1 AVALIAÇÃO LABORATORIAL DAS ALTERAÇÕES LEUCOCITÁRIAS Paulo César Ciarlini Doutor em Clínica Veterinária pela Universidade Estadual Paulista Professor Adjunto de Laboratório Clínico Veterinário – UNESP – Araçatuba Contato: Rua Clóvis Pestana, 793 CEP: 16050-680 – Araçatuba, SP Tel.: 018-36361413 – e-mail: [email protected] 2 3. 3.1 Avaliação laboratorial das alterações leucocitárias Considerações fisiopatológicas sobre a inflamação e a resposta leucocitária. A palavra inflamação (do latim inflammo, pp. –atus, de in, em + flamma, chama) significa uma reação dos tecidos a agressões ou danos (físicos, químicos ou biológicos) caracterizado clinicamente por calor, inchaço, rubor e dor. A reação inflamatória é extremamente importante para defesa e regeneração dos tecidos, entretanto, quando exagerada é indesejável e pode ocasionar uma perda parcial ou total de sua função. Localmente, a inflamação causa uma vasoconstrição, seguida de vasodilatação, estase, hiperemia, acúmulo de leucócitos, exsudação e depósito de fibrina. Uma reação inflamatória é iniciada em situações variadas, incluindo infecção, trauma, cirurgia, queimaduras e neoplasias em estágios avançados. Os principais componentes da resposta inflamatória são as citocinas, proteínas de fase aguda e os leucócitos. A resposta sistêmica é acompanhada por febre, aumento na síntese de hormônios e produção de células leucocitárias, sendo os neutrófilos e monócitos as principais células liberadas durante uma inflamação aguda. O conhecimento sobre a formação dos leucócitos (leucopoese), sua função e sua cinética é de fundamental importância para a interpretação das alterações leucocitárias nos processos inflamatórios e não inflamatórios. De acordo com a forma do núcleo e a presença de grânulos no citoplasma, os leucócitos se diferenciam morfologicamente em dois grupos (Fig. 1): granulócitos polimorfonucleares (neutrófilos, eosinófilos e basófilos) e agranulócitos mononucleares (linfócitos e monócitos). As concentrações dos diferentes leucócitos variam de acordo com a espécie, raça, idade e condições fisiológicas (gestação, parto, lactação etc). Devido à sua grande capacidade migratória, fagocitária e bactericida, os neutrófilos são usualmente denominados como os soldados de defesa do organismo. Quando estimulados por mediadores inflamatórios, os neutrófilos ativam seu metabolismo oxidativo ("Explosão Respiratória") o que resulta num intenso consumo celular de energia e oxigênio, gerando substâncias oxidantes com alto poder bactericida, viricida e fungicida. 3 Figura 1 – Aspectos morfológicos e tintoriais de leucócitos de cães sadios. Montagem de imagens obtidas de aspirado de medula óssea tingida por corante panótico rápido (aumento 1000 X). 1: Mieloblasto; 2: Linfoblasto; 3: Monoblasto; 4: Pró-mielócito; 5: Pró-linfócito; 6: Pró-monócito; 7: Mielócito neutrofílico; 8: Mielócito eosinofílico; 9: Mielócito basofílico; 10: Metamielócito neutrofílico; 11: Metamielócito eosinofílico; 12: Metamielócito basofílico; 13: Bastonete neutrofílico; 14: Bastonete eosinofílico; 15: Bastonete basofílico; 16: Segmentado neutrofílico; 17: Segmentado eosinofílico; 18: Segmentado basofílico; 19: Linfócito; 20: Monócito. A quantidade de neutrófilos no sangue circulante depende do equilíbrio entre a produção medular e o consumo tecidual. O fator de célula-tronco e algumas interleucinas (IL-2, IL-6 e IL-11) promovem a multiplicação da célula pluripotencial do sangue e sua diferenciação em célula progenitora mielóide. Sob a ação da IL-3 e dos fatores estimuladores das colônias de granulócitos (FSC-G) e de granulócito e macrofágo (FSC-GM) as células progenitoras mielóides se diferenciam em precursoras da linhagem neutrofílica. O FSC-G e FSC-GM promovem a multiplicação e maturação das células neutrofílicas que passam por diferentes estágios de maturação (mieloblasto, pró-mielócito, mielócito, metamielócito, bastonete e neutrófilo segmentado). Na medula óssea a linhagem neutrofílica é dividida em três compartimentos (Fig. 2): 1. célula-tronco (CCT); 2. proliferação (CP); 3. maturação (CM). No CP, num período de 2 a 3 dias, um único mieloblasto gera