Sociedade e Indivíduo: Antinomia de um debate clássico e contemporâneo na Sociologia. José Adilson Filho1 Resumo Este texto procura analisar brevemente como a antinomia Sociedade e Indivíduo, esteve/está presente no pensamento sociológico clássico e contemporâneo, contribuindo para a ampliação do enfoque sociológico, através da construção de novas perspectivas teórico-metodológicas. Contudo, sem deixarmos de expressar uma crítica aos dualismos e reducionismos gerados por tal forma de pensamento. Palavras-chave: Sociedade, indivíduo, antinomias Abstract This paper seeks to examine briefly how the antinomy Individuals and Society, was / is present in classical and contemporary sociological thought, contributing to the expansion of the sociological approach, by building new theoretical and methodological perspectives. However, without fail to express a critique of reductionism and dualism generated by such thinking. Keywords: Society, individual, antinomies Introdução A sociologia criada no final do século XIX acalentou desde cedo algumas questões problemáticas e, ao mesmo tempo, desafiadoras à sua construção e legitimidade como ciência do social na modernidade. As dualidades em torno de questões tais como sociedade e indivíduo, macro e micro, agência e estrutura, objetividade e subjetividade, por exemplo, constituem antinomias marcantes do pensamento sociológico, cujo reflexo não apenas gerou intensos debates entre seus pares, mas também ampliou seus campos e tendências. Podemos até afirmar que as antinomias constituíram-se na forma por excelência do pensamento sociológico. Atualmente autores como Bourdieu, Giddens e mesmo 1 Mestre em História pela UFPE e Doutor em Sociologia pela UFPB. Leciona na UEPB e na Fafica Habermas, procuram escapar delas, ensaiando contribuições à teoria social a partir da combinação criativa de tradições diferentes. O esforço destes autores é tentar transcender os dualismos produzidos pelos clássicos e contemporâneos ampliando o escopo da análise sociológica no sentido de evitar os reducionismos. Neste texto, buscaremos analisar como a antinomia “sociedade - indivíduo” ganha destaque e relevância acadêmica, sobretudo, numa época na qual se fala tanto na falência da sociedade, isto é, numa dimensão social onde o “espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas”2. Analisando como Durkheim e Weber viram esta dualidade num momento de construção da ciência sociológica, e como esta antinomia é direta ou indiretamente utilizada por contemporâneos como Boudon, Elias e Bauman em seus trabalhos sociológicos. Durkheim e o primado da sociedade As análises sociológicas desenvolvidas por Durkheim e Weber nasceram no contexto efervescente da segunda metade do século XIX e tinham como característica comum, fazer uma radiografia da modernidade. A sociedade moderna, foco principal de análise destes autores, tem muito a ver, com as conseqüências produzidas, simultaneamente, pela divisão social do trabalho durante a Revolução Industrial e pela expansão da modernidade. Émille Durkheim é certamente um dos pensadores clássicos que mais contribuiu para tornar a sociologia uma ciência. No seu livro As Regras do Método Sociológico, busca caracterizar a singularidade da nova ciência em relação aos outros conhecimentos modernos. Caberia à sociologia a análise e a interpretação do fato social, isto é, “das maneiras de pensar, sentir e agir, fixas ou não que exercem sobre o indivíduo uma coercitividade exterior”.3 Nesta ideia, deduz-se a base que constitui a unidade teórica do pensamento durkheiminiano, isto é, a tentativa de demonstrar a primazia da sociedade sobre o indivíduo. Durkheim questionava tanto as teses de Marx, que via na divisão social do trabalho a produção de conflitos e lutas de classes, assim como refutava a visão 2 3 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.21. DURKHEIM, Emille. As regras do Método Sociológico. São Paulo: Ed. Nacional,1978. utilitarista dos economistas neoclássicos que articulavam a divisão social do trabalho a simples trocas econômicas, reduzindo o vínculo social ao jogo da competitividade e do sucesso individuais. Mais do que desenvolvimento econômico, cultural e científico, a divisão social do trabalho, na perspectiva de Durkheim, produz efeitos morais positivos. Produz o que ele chamou de uma “solidariedade orgânica”, uma forma de manter a integração do corpo social. Ele estabeleceu uma diferenciação entre a solidariedade mecânica (sociedades tradicionais) e