tendências/debates - Curso de Letras

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TENDÊNCIAS/DEBATES
Devem-se criar salas para o uso de drogas?
NÃO
Casas de danos
RONALDO LARANJEIRA
Na semana passada fomos surpreendidos com a proposta feita pelo dr. Pedro Gabriel, em
nome do Ministério da Saúde, de criar casas onde o uso de drogas ilícitas seria incentivado,
com o suposto propósito de diminuir o dano produzido por essas mesmas drogas. Essa idéia
parte do pressuposto de que uma parcela significativa dos dependentes químicos continuará
o uso e de que deveríamos protegê-los, oferecendo um lugar seguro para o consumo. Tal
idéia, que não encontra apoio na literatura científica internacional e mostra o despreparo
dessa equipe no entendimento dessa doença, desconsidera alguns aspectos importantes da
dependência química, a saber:
o uso constante de drogas produz mudanças significativas no cérebro, que causam
comportamentos como persistência na busca pela droga, apesar das complicações físicas,
sociais e mentais, e apetite persistente e intenso pelo uso;
a maioria dos dependentes graves acaba tendo algum nível de dano cerebral, que é
responsável por comportamentos como impulsividade, diminuição da capacidade de
pensamentos complexos, da memória e da capacidade de tomar decisões complexas,
tendência a adiar ações importantes, desorganização mental;
é uma doença crônica, em que a recaída é a regra, e a recuperação normalmente ocorre só
após vários episódios de tratamento;
uma grande parte dos usuários acaba desenvolvendo um outro transtorno psiquiátrico, como
ansiedade, depressão ou mesmo psicose.
Esses aspectos, típicos da dependência química, é que levam a uma grande parte das
dificuldades no tratamento.
Apesar disso, nos últimos anos temos assistido, nos países desenvolvidos, a um grande
avanço nas técnicas terapêuticas dessa doença. Novos medicamentos são propostos para
estabilizar o cérebro dos dependentes, revertendo uma parte substancial das alterações
produzidas por anos de uso. Novas estratégicas de terapia psicológica, visando a motivação
para a mudança do estilo de vida, assim como para interromper o uso das substâncias, são
desenvolvidas. Os centros de tratamento cada vez mais orientam pacientes e suas famílias
com estratégias para prevenir as recaídas.
Os objetivos da organização desses serviços são incluir um número sempre maior de
pacientes e facilitar ao máximo a aderência e a retenção desses indivíduos no tratamento. A
abstinência total deixou de ser o único objetivo, muito embora ainda seja o melhor. A
integração com toda a rede de auto-ajuda, como Narcóticos Anônimos, Amor Exigente etc.,
torna o tratamento ainda mais eficiente.
O tratamento funciona. Especialmente quando feito por profissionais qualificados, que
seguem as técnicas que tenham eficácia científica comprovada, num sistema bastante
integrado, bem distribuído, diversificado e que dê uma grande facilidade de acesso ao
paciente e a sua família. Como em qualquer tratamento de doença complexa, é necessário
grande investimento para que aqueles que necessitam recebam o tratamento devido, mesmo
que o processo de recuperação leve alguns anos.
No Brasil, assistimos a uma grande negligência com o tratamento da dependência química.
Não possuímos uma rede pública de tratamento ampla e diversificada. Não temos
profissionais bem treinados. Não temos apoio governamental às mais de 2.000
comunidades terapêuticas que sobrevivem do voluntariado ou de parcos recursos de
doações. Não temos apoio aos grupos de auto-ajuda. Não damos apoio aos milhares de
famílias que sofrem no seu dia-a-dia, buscando algum tipo de tratamento para seus
parentes.
Essas famílias, desamparadas pelos governos, devem se sentir ofendidas pela proposta do
Ministério da Saúde. Seus parentes não recebem os cuidados de saúde necessários e ainda
poderão ter de conviver com o financiamento governamental de uma casa para o uso
"seguro" de drogas.
Seria mais reconfortante se o governo investisse na dependência química como investiu no
combate à Aids. Hoje temos um programa de tratamento para Aids que é um modelo
internacional. Isso só aconteceu porque vários governos investiram grandes somas de
dinheiro que reverteram para o benefício desses doentes. Mesmo uma doença grave e difícil
como a Aids responde quando temos profissionais bem treinados, medicamentos de última
geração, clínicas que recebem adequadamente pelo tratamento e um sistema integrado de
atendimento ao doente. Tudo isso falta ao dependente químico.
Outros setores do governo, como a Secretaria Nacional Antidrogas, têm uma abordagem
muito mais em sintonia com a sociedade. Em reuniões recentes, em que algumas centenas
de profissionais discutiram as prioridades da Política Nacional Antidrogas nos próximos
anos, em nenhum momento essa aventura social de casas para uso de drogas veio à
discussão. Se o Ministério da Saúde mantiver essa proposta, estará contribuindo para que os
dependentes químicos continuem longe da difícil recuperação e, agora, com uma opção a
mais de local de uso de drogas, estimulados pelo dinheiro público.
Ronaldo Laranjeira, 48, é professor de psiquiatria e coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e
Drogas da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Devem-se criar salas para o uso de drogas?