normalmente 4 mielócitos que sofrem até 3 divisões, totalizando 16 a 32 novas células. No CM são necessários mais 2 a 3 dias para que os mielócitos diferenciados em metamielócitos 4 maturem até a forma de bastonete e segmentado. Depois então de 4 a 6 dias, os neutrófilos recém produzidos são liberados da medula óssea para o sangue, formando dois outros compartimentos de neutrófilos: 1. neutrófilos circulantes (CNC) dos grandes vasos; 2. neutrófilos marginais (CNM) que estacionam na microcirculação. Estima-se que para cada neutrófilo do CNC de um cão, exista pelo menos um outro no CNM. No gato existem até 3 neutrófilos no CNM, de modo que a mobilização destas células devido a uma excitação, por exemplo, pode causar um aumento significativo do CNC (Fig. 2). Nos dois primeiros dias de um processo inflamatório, quando as reservas do CNC e CNM muitas vezes são insuficientes, a medula óssea recebe estímulos (FNT-∝, IL-1, FSC-G) que promovem uma rápida mobilização de seus neutrófilos do CM, podendo dentro de 6 a 7 horas liberar de 8 a 10 vezes o número de células para o CNC. Se os neutrófilos do CM não forem suficientes para suprir a demanda tecidual, fatores liberados durante a inflamação (endotoxinas, FNT-∝ e IL-3) estimulam a secreção de citocinas que promovem a diferenciação e proliferação das células tronco na medula óssea, com conseqüente aumento de neutrófilos circulantes após 3 a 5 dias. Durante o processo inflamatório ocorre um drástico aumento de FSCG e FSC-GM que estimulam o numero e a velocidade das mitoses no CP, permitindo que novos neutrófilos sejam produzidos num período mais curto (2 a 3 dias) do que o normal (4 a 6 dias). O eosinófilo é rico em substâncias (anti-histamina, anti-serotonina, antibradicinina e plasminogênio) que agem na modulação das reações inflamatórias, de hipersensibilidade imediata alérgica e anafilática. O eosinófilo também possui função fundamental na destruição dos trematódeos, nematódeos e células neoplásicas. Na medula óssea, sob o estímulo da IL-5 liberada por linfócitos sensibilizados, a produção e cinética dos eosinófilos é semelhante à dos neutrófilos. Os basófilos são células ricas em histamina que desempenham papel importante nas reações de hipersensibilidade imediata (urticária, anafilaxia e alergia aguda). A heparina e as citocinas dos basófilos, respectivamente, atuam como anticoagulante e moduladores durante a inflamação. Na medula óssea, a célula progenitora do basófilo é a mesma do mastócito tissular. Embora possua função similar ao do mastócito, o basófilo não se diferencia neste tipo celular após migrar para os tecidos. Os mieloblastos basofílicos necessitam de 2,5 dias para se diferenciar em segmentados basófilos, e nos tecidos sobrevivem várias semanas. 5 Figura 2 – Produção dos neutrófilos (granulopoese). As células-tronco no compartimento tronco (CT) da medula óssea sob estímulos pode se diferenciar em células precursoras dos neutrófilos. No compartimento de proliferação (CP), num período de 60 horas, as células precursoras sofrem sucessivas divisões gerando 32 metamielócitos. Após 50 a 70 horas, no compartimento de maturação (CM), os metamielócitos e os bastonetes amadurecem até a forma segmentada adulta dos neutrófilos. Antes de migrarem da medula óssea para os tecidos, os segmentados neutrófilos circulam por 10 horas no sangue, parte no compartimento circulante (CNC) dos grandes vasos e parte no compartimento marginal (CNM) dos pequenos vasos periféricos. Enquanto o neutrófilo constitui-se na primeira linha de defesa do organismo e fagocita pequenas partículas como as bactérias, o monócito representa a segunda linha de defesa, fagocitando grandes partículas e células. O monócito é responsável pelo processamento dos antígenos para apresentação aos linfócitos, participa da regulação dos estoques de ferro do organismo sintetizando a transferrina, além de liberar importantes substâncias reguladoras da reposta inflamatória (FSC-G, FSC-GM, lisozimas, prostaglandinas, fatores do complemento etc). Os monócitos e seus precursores (monoblasto e pró-monócito) não são estocados na medula óssea, sendo liberados na circulação