a solidariedade orgânica (sociedades modernas) para demonstrar as diferenças entre a consciência individual e a coletiva nas duas sociedades. [...] quanto a precedente implica que os indivíduos sejam semelhantes, esta supõe que sejam diferentes uns dos outros. A primeira só é possível na medida em que a personalidade individual é absorvida na personalidade coletiva; a segunda só é possível quando cada um tem uma esfera de ação própria, por conseguinte uma personalidade. É, portanto, necessário que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciência individual, para que aí se estabeleçam essas funções especiais que ela não pode regular; e quanto mais essa região se estende, tanto mais forte se torna a coesão que resulta dessa solidariedade. Com efeito, de um lado, cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto maior a divisão social do trabalho, e, de outro lado, é tanto mais personalizada quanto maior a sua especialização.4 Vê-se, portanto, que a sociedade moderna, devido ao seu alto grau de especialização, produz um processo de individualização que não rompe com a consciência coletiva, mas a intensifica e a fortalece na medida em que cada indivíduo depende dos outros indivíduos. Ora, o último Durkheim – o das Formas Elementares da Vida Religiosa - tentara encontrar um meio termo para substituir a centralidade da sociedade sobre o indivíduo, buscando construir sua análise numa perspectiva mais próxima do interacionismo. Frases como “ A sociedade não existe e não vive a não ser por seus indivíduos” (496) Ou “ A sociedade não pode passar sem os indivíduos, assim como os indivíduos sem a sociedade” 5(496), demonstram uma mudança nas posições 4 5 DURHEIM, Emille. Da divisão social do trabalho. São Paulo,:Martins Fontes, 1995. DURKHEIM, Emille. As formas elementares da vida religiosa. Sâo Paulo: Martins Fontes, 2003. holísticas do autor, sem romper com elas. Apenas buscará um pouco mais de equilíbrio, dando maior ênfase ao papel dos indivíduos e suas representações na construção das interações sociais. As afirmações mais ousadas sobre o papel dos indivíduos na sociedade, não chegam a eliminar as posições clássicas de Durkheim quanto à dimensão coercitiva do social, pois esta questão perpassará toda sua obra. Tais afirmações, segundo Artur Perrusi Levam-nos a inferir que a sociedade resulta de um efeito complexo de criação, seleção, de disseminação e de transmissão de uma “profusão de espíritos”. A sociedade seria, assim, um efeito “emergente” das ações e da “imensa cooperação” entre os indivíduos. Aparentemente, estaria resgatada a dualidade entre o indivíduo e a sociedade sem que ocorra a separação entre a individualidade e a subjetividade, sem que a dualidade seja transformada num dualismo. Estaríamos diante de uma idéia de humanidade concebida como intersubjetividade.6 Quero entender esta intersubjetividade como algo ambíguo que opera simultaneamente com as consciências individuais e coletivas, sem ter que passar pelo filtro das reduções dicotômicas. O conceito de consciência coletiva é uma dessas noções ambíguas, mas que ao mesmo tempo, se caracteriza como elemento fundamental na obra de Durkheim para se apreender o processo de socialização. Ela é definida como “o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade e que formam um sistema determinado (de similitudes) que tem sua vida própria”7. Apesar de apresentar flutuações e sofrer algumas críticas, este conceito serve para operacionalizar as teses de integração do indivíduo à sociedade. Max Weber e ação dos indivíduos O sociólogo alemão Max Weber procurou livrar seu pensamento sociológico dos aspectos essencialistas e metafísicos que havia nas obras de Marx e Durkheim. Fortemente influenciado pelos filósofos Dilthey e Nietzsche, Weber irá propor uma 6 PERRUSI, Artur. A construção social dos sentidos: Subjetividade e individualidade em Durkheim. In. Cartografia das novas investigações em Sociologia. (0rgs.) Ariosvaldo da Silva Diniz; Maria Dilma Simões Brasileiro; Margarita Latiesa – João Pessoa EDU- UFPB/Manufatura, 2005, p. 40. 