Lúlio e Vives, duas fontes catalãs de - Instituto Brasileiro de Filosofia

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INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIA "RAIMUNDO LÚLIO" (RAMON LLULL)
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LÚLIO E VIVES: DUAS FONTES CATALÃS DE GILBERTO FREYRE
Vamireh Chacon
Gilberto Freyre sempre considerou Espanhas a Espanha, ele próprio
lembrou mais de uma vez a importância galega do "y" do seu nome.
Chegou até a se considerar ibérico, não só brasileiro, textualmente: "se
pertenço, como possível escritor e como possível antropólogo (...), antes à
forma ibérica de escritor e de analista do Homem que a qualquer outra,
suponho que o seja - se de fato sou - por direito tanto de quem nasceu
ibérico como de quem (...) conquistou essa sua condição ibérica em
plenitude e talvez em profundidade..."1
Portanto, o relacionamento intelectual entre Gilberto Freyre e o
pensamento hispânico, no sentido ibérico de Hispânia e não só de
Espanha, remonta a muito antes das influências recebidas de Ganivet,
Unamuno e Ortega y Gasset 2, como ele mesmo várias vezes demonstrou e
insistiu, o que tem passado desapercebido aos críticos, e agora esclareço
pormenores quanto às suas mais antigas fontes em Lúlio e Vives.
Raimundo Lúlio, Ramon Llull (de incerto nascimento, 1232 ou 1235, outro
tanto de falecimento, 1315 ou 1316), era catalão de Maiorca nas ilhas
Baleares, medieval ortodoxo, mas não muito. Luís Vives (1492 - 1540)
vinha do "País Valencià," judeu cosmopolita e renascentista, heterodoxo
mas não muito: Lúlio seduzido pelo conflito de certezas do cristianismo,
judaísmo e Islã, sem perder de todo as dúvidas; Vives outro tanto pelas
dúvidas de Erasmo, sem perder as certezas básicas judaicas, às quais veio
a assumir após nascimento de cristão-novo. Lúlio procurou conciliar fé e
sentimento, Vives ciência e arte, duas grandes contribuições, até
sistemáticas, à cultura ocidental e mundial.
Lúlio era mediterrânico universal, trafegando entre a Catalunha e o Norte
da África em auto-consignadas missões de dialogo para aproximar
cristãos, judeus e muçulmanos. Vives foi europeísta universal, professor
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nas universidades de Louvain e Oxford, vindo a falecer em Bruges,
contemporâneo do português Damião de Góes de longas permanências na
Antuérpia e Louvain flamengas. Damião de Góes e Vives foram ibéricos
amigos pessoais de Erasmo, seus destinos se cruzaram diversas vezes.
O precursor ecumenismo de Raimundo Lúlio destaca-se em O livro do
gentio e dos três sábios sobre o encontro de teólogos cristão, judeu e
muçulmano com o peregrino em busca da verdade. As contradições
daquelas teorias são apresentadas numa dialética mais de
complementaridades, que de antagonismos. Também Lúlio intentou uma
"Suma theologica et philosophica" dispersa e reconcentrada na Ars
compendiosa da Ars demonstrativa e Ars interpretativa em Ars universalis,
sintetizável em Ars brevis. Nelas ele retoma, amplia e aprofunda a
dimensão da intuição, enquanto seu contemporâneo Tomás de Aquino
enfatizava o raciocínio e o coetâneo Roger Bacon privilegiava a
experiência. A questão dos universais, vindo a Guilherme Ockham, e a
verdade (pela diversidade dos níveis da razão e da fé) em Averróes, Lúlio
as resolve pela intuição da "sapientia cordis" agostiniana, esclarecendo as
categorias lógicas aristotélicas, na sua Ars magna.3
Daí a alcunha de Raimundo Lúlio, "Doctor illuminatus".
Lúlio fez até incursões na crítica política, inclusive eclesiásticas, nas
alegorias do seu Livro dos animais (Llibre de les bésties).