sanguinea ainda imaturos (equivalem a um mielócito), circulam por 12 horas e se diferenciam em macrófagos nos tecidos, onde sobrevivem até 100 dias. Na presença de endotoxinas, imunocomplexos e diante da fagocitose, os macrófagos liberam IL-1 e FNT-∝ que estimulam as células endoteliais e os fibroblastos a produzirem o fator estimulante da linhagem monocítica e da linhagem 6 mono-granulocítica (FSC-M e FSC-MG, respectivamente). Juntamente com a IL-3, produzida pelos linfócitos T ativados, o FSC-M e FSC-MG estimulam o aumento da produção de monócitos na medula óssea. Os linfócitos produzidos na medula óssea se diferenciam em dois tipos (B e T). Na bursa de Fabricius das aves ou órgão similar nas demais espécies, 30% dos linfócitos medulares se diferenciam em linfócitos B e posteriormente em plasmócitos produtores de imunoglobulinas. No timo, 70% dos linfócitos medulares se diferenciam em linfócitos T responsáveis pela resposta imunocelular. Diferentemente dos demais leucócitos que se movem da medula óssea para o sangue e depois para os tecidos, os linfócitos recirculam. Após saírem da medula óssea para o sangue, os linfócitos passam pelos linfonodos e linfa antes de retornarem para o sangue. Os linfócitos podem sobreviver por meses a anos. Como precursor da fibrina, o fibrinogênio é muito importante na formação do coágulo sanguíneo e ainda funciona como uma “malha”, onde os fibroblastos se aderem para começar o processo de reparação tecidual. O fibrinogênio é uma proteína de fase aguda sintetizada pelo fígado, cuja concentração plasmática se eleva sob a ação estimuladora das interleucinas (IL-1 e IL-6) e FNT-∝ liberado pelo processo inflamatório e degenerativo dos tecidos. A concentração de fibrinogênio no plasma aumenta em várias condições: trauma, distrofia muscular, doenças neoplásicas e infecções. Nas primeiras 24 a 36 horas do início de uma injúria tecidual, a concentração de fibrinogênio plasmático aumenta mais rapidamente que outras proteínas de fase aguda como a haptoglobulina e outras glicoproteínas, atingindo seu pico entre o quinto e sétimo dia. A concentração plasmática do fibrinogênio tende a manter-se elevada durante a doença ativa, ou até que a demanda não ultrapasse a capacidade de síntese hepática. A concentração de fibrinogênio plasmático retorna aos valores normais dentro de dias depois de cessado o estímulo tecidual. Outros indicadores de inflamação como a haptoglobina, ceruloplasmina e a proteína C reativa são, tão ou mais eficientes que o fibrinogênio e o leucograma e estão disponíveis na medicina veterinária, entretanto, o uso destes indicadores está limitado à pesquisa devido aos altos custos e/ou complexidade de suas técnicas. 3.2. Quando suspeitar de uma inflamação? Dependendo da localização e extensão do tecido acometido, os sinais clássicos da inflamação (calor, rubor, inchaço e dor) podem ou não ser detectados pelo clínico. Diversas outras alterações clínicas podem se manifestar de acordo com a perda parcial ou total da função do tecido acometido pela inflamação. Alguns sintomas causados pela inflamação dependem da função exercida pelo tecido lesado, podendo 7 muitas vezes se revelar apenas tardiamente. O clínico tem que ter em mente que os sinais associados ao comprometimento da função de um determinado tecido, assim como a febre, pode ter origem em causas não inflamatórias. Portanto, a investigação laboratorial torna-se fundamental para se confirmar a suspeita de uma inflamação, assim como avaliar quanto à sua extensão (gravidade), duração (aguda ou crônica), prognóstico e etiologia. 