7 DURKHEIM, Emille. As formas elementares da vida religiosa, op. Cit. sociologia compreensiva da sociedade. Na verdade, a categoria sociedade, no pensamento weberiano, perde força para o papel dos indivíduos. Não lhe interessa compreender algo genérico chamado sociedade e, sim, a ação dos indivíduos e o sentido conferido a ela. Portanto, há uma profunda mudança de perspectiva nesta concepção. Pois nela nem a classe social nem tampouco a sociedade, aparecem como realidades substancializadas. A ênfase dada ao método compreensivo decorre da necessidade de demarcar a diferença que caracteriza as chamadas “ciências do espírito” em relação às ciências exatas. Daí não ser possível conceber as ciências sociais como uma análise determinista do social, uma vez que não existem as tais leis “férreas” que manipulam o devir humano. Neste sentido, a realidade social não pode ser compreendida como determinação de causas exteriores aos indivíduos. Mas em termos de atividade social. Entendemos por „atividade‟ um comportamento humano (...) quando e na medida em que o agente ou os agentes lhe comunicam um sentido subjetivo. E por atividade „social‟ a atividade que, segundo o seu sentido visado pelo agente ou pelos agentes, se relaciona com o comportamento dos outros, em relação aos quais se orienta seu desenrolar.8 Percebe-se que Weber não é um individualista, pois, não consagra ao indivíduo isolado o papel de sujeito construtor da sociedade. O que lhe interessa, sobretudo, é compreender e explicar as ações sociais por cadeias causais, isto é, colocar em evidência os vínculos que ligam uma ação a outra, mostrando o encadeamento dos múltiplos fatores que constrói a trama do social. Daí ser possível deduzir que o indivíduo não poder ser visto como uma espécie de consciência absoluta de si e totalmente responsável por seus atos. Tal perspectiva levou Weber a desenvolver uma posição anti-metafísica cujo princípio se orientou pela idéia de que as sociedades são influenciadas por uma pluralidade de fatores e não exclusivamente por um dos aspectos da realidade. Mas 8 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UNB, 1991. mesmo Weber, com todo seu cuidado e moderação, não escapou em certos momentos da sua trajetória intelectual, de alguns dualismos e paradoxos. Segundo Fleischmann (...) Cedo ou tarde teria que escolher entre uma história que é um encadeamento causal a partir da ou rumo à infra-estrutura econômica e uma outra que se reconstitui a partir das ações racionais do homem, isto é, a partir da luta politeísta dos valores. A primeira posição, adotada sob a influência de Marx, vai aos poucos perdendo a força nele, em parte sob o efeito de suas decepções políticas diante do socialismo, em parte por causa de sua convicção ideológica de que é a luta entre os seres humanos, e não o ideal filosófico abstrato de um estado feliz e pacífico da sociedade, que explica a realidade humana tal como ela é ... Sem esta faceta heraclitiana inerente ao seu modo de pensar, a semelhança com Nietzsche poderia não passar de pura e simples coincidência.9 Ora, esta guinada a favor de Nietzsche coloca o princípio da causalidade na perspectiva do fator voluntário, ou seja, de um sujeito portador de uma vontade racional. O que não quer dizer que Weber adote uma perspectiva igual a dos adeptos do individualismo metodológico. É preciso relativizar a força da ação individual e o sentido racional dela – pois, mesmo que haja sempre uma margem de manobra e autonomia do indivíduo nas suas escolhas e projetos de vida - ela dá-se num contexto marcado por pressões e constrangimentos históricos, religiosos, morais e econômicos. O próprio Weber irá mostrar como o processo de racionalização instrumental estaria levando a civilização ocidental a uma espécie de “gaiola de ferro”, uma vez que tal situação marcada pela lógica da dominação racional burocrática estaria “colonizando” todas as esferas da vida humana. A racionalização enquanto processo de reificação é algo construído social e historicamente.. 9 FLEISCHMANN, E. De Weber a Nietszche. Arquivos européennes de sociologia, V, 1964, p. 194 e 228. Boudon, Elias e Bauman e a “sociedade dos indivíduos” As décadas de 1980 e 1990 podem ser vistas como fases da história contemporânea caracterizadas por um profundo enfraquecimento da idéia de sociedade como utopia, isto é, como um télos a ser perseguido coletivamente. A débâcle do socialismo real simbolicamente expressou algo mais do que o desmoronamento de um sistema social e ideológico, significou o esvaziamento do debate público de valores como solidariedade, fraternidade e justiça social, fundamentais a uma faceta da modernidade clássica. O fim do socialismo real e a fragilização dos atores coletivos – sindicatos, partidos e associações – favoreceram a consolidação da ideologia neoliberal. Foi neste contexto que emergiram os governos neoliberais