SUMÁRIO SUMÁRIO ............................................................................................................................ 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 2 I – A PROBLEMÁTICA FILOSÓFICA CONTEMPORÂNEA A WITTGENSTEIN 6 1 .1 – AMBIENTE DE CRISES E RE-PROPOSTAS ..................................................................... 7 1. 2 – DUAS ESCOLAS, CAMINHOS DIFERENTES ................................................................. 12 1. 3 – O CAMINHO EMPREENDIDO POR WITTGENSTEIN ...................................................... 15 II – A RESPOSTA DO PRIMEIRO WITTGENSTEIN ................................................ 18 2.1 – OS PRIMEIROS PASSOS .............................................................................................. 18 2.2 – SUA PRIMEIRA OBRA: TRACTATUS ............................................................................. 20 2.2.1 – A linguagem e o mundo: teoria da figuração .................................................. 22 2.2.2 – A linguagem lógica e o sentido: teoria da verdade ......................................... 25 III – A RESPOSTA DO SEGUNDO WITTGENSTEIN ............................................... 28 3. 1 – A RUPTURA WITTGENSTEINIANA: SUPERAÇÃO DA TRADIÇÃO E DO TRACTATUS ...... 29 3. 1. 1 – Teorias objetivista e espiritual da linguagem................................................ 30 3. 1. 2 – Crítica à teoria objetivista e espiritual da linguagem ................................... 34 3. 2 – JOGOS DE LINGUAGEM: A NOVA IMAGEM DE LINGUAGEM ........................................ 42 3. 2. 1. Os Jogos de linguagem seguem regras gramaticais ....................................... 45 3. 2. 2 – Jogos de linguagem resguardam semelhanças de família............................. 47 3. 3 – FORMAS DE VIDA ..................................................................................................... 49 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 52 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 57 INTRODUÇÃO Partir de um período histórico ou de um problema específico, que possa ser tomado como origem última, ou primeira, de todas as coisas, parece ser a característica fundamental da metafísica. No entanto, não é a marca deste Trabalho de Conclusão de Curso que, além de pesquisar um autor que combate a metafísica, trabalha uma problemática bastante situada num período e num contexto. Período de virada do século XIX para o XX e no contexto marcado pela concepção filosófica tradicional, que atinge sua expressão máxima na primeira proposta wittgensteiniana, em oposição a qual o autor apresenta a segunda proposta que protagoniza toda a reviravolta pragmática lingüística. O desenvolvimento dessas duas propostas wittgensteinianas, que procuram oferecer respostas para um mesmo problema, ocorre no seio do movimento filosófico denominado Filosofia Analítica. Movimento que, além de estar em desenvolvimento, surgiu como resposta ou reação a movimentos já existentes. A problemática filosófica, própria desse período, desperta Wittgenstein para a busca das causas de tais problemas a fim de elaborar possíveis propostas de solução para os mesmos. Nesse empreendimento o pensador constata que os problemas filosóficos seriam causados pela má compreensão dos enunciados lingüísticos. E essa má compreensão dos enunciados estaria estritamente ligada à problemática da significação da linguagem. A partir da constatação dessa única problemática, Wittgenstein apresenta duas propostas de solução para a mesma. Este aceno inicial serve como base para expressar que, a partir do seio da Filosofia Analítica, será trabalhado o problema da linguagem e seu significado. Tal problema será abordado a partir das duas respostas wittgensteinianas. As mesmas serão apresentadas como a Primeira resposta de Wittgenstein – referente à filosofia do Tractatus – e, respectivamente, como a Segunda resposta de Wittgenstein – referente à Filosofia das Investigações Filosóficas. Na primeira obra, Wittgenstein defende uma linguagem cujo significado é estritamente dependente da relação lógica entre nome e objeto: “O nome significa o objeto. O objeto é seu significado” (T. 3.203)1. Na segunda obra ele defende uma linguagem que adquire seu significado no jogo de linguagem a partir das atividades cotidianas desenvolvidas em cada forma de vida: “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (I.F. § 43)2. Este Trabalho de Conclusão do Curso de bacharelado em Filosofia é motivado pela busca de entendimento do problema que marca o período filosófico do final do século XIX e início do século XX. Tal problema relaciona-se com o significado da linguagem. O objetivo desta monografia é apresentar no cenário acadêmico a importância da discussão acerca da problemática lingüística, enfatizando o quão importante é ser capaz de conciliar objetividade conceitual com a capacidade de diálogo, principalmente a partir da Filosofia da Linguagem desenvolvida posteriormente à década de 1930. A fim de melhor estudar tal problema, o desenvolvimento deste trabalho é dividido em três capítulos. No primeiro é visto o contexto e o problema da época. Nesse contexto Wittgenstein apresenta a primeira resposta, que é o conteúdo do segundo capítulo deste trabalho. Uma vez vista a primeira resposta, a partir dessa, Wittgenstein apresenta a reproposta como segunda resposta. Essa segunda resposta é o conteúdo do terceiro capítulo desta monografia. O contexto e o problema da época do trabalho são o contexto e o problema da Filosofia Analítica, aqui apresentada como uma reação e busca de saída para o descrédito que a Filosofia enfrentava. Crise gerada pela característica existencialista, idealista e fenomenológica, que marcava tal período. Tal característica fazia com que a Filosofia perdesse o crédito que a ciência então conquistava. Para superar tal impasse um ramo da Filosofia se aproxima da ciência, caracterizando-se como o movimento filosófico analítico. Tal movimento é caracterizado por centralizar sua problemática em torno da Filosofia da Linguagem no intuito de conferir a ela um caráter próximo à cientificidade. Uma boa parcela dos estudiosos da Filosofia Analítica a dividem em duas grandes correntes que, para este trabalho, facilitam o alojamento da Primeira resposta de Wittgenstein numa corrente e a Segunda resposta na outra corrente. Uma das correntes seria caracterizada pela busca de uma Filosofia da Linguagem ideal, científica – familiar ao Tractatus. A outra 1 Sigla e numeração referentes ao Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 1994. Sigla e numeração referentes às Investigações Filosóficas. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975. 2 3 corrente analítica seria caracterizada pela valorização da linguagem ordinária, prática – familiar às Investigações. No entanto, qualquer definição ou distinção filosófica deve ser prudente ao pretender utilizar-se de terminologias e definições absolutas. Neste trabalho, tal prudência deve acompanhar a leitura de cada definição ou conceituação, como por exemplo: quando são apresentadas possíveis definições de Filosofia Analítica, a divisão de tal movimento em duas correntes não são interpretações absolutas. No segundo capítulo, são trabalhadas as duas teorias tomadas como centrais na estruturação da primeira obra wittgensteiniana. Por primeiro, a teoria da figuração, segundo a qual a linguagem figura o mundo numa espécie de adequação entre o pensar, o falar e o real. Tal adequação é regida pela estrutura lógica que iguala a estrutura do falar com a estrutura do falado. Existe uma relação de configuração entre o mundo, o pensar e o falar (T. 2.161). A segunda teoria dos Tractatus é a teoria da verdade, segundo a qual a linguagem é uma simples descrição do mundo. Tal descrição é feita a partir de frases complexas que são compostas de frases elementares. As frases complexas (a descrição do mundo) são verdadeiras quando são verdadeiras as frases elementares que as compõem. A proposição é verdadeira se exprime um estado de coisas como realmente ele é. No terceiro capítulo é desenvolvida uma interpretação da teoria wittgensteiniana das Investigações. Teoria marcada pela ruptura e superação do Tractatus e da tradição lingüística ocidental. Tal ruptura e superação são marcadas pela crítica às teorias objetivista e espiritual da significação lingüística e pela superação do dualismo tradicional e da parcialidade da concepção instrumentalista da linguagem. Tal superação resulta numa original e interessante re-proposta desenvolvida a partir dos jogos de linguagem que são regidos por regras gramaticais, caracterizados pela semelhança de família e alojados nas formas de vida. Aqui a linguagem abandona sua pretensão de exatidão absoluta, buscada pela proposta de constituição de uma linguagem ideal que servisse como referência para todas as linguagens, e passa a valorizar a linguagem prática aplicada e vivenciada em cada contexto. A pretensão desta pesquisa não é encontrar soluções precisas para os problemas filosóficos, nem apresentar descobertas geniais ou o melhor dos trabalhos acadêmicos referentes à Filosofia da Linguagem. Se esta fosse a pretensão, se estaria sendo tão ou mais prepotente que o Primeiro Wittgenstein, estar-se-ia pretendendo filosofar contra os 4 princípios básicos de uma Filosofia equilibrada e madura e, pior que isso, se estaria negando toda a concepção de Filosofia da Linguagem desenvolvida pelo Segundo Wittgenstein. De acordo com a concepção filosófica do Wittgenstein das Investigações, objetiva-se, nas páginas que seguem, compor um jogo de linguagem, no qual, se possa compreender o contexto em que Wittgenstein depara-se com o problema da significação da linguagem e quais as possíveis respostas que ele apresenta para tal problema. A partir do problema da significação buscar-se-á a resposta apresentada pelo Primeiro e pelo Segundo Wittgenstein. Daí o título deste trabalho ser: “Wittgenstein: Um problema, duas respostas”. 5 I – A PROBLEMÁTICA FILOSÓFICA CONTEMPORÂNEA A WITTGENSTEIN Os pensadores que deixaram sua colaboração para a história do pensamento foram indivíduos que conseguiram, de alguma forma, interpretar problemáticas vigentes em sua época e apresentar possíveis respostas. As escolas filosóficas freqüentemente surgem da emulação ou imitação de um mestre, cujo poder de convicção consiste na sua colocação de novas questões, e amiúde também de sua descoberta ou invenção de uma resposta adequada a novos métodos de argumentação. 3 Conforme a afirmação de Haller, este trabalho apresenta Wittgenstein como alguém que, talvez, de forma mais genial e rápida, conseguiu oferecer respostas à principal problemática filosófica de sua época, a saber, à problemática do significado da linguagem. Tanto assim, que é um dos únicos autores capaz de, em seis décadas de existência, conseguir formular e deixar para a História duas respostas para essa problemática. Tais respostas fazem com que esse autor seja visto de duas maneiras bastante diversas com relação à concepção de Filosofia. Embora haja uma distinção já consagrada na Filosofia Analítica entre o ‘primeiro’ Wittgenstein, representado pelo Tractatus lógico-philosophicus, e o ‘segundo’ representado pelos escritos posteriores a 1929, sobretudo pelas Investigações filosóficas, a maior parte dos intérpretes atualmente têm encontrado muitos pontos de contato entre as duas fases de seu pensamento. Notadamente quanto à sua concepção da tarefa terapêutica da Filosofia, do método filosófico e do papel da análise em produzir esclarecimentos e desfazer problemas filosóficos tradicionais, bem como formas errôneas de se compreender a linguagem. Por outro lado, é o próprio Wittgenstein que se refere negativamente à visão lógica do ‘autor do Tractatus’ nas Investigações como uma visão da qual teria se afastado. 4 3 4 HALLER. Wittgenstein e a Filosofia Austríaca: Questões, p. 17. MARCONDES. Filosofia Analítica, p. 38. O que se percebe é que a cada maneira de conceber Filosofia o autor apresenta uma resposta, também diversa, para a questão do significado. Conforme o comentário de Marcondes, isso não significa mudança de problema, mas sim diferentes interpretações e respostas ao mesmo problema. O problema da Filosofia da Linguagem torna-se o centro das discussões filosóficas a partir do final do século XIX e início do século seguinte. Esse problema será aqui abordado à luz das duas formas metodológicas que marcam a Filosofia wittgensteiniana. As duas formas de respostas a tal problema serão distinguidas como as respostas do Primeiro Wittgenstein e as do Segundo Wittgenstein. Antes de entrar propriamente na resposta do Primeiro Wittgenstein, que é condição para se chegar ao Segundo, o qual interessa mais propriamente a este trabalho, será desenvolvida, como primeiro capítulo, uma contextualização básica do movimento filosófico em que Wittgenstein está radicado, a saber, o Movimento Analítico. Dentro desse movimento será focalizada a existência de duas escolas analíticas diversas e o caminho que Wittgenstein toma em tal diversidade. 1 .1 – Ambiente de Crises e Re-propostas É de conhecimento básico para quem estuda a História da Filosofia o fato de cada época ser marcada pela predominância de uma certa espécie de problemática situacional e temporal em torno da qual as atenções, pesquisas e produções são mais centralizadas5. Isso acontece desde o nascimento da Filosofia. Segundo Aristóteles, a Filosofia nasce da admiração e da dúvida6. Tal admiração e dúvida não deixam de ser movidos pelas questões que inquietam tal período ou situação. Sabe-se que a Filosofia surge como cosmologia, voltada para a Física e regida pela pergunta: o que é a realidade? Em seguida as perguntas priorizam a teoria do conhecimento, cuja centralidade dos questionamentos se deslocam para a indagação sobre a possibilidade de conhecer a realidade7. Daí decorrem a metafísica, a ontologia, a epistemologia, o racionalismo e, destes, os tratados políticos, o 5 [...] muitos sistemas filosóficos atuais apresentam pontos comuns com questões que encontramos também em Descartes e Leibniz ou, muito antes, em Platão e Aristóteles. Mas, tal aspecto, se fosse considerado absoluto, forneceria uma imagem errônea da Filosofia atual. Também na vida filosófica, de maneira semelhante ao que se verifica nas ciências técnicas, ocorrem mudanças que caracterizam a Filosofia de hoje com o selo da unicidade, e isto não apenas por causa do caráter de moderno e, em parte, por causa da radicalidade das opiniões defendidas, que não encontram iguais no passado, mas também por causa das mudanças fundamentais nas problemáticas. (STEGMÜLLER. A Filosofia Contemporânea. Vol. I, p. 2). 6 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Vol. II, p. 11. 7 SALLES. O Caminho Para a Ruína. 7 rompimento revolucionário marxista, a Psicologia8, temas que são pressupostos como “a priori” à pesquisa aqui desenvolvida, mas que não serão conteúdo do problema que este trabalho pretende abordar. O que se constata é que daqui se originam correntes filosóficas como o neokantismo, o existencialismo e a fenomenologia, formando o cenário filosófico em que nasce Wittgenstein9. Cenário este do qual, segundo Kurt Wuchterl, os intelectuais mais cultos se haviam afastado devido à insatisfação com a Filosofia de Hegel, Marx, Kierkegaard e Nietzsche. Tal fato fez com que se passasse a valorizar o pensamento das ciências naturais, desafiando a Filosofia a entrar na área científica caso quisesse ter vez e voz10. O que conduziu ao surgimento da Filosofia Analítica, que centraliza sua discussão na Filosofia da Linguagem, da qual Wittgenstein é um dos principais defensores. A primeira obra que marca a ação de Wittgenstein no campo da Filosofia Analítica é o Tractatus, publicado em 1921. O nome Filosofia Analítica, mesmo que Tugendhat afirme que em nenhum lugar está escrito o que seja11, é atribuído a uma certa maneira de fazer Filosofia que pretende dar um passo além da Filosofia anterior. Pretende tornar as reflexões filosóficas mais claras e precisas no intuito de evitar mal-entendidos. O rigor metodológico que caracteriza a Filosofia Analítica serve para nos prevenir de cometermos erros ao raciocinar com palavras ou conceitos abstratos. A Filosofia Analítica resulta, pois, do fato de que a maioria dos filósofos contemporâneos, cientes do quanto as palavras podem nos confundir e do quanto elas efetivamente confundiram os filósofos no passado, concebe os problemas filosóficos primeiramente como problemas de esclarecimento do sentido de nossas expressões, de modo a assegurar que a investigação não se perca, logo no início, em confusões conceituais, originadas de uma compreensão inadequada da maneira como a nossa linguagem funciona. 