3.3. Investigando laboratorialmente uma suspeita de inflamação. A avaliação quantitativa e qualitativa dos leucócitos no sangue circulante (leucograma) e a determinação do fibrinogênio plasmático são os dois principais recursos laboratoriais de rotina que o clínico veterinário dispõe para diagnosticar e avaliar os processos inflamatórios. O leucograma (contagem total e diferencial de leucócitos) deve ser interpretado a partir de seus valores absolutos. Uma alta ou baixa porcentagem de um determinado tipo leucocitário pode não ter significado clínico se a amostra tiver contagem total de leucócitos baixa (leucopenia) ou alta (leucocitose), respectivamente. Por exemplo, em um cão com taxa total de leucócitos baixa (4 x 109 /l), um valor relativo alto de neutrófilo segmentado (85%) representa um valor absoluto (3,4 x109 /l) considerado normal para a espécie. Para adequada interpretação da hiperfibrinogenemia se faz necessário determinar a relação entre a proteína plasmática total (PPT) e o fibrinogênio (F), pois seu valor pode estar sobre ou subestimado em casos de desidratação e hipoproteinemia, respectivamente. A relação PPT : F é obtida pela seguinte fórmula: PPT-F / F. Exemplo, cavalo A com taxa de PPT = 60 g/L e F = 6 g//L apresenta uma PPT:F (60-6/6) = 9, portanto hiperfibrinogenemia inflamatória. Cavalo B com taxa de PPT = 98 g/L e F = 6 g//L apresenta uma PPT:F (98-6/6) = 15,3, portanto hiperfibrinogenemia não inflamatória. 3.3.1. Meu paciente tem uma inflamação? Confirmar laboratorialmente a existência de uma inflamação: primeiro passo. Devido à riqueza de informações que o leucograma fornece, para confirmar ou descartar um processo inflamatório, recomenda-se que o clínico inicie sua investigação por esse exame. Os processos inflamatórios geralmente causam um aumento da taxa total de leucócitos (leucocitose) devido à elevação da taxa de neutrófilos circulantes 8 (neutrofilia). Na fase inicial da inflamação, a neutrofilia ocorre devido à mobilização dos neutrófilos estocados no CNM e na medula óssea. Algumas vezes, nos primeiros dias da inflamação, a taxa de leucócitos pode ser normal ou mesmo diminuída (leucopenia por neutropenia) devido a um grande desvio dos neutrófilos para o local da lesão ou mesmo pelo rápido consumo das reservas de neutrófilos. Após três dias de inflamação ativa, a leucocitose por neutrofilia surge devido ao ingresso de neutrófilos segmentados recém-produzidos pela medula óssea e pela presença de um maior número de neutrófilos jovens (Fig.3) sem segmentação nuclear (bastonetes, metamielócitos etc) na circulação (desvio à esquerda). Portanto, comparativamente pode-se afirmar que o desvio à esquerda é um indicador mais específico para inflamação do que a leucocitose e a neutrofilia simples. A leucocitose por neutrofilia ocorre também em animais excitados (leucocitose fisiológica) e estressados (leucocitose de estresse). Na leucocitose fisiológica (excitação, medo, exercícios físicos) ocorre uma descarga de adrenalina que aumentam os batimentos cardíacos, causando uma mobilização dos neutrófilos segmentados marginais (CNM). A leucocitose fisiológica é transitória (20 minutos), mais freqüente em felinos e pode em algumas espécies (cão e cavalo) também causar o aumento do número de linfócitos (linfocitose) e monócitos (monocitose). Diferentemente da leucocitose inflamatória, a fisiológica não apresenta desvio à esquerda. Já a leucocitose por estresse causa neutrofilia devido à inibição da diapedese dos neutrófilos induzida pelo corticóide. Não podendo atravessar o endotélio para alcançar os tecidos, os neutrófilos se acumulam na circulação dos animais estressados. Se o efeito do estresse (corticóide) for prolongado, um grande número de neutrófilos envelhece no sangue, tornado-se hipersegmentados (desvio à direita). Na leucocitose por estresse ocorre também uma diminuição de linfócitos (linfopenia) e de eosinófilos (eosinopenia) devido ao efeito lítico do corticóide sobre estes leucócitos. Diferenciar as causas de leucocitose por neutrofilia (fisiológica, estresse ou inflamatória) é fundamental. Em resumo (Tab. 1), se houver desvio à esquerda, trata-se de leucocitose inflamatória. Se a leucocitose neutrofílica não apresentar desvio à esquerda e estiver associada a linfopenia e/ou eosinopenia, tratase de estresse. A leucocitose fisiológica também não apresenta desvio à esquerda, porém se diferencia da leucocitose de estresse por não apresentar eosinopenia e linfopenia, podendo apresentar linfocitose e monocitose em algumas espécies (cão e cavalo). 