de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, os quais buscaram efetivamente deslocar o enfoque da sociedade para os indivíduos. A nação é reduzida e fragmentada à lógica dos interesses e sucessos individuais. “Essa coisa de sociedade não existe”10, diria Thatcher com uma certa dose de ironia e arrogância. Ela mesma teve que travar uma longa e dura batalha para desmantelar a força dos atores coletivos (sindicatos) e colocar em evidência o papel do mercado e do individualismo como as únicas espécies de deus ex machina de um mundo pretensamente esvaziado de utopias sociais. É em meio a esta atmosfera de transformações e redefinições ocorridas no mundo contemporâneo que ganham força as teorias do ator e as microanálises da realidade. A corrente denominada de individualismo metodológico é uma das tendências sociológicas que se fortalecem neste contexto. A pregnância de uma leitura mais forte do ator individual e dos seus interesses racionais - em detrimento de uma maior audiência dos aspectos ligados às classes sociais, sindicatos e partidos - acontece num momento em que o discurso de auto-afirmação do indivíduo torna-se dominante. Muitos sociólogos que dão ênfase ao papel do indivíduo como elemento central na análise dos fatos sociais se colocam como seguidores da sociologia compreensiva de Max Weber, assim como se nutrem, simultaneamente, da velha tradição da economia neoclássica, cuja tese é a da aplicação do “mercado como modelo de inteligibilidade das 10 THATCHER, Margaret apud BAUMAN, Zygmunt. In. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2001, p. 38. relações interindividuais e da ficção de um homem apto a efetuar uma ação racional em função de objetivos e de interesses bem compreendidos.”11 Raymond Boudon, sociólogo francês, nascido em 1934, é um dos maiores expoentes do individualismo metodológico. Ele inscreve sua análise numa representação utilitarista da ação. Todavia, esta ação “possui um status metodológico e não ontológico: basta, para as necessidades da análise, adotar um esquema utilitarista simples, mesmo que este esquema se configure como irrealista, contanto que seja confrontado com um caso real qualquer”. 12 Embora dê algum crédito às pressões sociais que se impõem à ação individual, a centralidade de sua análise está posta numa perspectiva que não problematiza como estas ações e percepções são moldadas pelo passado e pela dinâmica social. Termina caindo num subjetivismo a-histórico ao propor uma análise desinvestida das mediações sociais. Por mais que seja importante destacar a autonomia e os interesses dos indivíduos é imprescindível reconhecer que sobre a consciência individual paira elementos de ordem simbólica e cultural que ajudam a definir e a moldar as identidades, as escolhas e as práticas dos atores. Negligenciar esta dimensão é hipertrofiar o sujeito individual colocando sobre ele o enorme fardo do devir histórico, negando-lhes os conflitos e as estratégias de dominação que se estabelecem nas relações entre classes, grupos sociais e instituições onde se localizam e se desenvolvem suas ações e seus interesses. Tal concepção pode fortalecer não apenas o individualismo enquanto prática metodológica mais sim como concepção ontológica. Pois o mercado e as ideologias utilitaristas colocam toda a responsabilidade pelo êxito ou fracasso das escolhas sobre um ser individualizado. Temos em Norbert Elias, sociólogo alemão, um contraponto ao individualismo metodológico de Boudon, uma vez que tece uma crítica radical a oposição entre sociedade e indivíduo. No livro A sociedade dos indivíduos, escrito em 1939, Elias antecipadamente demonstra que toda sociedade é uma sociedade formada por indivíduos e que, sobretudo, na modernidade é incorreto pensá-la de um jeito que priorize uma dimensão em detrimento da outra. Mas ao contrário, deve-se priorizar as 11 LALLEMENT, Michel. História das Idéias Sociológicas. De Parsons aos contemporâneos. Rio de Janeiro, Vozes, 2004, p. 259. 