12 Costa afirma que o rigor metodológico e a concepção de que os problemas filosóficos são oriundos do uso não crítico da linguagem é característica comum entre os filósofos do Movimento Analítico. Tal movimento surge como uma “re-proposta” filosófica que pretendia reconquistar a adesão e a confiança dos intelectuais que, como foi 8 HAMLYN, D. W. Uma História da Filosofia Ocidental. Wittgenstein, o qual, como Martin Heidegger e Gabriel Marcel, nasceu no ano de 1889, desenvolve seus pensamentos no período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Naquela época o neokantismo em torno de Cohen, Natorp e Windelband, depois a Filosofia da vida em torno de Dilthey, bem como a fenomenologia em torno de Husserl, determinavam a paisagem filosófica (WUCHTERL. Ludwig Wittgenstein. Análise lingüística e terapia. In: FLEISCHER (Org.). História da Filosofia. Filósofos do século XX, p. 62.). 10 Cf. Ibid., p. 62. 11 C.f. TUGENDHAT. Lições Introdutórias à Filosofia Analítica da Linguagem, p. 15. 12 COSTA. Filosofia Analítica, p. 20. 9 8 mencionado no parágrafo anterior e por motivos que aqui não se pretende trabalhar, se haviam afastado da Filosofia. Esse movimento torna-se o cenário de diversas concepções, o que faz surgir uma diversidade de caracterizações de Filosofia Analítica. Elas variam de acordo com a orientação de quem as formula13. Aqui os escritos tomados como modelar para o desenvolvimento deste trabalho são as duas obras que marcam as fases filosóficas de Wittgenstein, um dos mais representativos e influentes filósofos analíticos. Isso fará com que tal caracterização de Filosofia Analítica não fuja de uma parcialidade uma vez que a intenção de tal caracterização visa unicamente contextualizar Wittgenstein, a fim de ter um ponto de partida para depois acompanhar suas andanças que resultam em duas formas diversas de responder à problemática de então. A primeira resposta eleva ao auge a concepção tradicional da linguagem designativa, a segunda é a marca do total rompimento com a tradição lingüística. Uma singularidade desse movimento filosófico, que parece paradoxal, e não deixa de ser, é o fato de, ao mesmo tempo, perseguir uma precisão do objeto de sua pesquisa e dificultar a precisão de sua origem, seu estilo e seu conteúdo. Toda a caracterização do estilo analítico de filosofar tende a ser parcial, uma vez que estudiosos de diversas tendências filosóficas e de outras áreas do conhecimento podem ser, e foram, incluídos nesse movimento. Segundo D’Agostini, aqui se encontram autores da filosofia, da psicologia à filosofia do direito, da ética à lógica14. O termo comum que caracteriza este conjunto é o estilo de argumentação e de escrita, o modo de trabalhar em filosofia e de conhecer as tarefas e os fins do discurso filosófico15. D’ Agostini, inspirada em Russell, ainda afirma que o Movimento Analítico buscava superar o heroísmo filosófico, através do qual filósofos pensavam em resolver qualquer problema por si próprio, sem nenhum método minucioso. É importante lembrar que esse Trabalho de Conclusão de Curso não ignora o fato de Wittgenstein não ser o fundador da Filosofia Analítica. Wittgenstein é inserido neste movimento, cuja origem, como já foi visto, não é precisa. Dummett considera Frege como o fundador desta corrente filosófica, na medida que faz da Filosofia da Linguagem o conteúdo filosófico principal, desprezando a teoria do conhecimento a qual ocupara um 13 Cf. COSTA. Filosofia Analítica, p. 11. Cf. D’AGOSTINI. Analíticos e Continentais, p. 278. 15 Em termos gerais, a Filosofia Analítica pode ser caracterizada por ter como idéia básica a concepção de que a filosofia deve realizar-se pela análise da linguagem. Sua questão central seria então, pelo menos em um primeiro momento, ‘Como uma proposição tem significado?’. É nesse sentido que, nessa concepção de filosofia, o problema da linguagem ocupa um lugar central. (MARCONDES. Filosofia Analítica, p. 12. 14 9 lugar privilegiado na modernidade a partir de Descartes. Para Dummett, a primazia da Filosofia da Linguagem seria a característica distintiva da Filosofia Analítica. Na mesma linha surge Milton Munitz que afirma ser o interesse por questões de caráter lógicolingüístico que caracteriza a Filosofia Analítica, em oposição às questões epistemológicas da Filosofia moderna. Thomas Baldwin discorda de Dummett e enfatiza a análise lógica e epistemológica desenvolvida por Moore e Russell como ponto fundacional de tal movimento. No entanto, parece não haver uma incompatibilidade entre as teses de Dummett e Baldwin, uma vez que o primeiro se embasa em Frege e o segundo em Russell e a preocupação de Frege pela linguagem estaria estreitamente conectada com a preocupação de Russell. Da proposta de ambos teriam surgido dois aspectos próprios do Movimento Analítico: o estilo disciplinado e a tentativa de unificar as discussões filosóficas16. Segundo Franca D’Agostini, precisar a data em que se inicia a Filosofia Analítica dependeria de qual aspecto do programa analítico seria considerado determinante. Se considerada como “ciência”, teria seu início entre os séculos XIX e XX com Brentano. Se considerada como “análise” teria seu início em Frege, nos fins do século XIX. Se considerada Filosofia “pura”, é possível remeter sua origem a Aristóteles, Descartes e Kant, que, de forma não-consciente, a teriam desenvolvido como análise lingüística. Por outro lado, se pensada a Filosofia Analítica como exercício sobre a linguagem, não contaminada por implicações epistemológicas, se está definindo como analítica somente a Filosofia surgida na Inglaterra via as novas pesquisas do Segundo Wittgenstein e ao trabalho de Austin17. Para ter presente todos esses aspectos, de acordo com D’Agostini, poder-se-ia admitir que os precursores do Movimento Analítico tenham sido Frege, alguns discípulos de Brentano, os primeiros lógicos polacos, Russel, Moore e o Primeiro Wittgenstein, que formula sua primeira resposta filosófica na qual se reflete o auge e o desfecho deste primeiro período do Movimento Analítico. No entanto, D’Agostini afirma que o verdadeiro Movimento Analítico teria surgido mais tarde com o afirmar-se autoconsciente de uma Filosofia lingüística, primeiro pensada como Filosofia lógica, depois como análise da linguagem, por volta dos anos de 1930, com a publicação da revista oficial do neopositivismo vienense. Ainda seria de relevância a ascensão de Hitler ao poder (1933), 16 17 Cf. MUGUERZA e CEREZO, La Filosofia hoy, p.11. Cf. D’AGOSTINI. Analíticos e Continentais, p. 289. 10 fazendo com que muitos intelectuais alemães, austríacos e polacos fossem obrigados a migrar. Os principais neopositivistas teriam se refugiado na América ou na Inglaterra18. Isso tem relação com o autor aqui trabalhado, porque, em 1929, Wittgenstein retorna à Inglaterra, onde já se desenvolvia a tradição de análise filosófica. Essa tradição e forma de filosofar compõem o cenário onde Wittgenstein protagoniza toda a reviravolta lingüística oferecendo sua segunda e original resposta à problemática vigente. Confirmando e aprofundando o que é mencionado acima, Costa diz que, para diferenciar o Movimento Analítico da Filosofia tradicional, não é necessário negar sua caracterização pela investigação das coisas (idéias, conceitos) mais fundamentais, gerais e abstratos, que buscam entender a maneira como se relacionam as coisas entre si. Platão buscava entender a relação hierárquica das idéias. Aristóteles perguntou sobre as diferentes maneiras pelas quais o ser se diz. Descartes buscou a existência de um fundamento seguro para o conhecimento. Kant perguntou pela possibilidade o conhecimento19. Essas questões continuam vigentes na Filosofia Analítica. Tal diferença expressar-se-ia na maneira como a Filosofia Analítica trataria tais problemas. O que a Filosofia Analítica tem de novo é seu paradigma de clareza e de rigor metodológico capaz de evitar certos erros por vezes cometidos pela Filosofia tradicional. Muitas das questões referentes às coisas ou idéias mais gerais e abstratas começavam com expressões do tipo “O que é?”. Eis alguns exemplos de perguntas desse tipo, feitas pelos filósofos de todas as épocas: O que é o conhecimento? O que é opinião? O que é uma pessoa? O que é o ser? O que é a existência? O que é uma categoria? O que é um objeto? O que é uma idéia? O que é um pensamento? O que é a verdade? O que é a possibilidade? O que é liberdade? O que é o bem? O que é o belo? O que é ação? O que é o tempo?. 20 Conforme Costa, essas eram as perguntas da Filosofia tradicional. Tais perguntas eram por demais gerais e abstratas. Por serem gerais e abstratas, elas careciam de precisão. Essa carência de precisão fazia com que elas se tornassem a origem dos próprios problemas da Filosofia. Como as perguntas eram gerais e abstratas, as respostas também eram gerais e abstratas. O filósofo analítico inicia pela pergunta sobre o modo como são utilizadas e significadas as palavras. Ele se preocupa antes com os conceitos e significados. Ao invés de perguntar o que é o conhecimento, o analítico pergunta o que significa a palavra conhecimento. 18 Cf. Ibid., p. 290. Cf. COSTA. Filosofia Analítica, p. 13. 20 Ibid., p.12. 19 11 Em vez de se perguntar, por exemplo, o que é o conhecimento, a verdade, a existência, a liberdade, o bem, o filósofo analítico prefere começar perguntando o que significam ou de que modo são usadas tais palavras. 21 Como se percebe, Costa enfatiza que, nessa nova forma de questionamento, incorre-se num menor risco de tomar o abstrato pelo concreto 22. Conforme Wittgenstein o erro fundamental da metafísica, aqui combatida, consiste em confundir o que pertence à lógica da linguagem com aquilo que é empírico e factual. Como foi visto, há uma dificuldade em conceituar com precisão o todo do Movimento Analítico e nem é o objetivo, muito menos a pretensão, deste trabalho, que busca, neste capítulo, nada mais do que vislumbrar um fio condutor que situe as raízes do pensamento de Wittgenstein, a fim de saber de onde ele parte para oferecer as duas importantes respostas à Filosofia da Linguagem. Para tanto, serão aqui tomados, de forma não profunda e de maneira bem esquemática, os conceitos gerais que alicerçam o todo da construção de tal movimento, a saber, as duas tendências ou escolas principais, para em seguida situar as andanças de Wittgenstein em tais escolas. 1. 2 – Duas escolas, caminhos diferentes Alguém até pode questionar qual seria a motivação desse Trabalho de Conclusão de Curso em Wittgenstein estar se preocupando com os caminhos tomados pelas escolas analíticas. No entanto, cabe enfatizar que o objetivo desse capítulo da monografia é, justamente, contextualizar as raízes do Primeiro e do Segundo Wittgenstein. Daqui é que se originam as duas diferentes metodologias filosóficas aderidas pelo autor. Nada melhor para distinguir as duas fases de Wittgenstein do que partir dessa definição do Movimento Analítico, que será trabalhada agora. É um tanto comum entre os estudiosos analíticos conceituar, dentro da concepção geral de Filosofia Analítica, a existência de duas vertentes metodológicas que predominam. Duas grandes vertentes podem, contudo, ser identificadas. A primeira, que constitui o que podemos chamar de semântica clássica, se desenvolve a partir de Frege, Russell e Wittgenstein (com o Tractatus lógico-philosophicus, 1921), caracterizando estes dois últimos, juntamente com Moore, a chamada Escola Analítica de Cambridge. Podemos incluir ainda nessa tradição o positivismo lógico do Círculo de Viena, que foi de início fortemente influenciado por Wittgenstein. A segunda grande vertente parte também da 21 22 Ibid., p. 14. Ibid., p. 15. 12 influência de Moore, de Gilbert Ryle, do “segundo” Wittgenstein e de John Langshaw Austin, incluindo a Escola de Oxford, também conhecida como “Filosofia da Linguagem ordinária”, caracterizando assim a chamada “virada lingüística”.23 Essas duas correntes seriam as principais, às quais seria possível associar as demais. Seriam elas, adaptando a este trabalho: a chamada Filosofia da Linguagem ideal – do Primeiro Wittgenstein – e a chamada Filosofia da Linguagem ordinária – do Segundo Wittgenstein. No entanto, esse trabalho não ignora a falta de unanimidade na própria distinção entre uma e outra das duas corrente analíticas, bem como, na classificação de qual filósofo realmente pertence a uma e a outra corrente. Na citação acima, Marcondes apresenta uma concepção dessa distinção, ou classificação. Costa, como pode ser conferido na próxima citação, apresenta uma divisão bastante semelhante, porém com divergências. Uma delas refere-se ao pensador que poderia ser o ponto de partida de cada corrente. A Filosofia Analítica possui duas vertentes metodológicas principais. A primeira chamada de “Filosofia da Linguagem ideal”, tenta aproximar-se das questões por métodos inspirados nas ciências exatas, em especial na lógica e na Matemática desenvolvida principalmente por Frege, no final do século passado. Para filósofos como Frege, Bertrand Russell, o jovem Wittgenstein, e, posteriormente, positivistas, como Carnap e Quine, as formas gramaticais de nossa linguagem natural tendem a ser vistas apenas como uma fonte de confusão encobridora da verdadeira estrutura lógica de nossas expressões; [...]. A segunda vertente da Filosofia Analítica, chamada de “Filosofia da Linguagem ordinária”, tem sua origem nos trabalhos escritos pelo filósofo inglês G. E. Moore, no início deste século, tendo sido desenvolvida por Wittgenstein a partir da década de 30, e, em seguida, pelos filósofos da chamada “Escola de Oxford”: Ryle, Austin e Strawson.24 Conforme se percebe na apresentação feita a partir de Costa, a primeira corrente, denominada Filosofia da Linguagem ideal, caracteriza-se por sua metodologia inspirada nas ciências exatas, em especial na lógica e na Matemática desenvolvidas por Frege no final do século XIX. A esta são identificados filósofos como o próprio Frege, Russell, o Primeiro Wittgenstein, Carnap e Quine. Para estes as formas gramaticais da linguagem usual são uma fonte de confusão que encobrem a verdadeira estrutura lógica das expressões. Tais expressões devem passar pelo crivo da purificação das ambigüidades e imprecisões. As mesmas devem ser transformadas em linguagem lógica matemática ou simbólica. A segunda vertente metodológica da Filosofia Analítica, chamada de Filosofia da Linguagem ordinária, tem sua origem nos trabalhos escritos por Moore, no início do século 23 MARCONDES. Filosofia Analítica, p. 13. 13 XX. Esta vertente foi desenvolvida pelo Segundo Wittgenstein a partir da década de 1930 e, em seguida, pelos filósofos da Escola de Oxford. Será essa a linha pela qual este trabalho mais se estenderá, uma vez que o principal objeto a ser atingido por esta pesquisa é a significação da linguagem do Segundo Wittgenstein, onde se encontra a segunda e definitiva resposta do autor à problemática de sua época. Os filósofos da linguagem ordinária, na sua maioria, defendiam a não modificação pela Filosofia do uso natural ou ordinário das expressões, bem como a não-adesão a pressupostos metafísicos sugeridos pela lógica matemática25. Para Wittgenstein, a Filosofia deve reconduzir as palavras de sua aplicação metafísica para sua aplicação cotidiana26. O filósofo deve simplesmente esclarecer o uso dos significados concretos das expressões da linguagem ordinária. D’Agostini centraliza a origem dos dois movimentos na Filosofia de Frege. Além disso, o trabalho de Frege pode ser pensado como base única do dois movimentos. Frege foi o ponto de referência tanto de Russell quanto dos neopositivistas austríacos, alemães, polacos; de outra parte, como acenamos e como sustentou rapidamente Dummett, Frege antecipou a ‘virada lingüística’ em todas suas variantes, inclusive o interesse pela linguagem ordinária e pelos aspectos executivos, pragmáticos da linguagem. 27 Conforme essa afirmação de D’Agostini, Frege apresenta-se como um autor de relevante importância para essa monografia, que pretende trabalhar as duas fases da filosofia wittgensteiniana. Uma vez que Frege é apresentado como ponto de partida único, das duas escolas analíticas e antecipa a virada lingüística, ele contempla bem, a busca das raízes wittgensteinianas empreendidas pelo primeiro capítulo dessa pesquisa monográfica. Ao analisar as duas faces centrais da Filosofia Analítica, percebe-se a presença de Wittgenstein em ambas as correntes. O que significa que o Wittgenstein do Tractatus estaria mais afim com a vertente da Filosofia da Linguagem ideal, enquanto o Wittgenstein das Investigações estaria mais afim com a vertente da Filosofia da Linguagem ordinária. No próximo item será trabalhado o caminho feito pelo autor dentro deste Movimento Analítico, uma vez que o mesmo protagoniza no seio de tal movimento a mudança metodológica em sua Filosofia. Razão pela qual ele inicia dentro de uma vertente e, após a reviravolta, é o autor principal da segunda vertente. 24 COSTA. Filosofia Analítica, p. 28; 29. Cf. Ibid., p. 29. 26 Cf. WITTGENSTEIN. Investigações Filosóficas, § 116. 27 D’AGOSTINI. Analíticos e Continentais, p. 288. 25 14 1. 