9 Figura 3 – Esquema de maturação nuclear da linhagem neutrofílica conforme Schilling. No geral, o leucograma inflamatório pode ser caracterizado por uma leucocitose neutrofílica, aumento da relação neutrófilo:linfócito e desvios à esquerda dentro de aproximadamente três dias. Esta resposta leucocitária varia com a causa, intensidade, localização da inflamação, idade e a espécie do animal. Nas primeiras 24 horas do processo inflamatório em bovinos, não é verificado leucocitose, pelo contrário, pode ocorrer uma leucopenia. Nas primeiras horas de uma inflamação menos severa, a redução da relação neutrófilo:linfócito pode ser a única alteração do leucograma em bovinos. Nesta espécie, entre 24 e 72 horas após o início do processo inflamatório, observa-se uma leucopenia associada a um desvio à esquerda. Três a quatro dias após, os bovinos com inflamação podem apresentar uma concentração de leucócitos dentro do normal ou uma leucocitose com neutrofilia discreta ou moderada. O leucograma na espécie bovina, quando comparado ao de outras espécies (Tab. 1), é menos sensível para detectar os processos inflamatórios e avaliar sua gravidade. Em bovinos com febre devido à reticulite traumática, por exemplo, a leucocitose e o desvio à esquerda ocorrem em somente 62% e 40% dos casos, respectivamente. 10 Tabela 1 – Quadro diferencial das diferentes causas de leucocitose: fisiológica (LF), estresse (LE) e inflamatória (LI) em cães , bovinos e cavalos. Cão LF LE Boi LI Cavalo LF LE LI LF LE LI Leucócitos (x109/L) 10 -17 15 - 35 20 - 100 15 - 27 8 - 18 4 -30 12 - 25 a té 20 Desvio à Esquerda ∅ ∅ + ∅ ∅ + ∅ ∅ + Neutrófilo (x109/L) /N /N /N/ /N N /N / N N N N /N / N N / N N N / N 9 Linfócito (x10 /L) Eosinófilo (x109/L) 9 Monócito (x10 /L) até 30 ∅: ausente; +: presente; : aumento; : diminuição; N: normal. Em animais de grande porte como os bovinos e eqüinos, o aumento da concentração plasmática de fibrinogênio é um indicador de inflamação mais confiável do que o leucograma, de modo que não é incomum observar hiperfibrinogenemia na ausência de neutrofilia. Valores menores que 10 na relação PPT:F confirmam a existência de inflamação. A determinação da concentração plasmática de fibrinogênio é, portanto, um método inespecífico válido para o diagnóstico de inflamação em bovinos e eqüinos, especialmente quando a contagem celular encontra-se dentro da normalidade. Em animais de pequeno porte como os cães e os gatos, a resposta inflamatória é identificada melhor pela contagem de células periféricas (aumento no número total de neutrófilos e desvio à esquerda) e não pelo aumento plasmático de fibrinogênio. Durante um processo inflamatório em cães, a taxa de utilização de fibrinogênio plasmático pode exceder a produção hepática e/ou este órgão pode ter seu funcionamento afetado por fatores tóxicos, de modo que muitas vezes não se observa uma elevação do fibrinogênio. Sabe-se que uma massiva destruição do fígado por neoplasia ou degeneração tóxica reduz a concentração de fibrinogênio plasmático, de modo que nestas condições o diagnóstico a partir do fibrinogênio fica comprometido. 3.3.2. O processo inflamatório é severo? Estimar laboratorialmente a intensidade de uma inflamação: segundo passo. Uma vez confirmada clinicamente ou laboratorialmente uma inflamação, o clínico deve investigar a severidade do processo. O aumento da concentração de fibrinogênio não reflete a intensidade de uma inflamação. Já a magnitude da resposta neutrofílica é um reflexo aproximado da magnitude do processo inflamatório. Além disso, um processo inflamatório organizado como a piometra, por exemplo, exige uma 11 maior resposta neutrofílica do que uma inflamação generalizada. Bactérias piogênicas promovem uma resposta neutrofílica muito mais intensa do que outros tipos de agentes infecciosos. A severidade do processo inflamatório é melhor refletida pelo grau de desvio à esquerda. Quanto maior o desvio à esquerda, maior a inflamação. O desvio à esquerda é considerado como suave, moderado ou acentuado, respectivamente, se houver a presença de bastonete, metamielócito ou mielócito (Fig.3). 