A participação da enfermagem e do alunato nos grupos com

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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, n 150, 27-31
o
A par ticipação da enfermagem e do
alunato nos grupos com pacientes
psicóticos: um encontro fundamental
Ana Irene Canongia, Fernanda do Carmo Reis,
Juraci Brito da Silva, Priscilla de Oliveira Tavares,
Rosa Maria Santos Gonzaga
e quenos recortes ilustram a participação conjunta, da enfermagem e dos
estagiários de graduação em psicologia e enfermagem, nos grupos com
pacientes psicóticos numa enfermaria de agudos. Essa experiência aponta para
a sua importância fundamental no construir da formação e da reciclagem,
incentivando o respeito aos diferentes saberes e às singularidades, o que leva
conseqüentemente a uma prática assistencial mais humana e qualificada.
Palavras-chave: Enfermagem, estágio de graduação, grupos, fundamental
P
T
hrough brief descriptions of situations that arise, the author discusses the
joint participation of nurses and under-graduate trainees in the areas of
psychology and nursing in their work with groups of psychotic patients in a shortterm psychiatric ward. The fundamental importance of such joint participation
for formation and recycling is also duscussed, thus stimulating respect for different
types of knowledge and singularities. This consequently leads to more human and
more qualified clinical practice.
Key words: Nursing, under-graduate trainees, groups, fundamental
Pulsional Revista de Psicanálise
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INTRODUÇÃO
F
undamental, esta é a palavra fundamental!
Ela nos remete para as contribuições da
Psicopatologia Fundamental: a experiência, só possível com a presença de um
outro daí ser terapêutica, oriunda do que
ensina o sofrimento que é singular e a
interlocução dos diversos saberes sobre
esse mesmo sofrimento.
Em sendo assim, é esperado que a formação dos nossos alunos, futuros profissionais da área de saúde mental,
possa se dar na direção da interlocução
multidisciplinar.
A visão do respeito pelos diferentes saberes, que contribui para a compreensão
do pathos (Berlinck, 2000: 21), deve começar já nos bancos da universidade e
nos estágios. Também por essa razão, não
é ético nem justo excluir-se desse construir os que estão de forma premente no
campo da práxis: o corpo de enfermagem, sobretudo aqueles de nível médio.
Foi observando esse cotidiano, necessitado de um construir fundamental, que
implementamos a inserção da enfermagem nos diversos grupos com pacientes,
operativos ou não, juntamente com os
estagiários de graduação e um staff de
nível superior ou um residente em saúde mental.
O CONTEXTO DESSE ACONTECER
Esse acontecer se deu num hospital
psiquiátrico, mais precisamente numa
enfermaria de acolhimento à crise,
onde são internados pacientes de pri-
meiro surto, pacientes crônicos reagudizados e até mesmo aqueles intermináveis casos ditos “sociais”, cada vez
mais freqüentes nas unidades hospitalares. Apesar dos últimos, prevalecia o
fato de ser uma enfermaria com alta rotatividade, cujo tempo médio de internação girava em torno de quinze dias.
Nesse serviço, a equipe assistencial era
formada por enfermagem (nível médio
e superior), médicos, psicólogos, serviço social, estagiários de graduação
em psicologia e de enfermagem, residentes em saúde mental, artesãos; também os serventes e a secretária integravam o lidar diário e direto com os
pacientes.
A prática assistencial esteve sempre
pautada nos preceitos da desinstitucionalização com responsabilidade, valorizando a singularidade do adoecimento, sua contextualização, seu meio sociocultural.
Dando prosseguimento ao trabalho em
grupo com pacientes que já vinha sendo
realizado há vários anos pelas turmas
anteriores de residentes e estagiários,
passou-se a partir de discussões em supervisão, a focalizar-se a necessidade de
incentivar, também, a participação da enfermagem de nível médio nesses grupos.
Ao escrever sobre essa experiência, estamos dando visibilidade à reflexão e à
elaboração de um fazer atravessado por
imprevistos, improvisos e impasses ao
longo do estágio, mas também estamos
contribuindo para o construir que acreditamos se dar de forma processual e
histórica.
A participação da enfermagem e do alunato ...