Luís Vives tem catalanidade subestimada, senão negada, por culturalistas
às vezes perigosamente próximos do racismo, ao invocarem sua origem
judaica e opções eurocêntricas4, como se não pudesse haver o
universalismo catalão. O berço no "País Valencià" na realidade já lhe
proporcionava a cosmopolita transculturalidade catalã, somada e em
diálogo com a castelhana vizinha continental e as do Mediterrâneo pelo
porto de Valência. Marcel Bataillon insiste na europeidade de Vives, desde
seus tempos de jovem estudante na Sorbonne, à sua longa carreira de
professor em universidades européias.5 Daí se poder denominá-lo algo
como "Doctor academicus".
Vives quis ser e foi pedagogo, para isso autor de uma grande exposição
sistemática das ciências (De disciplinis), sua didática (De ratione dicendi)
extensiva pioneiramente às mulheres (Instrução à mulher cristã), com
apuro humanístico renascentista latino (Linguae latinae exercitatio),
consideradas como Introductio ad sapientiam. Impregnadas de moralismo
e pacifismo (De concordia et discordia e De pacificatione).6
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Gilberto Freyre recorre explicitamente a Raimundo Lúlio e Luís Vives,
quando quer revelar as fontes das suas inspirações metodológicas
humanistas mais profundas, muito além das convencionais da
antropologia, sociologia e história social, nas quais fora treinado nas
universidades de Baylor e Columbia nos Estados Unidos, na Inglaterra a
de Oxford, em bacharelado, mestrado e inícios de inconcluso
doutoramento.
Em 1921 Gilberto Freyre inclui Lúlio e Vives ao nível de Cervantes, El
Greco e Velásquez,7 culminâncias hispânicas no sentido de ibéricas.
Enquanto, para toda a vida, o que atrai Gilberto Freyre em Raimundo
Lúlio, é que "esse modo antes poético que lógico (...) é característicamente
ibérico - de parte considerável de gente ibérica": vem do Lúlio catalão aos
castelhanos São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, Frei Luís de
Granada e aos jesuítas São Francisco Xavier (basco) São João de Brito
(português). Gilberto Freyre aqui se baseava em O livro do amigo e do
amado de autoria de Lúlio, por ele citado no catalão original, El llibre
d'amic e d'amat, o que demonstra a relevância do interesse freyreano pela
cultura catalã. A existencialidade é o intra-histórico de Lúlio a Unamuno.8
O intra-histórico mulçumano é de especial importância para o catolicismo
ibérico, segundo Gilberto Freyre, e "Ramon Llull [ele o refere também em
catalão] ou Lúlio foi, desde o séculoXIII, um traço de união entre o
cristianismo e o islamismo".9 Lembre-se a grande significação das
contribuições árabes mulçumanas, reconhecidas e proclamadas por
Gilberto Freyre, às culturas ibéricas e de lá ao Brasil e América
Hispânica, desde o início (Casa-grande & senzala, 1933) ao término
(Insurgências e ressurgencias atuais, 1983) do seu itinerário intelectual.
Entre as inspirações mouriscas, a mística vindo de Lúlio aos santos João
da Cruz, Teresa de Ávila e Inácio de Loyola, em seus místicos impulsos tão
intensos que pouco ocidentais. Baltasar Gracián com realismo moderno
quase moralismo em El criticón.10
A paixão de Lúlio pela cultura árabe e admiração pelo próprio Islã
levaram-no a aprender seu idioma e sua religião e a ensiná-los a
missionários, que ele queria pacíficos e pacifistas na linha de São
Francisco de Assis, com longa permanência anterior e posterior na
Palestina, Terra Santa.11 O martírio de Lúlio entre os mouros é
controvertido historicamente, mas, se houve, foi resultado dos excessos de
autoridades políticas abusando da união entre Islã e Estado, em proveito
mais do segundo que do primeiro.
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Fascínio de Raimundo Lúlio em especial e dos franciscanos em geral,
levando-os à prática da arte gráfica dos arabescos em meio a um maior
gosto pelas ciências naturais de plantas e animais. Também na linha do
nominalismo anti-aristotélico de Ockham. Com o prazer das cores fortes e
variadas vindo da África12, em contraste com a Europa então no
acinzentamento dos rigores medievais, mesmo quando contra a ortodoxia
católica, ao com ela pretenderem concorrer em severidade as novas seitas.
