O modo brasileiro de dizer língua e nação Lilian do Rocio Borba Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas [email protected] Abstract: This paper discusses the relationship between language and nation in the construction of a Brazilian identity.The main object are Brazilian texts – collected and published by Edith Pimentel PINTO (1978) - of the nineteenth century where a standard language in Brazil was discussed. The center of our analysis is mixture, miscegenation of races and of languages. Keywords : Brazilian portuguese – language – nation - identity Resumo: Este artigo discute a relação entre língua e nação na construção de uma identidade brasileira. Tomando como objeto textos brasileiros do século XIX sobre a questão da língua, coletados e publicados por PINTO (1978), o centro de nossas análises é o elemento mistura, miscigenação de raças e de línguas. Palavras-chave: português brasileiro – língua – nação - identidade 1.Introdução Línguas, assim como Estados, não são coisas/elementos naturais, mas convencionais. A sua criação é perpassada por discursos tanto de poder, quanto de ciência quanto do senso comum. Partindo do pressuposto de que a língua é, por um lado, um dos elementos fundantes da nacionalidade e, por outro, a ferramenta através da qual discursivamente se constrói a nacionalidade de um Estado, interessa-nos verificar como a língua foi utilizada em discursos/textos como elemento da nacionalidade na construção da identidade nacional no Brasil. Nossa fonte de dados são alguns textos do século XIX – organizados na coletânia de Edith Pimentel PINTO (1978) – escritos por indivíduos que têm a língua como instrumento de trabalho – escritores, críticos, intelectuais - e se põem a discuti- la ou a explicar seu funcionamento apesar de não serem lingüistas ou gramáticos. Naturalmente como leigos, seu olhar, seu saber, seu discurso vão desenhar uma imagem de língua partindo de representações diversas. Um elemento recorrente nesse tipo de discurso sobre línguas é a visão de língua como reflexo das sociedades ou dos grupos que a utilizam. Por exemplo, povo primitivo: língua simples, não elaborada. Considero que o fato de indivíduos leigos se reportarem à língua como reflexo das sociedades, no caso do Brasil, é peculiarmente interessante porque aqui a questão racial sempre foi e ainda é confusa. Somos mestiços – diferentemente dos americanos do norte, ou se preferirem, os estadunidenses - por exemplo, cuja questão étnica é bem diversa da nossa. Parafraseando Caetano VELOSO (1992), nos Estados Unidos branco é branco, preto é preto e a mulata não é a tal... Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 980-985, 2005. [ 980 / 985 ] Neste trabalho, analisaremos enunciados de indivíduos que tentaram caracterizar o português utilizado no Brasil. Vai nos interessar de maneira mais pontual o tratamento do elemento mistura, miscigenação de raças e de línguas. Nosso objetivo principal é observar em diversos textos recolhidos de PINTO (1978) a forma de caracterização do nosso português. Trataremos essas caracterizações como representações sociais do idioma nacional. Segundo GUEUNIER (2003), o termo representação trazido das ciências sociais, mais especificamente da filosofia, denota uma forma de conhecimento cotidiano, partilhado socialmente que contribui para uma visão de uma realidade comum para o grupo social. Pertence ao campo nocional de termos como crenças, preconceitos e ideologia, o que não significa que as representações sejam necessariamente falsas, elas são simplesmente de uma natureza diferente do conhecimento conceitualizado, formal, científico. Os discursos do senso comum sobre as línguas são uma forma de saber a língua e revelam idealizações coletivas sobre a(s) língua(s) e seus usuários. Parece- nos, então, pertinente tratar desses discursos como reveladores de representações sociais sobre a língua que falamos. 