3 – O caminho empreendido por Wittgenstein Wittgenstein nasceu no mesmo ano que Heidegger e Gabriel Marcel, 188928. Inicia sua produção filosófica no período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. A paisagem filosófica de então era determinada pelo Neokantismo, pela Filosofia da vida e pela fenomenologia de Husserl. Como foi visto, Wuchterl diz que essa era uma época em que as massas de pessoas cultas estavam, como hoje, afastadas da Filosofia devido à insatisfação com a Filosofia de Hegel, Marx, Kierkegaard e Nietzsche. Aí se passou a valorizar o pensamento das ciências naturais29. Isso teria desafiado a Filosofia a entrar na área científica. Tal fato seria o principal responsável pelo surgimento da Filosofia Analítica, da qual Wittgenstein é um dos principais defensores. A obra que introduz a ação de Wittgenstein no campo da Filosofia Analítica é o Tractatus, publicado em 192130, durante a Primeira Guerra Mundial, da qual Wittgenstein participou servindo o exército austríaco. Na primeira obra de Wittgenstein, o Tractatus, é apresentada uma Filosofia da ‘linguagem ideal”31. Ela tem um estilo próprio da primeira corrente da Filosofia Analítica, que, como foi visto, primava pela lógica e pela Matemática como meios de purificação da ambigüidade e imprecisão da linguagem. Contém a concepção que Wittgenstein defende e eleva ao auge, acreditando ser ela a resolução de todos os problemas filosóficos32. Ao findar essa obra, ele afirma ter definitivamente solucionado tais problemas e não mais ser 28 Ludwig Josef Johann Wittgenstein nasceu em Viena, em 26 de abril de 1889, o caçula numa família de oito filhos. Seu pai era industrial e um dos homens mais ricos da Áustria; a casa de Wittgenstein era um centro de vida social e cultural vienense. [...]. Seu avô paterno era um abastado mercador de lã judeu de Hesse que se convertera ao cristianismo protestante [...]. Seu pai Karl [...] estudou engenharia. Em algumas décadas acrescentou uma fortuna à sua herança por meio de um bem-sucedido envolvimento com a indústria do ferro e do aço, estabelecendo-se com um dos mais eminentes industriais do império austro-húngaro. [...] Era a mãe de Wittgenstein, Leopoldine, quem mais se dedicava a encorajar as atividades culturais e musicais da família. [...] O próprio Wittgenstein era dotado de uma fina sensibilidade musical. [...]. Leopoldine Wittgenstein era católica romana e Wittgenstein foi criado nessa crença. A religião permaneceu um tema poderoso por toda a sua vida (GRAYLING. Wittgenstein, 13; 14). 29 Cf. WUCHTERL. Ludwig Wittgenstein. Análise lingüística e terapia. In: FLEISCHER (Org.). História da Filosofia. Filósofos do século XX, p. 62. 30 O Tractatus Logico-Philosophicus foi publicado pela primeira vez, em 1921, no periódico alemão Annalen der Naturphilosophie, sob o título Logisch-Philosophische Abhandlung. A edição era precária, com muitos erros. A primeira edição revista pelo autor foi a inglesa de 1922, com o texto alemão e a tradução inglesa face a face, assinada por C.K. Ogden, que expressamente divide a autoria com P.F. Ramsey (WITTGENSTEIN. Tractatus Logico-Philosophicus, p. 9). 31 Sua primeira grande obra, o Tractatus Logio-Philosophicus, contém uma espécie de Filosofia da Linguagem ideal, tendo sido escrito enquanto ele serviu como voluntário, durante a Primeira Guerra Mundial (COSTA. Filosofia Analítica, p. 52). 32 O livro trata dos problemas filosóficos e mostra – creio eu – que a formulação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem (WITTGENSTEIN. Tractatus LogicoPhilosophicus, p. 131). 15 possível falar deles: “Por outro lado, a verdade dos pensamentos aqui comunicados pareceme intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas”33. Esta afirmação será melhor estudada no próximo capítulo deste trabalho. Mas, no final da década de 1920 e início da década seguinte, estimulado por uma diferente concepção de fazer Filosofia, Wittgenstein retorna ao cenário filosófico e, em contraposição ao antigo modo de pensar, desenvolve uma espécie de Filosofia da Linguagem ordinária. Ciente disso e estimulado por uma diferente concepção da maneira como a investigação filosófica poderia ser exercida, Wittgenstein retornou a Cabridge, onde, nos 21 anos seguintes, desenvolveu o que poderíamos classificar como uma espécie de Filosofia da Linguagem ordinária. Embora tenha, nesse período, escrito intensamente, ele não publicou praticamente nada, além do Tractatus. A obra mais importante dessa segunda fase de sua Filosofia leva o título de Investigações Filosóficas.34 Costa se refere aqui a expressão da virada pragmática lingüística desenvolvida e apresentada por Wittgenstein. Este tema será melhor trabalhado nos próximos dois capítulos desse Trabalho de Conclusão de Curso. Nos capítulos II e III dessa pesquisa será apresentada a concepção de linguagem e de seu significado em cada um deles. No primeiro, será apresentada a concepção do Tractatus, com a referida resposta wittgensteiniana. No capítulo seguinte, apresentar-se-á a concepção e a resposta wittgensteiniana que marca sua última concepção e resposta filosófica. A obra mais importante desta segunda fase de sua Filosofia é as Investigações Filosóficas, que será abordada no terceiro capítulo deste trabalho, como oposição ao segundo. No chamado Primeiro Wittgenstein, duas teorias centrais tomam a atenção do autor: a teoria da figuração35 e a teoria da verdade36. Teorias inteiramente identificáveis com as teorias desenvolvidas na primeira vertente da Filosofia Analítica. Seguem uma linha puramente lógica, objetivando purificar a linguagem usual na busca de uma linguagem ideal que servisse como essência e parâmetro para toda e qualquer linguagem. Já no Segundo Wittgenstein – ponto de chegada deste trabalho – percebe-se os claros e 33 Ibid., p. 133. COSTA. Filosofia Analítica, p. 52. 35 “A figuração é um modelo da realidade” (T. 2.12). 36 “A figuração concorda ou não com a realidade; é correta ou incorreta, verdadeira ou falsa” (T. 2.21). “Na concordância ou discordância de seu sentido com a realidade consiste sua verdade ou falsidade” (T. 2.222). “A totalidade dos pensamentos verdadeiros são uma figuração do mundo” (T. 3.01). 34 16 predominantes traços da Filosofia da Linguagem ordinária, que prima pelo uso e contextualização da linguagem37. Nas Investigações, é onde surge a grande novidade da Filosofia moderna da Linguagem. Wittgenstein dá novo ar ao Movimento Analítico ao inserir e desenvolver, no seio de tal movimento, as duas teorias básicas que protagonizam a Reviravolta Pragmática e Metodológica da Filosofia da Linguagem, a saber, a teoria dos Jogos de Linguagem e a teoria das Formas de Vida. É possível dizer que Wittgenstein se mantém dentro da Filosofia Analítica devido à sua característica, comum aos analistas, de centralizar a Filosofia sobre o tema da linguagem e o que realmente ela diz e significa. Vale lembrar que a unidade da problemática wittgensteiniana, que se manteve em torno da linguagem e seu significado, foi o que possibilitou a Wittgenstein oferecer duas respostas a partir do contexto de um único movimento filosófico. Sem ignorar que, talvez, a própria flexibilidade do Movimento Analítico tenha possibilitado Wittgenstein sempre se identificar com uma das correntes do mesmo movimento. O empreendimento wittgensteiniano, iniciado no primeiro capítulo desse trabalho, que apresenta de maneira sucinta a necessidade da contextualização do problema aqui trabalhado, bem como, a contextualização do autor que trabalha tal problema, passando pela menção das duas concepções do autor, será agora seguido em ordem cronológica. Por isso, esse trabalho passa agora, em seu segundo capítulo, a estudar as principais teorias do Wittgenstein do Tractatus, nas quais o autor elabora a primeira resposta, para depois, em oposição a essa, elaborar a segunda resposta38. “A significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (I.F. § 43). “Uma palavra só tem significação no contexto da proposição” (I.F. § 49). 38 “Há quatro anos, porém, tive a oportunidade de reler meu primeiro livro (o Tractatus LógicoPhilosophicus) e de esclarecer seus pensamentos. De súbito, pareceu-me dever publicar juntos aqueles velhos pensamentos e os novos, pois estes apenas poderiam ser verdadeiramente compreendidos por sua oposição ao meu velho modo de pensar, tendo-o como pano de fundo” (WITTGENSTEIN. Investigações Filosóficas, p. 12). 37 17 II – A RESPOSTA DO PRIMEIRO WITTGENSTEIN Conforme Tugendhat, uma maneira de filosofar só pode constituir-se enquanto posição filosófica fundamental na confrontação com concepções anteriores de Filosofia. Por isso, refletir sobre os fundamentos não seria apenas um ato adicional de autoentendimento, mas uma condição para a autenticidade da Filosofia. Autenticidade que exige da Filosofia a busca de métodos e conceitos fundamentais existentes para, a partir destes, desenvolver outros novos39. Acredita-se que Wittgenstein, embora negue a tradição, deva ser estudado a partir da problemática filosófica que marcava o período histórico no qual o autor ensaia seus primeiros passos. Uma vez que, pelo menos suas primeiras teorias, como são mencionadas neste trabalho, buscam a aproximação com a precisão científica para reconquistar o crédito que a Filosofia havia perdido devido a comportamentos próprios daquele período e dos períodos que o antecediam. Tal caminho, que no percurso desse empreendimento, é marcado tanto pela autonomia como pela dependência da lógica, é o tema que esse trabalho tratará nas linhas que seguem. Tema que no decorrer de todo o trabalho é regido pela busca do significado da linguagem em Wittgenstein. 2.1 – Os primeiros passos Uma vez delineado o contexto de onde se origina Wittgenstein e seu modo de pensar, agora serão estudadas as teorias centrais que marcam o desenvolvimento do Primeiro Wittgenstein na sua obra Tractatus. O objetivo deste estudo é partir do contexto e da problemática da época de Wittgenstein, trabalhar algumas das principais idéias da 39 C.f. TUGENDHAT. Lições Introdutórias à Filosofia Analítica da Linguagem, p. 11. primeira resposta wittgensteiniana para, então, chegar à segunda resposta do autor, situada nos jogos de linguagem e nas formas de vida do Segundo Wittgenstein. Para tanto, está-se percorrendo o caminho aberto pelo autor, levantando a problemática de sua época, passando pela sua primeira resposta a tal problemática, no intuito de acompanhar e compreender o desenvolvimento de suas respostas. Para refazer tal percurso, inicialmente, serão vistos alguns dados que influenciaram o modo de pensar do autor, para depois passar às principais afirmações contidas no decorrer da obra investigada. Feito isso, o estudo centralizar-se-á nas duas principais teorias do Tractatus, a saber, a teoria da figuração e a teoria da verdade que são as colunas da primeira resposta do autor. A teoria da figuração gira em torno da relação existente entre o mundo, o pensar e o falar40. Tal figuração ocorre em dois momentos. Primeiro o mundo é transformado em pensamento e depois em expressão lingüística. Aqui mundo e linguagem possuem a mesma estrutura interna e externa. A teoria da verdade, como não poderia ser muito diferente, preocupa-se com a verdade ou falsidade das proposições. Aqui existem proposições complexas e proposições elementares. As complexas são verdadeiras quando são verdadeiras as proposições elementares que as compõem41 e, as elementares são verdadeiras quando representam com autenticidade um estado de coisas que existe42. A obra que introduz a ação de Wittgenstein no campo da Filosofia Analítica é o Tractatus, publicado em 1921, durante a Primeira Guerra Mundial, da qual Wittgenstein participou servindo o exército austríaco. No subitem que segue, serão estudados alguns traços característicos da obra e o problema que implica diretamente a busca empreendida por esta monografia, a saber, o problema do sentido da linguagem. Tal problema será visto a partir da teoria da figuração (2.2.1) e da teoria da verdade (2.2.2). A primeira é dependente da relação entre nome e objeto, a segunda depende da verdade das proposições elementares. “Na figuração e no afigurado deve haver algo de idêntico, a fim de que um possa ser, de modo geral, uma figuração do outro” (T. 2.161). 41 “A proposição é uma função de verdade das proposições elementares” (T. 5). “A proposição é a expressão da concordância e discordância com as possibilidades de verdades das proposições elementares” (T. 4.4). 42 “É verdadeira a proposição elementar, então o estado de coisas existe; é falsa a proposição elementar, então o estado de coisas não existe” (T. 4.25). “As possibilidades de verdade das proposições elementares significam as possibilidades de existência e inexistência dos estados de coisas” (T. 4.3). 40 19 2.2 – Sua primeira obra: Tractatus Esta obra, conforme Condé, contém problemas relativos à lógica, linguagem, ontologia, teoria do conhecimento, epistemologia, ética, metafísica e ao místico43. Conforme Wuchterl, a mesma contém uma composição sistemática de pensamentos soltos, que Wittgenstein anotara no decurso de sete anos44. Wittgenstein, no prefácio, diz: O livro trata dos problemas filosóficos e mostra – como creio – que a formulação desses problemas repousa sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem. Poder-se-ia, talvez apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: o que se pode dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar. O livro pretende, pois, traçar um limite para pensar, ou melhor – não para o pensar, mas para a expressão dos pensamentos.45 Nessa passagem, o autor resume a proposta de sua obra. A partir dessa concepção, ele defende, até o final do Tractatus, a teoria de que só pode ser dito algo sobre aquilo do qual se pode sentenciar claramente. Fiel a essa afirmação, no final do mesmo prefácio, com teor de quem atingiu o resultado, Wittgenstein diz ter resolvido todos os problemas: “A verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas”.46 Essa afirmação é a expressão máxima de quem seguiu uma proposta e obteve, de maneira satisfatória, o resultado buscado. Quem continua a leitura depara-se com um Tractatus, que não tem notas de rodapé e quase não cita pensadores clássicos, o que pode gerar interpretações de um Wittgenstein claramente arrogante e prepotente. A verdade é que detalhes desta última afirmação serão assuntos deixados para outras pesquisas; não são tema deste trabalho. O que é bastante clara, embora não seja o objeto principal deste trabalho, é a sistematicidade e rigorosidade na numeração que acompanha a forma caricatural desta obra. As frases que são as proposições lapidares47, em número de sete, recebem numerações próprias. Essas frases, com suas devidas numerações, serão aqui apresentadas com os comentários de Condé, que tenta esmiuçar a idéia central de cada frase ou de cada 43 Cf. CONDÉ. Wittgenstein Linguagem e Mundo, p. 42. Cf. WUCHTERL. Ludwig Wittgenstein. Análise lingüística e terapia. In: FLEISCHER (Org.). História da Filosofia. Filósofos do século XX, p. 63. 45 WITTGENSTEIN. Tractatus Logico-Philosophicus, p. 131. 46 Ibid., p. 133. 47 Proposições lapidares, porque em torno destas idéias principais, expressas por estas sete frases, é desenvolvida toda a primeira teoria Wittgensteiniana. Elas são numeradas por numerais inteiros e desmembradas em sub-numerais que explicitam a idéia principal. 44 20 conjunto delas. Esta interpretação pode até ser um tanto unilateral, mas não foi encontrado outro autor que apresentasse uma análise com semelhante sistematicidade, através da qual fosse possível confrontar as argumentações, que assim se apresentam: 1 – O mundo é tudo que é o caso. 2 – O que é o caso, o fato, é a existência de estados de coisas. Estas duas proposições tratam da concepção ontológica do Tractatus, na qual o mundo não é concebido como a totalidade das coisas, mas sim, dos fatos, sendo um fato a subsistência de estados de coisas. 3 – A figuração lógica dos fatos é o pensamento. A terceira proposição versa sobre a teoria do conhecimento, na qual o pensamento é concebido como uma figuração lógica dos fatos. 4 – O pensamento é a proposição com sentido. 5 – A proposição é uma função de verdade das proposições elementares. 6 – A forma geral da função de verdade é...(a redução de todos os processos da lógica à negação). Da quarta à sexta proposição é abordada a estrutura da linguagem, mesmo que ela venha em primeiro plano para Wittgenstein. No Tractatus, a linguagem é colocada em termos de uma figuração ou imagem do mundo. Mesmo que a preocupação central do Tractatus seja a linguagem, a obra inicia abordando a questão ontológica, ou seja, a concepção de mundo. 