Lores Pedro Meller Dr. Lores Pedro Meller Os tempos atuais, marcados pelo processo de globalização, em que as distâncias se encurtam e os limites perdem sua precisão, mostram que os problemas e as preocupações têm um caráter mais universal; há uma homogeneização da cultura em geral. Em todas as latitudes, questões econômicas (desemprego, pobreza, concentração de renda), sociais (violência, corrupção), de natureza político-religiosa (guerras étnicas/fundamentalistas) e ecológicas invadem o cotidiano das pessoas, levando-as a lutar pela sobrevivência ou a se esgotar e a adoecer para responder às exigências de competição, eficiência e consumo – valores enaltecidos pelo dito mundo pós-moderno. A rapidez é fundamental. A produção deve ser alcançada a qualquer preço e em qualquer tempo. O desenvolvimento tecnológico-des-hominização, ou robotização da produção, traz consigo a solidão, a desesperança, o isolamento, a falta de solidariedade; “o homem já não tem tempo para o homem”, como disse um paciente. Os relacionamentos estão vazios de palavras e de contato. Tudo parece possível através da máquina; podemo-nos valer do espetacular desenvolvimento das comunicações: negócios, namoro, sexo, e-mail, fax, tudo via Internet. Os video games substituem os campos de futebol; a sala de TV, a sala de jantar. A realidade dos fatos confunde-se com a realidade virtual. A categoria espaço e tempo, organizadora do pensamento, altera-se. Os acontecimentos chegam-nos diretamente de qualquer lugar do mundo, em tempo presente; as distâncias desaparecem. Compra-se um livro do outro lado do globo como se fosse na esquina de casa. Tudo facilitado; tudo à mão. Os desejos têm sua realização sem maior elaboração e trabalho psíquico. As imagens visuais trazem, via Internet, o objeto desejado, numa espécie de realização alucinatória do desejo. A imagem substitui as palavras, representantes dos objetos, que, laboriosamente, devem ser buscados na realidade externa para a ação específica, realizadora do desejo. A droga é largamente usada, pois entorpece e proporciona a ilusão ou a alucinação da satisfação, processo primário de funcionamento mental. Como afirma Fidias Césio, “o ser humano vive numa atmosfera angustiosa, própria das neuroses atuais, com múltiplas manifestações psíquicas e somáticas, que move a instalação de ‘defesas’, ‘tentativas de cura’, que têm, como expressão última, a atuação violenta e a droga” (Césio, F., 1998). Pelo exposto, a Psicanálise, como método terapêutico, que exige trabalho, reflexão, elaboração, que depende de tempo e dinheiro, encontra-se, naturalmente, em crise, pois está na contramão do pós-modernismo, perdendo o seu outrora prestigioso lugar, não só entre as psicoterapias, mas também como maneira de compreender a cultura. Formas de terapia ou de ajuda que primam pela promessa de rapidez nos resultados, a preços dimi- Lores Pedro Meller nuídos, são preferidas. Ou, ainda, sofre a Psicanálise a concorrência dos “gurus”, dos Paulos Coelhos que vendem barato seus produtos (mas enriquecem)! Falávamos, no início, da universalização da crise. Aqui estamos nós, como em todas as partes do mundo, atravessando tempos difíceis. A crise econômica, social, de valores leva-nos, por um lado, a questionar o valor do trabalho, da ética, e, por outro, a questionar a conseqüência dessa crise: a crença e a valorização do mágico, do sobrenatural, do místico. A Psicanálise, que visa ao autoconhecimento e que, no próprio método de investigação, se torna terapêutica, sofre a concorrência de todo tipo de prática estranha, desde as concepções ocultistas da mente (hipnose, espiritismo, astrologia, florais) até as terapias de cunho e rigor científico, que oferecem, quase sempre, rapidez na remissão do sintoma ou que enaltecem as modificações na/da conduta. Pergunta-se: “Como o setting psicanalítico poderá se adequar à nova temporalidade do homem, globalizado, marcado pela valorização da imagem e estética e pela busca da multiplicidade, rapidez, visibilidade, leveza, criatividade e exatidão?”, como aponta Italo Calvino em seu ensaio “Seis propostas para o próximo milênio”. É possível ser leve e profundo? Rápido e elaborado? Exato e complexo? Se leveza, rapidez e exatidão parecem ser características antagônicas a tudo que é intrínseco à Psicanálise, como transformar o método psicanalítico sem abrir mão dos seus fundamentos teóricos? (ABP, 1999). Com estas perguntas, a Associação Brasileira de Psicanálise abre o debate sobre “A Nova Clínica Psicanalítica”, em seu informativo ABP Notícias, de abril de 1999. Pode-se dividir a prática analítica atual em Psicanálise Clássica, Psicoterapia Psicanalítica e psicoterapias afins – de casal, de família, de grupo, de crianças, de adolescentes, de casos limítrofes, etc. A IPA (International Psychoanalytical Association), preocupada com a questão, constituiu, há dois anos, um comitê sobre Psicanálise e psicoterapias afins, com a finalidade de conhecer a realidade prática de todos os seus membros. Aqui no Brasil, a ABP (Associação Brasileira de Psicanálise) também pesquisou entre os seus membros o que denominou “Perfil da Clínica”, e a APdeBA (Asociación Psicoanalítica de Buenos Aires), na Argentina, fez pesquisa semelhante. Os dados colhidos, de modo geral, apontam para uma tendência de uniformização nas três áreas pesquisadas. Todos sofrem as conseqüências da crise de mercado, havendo a tendência a fazerem modificações