2. Língua, Nação e Identidade Segundo ALKMIM (2001), a relação entre língua, nação e identidade é resultado de processos políticos e, nesse sentido, é uma construção social, produzida ao longo da dinâmica da constituição dos Estados nacionais modernos europeus. Segundo a autora, a percepção da relação entre língua, identidade e nação só foi possível quando os Estados modernos europeus se formaram, época em que reinos e feudos eram a base da organização sócio-política. Considerando-se ainda que o ideal uma língua, uma nação, é algo relativamente, novo convém lembrar também que, na Europa da Idade Média esses feudos e reinos falavam línguas e dialetos incompreensíveis entre si, e que a inevitável unificação dos mercados lingüísticos atuou decisivamente na constituição das comunidades políticas imaginadas que, segundo ANDERSON [1989 (1983)], modernamente constituiriam as nações européias. Naturalmente, o processo de constituição das nações na América assumiu outros contornos. Talvez o mais saliente seja o fato de que na América, as línguas nacionais ou de Estado sejam as línguas dos colonizadores, dos vencedores, dos invasores...o que até a década de 20 – ao menos no Brasil - ainda sustentava uma dialética colonizador/colonizado no campo dos usos lingüísticos. Como bem coloca ANDERSON (op cit), na América espanhola, 18 nações falam a mesma língua, claro que com suas especificidades, mas basicamente a mesma língua o que faz com que o papel das línguas de Estado nesses países seja também peculiar enquanto elemento de caracterização/constituição nacional. Na América lusófona, uma das características que marca seus usuários – e, por extensão sua variante lingüística - é a pecha de incorreção, isto é, o brasileiro não sabe usar (seja falando, seja escrevendo) o português. Nos enunciados abaixo – todos coletados em PINTO (1978) – há exemplos da constância dessa imagem construída e que persegue os brasileiros até os dias de hoje: Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 980-985, 2005. [ 981 / 985 ] (1) Lembrou-me nessa mesma ocasião o que por lá e por cá se diz de como menosprezamos a boa linguagem. (Gonçalves Dias, 1857, p33) (2) “Vós não sabeis português”, diz-noz Pinheiro Chagas. (M. Soares, 1884, p 50) (3) Tanto se elogia e gaba a pureza dos escritores portugueses, quanto se martela a incorreção dos brasileiros.(...) (Batista Caetano, 1881, p 220) (4) Incorreção do estilo brasileiro ligada à contextura do espírito da terra. A asserção parece, à primeira vista, um dislate da ordem dos que a crítica tem vulgarizado por aí. Contudo, eu penso que o fato é perfeitamente verdadeiro, e que a incorreção, nestas condições, converte-se numa eminente qualidade. O tropical não pode ser correto. A correção é o fruto da paciência e dos países frios; nos países quentes a atenção é intermitente. Aqui, aonde os frutos amadurecem em horas, aonde a mulher rebenta em prantos histéricos aos 10 anos, aonde a vegetação cresce e salta à vista, aonde ávida é uma orgia de viço, aonde tudo é extremoso, e extremados os fenômenos; aqui, aonde o homem sensualiza-se até com o contato do ar e genesismo terrestre assume proporções enormes, vibrando eletricidade (...) – compreende-se que fora de todas as coisas a mais irrisória pôr peias à expressão nativa e regular o ritmo da palavra pelo diapasão estreito da retórica civilizada, mas muito menos expensiva. (Araripe, 1882, p233) Os enunciados acima colocados – com exceção de 4 – não estão contextualizados de forma a se observar se a argumentação é favorável ou não à existência de uma língua brasileira. O que queremos ressaltar é a recorrente circulação dessa imagem de incorreção. Como bem coloca FARACO (2002, p 43-4), o debate que se iniciou há mais de um século e meio recrimina o brasileiro por não utilizar corretamente sua língua. Mas, ainda conforme o autor (op cit), o padrão ou a norma-padrão no Brasil foi construída de forma extremamente artificial, pois a elite letrada conservadora se empenhou em fixar como nosso padrão um certo modelo lusitano de escrita, praticado por alguns escritores portugueses do Romantismo. Ou seja, nosso modelo não foi a ou uma língua de Portugal, mas uma variedade literária de Portugal. Continuando FARACO (op cit) observa que além dessa herança excessivamente