Retomemos a enfermagem. Esses profissionais mencionados acima vieram,
em sua maioria, de uma geração asilar
com funções instituídas tais como aquele
que amarra o doente, dá o remédio, faz
e executa o que o médico lhe delega,
portanto, também necessitados de entender e apreender a ideologia da reforma
psiquiátrica.
Temos a compreensão de que a participação desses profissionais nos grupos pode ser um dos caminhos viáveis
para o esclarecimento e o entendimento de muitas distorções e contradições
nas suas práticas.
As sessões dos grupos, operativos ou
não, com pacientes internados e com
familiares separadamente, aconteceram
duas vezes por semana com cada um e
duraram aproximadamente uma hora e
meia.
A ida dos pacientes aos grupos se deu
de forma espontânea, bem como dos
familiares, entretanto, alguns tiveram
que ser convidados ou mesmo incentivados a participar.
Os assuntos pregnantes foram: a internação, as dificuldades do convívio diário
na enfermaria com os colegas, com alguns membros da equipe, especialmente a enfermagem, os efeitos colaterais
dos medicamentos, o uso da contenção
física, o abandono familiar, a alta, a importância do responsabilizar-se pela continuidade do tratamento. Constituiu-se,
então, um espaço privilegiado de expressividade falada daquilo que acontecia no
fora dele. Dessa forma pôde-se trabalhar
mal-entendidos, desmentidos, descom-
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promissos, desinformações e também o
sentido da comunicação delirante que
muitas vezes era malcompreendido e
ameaçador tanto para a enfermagem –
visto que muitas vezes por desconhecimento técnico e psicológico, tomavam
para si, para o pessoal, o dizer delirante
– quanto para os demais pacientes em
surto ou não.
P EQUENOS RECORTES
Primeiro. Certa feita, uma paciente que
estava bastante agitada, com heteroagressividade, precisou ser contida fisicamente. Tal procedimento, prescrito
pelo médico, foi executado pelo auxiliar
de enfermagem. Após ter sido liberada
da contenção, passou a dirigir ofensas
verbais a esse auxiliar bem como ameaças de agredi-lo fisicamente com cadeiras. “Eu vou pegar você; você me enforcou, vou te matar”. Essas ameaças tomaram uma proporção cada vez maior, pois
o auxiliar “levava ao pé da letra” esse dizer e retrucava ameaçando-a de que poderia ser contida novamente. No dia de
seu plantão ocorriam vários incidentes
entre ele e ela. Os dois não compareciam
aos grupos. Sabíamos o que estava
acontecendo porque algumas vezes presenciamos tais fatos. Resolvemos então
conversar com eles e mostrar-lhes o
quanto poderia ser útil participarem do
grupo falando dessa dificuldade que já
afetava a todos na enfermaria, tais eram
os atos, as ofensas, as ameaças. Assim,
após alguma relutância, acabaram por
comparecer.
Reproduziu-se no grupo o dia-a-dia de-
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les. Talita irredutível dizia: “Vou te pegar,
você vai vê, você me paga” e André, o
auxiliar, lhe respondia: “Eu não fiz nada
com você, mas se tentar me agredir isso
não vai ficar assim...”. As palavras de
ambos soavam queixosas e também
ameaçadoras. A temática sobre a violência e o medo mobilizou o grupo. Alguns
falaram do medo que sentiam de Talita,
bem como do “poder” de André. Este,
por seu turno, pôde ouvir o que sentiam
dele e também falar do seu medo. Ficou
claro que não se dava conta do quanto
contribuía com seus dizeres, com seu
tom de voz, com suas reações e gestos
para que Talita ficasse cada vez mais
agressiva e irritada.
Nossas interpretações foram no sentido
de favorecer a separação daquilo que era
de cada um. André tem “um jeito” rude
de falar ao se dirigir às pessoas, o seu
fazer também se dá dessa forma. Foi,
possivelmente, com esse jeito que realizou a contenção física em Talita, uma
paciente que apresentava um quadro paranóide. Ora, sua trama delirante ganhou
confirmação nesse ambiente suficientemente pouco acolhedor. Talita não deixava de ter razão, afinal o jeito de André
realizar suas tarefas e o seu desconhecimento dos mecanismos envolvidos no
delírio apontavam na direção do algo
contra ela. André também sentia medo
de Talita, ela já lhe havia atirado cadeiras; fechava-se assim o circuito retroalimentar de mal-entendidos, de perseguições.