12 BOUDON, Raymond. Efeitos perversos e ordem social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979. redes de interdependências que ligam os indivíduos entre si. Para isso, Elias procura romper com a lógica do in ou out, isto é, do velho dualismo tão caro ao pensamento sociológico. Interessa-lhe observar as reciprocidades e as dependências que se forjam entre os indivíduos de uma determinada época histórica. Assim, quando analisa as transformações pelas quais passou uma sociedade de cavaleiros guerreiros para uma sociedade de nobres refinados13- através de elementos como a invenção da etiqueta, da pompa e do prestígio – procura articular estes elementos à teia da rede de relações e funções sociais que historicamente vão se plasmando e modificando as estruturas sociais e a personalidade dos agentes humanos. A partir do estudo do processo civilizador, evidenciou-se com bastante clareza a que ponto a modelagem geral, e portanto a formação individual de cada pessoa, depende da evolução histórica de cada pessoa, do padrão social, da estrutura das relações humanas. Os avanços da individualização, como na renascença, por exemplo, não foi conseqüência de uma súbita mutação em pessoas isoladas, ou da concepção fortuita de um número especialmente elevado de pessoas talentosas; foram eventos sociais, conseqüência da desarticulação social do artista-artesão, por exemplo. Em suma, foram conseqüência de uma reestruturação específica das relações humanas.14 O intenso processo civilizacional teria no âmbito da cultura produzido um sistemático controle e repressão das pulsões e agressividades individuais para criar a sociedade moderna. Elias historiciza as teses de Freud para compreender como indivíduo e sociedade se constituem, ao mesmo tempo, como condição e resultado de um intenso processo de interdependência. Seus trabalhos analisaram a sociedade moderna, sobretudo, num período em que o processo de individualização ocorria paralelamente à consolidação dos estados nacionais como comunidades imaginadas ou idealizadas. O nacionalismo e o civismo estavam presentes como elementos da alma e da identidade nacionais. Estes elementos 13 14 Ver de ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, pp, 28 e 29. deviam funcionar como forjadores da unidade nacional. As lutas sociais de alguns grupos étnicos como os negros, por exemplo, nos EUA durante os anos de 1960, podem ser lidas como algo que mobilizou os mais diversos grupos e classes sociais. Ou seja, como uma questão nacional. Mas atualmente verifica-se uma mudança de rota nos horizontes da sociedade moderna. Mudança cuja característica principal se assenta na fragilização e na efemeridade dos laços sociais. E a idéia de flexibilidade se impõe como sendo a alternativa principal para homens e mulheres lograrem algum êxito nestes tempos de incertezas. O Indivíduo flexível seria um ser adaptável às constantes mudanças e rupturas provocadas pela nova lógica do sistema. Assim, os efeitos perversos do capitalismo como desemprego, pobreza e marginalização são tratados, em última instância, como conseqüência da incompetência de homens e mulheres que se mantém fechados e presos a um mundo de rotinas e de valores rígidos. Conforme Richard Sennett Hoje se usa a flexibilidade como outra maneira de levantar a maldição da opressão do capitalismo. Diz-se que, atacando a burocracia rígida e enfatizando o risco, a flexibilidade dá às pessoas mais liberdade para moldar as suas vidas. Na verdade, a nova ordem impõe novos controles, em vez de simplesmente abolir as regras do passado – mas também esses novos controles são difíceis de entender. O capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível. Talvez o aspecto da flexibilização que mais confusão causa seja seu aspecto sobre o caráter pessoal. [....] Como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade impaciente, que se concentra no momento imediato? Como se podem buscar metas de longo prazo numa economia dedicada ao curto prazo? Como se podem manter lealdades e compromissos mútuos em instituições que vivem se desfazendo ou sendo continuamente reprojetadas? Estas as questões sobre o caráter impostas pelo novo capitalismo flexível.15 Os efeitos desta corrosão do caráter pessoal podem ser percebidos no aumento do individualismo e da indiferença às questões sociais. As pessoas vivem sob uma 15 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record, 2005, pp, 9 a 10. espécie de autismo social que oblitera sua imaginação e sensibilidades. Os gurus da administração flexível como Peter Drucker estão em sintonia fina com as idéias políticas dos neoliberais mais reacionários, pois para ambos não “existe essa coisa de sociedade,” muito menos salvação a partir dela. Na sociedade dos indivíduos líquidos, segundo Bauman “a redenção e a condenação são produzidas pelo indivíduo e somente por ele – o resultado do que o agente livre fez livremente de sua ação”. 