SIM
Narcossalas e novos rumos
WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH
Durante anos o principal foco sobre o fenômeno das drogas proibidas era colocado na
distinção entre países de oferta e de consumo. Hoje o enfoque é outro, a revelar posições
inconciliáveis entre os conservadores das convenções da ONU e os progressistas
reformistas. Os últimos reagem à intolerância dos conservadores com os usuários de drogas
ilícitas e apóiam uma volta às políticas nacionais, ou seja, o abandono das convenções da
ONU.
Nas convenções das Nações Unidas, os Estados de elevada demanda, localizados no
Primeiro Mundo, ditaram as políticas para os do Terceiro Mundo, considerados produtores
de drogas naturais e responsáveis pela sua oferta planetária. Assim, prevaleceram posturas
de matriz colonialista, bem como os interesses hegemônicos, sustentados no truísmo jamais invertido- de que sem oferta não haveria consumo.
Exemplo disso foi a Convenção de Nova York, realizada em 1961, de inspiração norteamericana e ainda em vigor. Ela adotou a linha da proibição, da militarização e da
criminalização, considerando traficantes e usuários como delinqüentes. Essa convenção
estabeleceu o prazo de 25 anos para a erradicação dos cultivos proibidos. Para garantir seu
cumprimento, foi criado o International Narcotics Control Board (INCB), que denunciou a
Alemanha pelo fato de sua lei nacional permitir as "safe injection rooms".
Com efeito, o largamente experimentado modelo conservador continua a produzir mais
vítimas do que resultados. Um bom exemplo disso foi a última eleição nos EUA. Cerca de
1 milhão de cidadãos, com penas já cumpridas, trabalhando e recolhendo impostos, não
puderam escolher entre George W. Bush e John Kerry porque tinham sido condenados por
delitos não-violentos, relacionados às drogas. Em outras palavras, nos EUA, um cigarro de
maconha pode cassar o direito à cidadania.
Além disso, o modelo gerou países com economia e PIB dependentes das drogas proibidas.
Desde a Assembléia Especial da ONU de 1998, temos nítidos dois lados: países
conservadores (EUA, Japão, Suécia, Dinamarca, Brasil etc.) e Estados progressistas
(Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça, Canadá etc.). O lado progressista implementou
práticas sociossanitárias de sucesso, todas voltadas a reduzir danos. As narcossalas
integram essas práticas, pois, além de locais seguros, oferecem programas de emprego,
informações e assistência médica permanente.
O modelo europeu considerado de sucesso foi o implantado em Frankfurt, na Alemanha,
em 1994, quando a cidade tinha cerca de 6.000 dependentes químicos. E até a Suíça trocou
as praças pelos ambientes fechados e controlados. Em Frankfurt, o número de usuários e
dependentes caiu pela metade até 2003. Além disso, outras oito cidades alemãs adotaram as
salas seguras. Os hospitais e os postos de saúde, antes das narcossalas, atendiam 15 casos
graves por dia, com um custo estimado de 350 por intervenção. Tais resultados inspiraram a
Espanha, que realiza experiências com as salas seguras.
O sistema alemão oferece acolhida aos que vivem marginalizados e em péssimas condições
de saúde e econômicas. Foi, sem dúvida, uma forma de aproximação, incluindo cuidados
médicos, informações úteis e ofertas de formação profissional e trabalho. Com isso, o uso
de drogas injetáveis despencou 50%. Reduziram-se também significativamente os casos de
Aids e outras patologias correlatas ao consumo de drogas proibidas. Vale destacar ainda
que, entre os usuários que ingressaram nos programas de narcossalas, caiu o índice de
mortalidade em virtude da melhora da qualidade de vida. Por sua vez, as mortes por
overdose também baixaram, tendo o mesmo sucedido, no campo da microcriminalidade,
com os delitos relacionadas ao consumo de drogas.
A experiência de Frankfurt serviu para afastar a tese de que as narcossalas poderiam
estimular os jovens a ingressar no mundo das drogas. Pesquisas realizadas por autoridades
sanitárias demonstraram que os jovens de idade entre 15 e 18 anos da cidade não partiram
para o uso de heroína ou cocaína e que menos de 1% nunca provou uma dessas drogas na
vida. Um levantamento epidemiológico revelou o aumento na idade do consumidor: subiu
para entre 30 e 34 anos.
As narcossalas, nos lugares onde foram implantadas, deram certo não só em relação à
redução da demanda, mas também pela contribuição positiva quanto aos aspectos e práticas
humanos, solidários e de reinserção social. Na Alemanha, as federações do comércio e da
indústria apoiaram com cerca de 1 milhão os programas das narcossalas.
Como alertou o professor Uwe Kemmesies, da Universidade de Frankfurt, "podemos
reconhecer que a oferta de salas seguras para o consumo de drogas melhorou a expectativa
e a qualidade de vida de muitos toxicodependentes que não desejam ou não conseguem
abandonar as substâncias".
Wálter Fanganiello Maierovitch, 57, juiz aposentado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, é
presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanne Falcone. Foi secretário nacional Antidrogas
da Presidência da República (1999-2000).
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