Talita parecia não estar convencida de
Pulsional Revista de Psicanálise
que o auxiliar apenas cumprira uma prescrição médica não tendo nada contra ela,
pelo menos inicialmente! Mas, ao final
da sessão, conseguia falar sem tanta irritação, ouvindo inclusive. André ,por
sua vez, também não estava convencido
de que ela não se voltaria contra ele, de
que tudo não passaria de “isso é porque
está aqui no grupo”. Nos dias subseqüentes, o que se observou foi que ambos passaram a se dirigir a palavra sem
ameaças; sobretudo André deixou de retrucá-la de forma áspera e contundente.
Não ocorreram novas agitações.
Segundo. Certo dia, um auxiliar de enfermagem colocou-se espontaneamente disponível para participar do grupo.
Esse fato chamou nossa atenção, habitualmente tínhamos como prática
convidá-los porque não vinham espontaneamente. Ele já havia participado
anteriormente de outros grupos e
pôde, possivelmente, perceber que ali,
naquele espaço, se produzia algo diferente do que inicialmente supunha, ou
seja, que lá não era um lugar onde seria julgado, acusado, investigado.
Compareceu porque queria discutir
com os pacientes “um boato” que o
estava incomodando muito, qual seja,
de que ele não estaria deixando os pacientes assistirem televisão em seu
plantão, apagando as luzes e obrigando todos a dormirem. Disse Juarez, o
auxiliar, “Imagina, eu nunca fiz isso,
muito pelo contrário, quando posso
abro a sala de atividades para vocês,
mas também não dá para ver televisão
A participação da enfermagem e do alunato ...
a noite inteira” e os pacientes “Nós é
que sabemos o que estamos sentindo;
viver nesse lugar, presos, sem poder
sair; falta tudo”.
Seguiu-se uma discussão por algum
tempo, pairando dúvidas de quem estaria com a razão. As intervenções foram no sentido de explicar dados objetivos tais como horário para apagar
as luzes e a televisão, as deficiências
materiais da enfermaria, o possível
tempo de internação.
Posteriormente, discutindo essa sessão, percebemos que nos escapara o entendimento de que o boato não era tão
boato assim! Por que? Porque naqueles
discursos estava embutida uma dimensão subjetiva que, embora visível no
grupo, não fora explorada o suficiente.
Cada um tinha a sua razão. O que poderia parecer demasiado ou não aos
olhos de um, não o era aos olhos do
outro. Assim, quando Juarez apagou as
luzes e desligou a televisão, o fez a seu
tempo sem considerar que talvez o tempo necessário daqueles pacientes, naquele momento específico, naquele contexto, precisasse ser diferente do habitual, talvez um pouco mais dilatado.
O que foi o latente do boato? A queixa da desconsideração, da falta de liberdade para ir e vir, da discriminação, em suma, a queixa do abandono.
Abandono de quem por quem?
Soubemos que Juarez havia trabalhado
sozinho naquele plantão noturno, com
tantos pacientes agudos. Provavelmente,
a sua insistência em esclarecer o boato
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portava também o latente desse vivido,
onde no provável desamparo da solidão
do plantão, restou-lhe o recurso da demonstração de poder ter poder.
Seguiram-se mais vicissitudes. O acontecer do grupo se deu, excepcionalmente, sem a presença de um staff. Os estagiários também ficaram sozinhos!
Finalizando, podemos, a partir desse pequeno percurso de participação conjunta dos estagiários e da enfermagem nos
grupos, questionar se essa experiência
não foi um indicativo fundamental de
que é preciso constituir-se espaços de
trabalho elaborativo a partir das singularidades e das situações elas mesmas, que
favoreçam o alívio das tensões e das
pressões do acontecer diário, na medida
em que este é significado. „
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2000.
F REUD , Sigmund (1921). Psicologia de
grupo e análise do ego – parte VII.
ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v.
XVIII.
MEZAN , Renato. Escrever a clínica. 2 a
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OSÓRIO, Luis Carlos et al. Grupoterapia
hoje. 2a edição. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1986.
P ICHON-RIVIÈRE, Enrique. O processo grupal. Rio de Janeiro: Martins Fontes,
1986.
Artigo recebido em junho/2001
Revisão final recebida em setembro/2001
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