16 A individualidade é pensada na forma de um “eu absoluto” que não precisa de mediações e apoios. Livre e solitariamente os indivíduos são os únicos capazes de encontrarem as soluções para os seus males. Não adianta pedir ajuda aos outros, pois toda sorte repousa sobre o que cada pessoa faz de si mesma. Daí decorre, com efeito, um processo de reprivatização da vida social e que leva ao declínio do espaço público como lugar por excelência das aspirações, sonhos e lutas coletivas. Ao contrário, cresce o mercado de promoção do eu-individual e os livros de auto-ajuda e os gurus e celebridades das mídias, tornam-se nossos verdadeiros conselheiros. Pois nos ensinam a apostar nossas fichas, única e exclusivamente em nós mesmos. Assim, sem a proteção de Deus, do príncipe da política e da solidariedade do “outro” – esses homens pretensamente transformados em indivíduos-heróis, se auto-projetam como “donos” do seu destino, numa história essencialmente privada e fragmentária. Parte dessa história tem como emblema o culto à perfomance do corpo, isto é, a busca obsessiva pelo corpo sempre jovem e saudável. O sujeito individual é também um narcisista e um consumidor compulsivo, cuja estilística da existência resume-se aos cuidados de si. A obsessão pelo corpo perfeito levou a um aumento avassalador dos praticantes de academias de ginástica e do consumo de produtos farmacêuticos, como anabolizantes, viagras e a dietas rigorosíssimas. A busca na verdade é pela aparência e não pela saúde, o que levou a transformações profundas na estética corporal. O que significa dizer que é o corpo o primeiro a ser flexibilizado pelas novas condições do mercado e da cultura líquida moderna. Porém, enganam-se os que confundem isso com autonomia, liberdade e poder sobre si. 16 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p, 76. Ao contrário do que se imagina a exaltação da liberdade e de autocontrole do corpo, esconde um processo de agenciamento e de disciplinarização dos indivíduos à lógica do mercado e da sociedade capitalista. A nossa obsessão com o domínio do corpo, das suas perfomances, movimentos e taxas substitui a tentativa de restaurar a ordem moral. O corpo torna-se o lugar da moral, e matriz da identidade moral.17 Conforme Bauman, para estes indivíduos marcados pela centralidade do corpo, a esfera pública só tem sentido se for para dar publicidade e legitimidade às suas pulsões narcisistas e hedonistas. Talvez seja por isso que os escândalos, sobretudo, aqueles envolvendo políticos e suas amantes – exemplos de Bill Clinton e Renan Calheiros – conquistem enorme audiência. A notoriedade e a força que tem tido estes assuntos na sociedade, devem ser articulados, ao meu ver, a dois fatores. O primeiro diz respeito ao modo pelo qual recai sobre o sujeito individual a responsabilidade pelos problemas gerados sobre a sociedade. O problema da ética é exclusividade de Renan Calheiros e não da política nacional, muito menos da história e cultura brasileira. Assim, ele teve que renunciar à presidência do senado para que a nação voltasse a ter “ordem e progresso”. A segunda questão está relacionada a elementos de espetacularização da vida privada, isto é, da sexualidade, da virilidade, das paixões íntimas das celebridades, promovidas pelas várias mídias. Nestas duas dimensões o individual e o corpóreo conquistam a esfera pública de maneira midiática e espetacular, muito embora à custa de um intenso processo de despolitização do social. A estes dois elementos se vinculam as estratégias de produção de subjetividades criadas pelo mercado e pela publicidade. A publicidade e o mercado colocam no consumismo a possibilidade dos indivíduos exercerem de fato suas liberdades e de afirmarem suas singularidades. Ser livre é ser diferente; é saber caminhar sozinho. Individualidade significa autenticidade, a projeção do “verdadeiro eu”. Mas como exercer a autenticidade do “eu” numa sociedade que massifica os indivíduos. O mercado através da publicidade procura uma saída para este paradoxo. 