7 – Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar. A sétima proposição carrega uma perspectiva transcendental de inspiração kantiana48. Da mesma forma que em Kant, a tentativa é estabelecer um limite ao conhecimento no sentido de definir o que posso conhecer. Em Wittgenstein tal tentativa visa estabelecer um limite ao pensamento e à linguagem. Ambos partem de um objeto de análise e procuram estabelecer suas condições de possibilidade. Em Kant o objeto de análise são os juízos sintéticos a priori, em Wittgenstein a proposição. O Tractatus pergunta e tenta responder “como é possível a proposição?” No entanto, Wittgenstein, contrariamente a Kant, rejeita qualquer possibilidade de proposições sintéticas a priori49. Boa parte da obra destina-se a levar adiante os trabalhos sobre lógica e Matemática fundamental de Frege e Russell. Este trabalho investigará a primeira resposta 48 Cf. CONDÉ. Wittgenstein Linguagem e Mundo, p. 44. 21 wittgensteiniana, da qual é composto o Tractatus, a partir da divisão comum na análise de tal obra, segundo a qual a obra é composta de duas grandes e principais teorias: a teoria da figuração e a teoria da verdade. 2.2.1 – A linguagem e o mundo: teoria da figuração Frege e Russell tentam fortalecer a Matemática para que ela se torne o fundamento de todas as coisas, mas caem em contradições internas, que não serão abordadas aqui. Wittgenstein, por sua vez, busca uma solução para a questão dos fundamentos da Filosofia, por meio de suas descobertas lógicas e gnosiológicas. Mas o importante é que ele colocou a linguagem no centro de suas investigações. Essa é uma das características da Filosofia Analítica50. Mas aqui, Wittgenstein não trata apenas de linguagens matemáticas, lógicas e científicas, como Frege ou Russell. Ele pergunta pelas condições de possibilidade da linguagem. Para isso desenvolve a teoria da figuração. As explicações indicativas apontam para elementos da realidade. Antes de descrever a teoria da figuração é válido relembrar que a questão fundamental de toda a Filosofia wittgensteiniana é a linguagem e o pensamento e este trabalho busca entender a linguagem e a significação em Wittgenstein. No Tractatus, como foi visto, sua intenção fundamental é estabelecer com clareza a distinção entre aquilo que realmente pode ser dito e aquilo do qual logicamente nada se pode dizer. Aqui, segundo Oliveira, a linguagem continua exercendo uma função ocidental51. Função designativoinstrumentalista-comunicativa, segundo a qual a linguagem é reduzida à condição de instrumento que se equipara ao mundo para poder, a partir da isomorfia 52 existente entre ambos, dizer do mundo. Aqui a linguagem continua sendo um simples instrumento de comunicação. Para Wittgenstein, a linguagem figura o mundo e, o mundo, segundo o Tractatus, é a totalidade dos fatos, não das coisas. Os fatos seriam as estruturas complexas, enquanto as coisas seriam simples. Para Wittgenstein, nomes desconexos, fragmentados, tornar-se-iam coisas e não teriam denotação. Só no contexto de uma proposição os nomes possuiriam denotação. É possível relacionar a proposição como fato e os nomes como coisas, para 49 Ibid., p. 47. Cf. WUCHTERL. Ludwig Wittgenstein. Análise lingüística e terapia. In: FLEISCHER (Org.). História da Filosofia. Filósofos do século XX, p. 64. 51 Cf. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 95. 52 Significa mesma forma. 50 22 ilustrar que é a totalidade dos fatos (proposições) que interessam para Wittgenstein e não das coisas (nomes). Qualquer palavra, só possui denotação quando expressa como parte de uma frase. Assim sendo, o sentido de uma frase não é conferido pela associação de sentido contido nas palavras que a formam. Nome e palavra aqui são a mesma coisa, nomes formam proposições, palavras formam frases. Os nomes (palavras) não possuem sentidos, eles só possuem denotação. Por isso, o sentido das palavras é conferido na frase na qual estão incluídas. “Só a proposição tem sentido; é só no contexto da proposição que um nome tem significado” (T. 3.3). Aqui, a novidade, em relação à tradição, é que se passa a priorizar a frase (proposição) ao invés das palavras (nomes) independentes. Agora a perspectiva da relação está em primeiro plano. O que não significa que para as proposições terem sentido não seja necessário que os nomes possuam, antes, a possibilidade de denotarem objetos. “O nome substitui, na proposição, o objeto” (T. 3.22). Aqui entra o atomismo de Wittgenstein. Uma proposição só tem sentido se os nomes contidos nela puderem, em princípio, estabelecer com os objetos do mundo uma relação. Quando isso não acontece, as proposições resultam em falsidade. Conforme Oliveira, é importante ter claro que Wittgenstein traduz o “mundo” como “fato”.53 Por isso, distingue a categoria “fato” da categoria “estado de coisas”. Em tal distinção, é possível dizer que o “fato” seria um estado de coisas existente, enquanto “estado de coisas” seria meramente possível. “A estrutura do fato consiste nas estruturas dos estados de coisas” (T. 2.034). A estrutura não é um objeto, mas um tipo de configuração de objetos que só existem num estado de coisas existente, num fato. O mundo, como é conhecido, assim é constituído, porque os objetos assim se relacionam no interior dos estados de coisas. Assim sendo, parece possível afirmar que se os mesmos objetos se relacionassem de formas diferentes, diferentes estados de coisas, fatos e conseqüentemente mundos seriam possíveis. A partir da teoria da figuração percebe-se que o problema fundamental de Wittgenstein é a relação existente entre o mundo e o pensar. Ele compreende essa relação como figuração. Seria uma adequação entre o pensar e o real. Mas, dessa adequação, podem surgir questões como: em que sentido e até quando o real corresponde ao pensar? É 53 Cf. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 97. 23 possível pensar uma correspondência entre dois campos diversos? A teoria da figuração pretende ser uma resposta a tais questões. Conforme Oliveira, para Wittgenstein, tal figuração do mundo é feita em dois momentos. Em primeiro lugar, o mundo é transformado em pensamento e depois em expressão lingüística, mesmo que tais momentos estejam intimamente associados. Porque não se deve entender o mundo, a expressão ou imagem como uma reprodução sensível do pensamento54. Isso tornar-se-ia possível porque, de acordo Wuchterl, nas configurações lingüísticas encontra-se uma estrutura lógica que corresponde àquela que se encontra nos fatos55: estruturas isomórficas56. “O mundo dos fatos, o mundo dos pensamentos sobre os fatos e o mundo da linguagem encontram-se numa relação de configuração (ou reprodução), que não é reprodução fotográfica, porém no sentido de configurações (representações) matemáticas de estruturas. Exemplo: um disco é reprodução de uma partitura. Numa linguagem, também, a gente capta os fatos. Mas isso não ocorre por meio de uma linguagem cotidiana. Mas somente no âmbito de uma linguagem lógica artificial, que está na base das linguagens cotidianas como uma espécie de gramática profunda”. O falar é significativo quando configura fatos. Para Wittgenstein, a correspondência entre mundo e pensamento só é possível quando ambos têm algo em comum (T. 2.161; 2.17). Tal identidade que permite a correspondência, seria a da forma lógica que Wittgenstein denomina de forma da realidade (T. 2.18). Esta identidade, que deve ser estrutural, possibilita a figuração. Os objetos podem pertencer a mundos diversos, mas sua configuração é a mesma. Quando “A” reproduz adequadamente a estrutura de “B”, “A” deixa de ser uma coisa e passa a ser uma configuração de coisas, um fato. No Tractatus, “B” seria o mundo real, “A” seria o mundo dos pensamentos certos a respeito da realidade. A figuração verdadeira deve possuir uma correspondência isomórfica, isto é, deve haver uma identidade de estrutura interna e externa. Na figuração dos fatos, seus elementos correspondem aos objetos (T. 2.13). “Os elementos da figuração substituem nela os objetos” (T. 2.131). 54 Cf. Ibid., p. 101. Cf. WUCHTERL. Ludwig Wittgenstein. Análise lingüística e terapia. In: FLEISCHER (Org.). História da Filosofia. Filósofos do século XX, p. 65. 56 Significa estruturas que possuem a mesma forma. Neste caso, a mesma forma, tanto externa quanto interna. (Cf. Apud. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 104). 55 24 Para Wittgenstein, o problema da verdade está relacionado à justa identidade estrutural entre o mundo dos fatos e o mundo do pensamento. A verdade existe quando a estrutura do pensamento corresponde à estrutura do mundo. A dificuldade de tal teoria estaria na impossibilidade de comparar conteúdos intelectuais com coisas reais. Contudo, para o autor, não há problema, pois as relações do mundo real não são relações objetais, mas de ordem lógica, tanto quanto as relações do pensamento (T. 2.032). Assim sendo, a verdade nada mais é do que a identidade das estruturas das coisas (mundo real) e do pensamento. Tal forma de identidade, Wittgenstein chama de “forma lógica”. O pensamento significativo está intimamente relacionado à lógica, como será possível ver neste próximo item. Uma vez vista a teoria da figuração, passar-se-á agora à forma lógica que aparece de maneira bastante próxima à teoria da verdade. Lembrando que a intenção é fazer destas passagens um caminho que possibilite um contraponto para a profunda mudança metodológica que será apresentada no terceiro capítulo. 2.2.2 – A linguagem lógica e o sentido: teoria da verdade Como foi visto, a figuração da realidade pressupõe algo comum entre a figuração e o figurado que Wittgenstein denominou “forma lógica”. É possível dizer que a forma lógica é aquilo que possibilita qualquer figuração, mas, ela mesma, não pode ser figurada. “A figuração pode afigurar toda a realidade cuja forma ela tenha” (T. 2.171). “Sua forma de afiguração, porém, a figuração não pode afigurar; ela exibe” (T. 2.172). A identidade de estruturas é a condição de possibilidade da afiguração. Porém, para Wittgenstein, a forma lógica não pode se tornar conteúdo de uma figuração. “O lógico é pressuposição e, portanto, não figurável”57. A forma lógica é aquela que rege a formulação e confere significado para qualquer proposição que tenha sentido. A proposição pode representar toda a realidade, mas não pode representar o que deve ter em comum com a realidade para poder representá-la – a forma lógica. Para podermos representar a forma lógica, deveríamos poder-nos instalar, com a proposição, fora da lógica, quer dizer, fora do mundo.58 Para Wittgenstein, tudo o que se pode dizer do mundo é objeto das ciências naturais, as quais podem formular claramente seus conhecimentos. Da lógica não se pode 57 58 OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 109. T. 4.12. 25 dizer nada, porque para dizer dela é necessário que se esteja fora dela e todo o dizer, que diz, diz de dentro de uma forma lógica. Para Wittgenstein, uma frase complexa é verdadeira quando são verdadeiros seus componentes, que são as frases elementares. É possível dizer que, para Wittgenstein, a linguagem é apenas uma descrição do mundo: “A realidade total é o mundo” (T. 2.063). A proposição figura a realidade. “A proposição é um modelo da realidade tal como pensamos que seja” (T. 4.01). A proposição ou é verdadeira ou é falsa: “Na concordância ou discordância de seu sentido com a realidade consiste sua verdade ou falsidade” (T. 2.222). É verdadeira, se exprime um estado de coisas como realmente ele é. “Entender uma proposição significa saber o que é o caso se ela for verdadeira” (T. 4.024). Ela é verdadeira, quando exprime um estado de coisas que objetivamente existe. Uma proposição tem sentido quando comporta a possibilidade de ser reconhecida como verdadeira ou falsa. Ela tem sentido quando apresenta condições de ser verificada. A proposição que tem sentido é essencialmente descritiva: é a articulação de uma constatação. A linguagem é a tematização de constatações. Por meio dela descreve-se os eventos que acontecem no mundo; o mundo mesmo é indizível. Da forma da linguagem não se pode falar. Para falar da forma da linguagem seria necessária uma metalinguagem e para o Wittgenstein do Tractatus ela não é possível. Neste ponto, Wittgenstein, como afirma no prefácio, está convencido de que os problemas filosóficos estariam, de vez, resolvidos. E que “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (T. 7). Cala-se e só retorna a falar quando expressa, nas Investigações Filosóficas, sua nova concepção de Filosofia. Este parágrafo e os próximos dois marcam, no presente trabalho, os passos iniciais rumo à virada lingüística protagonizada pelo autor aqui estudado. Passagem que implica a divisão metodológica da Filosofia do autor em Primeiro e Segundo Wittgenstein. Divisão e conceituação, aqui trabalhadas de maneira bastante resumida e ciente da distância implicada entre a capacidade de apresentação feita por este trabalho e a amplitude da obra wittgensteiniana, em sua grande maioria desconhecida por grande parte dos estudantes de Filosofia59. A análise empreendida por este trabalho é regida pelo problema da significação 59 Sabe-se que a única obra filosófica publicada por Wittgenstein foi o Tractatus, em 1921. Todas as outras publicações, que abrangem umas trinta mil páginas até hoje não foram integralmente publicadas (Cf. WUCHTERL. Ludwig Wittgenstein. Análise lingüística e terapia. In: FLEISCHER (Org.). História da Filosofia. Filósofos do século XX, p. 62). Wittgenstein escreveu, entre 1932 e 1934, um grade manuscrito que só foi publicado, em inglês, em 1974 e em português em 2002. Esta obra, intitulada Gramática Filosófica 26 da linguagem que vem da tradição e perpassa o Primeiro e o Segundo Wittgenstein. Tal análise objetiva trazer para o meio acadêmico a discussão acerca da importância da compreensão do significado lingüístico, que perpassa as correntes filosóficas mais recentes. Até agora foi possível apresentar, de maneira bastante resumida e simples, o contexto de onde Wittgenstein toma forças para apresentar sua primeira resposta a problemática de sua época. Contexto filosófico no qual a Filosofia havia perdido seu crédito para as ciências naturais, despertando assim o surgimento da Filosofia Analítica que se desenvolve a partir da aproximação com o campo científico. Este movimento filosófico toma o ambiente de crises do qual ele é fruto e, em tal ambiente, protagoniza inúmeras e variadas re-propostas, que são marcadas pelo rigor científico acerca do problema da Filosofia da Linguagem60. Dentre as propostas analíticas, surge a Filosofia da Linguagem wittgensteiniana marcada pelas duas fases mencionadas, a do Tractatus e a das Investigações. Até aqui foi vista a primeira fase, a partir das duas teorias predominantes na Filosofia do jovem Wittgenstein, a saber, a teoria da figuração e a teoria da verdade. Nesta fase, Wittgenstein responde à problemática do significado da linguagem, afirmando que tal significado é conferido à linguagem na relação entre nome e objeto. No próximo capítulo, será apresentada a segunda resposta do autor à mesma problemática. A segunda resposta será vista a partir das Investigações Filosóficas, obra marcada pela teoria dos jogos de linguagem e das formas de vida. seria de suma importância para este trabalho, uma vez que um de seus temas aborda diretamente o sentido da proposição” (Cf. GRAYLING. Wittgenstein, p. 87). 60 C.f. D’AGOSTINI. Analíticos e Continentais, p. 289. 27 III – A RESPOSTA DO SEGUNDO WITTGENSTEIN Após apresentar as linhas gerais das duas correntes analíticas em que estão radicadas as duas respostas filosóficas de Wittgenstein: a corrente da linguagem ideal e a corrente da linguagem ordinária, partiu-se da corrente da linguagem ideal para apresentar a primeira resposta wittgensteiniana, a qual é composta pela teoria da figuração e pela teoria da verdade, que remetem a linguagem ao objeto a fim de conferir-lhe a significação. Neste capítulo, partir-se-á do Wittgenstein situado na corrente da Filosofia ordinária, segundo a qual, no interior do próprio jogo de linguagem, alojado numa forma de vida, a linguagem adquire seu significado. Nesta altura da pesquisa, o objetivo deste Trabalho de Conclusão de Curso, é decifrar parâmetros que possibilitem a apresentação da segunda resposta wittgensteiniana à problemática da significação da linguagem. Como foi visto no capítulo anterior, Wittgenstein encerra o Tractatus afirmando que sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar. E assim o fez. Desde 1921, ano em que sua primeira obra foi publicada, até o final daquela década, Wittgenstein silencia. Durante este período e depois, o autor revê, retoma, corrige e refaz o que tinha pensado e afirmado. A respeito disso, Stegmüller afirma que Wittgenstein “passo a passo, constitui uma nova Filosofia. Não a ergueu sobre as ruínas de sua Filosofia anterior, mas buscou novo terreno e novos elementos”.61 Esse mesmo comentador, a exemplo de vários outros, menciona a existência de duas filosofias wittgensteinianas, o que é difícil dizer que não seja verdade. Pois como se percebe, e já foi visto, a problemática fundamental continua a mesma. No entanto, tal problemática é agora, na segunda fase do pensamento wittgensteiniano, abordada de forma 61 STEGMÜLLER. A Filosofia Contemporânea, p. 430. radicalmente diversa da primeira. De tal modo que se torna explícita a diferença entre ambas as concepções de abordagem da mesma problemática, que resultam em respostas também diferentes. Tal percurso e conclusões resultam na publicação intitulada Investigações Filosóficas, cuja obra é, a partir de agora, o cenário de pesquisa do trabalho que aqui se apresenta. O Wittgenstein desta segunda fase critica radicalmente a tradição filosófica ocidental da linguagem sintetizada no Tractatus. O itinerário filosófico da segunda fase desse autor será aqui trabalhado a partir das que são julgadas como que principais colunas de sustentação de sua nova imagem lingüística, a saber: a ruptura com a tradição e com Tractatus e a superação de ambos. Isso resulta nos Jogos de Linguagem, por meio dos quais é apresentada uma nova imagem da linguagem, agora examinada enquanto situada em determinado contexto. A tais contextos Wittgenstein chama de formas de vida, que seriam uma espécie de contexto dado onde acontecem os jogos de linguagem. 