conservadora calcada no normativismo, está também o desejo daquela elite de viver num país branco e europeu, o que a fazia lamentar o caráter o multirracial e mestiço do nosso país (...) e, no caso da língua, a fazia reagir sistematicamente contra tudo aquilo que nos diferenciasse de um certo padrão lingüístico lusitano. Assim abrasileirar o idioma significava corromper, degenerar, deturpar a língua portuguesa. Abrasileirar o idioma significava se aproximar da língua utilizada pelo vulgo, ou seja, da população mestiça, de ascendência africana de quem a elite queria se afastar. Além dessa característica – da incorreção como uma espécie de pecado original dos brasileiros -, há um questionamento que gostaria de ressaltar e sobre o qual gostaria refletir: A partir de quando se pode falar em nação brasileira para se poder discutir língua e nação? Independência do Brasil (1822), Proclamação da República (1889), anos 30 do século XX e as transformações lideradas do Getúlio Vargas? Provavelmente em todas essas épocas e em muitas outras, pois o fato é que existe em todos esses momentos uma construção da idéia de nação, ou daquilo que seria Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 980-985, 2005. [ 982 / 985 ] constitutivo de uma nacionalidade. Baseados em de LUCA (1998) consideramos que há de fato um processo contínuo nessa construção e que, no caso da língua e da nacionalidade, se inicia – ou pode ser marcado - com a própria dificuldade – ou imprecisão (ao)- de se nomearem os descendentes de portugueses, negros e índios nascidos no Brasil no período colonial, imperial e mesmo no primeiro momento republicano: mestiços, crioulos, luso-brasileiros, luso-descendentes, brasileiros... Os exemplos que se seguem mostram que ocorreu processo semelhante com relação à nomeação da língua utilizada no Brasil. É possível encontrar nos textos do século XIX uma gama imensa de formas para se referir à língua brasileira: português, brasileiro, brasilina, dialeto idioma/língua nacional, luso-bundo- guarani... Vejamos algumas dessas: (5) Dizem- me que sou acusado por deturpar a linguagem portuguesa. Mais de uma vez tenho escrito que compondo para o povo de meu país faço estado, e direi garbo, de escrever em linguagem brasileira, se isso é deturpar a língua portuguesa, devo ser excomungado pelos fariseus luso-brasileiros. Escrevo em nosso idioma, que é lusobundo-guarani.(Salomé Queiroga, 1871,p 168) (6) Nós somos brasileiros, não somos guaranis; a língua que falamos, é ainda a portuguesa. Com o tempo, com a influência lenta, mas poderosa, do meio exterior, há de se tornar cada vez mais sensível a divergência que já começa de manifestar-se entre a nossa literatura e a de Portugal. (Joaquim Nabuco, 1875, 196) (7) É fato observado que quando dois povos ou duas raças se encontram na concorrência pela vida num território conquistado por uma delas, a civilizada, a mais forte, aniquila ou absorve a mais fraca. Ou a reduz e dispersa pela força, ou assimila-a pelos cruzamentos, o que é outra maneira de seleção. Quem afinal, venceu na luta, como o mais apto que era, foi o português, mas aqui sucedeu que o povo civilizado e conquistador sofreu, em não pequena escala, a influência da raça selvagem... É justamente este fenômeno que faz a nossa originalidade, se a temos, livrando-nos de ser uma simples colônia européia, apenas politicamente emancipada, para formarmos com os elementos de lá recebidos e de cá aceitos, um povo que não é nem português, nem brasilo-guarani, nem tão pouco africano, pois que não é possível esquecer este importante fator na constituição da nossa nacionalidade. [citando Teófilo Braga] “Na moderna nacionalidade brasileira a língua também se vai alterando, constituindo um verdadeiro dialeto do português: cada um dos elementos da mestiçagem contribui com as suas alterações especiais. (...) uma certa indolência na pronúncia exerce a grande lei da queda das consoantes mediais e vogais mudas: assim senhor é siô...” (José Veríssimo, 1886, p243) Naturalmente, as expressões utilizadas para se referir à língua nacional têm pesos discursivos