3.3.3. O processo inflamatório é grave? Avaliar laboratorialmente o prognóstico de um paciente com inflamação: terceiro passo. O clínico deve estar ciente de que um processo inflamatório severo (intenso desvio à esquerda) não necessariamente é grave ou implica em um prognóstico ruim para seu paciente. Se por um lado o desvio à esquerda acentuado indica a existência de uma inflamação severa, por outro, esta alteração revela uma boa capacidade da medula óssea para produzir células de defesa. Fazendo uma analogia entre uma resposta inflamatória causada por uma infecção e um estado de guerra, pode-se afirmar que os neutrófilos adultos segmentados são os mais eficientes e bem preparados soldados da primeira linha de defesa do organismo. Se a infecção (inimigo) for forte (Ex: bactéria muito patogênica), todos os neutrófilos segmentados disponíveis (soldados regulares) são mobilizados para defender o organismo, porém muitos acabam sendo destruídos. Diante de uma grande agressão, os neutrófilos do compartimento de maturação da medula óssea (soldados reservistas) passam a ser mobilizados. Quando os soldados da reserva não são suficientes para debelar o inimigo (agente inflamatório bacteriano), os neutrófilos jovens bastonetes (recrutas) são encaminhados para o local da inflamação (fronte). Nesta fase do conflito, o quartel militar (medula óssea) procura acelerar a formação de novos soldados (leucopoese). Quando necessário, os neutrófilos mais jovens como metamielócitos, mielócitos e até mieloblastos podem ser mobilizados, porém estes são soldados pouco eficientes no combate ao inimigo (causa inflamatória). Diante de um inimigo poderoso (bactéria muito patogênica), um grande número de soldados adultos (neutrófilos segmentados) é destruído e os soldados jovens (desvio à esquerda) tornam-se a principal, porém frágil, força de defesa. Na hematologia, classifica-se o desvio à esquerda como degenerativo quando o número de neutrófilos jovens iguala ou supera o número de neutrófilos adultos segmentados. O desvio à esquerda degenerativo está associado a um baixo número de soldados (leucopenia) e indica que o inimigo (agente inflamatório) destruiu a principal linha de defesa (neutrófilos segmentados), podendo a qualquer momento proliferar no organismo (septicemia) e 12 destruí-lo. Diante deste estado grave (desvio à esquerda degenerativo), se não houver uma imediata ajuda de exércitos aliados (tratamentos eficazes) a guerra contra o inimigo (infecção bacteriana) pode ser perdida. O bovino, por possuir uma pequena reserva de neutrófilo, geralmente apresenta nas primeiras 48 horas da inflamação um desvio à esquerda degenerativo sem que isto implique num mau prognóstico. 3.3.4. O processo inflamatório é agudo ou crônico? Estimar laboratorialmente a duração da inflamação: quarto passo. Para auxiliá-lo no diagnóstico diferencial da causa inflamatória, o clínico deve investigar a duração do processo. Entretanto, nem sempre é possível pelo leucograma determinar o caráter crônico ou agudo do processo inflamatório. Um leucograma inflamatório agudo típico é caracterizado por leucocitose neutrofílica com desvio à esquerda não degenerativo e comumente apresenta linfopenia e taxa normal de monócitos. Já nas inflamações crônica, o leucograma revela geralmente uma contagem de leucócitos e de neutrófilos normais ou discretamente elevadas, sem desvio à esquerda, taxa normal ou elevada de linfócito e monocitose. Em doenças supurativas focais graves, ocorre outro padrão de leucograma de inflamação crônica, caracterizada por marcante leucocitose (maior que 50000/µl) por neutrofilia e desvio à esquerda, contagem normal de linfócito, monocitose, toxicidade de neutrófilos e anemia não regenerativa. O fibrinogênio, por ser uma proteína de fase aguda, apresenta maiores concentrações nos processos inflamatórios agudos. Em cães a hiperfibrinogenemia antecede os achados de leucograma inflamatório, desaparecendo rapidamente após 24-48 horas. Em ruminantes, a hiperfibrinogenemia persiste enquanto o processo inflamatório se mantiver ativo. 