3. 1 – A ruptura wittgensteiniana: superação da tradição e do Tractatus Mesmo que o problema central da Filosofia wittgensteiniana permaneça o mesmo, a obra de sua segunda fase encontra-se em fundamental oposição com a da primeira. No Tractatus, Wittgenstein convenceu-se de ter solucionado todos os problemas da Filosofia. No prefácio de tal obra afirmou: “é de minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas”.62 Para aquilo de que se podia falar ele já pensava ter encontrado todas as respostas e, diante daquilo de que não se podia falar, sentenciou que deveria se calar. Por coerência lógica, ou não, assim ele agiu. Calou-se até o final de década de 1920 e início da década seguinte. Ao aproximar-se do início da década de 1930, Wittgenstein começou a expressar sua lenta e dolorosa transformação, que o acompanhou até o fim de sua vida. O itinerário desta nova fase de sua Filosofia, como foi visto, é expresso nas Investigações Filosóficas, obra chave do Segundo Wittgenstein. Agora, nas Investigações, como auto-crítico, ele submete todo o seu pensamento anterior a uma rigorosa crítica. Tal mudança não deixou de atingir seu modo de apresentar 62 WITTGENSTEIN. Tractatus Logico-Philosophicus. Prefácio, p. 133. 29 as novas idéias. No Tractatus, havia uma certa ordem e um certo concatenamento dos passos de exposição, um tanto próprio da lógica analítica. Nas Investigações Filosóficas, como diz Oliveira, parece ser feita uma espécie de reflexão em voz alta. Aqui é difícil encontrar um fio condutor. Mais parece uma apresentação desordenada de idéias. O que dificulta a inteligibilidade e interpretação da mesma. Deixando a impressão de ser uma reação à primeira fase, aqui o pensamento de Wittgenstein é exposto de maneira bem anti-sistemática. Isso faz com que a interpretação do Segundo Wittgenstein, além de não ser fácil, necessite ser conduzida de acordo com uma linha cuidadosa, para que possibilite responder, pelos menos em parte, às finalidades de cada pesquisa. Conforme Oliveira, interpretar essa fase de Wittgenstein é ir contra ele mesmo, uma vez que é necessário sistematizar o pensamento que por ele não foi sistematizado e até deixa transparecer uma antipatia com uma possível sistematização. Este trabalho incorrerá na necessidade de andar, de certa forma, na “contra-mão” de Wittgenstein. Pois se trata aqui de tentar explicitar, de maneira inteligível, a superação do antigo modo de conceber a linguagem e, principalmente, o novo significado de linguagem para Wittgenstein. Isso desafia o próprio trabalho a não perder de vista a problemática que o mesmo aborda, sob risco de incorrer na mesma falta de sistematização e clareza da apresentação do pensamento do Segundo Wittgenstein. Tal forma de conduta exige uma sólida delimitação do problema, o que pode fazer com que a pesquisa pareça limitada por uma “camisa de força”. Por isso, será aqui dada continuidade à descrição da teoria da linguagem, que é o problema central de toda esta pesquisa. A pesquisa centrar-se-á agora no problema lingüístico visto a partir de sua concepção objetivista e espiritual. Tal teoria será abordada contrapondo a antiga com a nova concepção de linguagem. 3. 1. 1 – Teorias objetivista e espiritual da linguagem A teoria da linguagem tradicional, agora combatida veementemente por Wittgenstein, é aqui apresentada em duas concepções. A primeira delas é bem explícita, no capítulo anterior, no qual foi abordada a linguagem no Tractatus. Refere-se à concepção de linguagem como simples designadora de objetos. Por isso, concepção objetivista. A segunda concepção a ser combatida, também encontrada no Tractatus, é a concepção que defende a existência de uma dimensão espiritual presente na linguagem. Tal dimensão teria a função de conferir significado ao ato de falar. 30 3. 1. 1. 1 – Concepção objetivista A concepção instrumentalista da linguagem reduz a mesma à mera função designativa. Conforme Oliveira, desde o Crátilo, de Platão, a linguagem é considerada como instrumento secundário do conhecimento humano63. A relação existente entre o mundo e a linguagem seria uma relação de caráter designativo. O significado das palavras seria relativo à capacidade que as palavras teriam em designar objetos. Esta concepção tradicional, segundo a qual, para saber a significação de uma palavra qualquer seria necessário saber o que por ela era designado; Wittgenstein chama de “concepção agostiniana”64. Nesta concepção, a linguagem é vista como uma mediação necessária. A linguagem exerce aqui a função de comunicar o que já é conhecido sem a linguagem. Ela simplesmente possibilitaria comunicar o resultado do conhecimento humano. E nunca, nem na tradição, nem no Tractatus, era condição que possibilitasse o conhecimento humano. Conforme Oliveira, mesmo que no Tractatus tente-se negar, implicitamente Wittgenstein teria, naquela obra, também aceitado a tese tradicional do caráter secundário designativo da linguagem humana. O que não significa que a partir daqui Wittgenstein negue o caráter designativo da linguagem. Como ele já fazia no Tractatus, ele repudia o exagero da tradição que concebe a designação como principal e até como única função da linguagem. Para o Segundo Wittgenstein essa concepção de linguagem, como designação, faz parte da linguagem. Contudo, não é a linguagem. A linguagem é também isso, mas é mais que isso. Segundo o Tractatus (Teoria da Figuração), a linguagem esgotar-se-ia, atingiria seu ponto máximo, ideal, no momento que ela conseguisse reproduzir com absoluta exatidão a estrutura ontológica do mundo. Tal linguagem buscaria nada mais que atingir a precisão absoluta do caráter designativo das palavras. Mas para isso vai além da dimensão corporal sensível. Busca uma fundamentação transcendental. Apresenta o humano como alguém composto de um corpo que articula a fala e um espírito que confere significado a tal fala, o que resulta no dualismo epistemológico e antropológico que será abordado num dos itens seguintes deste trabalho. 63 64 OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 119. Cf. I.F. § 4. 31 3. 1. 1. 2 – Concepção espiritual O problema aqui é mais enraizado do que se possa, num primeiro contato, imaginar. Conforme Oliveira, a concepção tradicional da linguagem carrega a herança das concepções antropológicas tradicionais. A tradição antropológica sempre se preocupou em estabelecer no mundo os lugares e as características de cada ente segundo a sua essência. Para tal tradição, definir o homem significa distingui-lo dos outros entes, bem como definir sua linguagem significa distingui-la de outras linguagens; da dos animais, por exemplo. Como os animais, bem como outros entes, também produzem sons, o que tornaria a linguagem humana propriamente humana não poderia estar no plano do puramente físico. O que transformaria o puro som em linguagem humana seria o fato de o pensamento humano ser um ato do espírito. O pensar seria uma atividade espiritual, tanto quanto o falar é uma atividade corporal. Esta atividade espiritual, que só o ser humano possui, seria o que conferiria significação ao ato do falar humano. É possível dizer que, conforme Wittgenstein, a linguagem humana tradicional se diferenciaria da linguagem de outros animais por ser composta de duas dimensões: a) atos corpóreos de produção de sons; b) atos corpóreos acompanhados por atos espirituais que lhe conferem significação. Esses atos espirituais seriam privados e só seu produtor teria acesso a eles. Tais atos possibilitariam a linguagem humana, enquanto humana, sendo eles objeto de vivências individuais, sujeitos à vontade dos indivíduos que os produziriam65. O ato de dar significado, bastante falado nas Investigações Filosóficas, teria como principal função, a concessão de sentido ao falar. Com isso, fazer com que o fenômeno físico ultrapasse o plano físico e atinja o plano da significação. E, para a teoria tradicional da linguagem, a significação das palavras provém de um ato subjetivo e interior ao espírito. Aqui, depara-se com o problema da possibilidade da comunicação interpessoal. Para que haja realmente comunicação entre dois indivíduos é necessário que haja uma convenção entre os interlocutores para que o receptor consiga compreender o significado daquilo que o emissor está tentando significar. Compreender é apropriar-se da essência de algo. É o evento espiritual de posse de determinado sentido. Uma vez captado o sentido, o indivíduo se põe em condições de provar se está empregando as palavras de modo justo, se elas se 65 Cf. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 122. 32 adaptam às diversas circunstâncias em questão (I.F. § 140). É a compreensão que possibilita utilizar de maneira correta as palavras. Esta capacidade espiritual (o ter-em-mente) que possibilita falar com significado também possibilita antecipar o futuro, pois quando se dá ordem ou previsão torna-se presente o que deve ser feito depois. Mesmo que meu desejo não determine o que irá ocorrer, ele determina, por assim dizer, o tema de um fato; quer este realize o desejo ou não. Não nos admiramos – por assim dizer – de que alguém conheça o futuro, mas sim de que, de modo geral, possa profetizar (corretamente ou falsamente). Como se a mera profecia, não importa se correta ou falsamente, já antecipasse uma sombra do futuro; enquanto que ela nada sabe sobre o futuro e não pode saber menos que nada (I.F. § 461). Tanto a ordem como a previsão que se tem em mente são atos que se dirigem a seus objetivos independentes de sua existência ou não. São atos intencionais que produzem seus próprios objetos. “O desejo parece já saber o que o satisfaz ou satisfaria; a frase, o pensamento parecem saber o que os torna verdadeiros, mesmo quando isso não se faz presente! Se alguém pudesse ver a expectativa, o processo espiritual, deveria ver o que é esperado” (I.F. §§ 437,452). A mesma coisa acontece em referência às recordações. “Mas você não pode negar que, por exemplo, ao recordar, ocorre um processo interior. Quando se diz ‘ocorre aí um processo interior’, - quer-se acrescentar: ‘você o vê’. E é pois a este processo interior que nos referimos com a palavra ‘recordar-se’” (I.F. § 305). Aqui a recordação presentifica o passado e é responsável no processo de comunicação intersubjetiva. Só que estas recordações, ordens e previsões, por serem frutos do ter em mente, são frutos de um ato privado e, portanto, como diz Apel, incorrem em um solipsismo epistemológico66. A filosofia tradicional da linguagem abstrai de sua sociabilidade o caráter constitutivo dessa sociabilidade. A comunidade concreta não exerce nenhuma função na constituição desta linguagem, apenas no seu uso. Por isso que para o Segundo Wittgenstein, a tradição tem uma concepção subjetiva e individualista da linguagem, porque considera as convenções e regras lingüísticas como dados imediatos da intuição do sujeito falante e não como uma construção socializada. Nesta segunda fase, Wittgenstein repudia a concepção individualista do conhecimento e da linguagem e o dualismo epistemológico e antropológico. Ao lado de 66 Cf. Apud. Ibid., p. 124. 33 Heidegger, torna-se um dos grandes críticos da Filosofia da subjetividade. Como pano de fundo do pensamento de Wittgenstein estão os pressupostos que fundamentam a sua concepção de Filosofia que deve tratar as questões filosóficas como se trata uma doença (I.F. § 255). A causa principal das doenças filosóficas é a atitude de alimentar o pensamento apenas com uma espécie de exemplos (I.F. § 593). Enquanto a Filosofia deve resolver os problemas por meio da combinação do que já é conhecido, sem desenvolver nenhuma espécie de teoria. Não deve haver nada de hipotético nas considerações. Toda a explicação deve desaparecer e ser substituída apenas por descrição (I.F. § 109). Aqui a intenção não é criar regras nem complementar nada. A intenção é fazer com que os problemas filosóficos desapareçam completamente (I.F. § 133). E isso não se faz por meio da elaboração de teorias e hipóteses (I.F. § 10). Mas simplesmente mostrando o verdadeiro emprego das palavras. A Filosofia apenas constata o que ocorre (I.F. § 126). Aqui o que importa é ver, não demonstrar, fundamentar. A Filosofia deixa tudo como está (I.F. § 124). “A Filosofia não deve, de modo algum, tocar no uso efetivo da linguagem” (I.F. § 124). “A Filosofia simplesmente coloca as coisas, não elucida nada e não conclui nada” uma vez que o que interessa não está oculto, encontra-se à vista (I.F. § 126). A Filosofia é uma recordação do uso das palavras, “uma consideração gramatical” (I.F. § 90). O método da explicação é substituído por um método por meio de exemplos (I.F. § 133). Assim sendo, a Filosofia não é a tematização do a priori, mas um método a posteriori. Wittgenstein situa o homem e seu conhecimento no processo de interação social. A relação entre conhecimento e ação, linguagem e práxis é considerada a constituidora do conhecimento e da linguagem humana. 3. 1. 2 – Crítica à teoria objetivista e espiritual da linguagem Como é apresentado até aqui, as concepções objetivista e espiritual da linguagem, que fazem parte da Filosofia tradicional e da primeira obra wittgensteiniana, que tinha pretensão de ter oferecido a resposta definitiva a todos os problemas, ressurgem povoadas de inúmeras interrogações, limitações e parcialidades. O Segundo Wittgenstein combate e destrói concepções que aqui se apresentam como problemáticas e que acompanharam um longo trajeto da concepção de linguagem em Filosofia. Tais como o essencialismo e o subjetivismo, que reduziram a linguagem a um patamar secundário parcial e instrumental. Nos dois sub-itens, que seguem após este, abordar-se-á, num primeiro momento a parcialidade da concepção instrumentalista, segundo a qual a linguagem seria reduzida a 34 um simples instrumento de comunicar aquilo que é conhecido por outros vieses, menos pela linguagem. Num segundo momento, será possível acompanhar, resumidamente, a tentativa de superação de um dualismo tradicional, segundo o qual a linguagem seria composta de duas realidades, a saber, de atos corpóreos e de atos espirituais. Retornará, neste item que será visto, a questão dualista composta pelo ato de falar e pelo ato de conferir significado ao falado. 3. 1. 2. 