diferenciados: luso-bundo-guarani, língua portuguesa, um verdadeiro dialeto do português. Cada uma dessas expressões evocam representações diversas. DIAS (2001) ao analisar o nome da língua do Brasil na década de 1930, tece considerações que podem ser aplicadas aos enunciados acima colocados. Segundo o autor, diferentemente do que se poderia esperar, a discussão não estava centrada em Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 980-985, 2005. [ 983 / 985 ] diferenças entre o português brasileiro e o português europeu, estava em jogo sim um conceito de cidadania, a questão da nacionalidade da língua tinha ligação direta com a imagem discursiva que se fazia de seus falantes. Observando mais atentamente as formas de se referir à nação e/ou à língua, é interessante notar que conforme destaca ORLANDI e GUIMARÃES (2001), o que está em questão não é somente a predominância de uma língua sobre as outras, mas a língua, enquanto signo de nacionalidade, ou seja, em sua relação com a nação. 3. Conclusão É possível afirmar que nos discursos do senso comum sobre a língua que buscam afirmar/construir uma identidade nacional, dizer nação e dizer língua têm uma ligação estreita. A criação de uma identidade nacional no Brasil do século XIX tem a língua como importante elemento constitutivo, independentemente da postura com relação aos usos do português brasileiro. O determinismo social como lente para explicação tanto da sociedade mestiça quanto da língua portuguesa modificada é um bom exemplo. Os enunciados discutidos ilustram algumas representações que atuam na construção da nacionalidade considerando-se a língua utilizada no Brasil. Uma das representações que é recorrente até hoje diz respeito à incorreção dos brasileiros. Sabemos que essa imagem, essa crença é duramente atacada pelos lingüistas em diversos fóruns de discussão, mas o que queremos ressaltar é que a matriz dessa imagem está vinculada a um padrão artificialmente imposto já no século XIX e que nos acompanha. Junta-se a essa herança normativista, a ligação entre fala incorreta – os brasileirismos - e fala do povo mestiço, crioulo. Usar o idioma/dialeto local era se identificar com/como uma nação mestiça, em um momento em que a mestiçagem era vista como degeneração das raças. Estar ligado a Portugal – pelo menos lingüisticamente - representava uma forma de manter o Brasil ligado à Europa, à civilização. 4 Referências Bibliográficas ALKMIM, Tânia. Língua, nação e identidade cultural: algumas questões e reflexões UNESP/São José do Rio Preto Conferência XIII Semana de Letras (17 a 21 de maio de 2001), mimeo. BENEDICT, Anderson. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ed. Ática. 1989 De LUCCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora da UNESP. 1999. DIAS, Luis Francisco. O nome da língua do Brasil: uma questão polêmica. In: ORLANDI, Eni P. (org) História das idéias lingüísticas: construção do saber metalingüístico e constituição da língua nacional. Campinas : Pontes; Cáceres: Unemat Editora, 2001. p 185-98. FARACO, Carlos Alberto. Norma-padrão brasileira: Desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (org) Lingüística da norma. São Paulo. Edições Loyola.2002. p 37-61. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 980-985, 2005. [ 984 / 985 ] GUEUNIER, Nicole. Attitudes and representations in sociolinguistics: theories and practice. In: International Journal Sociologie of Language. 160. 2003. pp 41-62. ORLANDI, Eni P. e GUIMARÃES, Eduardo. Formação de um espaço de Produção lingüística: A gramática no Brasil. In: ORLANDI, Eni P. (org) História das idéias lingüísticas: construção do saber metalingüístico e constituição da língua nacional.Campinas : Pontes; Cáceres: Unemat Editora, 2001. p 21-38. PINTO, Edith Pimentel. O português do Brasil: textos críticos e teóricos, 1 – 1820/1920, Fontes para a teoria e a história. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo. 1978. VELOSO, Caetano. Black or white/Americanos. In: Circuladô Vivo. Polygram. 1992. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 980-985, 2005. [ 985 / 985 ]