3.3.5. Qual a causa do processo inflamatório? Diagnosticar a causa da inflamação: quinto passo. O leucograma possui limitado valor para diagnosticar a causa da inflamação. De um modo geral, a leucocitose por neutrofília é mais comum nas causas bacterianas, enquanto que a leucopenia por neutropenia e/ou linfopenia é mais freqüente nas doenças virais (cinomose, parvirose etc). Doenças provocadas por bactérias com membranas lipídicas (ex: tuberculose e brucelose) promovem aumento do número de células ricas em lipase (monócitos e linfócitos), enquanto que as demais causas bacterianas promovem neutrofilia simples. A avaliação criteriosa da morfologia dos leucócitos pode fornecer informações valiosas sobre a etiologia responsável pelas alterações quantitativas do leucograma. 13 Corpúsculo de Lentz causado pela inclusão do vírus da cinomose (Fig.4-1e 2), mórula de Ehrlichia sp. (Fig.4-3), gametócito de Hepatozoon sp. (Fig.4-4), forma amastigota de Leishmania sp. (Fig.4-5 e 6) e trofozoitos de Toxoplasma sp (Fig.4-7) podem ser observados dentro dos leucócitos no sangue circulante. Para aumentar a possibilidade de se encontrar estes agentes infecciosos, recomenda-se preparar e examinar várias lâminas de creme leucocitário corado. Em casos de septicemias, neutrófilos e monócitos podem apresentar bactérias fagocitadas (Fig.4-8). A presença de monócitos ativados, também denominados de reacionais (Fig.4-9), sugere a presença de hemoparasitos. De acordo com o grau de toxemia, o citoplasma dos neutrófilos circulantes no sangue periférico pode apresentar basofilia e vacuolização (Fig.4-10), presença de corpúsculos basofílicos de Döhle (Fig.4-11) e granulação tóxica escura (Fig.4-12). Em processos tóxicos mais graves, os núcleos dos leucócitos podem apresentar degenerações, tais como cariólise, cariorrexe, picnólise (Fig.4-13) e sombras de Gumprecht (Fig.4-14). As sombras nucleares de Gumprecht em abundância são observadas com freqüência nas leucemias linfáticas e na leucose bovina. A vacuolização citoplasmática pode ser induzida por anticoagulante, portanto, esta alteração só deve ser considerada quando associada com outras alterações tóxicas dos leucócitos ou em esfregaços feitos com sangue isento de EDTA. As granulações tóxicas, embora sejam mais comuns nos processos supurativos, também podem ocorrer em outras condições tóxicas, como nas azotemias. Nas mucopolissacaridoses, o citoplasma dos neutrófilos apresenta corpúsculos de cor púrpura que podem ser confundidos com granulações tóxicas. Os corpúsculos de mucopolissacarídeos se diferenciam por estarem presentes em leucócitos sem outros sinais de toxicidade (vacuolização e basofilia citoplasmática). Para se confirmar e classificar as enfermidades de armazenamento lisossomal (mucopolissacaridiose tipo I a VII), os esfregaços sanguineoss devem ser realizados rapidamente e sem anticoagulante, sendo necessária a caracterização bioquímica para se determinar precisamente a enzima deficiente. Quando estruturas semelhantes aos corpúsculos de Döhle estão presentes em todos leucócitos, pode-se afirmar que o paciente apresenta a anomalia May-Heggelin. Corpúsculos citoplasmáticos azulados conhecidos como siderócitos (Fig.4-15) podem ser confundidos com os de Döhle. Os siderócitos ocorrem devido ao depósito de ferro nos leucócitos de animais com anemia hemolítica e podem ser diferenciados pelo corante Azul-da-Prússia, específico para pigmentos férricos. A presença de grânulos redondos e róseos em leucócitos geralmente ocorre em animais (boi, gato, marta e rato) portadores da anomalia de Chediak-Higashi (Fig.4-16). À semelhança do quadro clínico humano, animais com a anomalia de 14 Chediak apresentam albinismo parcial (ocular e cutâneo), fotofobia, predisposição a infecções e tendência a hemorragia. Figura 4 – Montagem de imagens obtidas de esfregaços sangüíneos tingidos por corante panóptico rápido (aumento 1000 X) obtidas no serviço de rotina do Laboratório Clínico Veterinário, UNESP - Araçatuba - São Paulo, resumindo os principais alterações morfológicas e tintoriais dos leucócitos de animais domésticos. Montagem de imagens obtidas de esfregaços sanguineoss e medula óssea tingidos por corante panótico rápido (aumento 1000 X). 