1 – A parcialidade da concepção instrumentalista Segundo Oliveira, a maior parte das Investigações Filosóficas é constituída pela crítica wittgensteiniana à teoria objetivista da linguagem. Como foi visto no capítulo anterior, a tradição concebe a linguagem como instrumento secundário de comunicação daquilo que o humano conhece do mundo. Conforme Wittgenstein, a tradição concebia esta, senão como única, a mais importante função da linguagem. Nessa segunda concepção da Filosofia wittgensteiniana o autor diz que por meio da linguagem é possível fazer muito mais coisas do que simplesmente designar o mundo. No parágrafo 23 das Investigações Filosóficas, Wittgenstein elenca uma lista contendo algumas das possíveis atividades humanas realizáveis pela linguagem. Comandar e agir segundo comandos – Descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas – Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho) – Relatar um acontecimento – Conjeturar sobre o acontecimento – Expor uma hipótese e prová-la – Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas – Inventar uma história; ler – Representar teatro – Cantar uma cantiga de roda – Resolver enigmas – Fazer uma anedota; contar – Resolver um exemplo de cálculo aplicado – Traduzir de uma língua para outra – Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar (I.F. § 23). Ao apresentar parte de uma possível listagem das atividades lingüísticas, Wittgenstein condena a atitude da tradição que teria cegado a linguagem ao reduzir sua função à mera designação de objetos. Tal atitude teria impossibilitado todas as demais perspectivas e funções possíveis além da de designar o mundo. A teoria objetivista da linguagem é de caráter reducionista, uma vez que reduz todas as funções da linguagem a uma única função, ignorando essas, acima citadas, e tantas outras. Outra pressuposição tradicional que Wittgenstein combate agora é a que firma ser o conhecimento humano algo não lingüístico. No segundo Wittgenstein não existe um mundo em si independente da linguagem. O mundo só existe na linguagem; nunca se 35 chega ao mundo em si, imediatamente, sempre por meio da linguagem (I.F. §101-104, 380, 379, 384). Conforme Apel, citado por Oliveira, aqui a linguagem não é mais um simples instrumento de comunicação de um conhecimento já realizado. Ela é, antes, a condição de possibilidade para a constituição do próprio conhecimento enquanto tal67. Segundo Oliveira, com isso se afirmaria, contra a Filosofia moderna, que não há consciência sem linguagem e a pergunta, de caráter transcendental, pelas condições de possibilidade do conhecimento humano não seria respondida sem uma consideração da linguagem humana. Contrário ao que se pensava na Filosofia tradicional objetivista, segundo a qual as significações seriam frutos da relação entre palavra e realidade68. Lá, a linguagem teria um caráter transcendental que possibilitaria a mediação para que as coisas fossem conhecidas. Aqui é combatida a teoria da figuração do Tractatus, segundo o qual existiria uma isomorfia entre linguagem e realidade para possibilitar a designação de um objeto. Para tal teoria seria necessário que a significação das expressões lingüísticas fossem o próprio objeto designado ou sua essência. Para o Segundo Wittgenstein, o primeiro problema, da tradição e do Tractatus, reside no fato de que a significação de um nome é confundida com o portador de tal nome. Quando o Sr. Apolônio Morre, morre o portador do nome Apolônio e não sua significação (I.F. § 40). Tal problema se evidencia no momento que se percebe a possibilidade de formar frases com sentido, utilizando os nomes, mesmo que seus portadores já hajam desaparecido. Poder-se-ia agora dizer que o nome teria uma essência que o possibilitaria continuar existindo independentemente do seu portador. Mas, para o Wittgenstein das Investigações Filosóficas, não há essência comum entre as coisas: Em vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que não há uma coisa comum a esses fenômenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra, - mas sim que estão aparentados uns com os outros de muitos modos diferentes. E por causa desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de “linguagens” (I.F. § 65). O que existe são “semelhanças de família” entre os conceitos. Nas Investigações, o problema do esclarecimento dos conceitos, para que a linguagem deixe de ser a origem de mal-entendidos, continua no centro da Filosofia wittgensteiniana, mas, nessa obra, é 67 68 Cf. Ibid., p. 128. Ibid., p. 128. 36 superada a concepção da figuração que, no Tractatus, se dava de maneira isomórfica, para a qual a linguagem comportava de maneira essencialista uma necessidade de buscar no objeto sua referência de significação. O Segundo Wittgenstein apresenta as semelhanças de família como superação do essencialismo. Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogo”. Refiro-me a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos, etc. O que é comum a todos eles? Não diga: ‘Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam ‘jogos’, - mas veja se algo é comum a eles todos. – Pois, se você os contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. Como disse: não pense, mas veja! – Considere, por exemplo, os jogos de cartas: aqui você encontra muitas correspondências com aqueles da primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem e outros surgem. Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa comum se conserva, mas muitas se perdem (I.F. § 66). Nesta sua segunda resposta, Wittgenstein tenta provar que a afirmação tradicional de que há algo comum não passa de uma idéia que não resiste a um exame dos fatos. Na realidade, há semelhanças e parentescos entre os diversos tipos de jogos. Eles não possuem uma propriedade, mas elementos que se interpenetram. Por isso, o uso das palavras não têm fronteiras definitivas. Como foi visto, para a tradição ocidental, a definição de algo significa o seu lugar e o seu fim no mundo real, suas fronteiras e seus limites, e isso era definitivo. Aqui a significação dos conceitos universais não é unitária. Não permanece necessariamente onde está hoje. É possível ser aplicada em novos e diferentes casos. A significação da palavra não mais está estabelecida de modo definitivo: Quando se diz: ‘Moisés não existiu’, isto pode significar diferentes coisas. Pode significar: os israelitas não tiveram nenhum chefe quando deixaram o Egito – ou: não existiu nenhum homem que tivesse realizado tudo o que a Bíblia narra de Moisés – ou etc., etc. – Segundo Russell, podemos dizer: o nome ‘Moisés’ pode ser definido por meio de diferentes descrições. Por exemplo, como: ‘o homem que guiou os israelitas através do deserto’, ‘o homem que viveu naquele tempo e naquele lugar e que naquela época foi chamado Moisés’, ou ‘o homem que em criança foi retirado do Nilo pela filha do Faraó’, etc. E, dependendo da definição que consideremos, a frase ‘Moisés existiu’ recebe um sentido diferente, e do mesmo modo qualquer outra frase que se refira a Moisés (I.F. § 79). O fato de não ser possível conhecer, de modo definitivo, todos os casos de aplicação de uma palavra não significa que ela não tenha sentido. Se em tal determinação não há a exatidão almejada pela linguagem ideal do Tractatus, não significa que ela não possua sentido. O Tractatus, mesmo que distinguisse a Filosofia da ciência, ainda entendia a Filosofia como uma atividade científica destinada a dar explicações. Sua finalidade era 37 chegar a uma análise última das formas de linguagem. Aqui, a proposta é superar os preconceitos e o essencialismo tradicional. Na construção de tal superação, a primeira atitude wittgensteiniana é a de abandonar o ideal de exatidão da linguagem. Tal ideal não passaria de um mito filosófico. Seria um ideal de exatidão completamente desligado das situações concretas do uso da linguagem. Tal ideal careceria de qualquer sentido (I.F. § 88). Aqui, é impossível determinar a significação das palavras sem uma consideração do contexto socioprático em que são usadas. É o uso no contexto que mostra se as palavras estão ou não significando. No entanto, esta linguagem, de certo modo, é ambígua por não possuir uma significação definitiva. Sem aplicá-la a um determinado uso não se detecta qual é o sentido dela. Mas, conforme Oliveira, pretender abandonar esta ambigüidade em busca de uma exatidão absoluta, como fazia o Tractatus, seria abandonar a própria linguagem real na busca de uma ilusão metafísica. Para evitar qualquer ambigüidade seria necessário estabelecer conceitos embasados em significações estabelecidas de modo definitivo. O que se pode é diminuir a vaguidade dos conceitos. Agora, eliminá-los seria cair numa determinação a priorística, que estabeleceria regras para todos os casos69. Aqui a proposta visa o contrário: os conceitos são essencialmente abertos e admitem a possibilidade de aplicação a casos não previstos. Conforme Oliveira, aqui nas Investigações, o ideal do Tractatus de uma linguagem perfeita torna-se absurdo. Torna-se a razão da reviravolta metodológica de Wittgenstein. O Segundo Wittgenstein não ignora o sentido de uma linguagem exata, construída artificialmente. Ela continua como instrumento importante para a ciência natural. O que não se pode aqui é continuar considerando-a como paradigma lingüístico. Agora, a função designativa da linguagem torna-se apenas uma das tantas possíveis funções da mesma. É a partir da própria linguagem que se descobre como ela, de fato, é usada. O centro das investigações deixa de ser a linguagem ideal e passa a ser a situação na qual o humano usa a sua linguagem. Para saber o que é linguagem deve-se ver seus diferentes usos. Ao alojar a linguagem dentro da situação em que ela ocorre, Wittgenstein percebe que cada forma de linguagem vai fazendo parte da totalidade da vida humana. Ela se torna parte da atividade humana. A isso, como será melhor analisado na seqüência, ele chama de 69 Cf. Ibid., p. 131. 38 forma de vida: “O termo jogo de linguagem deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (I.F. § 23). Por isso, a significação das palavras só pode ser esclarecida por meio do exame das formas de vida, ou seja, dos contextos em que estas palavras ocorrem. É o uso que decide a significação das expressões lingüísticas. “Todo o signo sozinho parece morto. [...] No uso, ele vive” (I.F. § 432). “[...] a significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (I.F. § 43). Só se pode entender a linguagem humana a partir do contexto em que os humanos se comunicam entre si. Aprender uma linguagem significa um certo ajustamento, uma capacitação de domínio de uma técnica (I.F. § 30). Cada situação exige um ajustamento específico. Cada prática lingüística exige uma adaptação. Toda a prática lingüística tem um sentido em si mesma. Em si ela é perfeita. Ela tem o sentido em si mesma e não necessita buscar tal sentido em algo transcendental (linguagem ideal). Ao invés de apelar para uma linguagem ideal, para conhecer a linguagem basta observar o funcionamento da linguagem concreta dos humanos. O papel da Filosofia é descrever os diferentes usos da linguagem, sem tentativas de justificação ou explicação. Ela deve apenas ver e deixar tudo como é. “A Filosofia não deve, de modo algum, tocar no uso efetivo da linguagem; em último caso, pode apenas descrevê-lo. Pois também não pode fundamentá-lo. A Filosofia deixa tudo como está” (I.F. § 124). Os problemas filosóficos surgem quando os filósofos resolvem dar explicações e abusam da linguagem. Por isso, que a Filosofia não deve ir além de descrever o que acontece. Sua função deve ser terapêutica. Não devemos construir nenhuma espécie de teoria. Não deve haver nada de hipotético nas nossas considerações. Toda explicação deve desaparecer e ser substituída apenas por descrição. E esta descrição recebe sua luz, isto é, sua finalidade, dos problemas filosóficos. Estes problemas não são empíricos, mas são resolvidos por meio de um exame do trabalho de nossa linguagem e de tal modo que este seja reconhecido: contra o impulso de mal compreendê-lo. Os problemas são resolvidos não pelo acúmulo de novas experiências, mas pela combinação do que é já há muito tempo conhecido. A Filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem (I.F. § 109). A função da Filosofia é curar os abusos da linguagem. Por isso, a máxima: “não pense, mas veja!” (I.F. § 66). Agora, depois de constatar e apresentar alguns pontos de divergência entre as duas respostas wittgensteinianas, bem como algumas teorias detectadas como problemáticas na primeira resposta, passar-se-á ao próximo item deste trabalho. No próximo item será apresentada a apreciação de algumas alternativas de 39 superação do dualismo tradicional, visto aqui como principal causa da problemática da primeira teoria da significação. 3. 1. 2. 2 – Superação do dualismo tradicional Como foi visto, Wittgenstein detecta na teoria tradicional da linguagem um dualismo epistemológico que levaria a um dualismo antropológico. Tal dualismo implica uma dupla dimensão da concepção de linguagem. A linguagem seria composta de uma realidade física, produzida por atos corpóreos e uma realidade espiritual interna (dualismo corpo-espírito). Os atos espirituais (internos) seriam os responsáveis pela conferência de significado às palavras. Existiria, então, de forma dualista: a realidade que produz o som e a realidade que confere sentido ao som. Todo o som traria consigo um mecanismo interior, espiritual. As clássicas dificuldades antropológicas causadas pelo dualismo corpo-espírito se manifestam aqui também. De um lado tem-se o falar ou ler, do outro o ter-em-mente70, compreender, pensar. Nesta teoria quem confere significação às palavras são os atos intencionais, internos e espirituais, contrariamente ao Segundo Wittgenstein para o qual o significado das palavras é conferido pelo próprio uso das palavras nos diversos contextos lingüísticos e extralingüísticos, nos quais as palavras são empregadas. Wittgenstein demonstra não ter a intenção de negar a existência de tais atos, mas nega a eles a instância doadora da significação às palavras lingüísticas. Pois ninguém pode arbitrariamente decidir significar com uma palavra algo, sem que jamais esta palavra tenha sido utilizada para isso. O que decide o sentido de uma palavra é seu uso real. Não há atos autônomos, desvinculados dos contextos de sentido. É pela práxis contextualizada que a linguagem é compreendida e significada. Na obra wittgensteiniana compreender e significar praticamente se auto-implicam. Para descrever o ato de compreender, Wittgenstein segue o mesmo esquema de trabalho utilizado para ilustrar o ato de significar, já visto neste trabalho. O compreender não designa um ato intencional, a vivência interior de um sentido, mas sim, um saber como se 70 O termo ter-em-mente, como pode ser visto na análise de Spaniol, é carregado de um sentido e uma significação de relevada importância e implicação no entendimento, principalmente, do Segundo Wittgenstein. Só este tema seria de suficiente importância para o desenvolvimento de um trabalho como este que se está apresentando. A consciência de tal importância implica na consciência de que a abordagem deste termo carecerá aqui de maior aprofundamento. O que, infelizmente, deixará a desejar na qualidade deste trabalho, mas por hora, não se tem fôlego para abordar este item à altura que ele merece (Cf SPANIOL. Filosofia e Método no Segundo Wittgenstein, p. 54). 40 faz, um dominar uma técnica. Compreender é ajustar-se a determinada práxis, é inserir-se em determinada forma de vida. Alguém compreende uma palavra quando consegue empregá-la corretamente. O problema que aqui paira é o da relação entre linguagem e vivências interiores. Os intérpretes de Wittgenstein afirmam sua rejeição radical à linguagem privada. Tal linguagem só seria entendida pelo sujeito que a tem. Ela seria expressão das vivências interiores, às quais somente o próprio sujeito teria acesso. Para Wittgenstein, se palavras como “ter dor” denominam algo puramente privado, tais palavras só teriam sentido para o seu sujeito, o que impediria falar da dor de outras pessoas. E, mesmo se fosse possível falar da dor de outros, tal aplicação não teria o valor intersubjetivo, porque não é possível comparar as intersubjetividades de uma pessoa com as de outra pessoa para saber se para uma e para outra a expressão dor tem o mesmo significado, uma vez que elas fossem afecções privadas. Para que fosse possível a existência de uma linguagem privada seria necessário que ela fosse sustentada por regras privadas. Mas, se assim fosse, estas regras não passariam de ficções. Regras privadas seriam o mesmo que impressões de regras. A impressão de seguir uma regra não garante que a regra esteja sendo seguida. Imaginemos uma tabela que exista apenas em nossa imaginação; algo como um dicionário. Por meio de um dicionário podemos justificar a tradução da palavra X para a palavra Y. Mas devemos chamar isto também de justificação, se esta tabela é consultada apenas na imaginação? – “Ora, trata-se então de uma justificação subjetiva”.– Mas a justificação consiste em que se apela a uma instância independente. – “Mas posso também apelar para uma recordação partindo de outra. Não sei (por exemplo) se guardei corretamente o horário da partida do trem e, para o controle, evoco a imagem da página do livro de horários. Não temos aqui o mesmo caso?” – Não, pois esse processo deve verdadeiramente provocar a recordação correta. Se não precisasse comprovar a exatidão da imagem mental do livro de horários, como poderia esta comprovar a exatidão da primeira recordação? (Como se alguém comprasse vários exemplares do jornal do dia, para certificar-se de que ele escreve a verdade.) Consultar uma tabela na imaginação é tão pouco o consultar uma tabela, quanto a representação do resultado de um experimento imaginado é o resultado de um experimento (I.F. § 265). Conforme Stegmüller, o ponto chave da argumentação de Wittgenstein contra a concepção de linguagem privada, estaria na constatação de que uma linguagem privada deveria repousar sobre regras privadas. E o conceito de regras privadas não passaria de uma ficção. Regras privadas não se distinguiriam de impressões de regras. Se alguém tem a impressão de estar seguindo uma regra, nada garante que o mesmo esteja seguindo de fato 41 tal regra, a menos que ele possa fornecer algo que justifique essa impressão. Mas tal justificação deve constar de um apelo a uma área objetiva e independente. Diferente do que é proposto pela concepção de linguagem privada, que se contenta com a justificação puramente subjetiva, a qual não passa de uma impressão71. De acordo com esta concepção de Stegmüller, no parágrafo das Investigações citado, é dito com as palavras do autor o que é tentado, por este trabalho, simplificar nas frases que antecedem a nota. Percebe-se que a argumentação de Wittgenstein está claramente acercada de sua nova concepção de linguagem. Esta perspectiva é constituída a partir do conceito jogo de linguagem, que além de constituir o cerne da nova perspectiva, é regido não mais por regras privadas, subjetivas, mas sim por regras a partir da atividade intersubjetiva. 