em seu método de trabalho; algo inimaginado vinte anos atrás. As psicoterapias – colocadas, aqui, sem muito rigor conceitual –, antes consideradas um subproduto da Psicanálise, agora ocupam um largo percentual, ao redor de 70% das horas ocupadas nos consultórios dos psicanalistas. Essas horas são empregadas pelos analistas, com formação nos institutos oficiais, com pacientes de poucas sessões semanais, a grande maioria duas sessões; poucos desses analistas, os didatas, é que trabalham com análise clássica, requisito da formação. Ao redor de 15% das horas são dedicadas a terapias de tempo e objetivos limitados – terapias focais. Há, também, a tendência à prática de terapias outras: terapias de casais, de grupos, etc., além de atividades em instituições. Deixamos de lado, por falta de dados, a situação dos psicanalistas e psicoterapeutas não pertencentes à IPA, porém, cremos que a situação é semelhante ou pior. Não sofremos, por enquanto, sobre a prática clínica, no Brasil, a ingerência e a participação do Estado e de suas políticas assistenciais, bem como dos Sistemas de Seguro de Saúde. Essa ingerência facilita a cobrança de reconhecimento e de legitimidade, ante o Estado por parte de “grupos de psicoterapeutas” de todas as origens, alguns apresentando formação inferior e oferecendo terapias mais curtas a preços reduzidos, o que os torna interlocutores privilegiados nas negociações com o Estado. A Psicanálise tem pilares teóricos que sustentam sua clínica. Alguns desses pilares são freudianamente conhecidos: inconsciente, resistência, repressão (recalque), sexualidade infantil, Édipo, transferência. O setting fica constituído pelas leis que o definem: atenção flutuante, associação livre e regra da abstinência. Outros elementos da prática, como a freqüência das sessões, o uso do divã, etc., em nossa opinião, não fazem parte dos pilares técnicos, pois podem variar. Já as regras enumeradas são funda- Lores Pedro Meller mentais. Hoje, praticamente, todos distinguem a Psicoterapia da Psicanálise, mas não pelos aspectos formais, como número de sessões (pode haver Psicanálise com duas sessões e não com quatro, ainda que usando o divã), duração do tratamento, “cara a cara”. Define-se Psicanálise como um método terapêutico, baseado na interpretação sistemática da transferência, na regressão, num terreno compartilhado (campo analítico) entre analista e paciente que dá lugar a fenômenos repetitivos (os da história infantil, que se reatualizam e também dão origem a fenômenos novos). Outra questão que é colocada, atualmente, se refere ao ensino e à formação dos psicoterapeutas e às condições necessárias ao exercício da profissão, confrontadas com as exigidas a um psicanalista, digamos, clássico. Concordamos com os autores e a escola que defendem a necessidade de uma formação que contemple o tripé clássico – análise pessoal, supervisão clínica e seminários teóricos – para os que exercem as psicoterapias, a mesma exigência feita aos que trabalham com a Psicanálise dita clássica. Se há um continuum entre as duas, se são sustentadas pelos mesmos fundamentos teóricos, como, na prática, serem diferentes? Somos da opinião de que, quando as regras técnicas – Atenção Flutuante, Associação Livre, Regra de Abstinência – não são observadas, estamos diante de outro tipo de terapia – não a psicanalítica –, terapia de apoio ou pedagógica. Temos dificuldade de engajar-nos no grupo dos psicanalistas que fazem a distinção entre Psicoterapia Psicanalítica e Psicanálise, afirmando que a ética da abstinência não é tão forte na Psicoterapia como na Psicanálise. Naquela, estaria facultado ao psicoterapeuta um poder maior de intervenção, sendo ele mais flexível com a abstinência, intervindo mais, outorgando-se mais poder, orientando, aproveitando sugestões, facilitando a abreação. Tudo isso, por certo, proporciona alívio imediato, entretanto, em nome disso, o terapeuta impõe seu desejo e expectativas ao paciente; a ética do desejo é alterada, pois modifica-se seu foco, levando o paciente a descobrir e saber mais sobre o desejo do terapeuta do que sobre o seu próprio desejo. Então, a prática atual da Psicanálise deve adaptar-se aos novos tem- pos. A questão é saber até onde se podem fazer modificações, respondendo às necessidades de demandas externas, sem mutilar seu corpo doutrinário. Corre-se o risco, como alertam muitos, de se “fazer Psicanálise sem Psicanálise”. Devemos absorver e nos beneficiar dos recentes e crescentes avanços de outras áreas – das biociências, por exemplo –, pois são inegáveis os benefícios dos chamados tratamentos combinados. Pode parecer estranho que, depois do quadro traçado, seja possível estar otimista com relação ao futuro da Psicanálise como método psicoterapêutico. Acreditamos, no entanto, que seu futuro está assegurado. Há razões para afirmar isso. Nunca tantas pessoas buscaram tratamento psicológico; os consultórios passam a ser, nesse mundo de desumanização, uma espécie de “sítio de resistência”, onde valores esquecidos, sentimentos sufocados, medos, angústias podem ser compartilhados. Um lugar onde “o homem encontra um tempo para o homem”. Crise; Globalização; Ética; Desejo; Psicanálise; Psicoterapia. Crisis; Globalization; Ethics; Desire; Psychoanalysis; Psychotherapy. ABP. Notícias. Ano 2, n.2, abril 1999. CÉSIO, F. As neuroses atuais. Simpósio APA 1998. Contribución al Panel “Lacuna Psicoanalítica, sus desafios técnicos”.