1: Linfócito com inclusão acidófila do vírus da cinomose (Corpúsculo de Lentz); 2: Neutrófilo com Corpúsculo de Lentz; 3: Mórula de Ehrlichia sp em linfócitos de cães; 4: Gametócitos de Hepatozoon sp; 5:Macrófago de cão com várias formas amastigotas de Leishmania sp; 6: Neutrófilo de cão com uma forma amastigota de Leishmania sp; 7: Neutrófilo com forma trofozoita de Toxoplasma sp; 8: Neutrófilo com bactérias (cocos) fagocitadas; 9: Monócito ativado (reativo) apresentando intensa vacuolização; 10: Neutrófilo tóxico apresentando basofilia e vacuolização citoplasmática; 11: Neutrófilos com corpúsculos de Döhle; 12: Neutrófilo com granulações tóxicas; 13: Picnólise leucocitária; 14: Sombras nucleares de Gumprecht; 15: Sideroleucócito; 16: Neutrófilo de gato com síndrome de ChediakHigashi, apresentando corpúsculos róseos arredondados característicos; 16: Neutrófilo de cão com grânulos associado a mucopolissacaridose; 17: Eritrofagocitose; 18: Leucofagocitose; 19: Linfócito plasmocitóide; 20: Plasmócito apresentando típica zona perinuclear despigmentada; 21: Célula de Mott com corpos de Russell; 22: Célula plasmática repleta de cristais intracitoplasmáticos compostos de imunoglobulinas; 23: Neutrófilo hiposegmentado de cão com anomalia de Pelger-Huët; 24: Diversas formas de linfócitos atípicos leucêmicos. 15 Alguns achados do leucograma indicam um aumento da resposta imune. Em doenças auto-imunes é comum observar monócitos e macrófagos fagocitando eritrócitos (Fig.4-17) e leucócitos (Fig.4-18). No sangue periférico, a presença de linfócitos plasmocitóides (Fig.4-19), plasmócitos (Fig.4-20), células de Mott (Fig.4-21), células com cristais de imunoglobulinas (Fig.4-22) está associada ao mieloma múltiplo ou a uma resposta imune muito intensa (ex: reação pós-vacinal, doenças muito antigênicas). Neutrófilos hipossegmentados (Fig.4-23) ocorrem na anomalia de Pelger-Huët, distúrbios mieloproliferativos ou mielodisplásicos. A rara anomalia de Pelger-Huët em cães e gatos caracteriza-se por um falso desvio à esquerda persistente da linhagem neutrofílica e eosinofílica sem associação clínica com processo inflamatório. A presença de linfócitos imaturos, com atipia citoplasmática e nuclear (Fig.224) ocorrem nas leucemias linfáticas, nas formas leucêmicas de linfomas e leucoses. Linfócitos reacionais que ocorrem após estímulo antigênico (doenças infecciosas e vacinação) podem ser confundidos com linfócitos linfoproliferativos e monócitos, especialmente na erliquiose canina. Os linfócitos reativos geralmente possuem citoplasma moldado pelas células adjacentes, dando a impressão de que esta sendo empurrado por estas células. O monócito se diferencia dos linfócitos reativos por se apresentar empurrando as células circundantes. Outra importante característica dos linfócitos reacionais é a sua intensa basofilia na periferia do citoplasma. 3.3.6. O meu paciente está se curando ? Acompanhar a evolução da resposta leucocitária: sexto passo Saber se o paciente está se recuperando ou respondendo bem ao tratamento instituído é de grande valia para o clínico. Alguns medicamentos como a vincristina possuem efeitos colaterais imunossupressores indesejáveis (leucopenias) que exigem um criterioso acompanhamento do quadro leucocitário durante o tratamento. A realização de leucogramas em série fornece informações precoces e precisas ao clínico sobre a evolução clínica do paciente e sua resposta ao tratamento. Diante de uma boa resposta que conduz à cura, a leucocitose, a neutrofilia e o desvio à esquerda presentes na fase de instalação da inflamação (fase de luta) diminuem gradativamente até desaparecer. A contagem de leucócitos retorna ao normal dentro de poucos dias ou uma semana após o início da cura do processo inflamatório. A linfopenia e a eosinopenia de estresse, se presentes, desaparecem com a diminuição da dor associada à inflamação. O reaparecimento dos eosinófilos é um indicador precoce da melhora clínica. Mais tardiamente, na fase de cura de infecções, devido à regeneração tecidual e ao desenvolvimento da resposta imune de 16 memória, ocorre uma elevação do número de monócitos (monocitose) e linfócitos (linfocitose) circulantes. 3.4. Saiba mais sobre avaliação laboratorial da resposta leucocitária. BUSH, B.M. Haematology. 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