3. 2 – Jogos de linguagem: a nova imagem de linguagem O centro das Investigações, como foi visto, é o conceito uso. Aqui Wittgenstein privilegia o uso que é feito das palavras e expressões. Não cabe mais a pergunta sobre o que é linguagem. Agora se pergunta como é utilizada a linguagem nos diversos contextos lingüísticos. Quando os filósofos usam uma palavra – “saber”, “ser”, “objeto”, “eu”, “proposição”, “nome” – e procuram apreender a essência da coisa, deve-se sempre perguntar: essa palavra é usada de fato desse modo na língua em que existe? – Nós reconduzimos as palavras do seu emprego metafísico para seu emprego cotidiano (I.F. § 116). O uso cotidiano das expressões, nas diferentes situações e contextos em que elas acontecem, conduz Wittgenstein a formular a noção de jogos de linguagem. Conforme Condé, as Investigações abandonam a concepção de linguagem como cálculo para adotarem a concepção de linguagem como um jogo, abrangendo, com isso, o aspecto pragmático presente na linguagem. A noção de jogo de linguagem envolve o todo das atividades que estão ligadas às expressões. “Chamarei também de ‘jogos de linguagem’ o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está ligada” (I.F. § 7). Os jogos de linguagem são múltiplos e variados. Só possuem em comum certas semelhanças de família. 71 Cf. STEGMÜLLER. A Filosofia Contemporânea. Vol. II, p. 492. 42 Eles estão aparentados entre eles de diversas e diferentes formas e é este parentesco que os possibilita serem denominados jogos de linguagem (I.F. § 65-67). No entanto, o autor não perde de vista sua problemática básica. Sua reviravolta não atinge a pergunta pelo significado das expressões. O problema que o inquieta e para o qual ele oferece uma primeira resposta lógica e uma segunda resposta prática, segue o mesmo do início ao fim de sua Filosofia. O que muda nas Investigações é a metodologia da pergunta, mas o objeto de sua preocupação é o mesmo. Wittgenstein critica agora a teoria objetivista da linguagem na qual inclui-se o Tractatus. Combate, também, a função afigurativa da linguagem, para a qual a mesma seria uma cópia fiel dos fatos no mundo. Lá, a Filosofia enquanto análise da linguagem tinha uma íntima relação com a essência do mundo, embora não pudesse exprimi-la em frases. Aqui é possível afirmar que Wittgenstein nega-se a formular, pelo menos sistematicamente, teorias. Teorias filosóficas passariam a ser frutos de desconhecimentos do funcionamento da linguagem. O que se deve fazer agora não é especular sobre a linguagem para buscar sua estrutura ou essência. Deve-se agora observar como a linguagem funciona, como usamos as palavras. Por isso, agora não se fala de nova teoria da linguagem, mas de nova imagem. A linguagem agora é uma atividade humana como andar, passear, colher... Aqui o conceito de linguagem está muito próximo do conceito de ação. A linguagem chega a ser considerada uma ação. Não mais é separada a consideração da linguagem da consideração do agir humano ou a consideração do agir não mais ignora a linguagem. A linguagem é sempre realizada em contextos de ação bem diversos e só pode ser compreendida a partir do horizonte contextual em que está inserida. A função de tal linguagem, que passa a ser um jogo, depende sempre de cada determinada forma de vida em que acontecem tais jogos. A categoria jogos de linguagem é o centro da nova imagem de linguagem wittgensteiniana. Só que ele não define o que é um jogo de linguagem. Mais que isso, segundo sua nova maneira de pensar, tal definição torna-se impossível. No segundo parágrafo das Investigações o autor chega, no máximo, a apresentar um exemplo do que pode ser um jogo de linguagem. Aquele conceito filosófico da significação cabe bem numa representação primitiva da maneira pela qual a linguagem funciona. Mas, pode-se também dizer, é a representação de uma linguagem mais primitiva que a nossa. Pensemos numa linguagem para a qual a descrição dada por Santo Agostinho seja correta: a linguagem deve servir para o 43 entendimento de um construtor A com um ajudante B. A executa a construção de um edifício com pedras apropriadas; estão à mão cubos, colunas, lajotas e vigas. B passa-lhe as pedras, e na seqüência em que A precisa delas. Para esta finalidade, servem-se de uma linguagem constituída das palavras “cubos”, “colunas”, “lajotas”, “vigas”. A grita essas palavras; - B traz as pedras que aprendeu a trazer ao ouvir esse chamado. – Conceba isso como linguagem totalmente primitiva (I.F. § 2). Tal jogo de linguagem seria composto de três elementos: a) aquilo de que se fala: cubo, coluna, chapa, trave; b) os sujeitos da fala: A e B; c) o contexto: uma construção em que alguém pede os elementos da construção a um auxiliar. A linguagem serve de compreensão entre o construtor e seu auxiliar. Linguagem para Wittgenstein seria essa unidade entre elementos lingüísticos e seus modos de comportamento, conforme cada situação. Nesse simples exemplo estariam contidos todos os elementos que constituem a linguagem72. A partir da análise de situações como esta, Wittgenstein supera a concepção tradicional da linguagem e mostra sua parcialidade. A linguagem não mais trata apenas de designar objetos por meio de palavras. As palavras estão inseridas numa situação global que regra seu uso; neste caso, são regidas pela relação dos objetos da construção. E a relação a tais objetos é resultado da situação de tal construção. Aqui não se pode fazer análise da significação de nenhuma palavra sem levar em consideração o contexto global de vida em que elas estão. A busca da solução do problema central da tradição, do Primeiro e do Segundo Wittgenstein, a saber, o problema da significação, deve levar em consideração os diversos contextos de uso das palavras. Aqui, com os jogos de linguagem, Wittgenstein acentua a afirmação de que cada contexto implica novas regras e novas determinações de sentido para as expressões lingüísticas. Assim sendo, o estudo do sentido das palavras e frases implica o estudo do contexto pragmático de cada uma delas. A consideração lingüística que não atingir o contexto pragmático é abstrata. Neste caso, saber usar corretamente as palavras, ou jogar corretamente, significa saber comportar-se corretamente. Este comportamento é regido por regras gramaticais. 72 Cf. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 138. 44 3. 2. 1. Os Jogos de linguagem seguem regras gramaticais Mesmo que os diferentes tipos de linguagem se dêem por meio da linguagem, são operados de acordo com sistemas de regras diversos. A mistura ou não-consideração desses sistemas diversos faz surgir inúmeros problemas. Uma das fontes de erros em Filosofia consiste, precisamente, em isolar expressões do contexto em que elas surgem. Isso significaria não compreender toda a dimensão da gramática73 da linguagem. Wittgenstein distinguiu dois tipos de gramática. Poder-se-ia distinguir, no uso de uma palavra, uma “gramática superficial” de uma “gramática profunda”. Aquilo que se impregna diretamente em nós, pelo uso de uma palavra, é o seu modo de emprego na construção da frase; a parte do seu uso – poderíamos dizer – que se pode apreender com o ouvido. – E agora compare a gramática profunda da expressão “ter-em-mente” (meinen), por exemplo, com aquilo que sua gramática superficial nos permitiria conjecturar. Não é de espantar que se julgue difícil entender disso (I.F. § 664). Resumindo, poder-se-ia dizer: gramática superficial é o conjunto de normas para a construção correta de frases e, gramática profunda, o conjunto de regras que constitui determinado jogo de linguagem. Mesmo negando a designação ostensiva, o Wittgenstein da segunda fase não abandona a idéia de que a linguagem deve ser governada por regras. O que o autor faz é buscar um esclarecimento da linguagem, comparando-a não mais com um cálculo, mas sim a um jogo. Por isso, para compreender a linguagem é necessário dominar a aplicação de certas regras. A diferença é que aqui a regra tem uma função funcional. A regra gramatical é algo que depende de seu papel ou função nas práticas lingüísticas 74. Conforme Glock, um dos motivos que causava as confusões filosóficas tradicionais seria o fato de ter se concentrado na análise da gramática superficial, a qual não expressa mais do que aquilo que é imediato e evidente à audição e à visão. Já na gramática profunda, as palavras seriam regidas por inúmeras possibilidades de combinação e as proposições constituiriam lances diferentes no jogo de linguagem, possuindo relações e articulações lógicas e distintas. A gramática profunda seria a que preveniria as proposições filosóficas de erros absurdos75. 73 Para Wittgenstein, gramática pode significar regras do emprego de uma palavra, mas também pode significar o complexo das regras que constituem uma linguagem, ou ainda, as significações dadas dessas regras (Apud. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 141). 74 Cf. GLOCK. Dicionário: Wittgenstein, p. 194. 75 Cf. Ibid., p. 197. 45 Seria a partir dessa linguagem profunda que surgiriam os diversos modos da linguagem humana, bem como o critério para o emprego correto das palavras, porque: “Correto e falso é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordos. Não é um acordo sobre as opiniões, mas sobre o modo de vida” (I.F. § 241). Pois seria este acordo entre os membros de uma comunidade que tornaria possível a comunicação. Aqui é possível dizer que para Wittgenstein as expressões lingüísticas têm sentido, porque existem hábitos determinados de manejar com elas que são intersubjetivamente válidos: Não pode ser que apenas uma pessoa tenha, uma única vez, seguido uma regra. Não é possível que apenas uma única vez tenha sido feita uma comunicação, dada ou compreendida uma ordem, etc. – Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (costumes, instituições) (I.F. § 199). As palavras têm, em circunstâncias habituais, um emprego que nos é familiar (I.F. § 349). É o hábito que confere a significação determinada para cada palavra e constitui o jogo de linguagem em questão. Aqui se expressa a reviravolta no pensamento de Wittgenstein. A pergunta pela linguagem permanece, só que a resposta vem da consideração da linguagem em ação; os jogos de linguagem mostram como ela funciona. No Tractatus, Wittgenstein considera o jogo de linguagem, ou como ele mesmo diz, preparação para o jogo de linguagem76, algo específico da ciência natural. Este seria o único jogo possível. Agora, tal jogo é reduzido a um sistema, entre outros, na diversidade de fatos nos quais ocorrem os jogos lingüísticos. Mas para melhor entendê-lo e aplicá-lo no texto, mesmo contra as Investigações, faz-se necessária uma noção básica da significação do conceito jogo de linguagem. Sabe-se, como foi visto acima, que o próprio Wittgenstein, talvez para não incorrer num essencialismo, recusa-se em definir com precisão a significação do termo jogo de linguagem (I.F. § 65). Se determinasse um conceito preciso para o termo jogo de linguagem, Wittgenstein estaria caindo em um essencialismo, contrário a sua intenção básica da segunda fase77. Oliveira apresenta três distinções de sentido que K. Wuchterl apresentara para o conceito jogo de linguagem no Segundo Wittgenstein: “ 1 – modelo de uma linguagem primitiva; 2 – unidade funcional lingüística; 76 Acredita-se que o aprendizado da linguagem consiste no fato de que se dá nomes aos objetos: homens, formas, cores, dores, estados de espírito, números, etc. Como foi dito, - o denominar é algo análogo a pregar uma etiqueta numa coisa. Pode-se chamar isso de preparação para o uso de uma palavra (I.F, § 26). 46 3 – totalidade das atividades lingüísticas”78. O que possibilitaria resumir o sentido do conceito jogo de linguagem como uma unidade funcional. Pois a primeira pode ser considerada um caso especial da segunda e a terceira é uma espécie de generalização que Wittgenstein pouco usa para não cair em malentendidos filosóficos (essencialismo). Aqui a rejeição ao essencilaismo não significa ceticismo, uma vez que é, de antemão, eliminada da filosofia a questão da demonstração. Tal rejeição significa a consideração dos diferentes usos das palavras e a descoberta de características semelhantes e parentescos. O que Wittgenstein chama de semelhanças de família. 3. 2. 2 – Jogos de linguagem resguardam semelhanças de família Como foi visto, os jogos de linguagem são múltiplos e variados. Só possuem em comum certas semelhanças de família. Estão aparentados entre eles de diversas e diferentes formas e é este parentesco que os possibilita serem denominados jogos de linguagem (I.F. § 65-67). Tal parentesco ou semelhança não pode ser confundido com a essência invariável do Primeiro Wittgenstein. Aqui, não se postula a identidade das semelhanças. As semelhanças podem variar dentro de um determinado jogo de linguagem ou ainda de um jogo de linguagem para outro, ao passo que no Tractatus a essência era a mesma em todos os contextos lingüísticos. Os jogos de linguagem comportam uma rede de ações e significações que podem mudar completamente de um jogo de linguagem para outro. Neste sentido, dá até para dizer que não há algo em comum a todos os jogos. Para enfatizar a não existência de uma unicidade invariável de um jogo de linguagem para outro, é possível dizer que o que um jogo de linguagem possui em relação a outros é uma certa analogia. Para um jogo ser considerado jogo, basta que tenha apenas uma semelhança ou característica comum de um jogo para outro, sem haver a necessidade de que tal semelhança ou característica seja a mesma em todos os jogos. “Considere, por exemplo, os processos que chamamos de ‘jogos’. Refiro-me a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos, etc. O que é comum a todos? Não diga: ‘Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam jogos’, - mas veja se algo é comum a eles todos. – Pois, se você os contempla, não verá na verdade algo que fosse 77 78 Cf. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-Pragmática, p. 142. Cf. Ibid., p. 141. 47 comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles” (I.F. § 66). O que confirma que as noções de jogos de linguagem e de semelhanças de família levam ao abandono da busca de uma essência invariável que garanta a identidade formal da linguagem. Também é impossibilitada a busca por uma linguagem universal. Ao contrário, é enfatizada a dimensão particular dos jogos de linguagem, uma vez que eles não mais possuem propriedades comuns a todos, mas somente parentescos e semelhanças de família. Para Wittgenstein o termo jogo de linguagem pode significar “o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada” (I.F. § 7). Aqui a linguagem significa a inserção no processo de interação social. Tal inserção implica uma capacitação que é algo historicamente adquirido. Mesmo que a linguagem seja natural para o humano, o poder de usá-la é uma capacidade adquirida por meio de um aprendizado das normas e dos papéis implicados nesses atos. O que comprova que Wittgenstein não separa a linguagem da práxis social; o que não significa cair num behaviorismo que também relaciona linguagem com práxis. Pois, enquanto o behaviorismo pensa a linguagem como um fenômeno natural (estímulo-resposta), Wittgenstein a pensa como um fenômeno histórico, que é fruto da liberdade criativa do humano. No jogo de linguagem, Wittgenstein salva a liberdade humana desde que o indivíduo aja de acordo com regras e normas que ele juntamente com outros indivíduos estabeleceram. Cada um segue o que foi comunitariamente estabelecido com a participação das próprias iniciativas. O interessante é que mesmo seguindo as mesmas regras, ninguém joga do mesmo modo. O reconhecer as regras não significa aceitá-las e aplicá-las de modo mecânico. Tais regras são flexíveis e resguardam a possibilidade de reflexão e decisão no assumir concretamente seu uso comum. O aprendizado de uma regra não se confunde com um condicionamento causal como o behaviorismo pensa. A linguagem é ação comunicativa entre sujeitos livres, diferente dos processos mecânicos naturais. É um jogo que não tem fronteiras definidas. É jogando que se aprende as regras. Cada jogo tem suas regras específicas: [...] não deveria ser deste modo, mas sim deste: cada interpretação, juntamente com o interpretado, paira no ar; ela pode servir de apoio a este. As interpretações não determinam sozinhas as significações (I.F § 198). 