Luís Vives é redescoberto por Gilberto Freyre quando estudante em
Oxford, 1922: "Vives é aqui muito estimado. Decerto um dos motivos
dessa estima é ter estado ele em Oxford, onde lhe foi dado o título de
doutor h. c.", "honoris causa" em "civilis legis", por ter ali ministrado, no
Renascimento em 1523, "dois cursos memoráveis: um de humanidades,
outro de jurisprudência. Ou, antes, os dois de humanidades, pois, para
Vives, jurisprudência era filosofia do direito." "É tradição que vieram
ouvir as lições proferidas por Vives em Oxford, o rei, a rainha e grandes
da corte".13
A admiração gilberteana por Lúlio e Vives acompanhou-o durante toda
sua vida; regozija-se ao ver Américo Castro, em La realidad histórica de
España, reconhecer "que Lúlio Vives tornou-se precursor da antropologia
experimental através da ampliação do processo experimental de
introspecção dos místicos espanhóis, 'introspectando-se
autobiograficamente' (...) sobre a realidade não só histórica como intrahistórica das Espanhas", antecipando-se nisto a Dilthey e influenciando
Unamuno. "Porque a Ciência do Homem, de tradição mais genuinamente
hispânica [ibérica] é uma ciência dependente, pelo fato de ser antes
qualitativa que quantitativa, antes impressionista que estatística, antes
psicológica que lógica..."14
A especial atenção de Gilberto Freyre pela cultura catalã vem até o século
XX, nas influências recebidas do ensaísmo de Eugênio d'Ors e Ferrater
Mora noutros textos.
Tudo isso converge, por vivência intensa extensa em Gilberto Freyre, na
conclusão pessoal, aberta a todas as outras, que a arte é mais importante
que a ciência e a própria vida mais ainda que a arte. Entre suas leituras e
experiências ressaltam em Gilberto Freyre as dos autores e realidade
ibéricos, de início os catalães étnico Raimundo Lúlio e de origem judaica
Luís Vives, cada qual universal a seu modo.
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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1) Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1968, p. 175.
2) Élide Rugai Bastos concentra-se na Geração de 1898. Vide Gilberto
Freyre e o pensamento hispânico. Bauru-São Paulo: EDUSC-ANPOCS,
2003.
3) Vide Josep Maria Ruiz Simon, A arte de Raimundo Lúlio e a teoria
escolástica da ciência. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
"Raimundo Lúlio" (associado ao Institut Ramon Llull de Barcelona),
2004, pp. 21, 22, 78, 79 e passim. Do catalão, 1999.
4) É o raciocínio de Joan Fuster, Nosaltres els valencians. Barcelona:
Ediciones 62, 2004 (1ª ed. em 1962), p. 189.
5) Bataillon, Marcel. Erasmo y España (Estudios sobre la historia espiritual
del siglo XVI). México-Madrid-Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 4ª reimpressão (1991) da 1ª ed. em espanhol castelhano (1950),
pp. 633, VII e 17; do francês, 1937. J. V. Pina Martins escreveu o também
magistral Humanismo e erasmismo na cultura portuguesa do século XVI,
Paris, Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1973.
6) Bataillon, op. cit., pp. 615, 616, 633-636, 615, 616, 544, 645, 635, 636, 188
e 615-620.
7) Tempo morto e outros tempos (Trechos de um diário de adolescência e
primeira mocidade. 1915-1930). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1975, p. 5.
8) "Prefácio". A propósito de frades, Salvador: Publicações da
Universidade da Bahia, 1959, pp. 6 e 108.
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9) A propósito de frades, op. cit., p. 100.
10) Idem, p. 100.
11) Ibidem, p. 7.
12) Ibidem, pp. 85, 84 e 83.
13) Tempo morto e outros tempos, op. cit., pp. 110 e 97.
14) A propósito de frades, op. cit., pp. 96 e 113.
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