inquérito nº. 2.3337/PR (todos os grifos e palavras “em negrito” constam do original):
“E M E N T A: PRERROGATIVA DE FORO –
EXCEPCIONALIDADE
–
MATÉRIA
DE
ÍNDOLE
CONSTITUCIONAL
–
INAPLICABILIDADE A EX-OCUPANTES DE CARGOS PÚBLICOS E A EX-TITULARES
DE MANDATOS ELETIVOS – CANCELAMENTO DA SÚMULA 394/STF – NÃOINCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA “PERPETUATIO JURISDICTIONIS” – POSTULADO
REPUBLICANO E JUIZ NATURAL – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.
- O postulado republicano – que repele privilégios e não tolera discriminações – impede que
prevaleça a prerrogativa de foro, perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais
comuns, mesmo que a prática delituosa tenha ocorrido durante o período de atividade
funcional, se sobrevier a cessação da investidura do indiciado, denunciado ou réu no cargo,
função ou mandato cuja titularidade (desde que subsistente) qualifica-se como o único fator de
legitimação constitucional apto a fazer instaurar a competência penal originária da Suprema
Corte (CF, art. 102, I, “b” e “c”). Cancelamento da Súmula 394/STF (RTJ 179/912-913).
- Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. O reconhecimento da
prerrogativa de foro, perante o Supremo Tribunal Federal, nos ilícitos penais comuns, em favor
de ex-ocupantes de cargos públicos ou de ex-titulares de mandatos eletivos transgride valor
fundamental à própria configuração da idéia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico
da igualdade.
- A prerrogativa de foro é outorgada, constitucionalmente, “ratione muneris”, a significar,
portanto, que é deferida em razão de cargo ou de mandato ainda titularizado por aquele que
sofre persecução penal instaurada pelo Estado, sob pena de tal prerrogativa 84
descaracterizando-se em sua essência mesma – degradar-se à condição de inaceitável privilégio
de caráter pessoal. Precedentes.
VOTO
(...)
Não assiste razão à parte ora recorrente, eis que a decisão agravada ajusta-se, com integral
fidelidade, à diretriz jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em
exame.
Com efeito, Senhores Ministros, com a cessação da investidura do ora agravante no mandato
parlamentar de Deputado Federal, deixa de subsistir, “ipso facto”, a competência originária do
Supremo Tribunal Federal para prosseguir na apreciação deste procedimento de natureza penal.
Impõe-se reconhecer, por isso mesmo, que cessou, “pleno jure”, a competência originária desta
Suprema Corte para apreciar a causa penal em referência.
Cumpre assinalar, neste ponto, que esse entendimento – que reconhece não mais subsistir a
competência penal originária do Supremo ante a cessação superveniente de determinadas
titularidades funcionais e/ou eletivas – traduz diretriz jurisprudencial prevalecente nesta Corte a
propósito de situações como a que ora se registra nos presentes autos:
“Não mais subsiste a competência penal originária do Supremo Tribunal Federal (...), se
(...) sobrevém a cessação da investidura do indiciado, denunciado ou réu no cargo, função
ou mandato cuja titularidade justificava a outorga da prerrogativa de foro ‘ratione
muneris’, prevista no texto constitucional (CF, art. 102, I, ‘b’ e ‘c’).
A prerrogativa de foro perde a sua razão de ser, deixando de incidir e de prevalecer, se
aquele contra quem foi instaurada a persecução penal não mais detém o ofício público
cujo exercício representava o único fator de legitimação constitucional da competência
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penal originária do Supremo Tribunal, mesmo que a prática delituosa tenha ocorrido
durante o período de atividade funcional.”
(Inq 862/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Cabe referir, bem por isso, consideradas as razões expostas, que a jurisprudência desta Corte
(RTJ 121/423, v.g.), firmada em situações como a que ora se examina neste procedimento penal
– e reiterada quando já em vigor a presente Constituição da República (RTJ 137/570, Rel. Min.
CELSO DE MELLO - RTJ 148/349-350, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, orienta-se no sentido
de que, “não se encontrando, atualmente, em mandato legislativo federal, não tem, o Supremo
Tribunal Federal, competência para julgar o denunciado” (RTJ 107/15, Rel. Min. ALFREDO
BUZAID - grifei).
Cumpre relembrar, ainda, por necessário, que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento
plenário da ADI 2.797/DF, reconheceu a inconstitucionalidade da Lei nº 10.628/2002 também
no ponto em que esse diploma legislativo atribuía prerrogativa de foro a ex-ocupantes de cargos
públicos e a ex-titulares de mandatos eletivos (como o ora agravante), sendo indiferente, para
esse efeito, que, contra eles, já houvesse sido instaurado ou estivesse em curso, quer processo
penal de índole condenatória, quer inquérito policial destinado a investigar suposta prática
delituosa (como sucede na espécie).
Ao assim decidir, o Supremo Tribunal Federal, relembrando antiga lição ministrada por JOÃO
BARBALHO (“Constituição Federal Brasileira”, p. 303/304, edição fac-similar, 1992,
Brasília), advertiu que a outorga meramente legal desse tratamento seletivo a determinados
cidadãos que não mais se achem no desempenho da função pública – cujo exercício lhes
assegurava, em sede processual penal, a prerrogativa de foro “ratione muneris” – ofende o
princípio republicano, que traduz postulado essencial e inerente à organização políticoconstitucional brasileira.
Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. Isso significa, na
perspectiva da pretensão recursal deduzida pelo ex-Deputado Federal José Janene, que as
atribuições constitucionais do Supremo Tribunal Federal devem merecer interpretação que
impeça a expansão indevida da competência originária desta Alta Corte, para que não se
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transgrida - com a concessão de prerrogativa de foro a ex-ocupantes de cargos públicos ou a extitulares de mandatos eletivos - um valor fundamental à própria configuração da idéia
republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade, em ordem a viabilizar, desse
modo, em relação a quem não mais detém certas titularidades funcionais no aparelho de
Estado, a aplicação ordinária do postulado do juiz natural, cuja importância tem sido
enfatizada, em sucessivas decisões, por esta Corte Suprema (RTJ 149/962-963 – RTJ 160/10561058 - RTJ 169/557 – RTJ 179/378-379, v.g.).
É preciso ter presente que a prerrogativa de foro é concedida “ratione muneris”, vale dizer, é
deferida em razão do cargo ainda titularizado por aquele que sofre persecução penal instaurada
pelo Estado.
Sabemos todos, Senhores Ministros, que o Supremo Tribunal Federal qualifica-se como juiz natural
dos membros do Congresso Nacional (RTJ 137/570 - RTJ 151/402), quaisquer que sejam as
infrações penais a eles imputadas (RTJ 33/590), mesmo que se cuide de simples ilícitos
contravencionais (RTJ 91/423) ou se trate de crimes sujeitos à competência dos ramos
especializados da Justiça da União (RTJ 63/1 - RTJ 166/785-786).
Em conseqüência dessa particular qualificação, somente o Supremo Tribunal Federal, em sua
condição de juiz natural dos Deputados Federais e Senadores da República, pode, validamente,
receber denúncia contra eles formulada, nas hipóteses de ilícitos penais comuns (RTJ 180/846847, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 183/89-90, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
É inquestionável que a prerrogativa de foro, instituída em nosso sistema constitucional, tem a
sua existência justificada pela necessidade de preservar-se a dignidade de função e de protegerse a independência de seu exercício.
Assinale-se, no entanto, que a prerrogativa de foro – que traduz matéria de direito estrito – tem
por destinatários, unicamente, aqueles que se encontrem “in officio”, não se estendendo, por
isso mesmo, àqueles que não mais detenham certas titularidades funcionais no aparelho de
Estado.
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Na realidade, insista-se, a prerrogativa de foro, tal como prevista na Constituição da
República, acha-se estabelecida “ratione muneris”, destinada a compor o estatuto jurídico de
determinados agentes públicos, enquanto ostentarem essa particular condição funcional,
porque vocacionada, sempre nas hipóteses definidas no texto constitucional, a proteger aquele
que está a exercer ou a titularizar determinada função pública, não se estendendo, porém, por
absoluta incompatibilidade com o princípio republicano, aos ex-ocupantes de certos cargos
públicos.
É por tal razão que esta Suprema Corte já se manifestou no sentido de que, tratando-se de
determinados ocupantes de cargos públicos, inexiste, quanto a eles, situação de privilégio de
caráter pessoal. Trata-se, ao contrário, de uma prerrogativa de ordem estritamente funcional,
que, prevista em sede constitucional, destina-se a proteger – enquanto derrogação
extraordinária dos postulados da igualdade e do juiz natural – aquele que se acha e que ainda
se encontra no desempenho de determinado ofício público.
Na verdade, o que deve legitimar o reconhecimento da competência originária do Supremo
Tribunal Federal deve ser, unicamente, a atualidade do exercício do mandato ou da titularidade
de determinadas funções públicas que justificam a prerrogativa de foro. Nada deve conduzir à
preservação dessa competência originária, ainda que mediante invocação da “perpetuatio
jurisdictionis”, quando cessado, como na espécie, o desempenho funcional do cargo ou do
mandato cuja titularidade justificava a aplicação, sempre excepcional, da regra constitucional
concernente à prerrogativa de foro.
Cabe relembrar, neste ponto, por necessário, que a Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal
foi cancelada quando do julgamento do Inq 687-QO/SP, Rel. Min. SYDNEY SANCHES (RTJ
179/912-913), ocasião em que esta Corte, fundada no princípio republicano, corretamente
assinalou que “as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não
devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os
cidadãos comuns, como o são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos” (grifei).
Em suma: a pretensão manifestada nesta sede processual pelo ora recorrente, que é exDeputado Federal, além de não possuir qualquer suporte constitucional de legitimação,
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desconsidera, de modo inaceitável, um valor fundamental à própria configuração da idéia
republicana, que se orienta – como precedentemente enfatizado - pelo vetor axiológico da
igualdade.
Daí a afirmação incontestável de JOÃO BARBALHO (“Constituição Federal Brasileira”, p.
303/304, edição fac-similar, 1992, Brasília), que associa, à autoridade de seus comentários, a
experiência de membro da primeira Assembléia Constituinte da República e, também, a de
Senador da República e a de Ministro do Supremo Tribunal Federal:
“Não há, perante a lei republicana, grandes nem
pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem
fracos, porque a todos irmana e nivela o direito (...).” (grifei)
Devo registrar, finalmente, que pretensão recursal deduzida em contexto idêntico ao deste
processo foi recusada pelo E. Plenário desta Suprema Corte, quando dos recentíssimos
julgamentos do Inq 1.376-AgR/MG, do Inq 2.231-AgR/PR e do Inq 2.281-AgR/MG, de que fui
Relator.
Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, nego provimento ao presente recurso
de agravo, mantendo, em conseqüência, por seus próprios fundamentos, a decisão ora
agravada. É o meu voto.”
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