48 Seguir uma regra, no sentido wittgensteiniano, mesmo que em linguagem não wittgensteiniana, seria o mesmo que se inculturar em determinada comunidade; adquirir determinada práxis da comunidade humana implicada, o que é o mesmo que assumir a forma de vida de tal comunidade. Seguir uma regra seria o mesmo que seguir as formas de vida que são seguidas em cada comunidade. Uma vez que o Wittgenstein, dessa segunda fase, prioriza o contexto no qual acontece a linguagem, a teoria das formas de vida se apresenta como uma conceituação de suma importância para essa nova concepção. Concepção que necessita de uma base para alojar os jogos de linguagem. Algumas das idéias principais, de tal concepção, essa pesquisa monográfica apresenta no item que segue. 3. 3 – Formas de vida Nas Investigações, os jogos de linguagem estão diretamente relacionados com as formas de vida. O uso que Wittgenstein faz do termo forma de vida enfatiza o entrelaçamento entre cultura, visão de mundo e linguagem79. Os jogos de linguagem são sustentados pelo contexto da vida80. A forma de vida seria como que a totalidade das atividades comunitárias em que estão imersos os jogos de vida. A linguagem emerge de uma forma de vida. “[...] representar uma linguagem significa representar-se uma forma de vida” (I.F. § 19). Para Wittgenstein, todo o contexto que envolve uma atividade lingüística é de suma importância para a compreensão de tal atividade. Para o reconhecimento e o emprego significativo de sentidos da linguagem deve, por conseguinte, existir uma situação global, uma espécie de forma lingüística de vida, um contexto, a partir do qual são exclusivamente compreensíveis os significados que são aprendidos e depois transmitidos. 81 Nessa nova concepção wittgensteiniana, o sentido da palavra é definido a partir da função que a palavra exerce no jogo de linguagem. Tal jogo deve estar situado num contexto prático lingüístico. É na relação própria de cada jogo de linguagem, o qual deve se adaptar a cada contexto prático, que a linguagem adquire seu significado. “O termo 79 Cf. GLOCK. Dicionário: Wittgenstein, p. 173. Cf. CONDÉ. Wittgenstein Linguagem e Mundo, p. 101. 81 WUCHTERL. Ludwig Wittgenstein. Análise lingüística e terapia. In: FLEISCHER (Org.). História da Filosofia. Filósofos do século XX, p. 73. 80 49 ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (I.F. § 23). Apesar da noção forma de vida ser mencionada apenas uma meia dúzia de vezes nas Investigações, ela é de suma importância para a compreensão do Segundo Wittgenstein. Para este autor, a linguagem é sempre uma parte constitutiva de cada forma de vida. A função de tal linguagem depende sempre de cada determinada forma de vida à qual está integrada. A forma de vida é constituída pela formação cultural ou social que representa a totalidade das atividades comunitárias em que estão imersos os jogos de linguagem. A linguagem é a expressão da práxis comunicativa interpessoal de cada forma de vida. A cada forma de vida existente ou a cada contexto prático lingüístico, corresponde um jogo de linguagem. Como há inúmeros jogos de linguagem, há também incontáveis formas de vida. De acordo com as citações, acima apresentadas, é possível afirmar que o termo forma de vida, embora intrinsecamente ligado ao termo jogo de linguagem, seria de caráter mais geral e elementar que o termo jogo de linguagem. Seria como que algo relacionado ou parte da história natural. História natural aqui contemplaria dois aspectos. O primeiro deles ressaltaria a dimensão biológica e cultural presente nas formas de vida. O segundo ressaltaria o problema da fundamentação82, que não é abordado por este trabalho. Foi visto que a noção de jogos de linguagem nega qualquer forma de essência ou fundamento último. A forma de vida seria a encarregada de constituir ou oferecer o lugar onde a linguagem se assentaria. A forma de vida seria o abrigo da linguagem. “[...] o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (I.F. § 23), tanto quanto o andar, comer, beber, jogar (I.F. § 25). A forma de vida é a base última da linguagem. O que pode implicar a pergunta sobre possibilidade ou necessidade de existir ou não um fundamento último também para garantir a forma de vida. No entanto, para Wittgenstein a forma de vida é algo dado 83 de onde tudo se origina e se fundamenta e que não cabe à linguagem buscar explicações além do descrever o que acontece. Em síntese, é possível afirmar que Wittgenstein apresenta, nessa segunda obra, Investigações, uma filosofia reacionária a sua primeira obra, Tractatus. No entanto, esse 82 83 Cf. CONDÉ. Wittgenstein Linguagem e Mundo, p. 104. Cf. WITTGENSTEIN, Ludwing. Investigações Filosóficas, 222. 50 grande filósofo do século XX84, vai muito além da mera atitude de “ser contra”. Ele propõe, de maneira original e louvável, uma reviravolta metodológica que dificilmente será apagada da história da Filosofia ocidental. No Tractatus é possível ler um monólogo filosófico, marcado pelo atomismo lógico, por meio do qual o sujeito subjetivo, regido pela forma lógica, conferia o significado aos nomes, relacionando-os aos objetos do mundo. Já nas Investigações é possível ler uma espécie de diálogo filosófico, marcado pelo uso prático, por meio do qual a comunidade intersubjetiva, regida pela forma de vida, confere significado à linguagem na atividade dos próprios jogos de linguagem. Percebe-se um Primeiro Wittgenstein, que apresenta como resposta para o problema da significação a relação entre nome-objeto. E um Segundo Wittgenstein, que apresenta como resposta para o mesmo problema, a atividade lingüística realizada no próprio jogo de linguagem. 84 “Por muitos considerado o mais importante filósofo do século XX” (COSTA. Filosofia Analítica, p. 51). 51 CONCLUSÃO Chegar a determinado objeto ou conclusão que possa ser tomado como resolução dos problemas filosóficos foi o objetivo que regeu a vida de muitos pensadores. Alguns deles, como o Wittgenstein do Tractatus, até pensou ter certeza de que havia atingido tal objetivo. Pretensão que está longe do que foi possível desenvolver no trabalho que, por ora, é possível apresentar. Esse ainda não ultrapassa o patamar de uma exposição, bastante inicial, acerca da inquietude diante do exercício de uma das mais nobres formas do humano ser, a saber, como comunicativo. Aristóteles já dizia que o humano se diferencia dos outros animais pela sua capacidade de duvidar, de admirar, de memorizar, mas acima de tudo, de ensinar85. O ensinar, visto aqui, como um ato lingüístico por excelência. Ato que implica, diretamente, a capacidade de compreender, de significar, de expressar. Implicações que compõem a problemática central da Filosofia Analítica e das duas respostas wittgensteinianas. Essa pesquisa, que foi inicialmente motivada pela necessidade de apresentar um tema como Trabalho de Conclusão de Curso, aos poucos, transformou-se numa prazerosa empreitada. Empreitada que, a cada passo, desperta aquela curiosidade de ir além na constante busca do desvendamento do mistério implicado na problemática aqui estudada. O problema perseguido por este trabalho foi o da significação da linguagem na tradição filosófica ocidental, no Tractatus e nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Toda a problemática foi abordada de maneira bem resumida e limitada. Sabe-se da dificuldade em abarcar a grande empreitada filosófica apresentada pelo autor trabalhado, uma vez que a grande maioria de sua obra não esteve ao alcance desta pesquisa. Por isso, o que foi aqui trabalhado se resume à interpretação de idéias contidas nas duas obras citadas. O que não significa uma limitação frustrante, uma vez que o objetivo deste trabalho é trazer para o 85 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Vol. II, p. 11. meio acadêmico a discussão acerca do problema da Filosofia da Linguagem e sua significação. Este problema é visto aqui, como a principal questão da Filosofia do século XX. Mais que isso, se está apresentando o maior dos filósofos que trabalha este tema. Wittgenstein, a partir do seio do Movimento Analítico, em seis décadas de vida, apresenta duas das mais geniais e originais respostas para o problema filosófico de sua época. A primeira mantém-se de acordo com a tradição, elevando-a ao extremo. A segunda protagonizando a maior reviravolta pragmática e lingüística da história. Mesmo parecendo ser contrário à pretensão de exaltar o autor, apresentada no parágrafo anterior, uma constatação importante que este trabalho despertou foi a possibilidade de entender que um escrito, ou uma análise, a respeito de um autor, não deixa de ser “uma análise” e situa-se muito longe da pretensão de ser “a análise”. Ajudou a entender que é muita pretensão afirmar que se “trabalha um autor”. Não se faz mais que fazer um “trabalho num autor” focalizando alguns dos tantos aspectos possíveis. O que é bem diferente da pretensão de trabalhá-lo como um todo. Foi possível sentir, bem de perto, a afirmação de Paulo Freire, segundo a qual “todo o ponto de vista é a vista de um ponto”. Isso fez com se tornasse um tanto consolador o fato de sentir a necessidade em deixar de lado tantos aspectos wittgensteinianos importantes, para optar por alguns que só vão expressar uma parcela do pensamento do autor do tema aqui estudado. Longe de apresentar aqui uma lamentação ou justificação de mediocridades, mas sim a necessidade de expressar a percepção de que foi feito um trabalho “em Wittgenstein” e não trabalhado “o Wittgenstein”. Aqui foi trabalhada uma página, das inúmeras que seriam possíveis em tal autor. Neste texto, que é fruto da empreitada que este trabalho conseguiu atingir até o momento, é possível, como é feito no primeiro capítulo, acenar para a Filosofia Analítica, vendo-a como um movimento filosófico muito amplo. Movimento que abriga diversas áreas do conhecimento, mas que se caracteriza pela abordagem da Filosofia da Linguagem. O Movimento Analítico busca, principalmente num primeiro momento, a aproximação da Filosofia com os campos científicos. As ciências naturais, na passagem do século XIX para o XX, desfrutavam de boa credibilidade. Por isso, aproximar-se das áreas científicas somava créditos para a Filosofia da Linguagem, que almejava um patamar de objetividade e exatidão lingüística. 53 No segundo capítulo é trabalhada a primeira resposta de Wittgenstein à problemática de sua época. Essa resposta eleva ao extremo a concepção objetivista da linguagem, que se resume em descrever objetos. Essa descrição é regida pelo atomismo lógico e Wittgenstein a desenvolve baseada na teoria da figuração e na teoria da verdade. Segundo essa concepção, o significado da linguagem depende de sua referência ao objeto. O primeiro Wittgenstein, do Tractatus, acredita que a possibilidade de referência dos nomes simples – dos quais não dá nenhum exemplo – aos objetos é o que permite enunciar proposições com sentido, que podem ser verdadeiras ou falsas, ou seja, todo enunciado tem de poder, em princípio, fazer referência ao mundo, por meio dos nomes simples, para ter sentido. Proposições mais complexas devem poder ser reduzidas, ou traduzidas, a proposições elementares, que contêm apenas nomes simples. Deve sempre haver uma correlação entre nomes simples – que formam proposições elementares – e objetos simples – que se combinam e formam estados de coisas – para que a linguagem fale do mundo, descreva o mundo, e, portanto, faça sentido, transmita informações sobre este mundo. Toda essa atividade é regida pela forma lógica que expressa, justamente, as formas que as combinações entre os objetos podem assumir nos estados de coisas. Combinação que, portanto, também assumem os nomes nas proposições. No terceiro capítulo é trabalhada a segunda resposta de Wittgenstein ao mesmo problema que é trabalhado na primeira resposta. Nas Investigações, Wittgenstein abre o leque de possibilidades da linguagem. Nessa obra a referência ao objeto não é o mais importante para o sentido. O sentido dá-se no jogo de linguagem, sem que seja necessário determinar a referência das palavras aos objetos. Aqui o significado da linguagem se dá na atividade do jogo de linguagem, que é alojado e determinado conforme cada tipo de jogo e, principalmente, conforme o contexto no qual o jogo se desenvolve. Esse contexto, no qual acontece a prática da linguagem, é o que Wittgenstein chama de formas de vida. Enquanto o Tractatus era sustentado pela teoria de figuração e pela teoria de verdade, as Investigações é sustentada pela teoria dos jogos de linguagem e pela teoria das formas de vida. Nessa segunda obra, é condenada qualquer conceituação ostensiva. Isso faz com que Wittgenstein não diga, com clareza, o que é um jogo de linguagem. Ele chega a dizer o que ele vai chamar de jogos de linguagem; o que não parece ser a conceituação do que realmente seria o jogo de linguagem: “Podemos também imaginar que todo o processo do uso das palavras em (2) é um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua 54 língua materna. Chamarei esses jogos de ‘jogos de linguagem’, e falarei muitas vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem”. [...]. “Chamarei também de ‘jogos de linguagem’ o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está interligada” (I.F. § 7). A Filosofia dessa segunda fase de Wittgenstein é acusada de cair num relativismo desregrado, segundo o qual a linguagem sem referência ou essência perderia sua credibilidade. Tal linguagem é acusada de negar a ética, a moral, o espiritual; enfim, relativisaria tudo. Mesmo que tal problema seja assunto para outro trabalho, igual ou maior que esse, é bom lembrar que existem jogos de linguagem sobre a moral, sobre regras morais, que são usados diariamente. É um entre muitos jogos. Não é necessário que tenhamos um só jogo para ter regras morais. Tal acusação parte do princípio de que tudo se tornaria válido. Mas nem tudo é válido, porque nas Investigações é possível elaborar intersubjetivamente muitos jogos de linguagem. Saber jogar um jogo é saber seguir regras que são estipuladas durante o próprio jogo. Jogos têm finalidades práticas. Um jogo que não tem nenhuma finalidade, nenhuma utilidade, nem que seja uma utilidade estética ou lúdica, não é jogado. Sabe-se que esta questão é muito complicada; por isso, fica aqui aberta a discussão que desperta, neste trabalho, muito interesse de continuidade, mas que devido às limitações presentes, tal continuidade, será adiada. E assim é marcado o limite deste primeiro degrau empreendido na construção da grande, e quem sabe infinita, escadaria que é exigida para quem deseja chegar ao topo do problema que envolve a Filosofia da Linguagem e sua significação. Ao mesmo tempo em que este trabalho gera satisfação pelo gosto de ter dado início à base de uma complicada empreitada – é difícil que alguém ouse dizer que trabalhar Filosofia Analítica é fácil, no entanto é gostoso – fica o vazio e o clamor para ir à busca de tantos temas e conceitos que ficaram fora, ou foram tratados superficialmente, e que em muito enriqueceriam este trabalho. Não foram tratados conceitos como gramática, regras, ter-em-mente, compreensão. Poder-se-ia ter enfatizado a concepção wittgensteiniana da função terapêutica da Filosofia (I.F. § 133). A concepção de Filosofia como aquela que mostra à mosca a saída do vidro (I.F. § 309), dentre tantos outros conceitos que limitam um melhor desenvolvimento das idéias aqui expressas. Fica aqui uma página preenchida. Página que além de exigir o preenchimento das que a seguem é sujeita à retificação daquilo que nela está escrito. 55 Este Trabalho de Conclusão de Curso deixou uma clara preferência pela segunda obra, alvo original desta pesquisa, mas que no decorrer de seu desenvolvimento, passou a perceber o enriquecimento que poderia advir de um enfoque em que situasse Wittgenstein como o autor que ofereceu duas respostas a uma mesma problemática. No entanto, aqui a primeira resposta não deixou de ser vista como base para a segunda e mais simpatizada resposta, mas que parece necessitar ser entendida como oposição e superação da primeira. O próprio autor afirma, no prefácio das Investigações, que “Há quatro anos, porém, tive oportunidade de reler meu primeiro livro e de esclarecer seus pensamentos. De súbito, pareceu-me dever publicar juntos aqueles velhos pensamentos e os novos, pois estes apenas poderiam ser verdadeiramente compreendidos por sua oposição ao meu velho modo de pensar, tendo-o como pano de fundo”86. Apesar de não ter um espaço tão privilegiado como as Investigações, o Tractatus não pode ser considerado, por este trabalho, como uma obra de segunda categoria, uma vez que a resposta apresentada pela primeira obra está imbricada na resposta apresentada pela segunda. 86 WITTGENSTEIN. Investigações Filosóficas, Prefácio, p. 12. 56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia. Vol. I. Filosofia Analítica, Semiótica, Hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2000. ARISTÓTELES. Metafísica. Vol. II. São Paulo: Loyola, 2002. CABRERA, Julio. Margens das Filosofias da Linguagem. Brasília: UnB, 2003. COSTA, Cláudio Ferreira. Filosofia Analítica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991. D’ AGOSTINI, Franca. Analíticos e Continentais. 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