17 ORTEGA, Francisco. Da ascese a bio-ascese ou do corpo submetido à submissão ao corpo. IN. Imagens de Foucault e Delleuze. (Orgs.) ORLANDI, Luis B. Lacerda, RAGO, Margareth, VEIGA_NETO, Alfredo. Rio de Janeiro, DP e A, 2002, p, 165. O consumismo é uma resposta do tipo “como fazer” aos desafios propostas pela sociedade dos indivíduos. A lógica do consumismo serve às necessidades dos 18homens e das mulheres em luta para construir, preservar e renovar a individualidade e, particularmente, para lidar com a sua supracitada aporia. [...]Uma propaganda como “seja você mesmo – prefira Pepsi” faz eco a essa aporia com uma franqueza muito bem-vinda pelos consumidores potenciais do produto e à qual seriam gratos. A luta pela singularidade agora se tornou o principal motor da produção e do consumo de massa. Mas, para colocar o anseio por singularidade a serviço do mercado de consumo de massa( e vice-versa), uma economia de consumo deve ser uma economia de objetos de envelhecimento rápido, obsolescência quase instantânea e veloz rotatividade. E assim, também de excesso e desperdício. A singularidade é agora marcada e medida pela diferença entre “o novo” e “o ultrapassado”, ou entre mercadorias de hoje e as de ontem que ainda são “novas” e, portanto, estão nas prateleiras das lojas. [...] Individualidade que, na verdade, não produz nenhuma autenticidade a não ser a singularidade de ter os meios disponíveis para consumir produtos “novos” e caros que são lançados no mercado. A despeito da ideologia massificadora, apenas uma parcela da sociedade tem exclusividade sobre eles. Os demais desenvolvem mil estratégias e astúcias para entrar nesta sociedade de indivíduos consumidores. Infelizmente os que não conseguem entrar ou que por ela são eliminados, formam justamente aqueles seres humanos que passam a ser vistos como inautênticos, amorfos e desnecessários. De qualquer modo não pode haver uma individualidade plenamente desenvolvida na sociedade moderna. Ela não passa de discurso sedutor para esconder as impossibilidades de sua realização concreta. Pois seu acontecimento somente seria possível com a destruição da própria sociedade dos indivíduos. Nas palavras de Bauman Juntamente com o desafio da individualidade , contudo, a sociedade dos indivíduos fornece a seus membros os meios de conviver com essa impossibilidade – ou, em outras palavras de fechar os olhos à essencial e incurável 18 BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro, Jorge zahar Editor, 2007, p. 36. impossibilidade da tarefa, ainda que o lote das tentativas fracassadas de realizá-la continue crescendo e se torne cada vez mais denso.19 Considerações Finais Vimos que a antinomia Sociedade e Indivíduo foi fundamental, sobretudo, para a gênese e legitmidade da sociologia como ciência. Sendo em Durkheim mais do que em Weber , um aspecto definidor da singularidade do método sociológico. O debate clássico e contemporâneo sobre a relação sociedade e indivíduo, com raras exceções, sempre se pautou pela busca da primazia de uma ou de outra dimensão, gerando com efeito dualismos, que não obstante, empobreceram a complexidade da qual se reveste o social. Ou em algumas análises, substancializando demais o papel da sociedade (escola durkheiminiana) ou dos indivíduos (individualismo metodológico), isto é, transformando-os em entidades abstratas, sui generis, metafísicas, divorciados das redes de relações e interdependências pessoais, sociais e históricas, como nos faz ver Elias, no seu livro A sociedade dos indivíduos. Bauman recupera a crítica de Elias para analisar como a modernidade em sua fase líquida procura através das estratégias do mercado, do dispositivo da publicidade e da nova bioascese corporal, inventar o indivíduo-herói, self-mad-man, sobrevalorizando a competitividade, o consumismo e o hedonismo em detrimento da utopia coletiva, ou menos, da idéia de sociedade. O que para ele não significa dizer que devamos sucumbir aos discursos apocalípticos, de que “não existe mais a sociedade”, apenas os interesses individuais. Em sua análises, Bauman, mostra como um tema aparentemente banal como o big brother ou uma simples publicidade de um carro estão atravessados por uma multiplicidade de relações e interdependências. A sociologia de Bauman como a de Elias tem entre outras virtudes, a de serem análises que evitam incorrer no erro do reducionismo e dos dualismos, tentando articular os múltiplos processos que modelam a vida social e, em particular, a personalidade dos indivíduos. 19 BAUMAN, Zygmunt. Op, cit, p.29. Referências Bibliográficas. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2001. __________________Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. BOUDON, Raymond. Efeitos perversos e ordem social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. DURKHEIM, Emille. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. _________________As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _________________Da divisão social do trabalho. 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