Trabalho originalmente apresentado para a cadeira de Filosofia Geral

Propaganda
Trabalho originalmente apresentado para a cadeira de Filosofia Geral.
Professor Ricardo Ribeiro Terra.
A Maturação do pensamento de Marx
por Miguel Duclós
Este trabalho trata de um período histórico-filosófico grande. Abordo
aqui desde algumas leituras marcantes para o Jovem Marx até o primeiro
capítulo da obra prima deste, O Capital, livro que é fruto uma vida inteira de
estudos e coroação de sua maturidade como pensador e teórico. Porém,
nosso artigo não tem a pretensão de tratar todos os conceitos fundamentais
que foram determinantes para a maturidade do pensamento marxiano, mas
sim se limitar a três conceitos específicos incluídos em três obras de Marx. Na
primeira, Os manuscritos Econômico - Filosóficos, de 1844, será destacado o
conceito de alienação, bem como o estilo ainda Feuerbachiano do autor. Na
segunda, A ideologia Alemã e nas Teses sobre Feuerbach, será destacado a
ruptura de Marx com sua consciência filosófica anterior, e sua formulação,
junto com Engels, da teoria que seria uma das designações do seu
pensamento: o materialismo histórico. No centro de tal teoria está o conceito
de Ideologia, que será relacionado com a explanação sobre o fetichismo da
mercadoria no primeiro capítulo de O Capital.
Feuerbach havia demonstrado, em A Essência do Cristianismo, a tese
escandalosa para a sociedade da época, que a essência da religião é a
essência do ânimo humano, e que a teologia pode ser explicada pela
antropologia. Explica o autor que as representações e segredos atribuídos a
um Ser sobre-humano não eram mais do que representações humanas
naturais, e que aquilo que no imaginário pairava no Céu, pode ser encontrado
sem maiores dificuldades no solo da Terra. Dessa forma, o homem transporia
para o Céu o ideal de justiça, bondade e virtude que não conseguia realizar na
Terra. Colocaria num grau universal e absoluto atributos e qualidades de si
mesmo. Todos os Deuses não seriam então, mais do que criações humanas.
Feuerbach reconhece o sistema de Hegel como uma teologia especulativa, e
critica a Idéia absoluta, que seria baseada na revelação e encarnação cristãs,
ultrapassando assim o racional e se tornando teologia. Coloca em seu lugar a
noção de Ser genérico do homem. A teologia, religião institucionalizada, é
fonte de dogmas a abstrações metafísicas que perdem a ligação com o real e
palpável. Cada religião pretende ser a detentora da verdade, e isso é motivo
de fanatismo e intolerância com outras formas de pensamento. A verdade
acessível apenas a alguns (revelada pela fé), sem critérios objetivos, torna
fácil a manipulação de pequenos grupos sobre os demais, por se tratar de
algo que não pode ser demonstrado com base em elementos sensíveis.
Feuerbach inicia A essência do Cristianismo dizendo que o homem difere
do animal por ter uma consciência no sentido estrito, ou seja, sua consciência
"tem por objeto o seu gênero, a sua essencialidade" 1. Essa consciência do
homem enquanto espécie, que é próprio deste por fazer parte de sua ciência,
o difere do animal. Do outro lado está a "consciência de si". Afirma Feuerbach
sobre ela:
"A consciência de Deus é a consciência de si do homem, o conhecimento
de Deus é o conhecimento de si homem. Pelo seu Deus conheces o homem e,
vice-versa, pelo homem conheces o seu Deus; é a mesma coisa." 2
Essa idéia de que a natureza dos deuses difere na mesma proporção da
natureza dos povos não é nova. Feuerbach realmente desenvolve algumas
frases dos pensadores pré-socráticos, como sua frase de que o "ser é, o não
ser não é", tomada emprestada de Parmênides e aplicada em um contexto
mais profunda. Xenófanes de Colofão, mestre de Parmênides, ficou famoso
por ser um dos primeiros filósofos a defender a unidade da divindade, o
monoteísmo. Também afirmava, como Feuerbach, que a natureza dos Deuses
variava com a natureza de quem os adorava. Vejamos os seguintes
fragmento de Xenófanes:
"Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com
as mãos desenhar e criar obras como os homens,
os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois,
desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios
têm". E mais adiante:
"os egípcios dizem que os deuses tem nariz chato e são negros, os
trácios, que eles tem olhos verdes e cabelos ruivos."3
Por esses trechos, vê-se que, mesmo antes da ascendência do Deus
cristão, já havia uma crítica à antropomorfização dos Deuses. Para Feuerbach,
uma essência finita não pode ter a mais remota idéia de uma essência
infinita. Também Hegel afirma, em Introdução à História da Filosofia, que o
homem não pode conceber o que é o Infinito porque só pode empregar para
isso categorias finitas. A religião cristã pretende a essência do homem infinita,
mas para Feuerbach o homem só pode ter consciência de tal essência se ela
for razão, vontade e pensar. A consciência de si do homem vem pela
consciência do objeto. Feuerbach inicia assim sua busca de superação do
subjetivo. O que nas antigas religiões era considerado objetivo, hoje é apenas
reflexo de idéias que só podem ser sentidas por abstrações, pertencendo
portanto ao interior do homem. Feuerbach constata que a teologia se
transformou em antropologia há muito tempo.
Sua crítica às religiões pretende ser universal, buscando o que há de
comum a todas as religiões. Chega à conclusão de que o mundo
transcendente e a caracterização humana dos personagens divinos é comum
nas religiões. Porém, essa generalização é no mínimo complicada. Muitos
povos não podiam separar o sujeito do objeto, ou seja, o indivíduo nada mais
era do que parte integrada do ambiente, e não podia ser entendido fora do
seu quadro social. A religião muitas vezes não reconhece em sua idéia de
divindade características humanas. Pois, afinal, o homem é apenas uma parte
do todo, e nesse caso Deus é identificado com a totalidade da Natureza. Isso
ocorre no panteísmo e em algumas religiões indígenas e orientais. A natureza
é entendida como um complexo sistema de ambientes que existe
independente da percepção humana. O egoísmo e a vaidade são os
responsáveis por representar a divindade como algo humano, e a raça
humana como herdeira da Terra. De fato, não é preciso ir muito longe para
concluir que a idéia do planeta existir para servir ao homem constitui
equívoco grave. O que Feuerbach fala é válido sobretudo para a religião
judaico-cristã. No Velho Testamento está escrito que Deus fez o homem à sua
imagem e semelhança, e no Novo Testamento é um homem que se faz Deus.
Para Feuerbach isto é uma inverção da relação sujeito-predicado. O homem
cria um sujeito infinito e atribui a ele a criação de si.
A teoria feuerbachiana causou profunda influência na filosofia do século
XIX. Os primeiros a se entusiasmarem com ela foram os jovens hegelianos,
dentre eles Marx, que trataremos adiante. Mas a noção materialista de
humanismo ateu iria alcançar um reflexo maior no século em que foi
proclamada a morte de Deus. Quem mais alto bradou sua morte foi Nietzsche,
inicialmente em A Gaia Ciência, e posteriormente em sua obra-prima, Assim
Falava Zaratustra. Nietzsche engendra uma crítica severa à moral cristã, que
para ele é ascética e mortificadora da vida - a moral dos escravos, que limita
a Vontade de Potência. No lugar da metafísica, Nietzsche propõe um apego
aos valores da Terra, lugar onde o além-homem - aquele que cria seus
próprios valores - direcionaria sua vida e sua paixão. No trecho adiante está
uma passagem em que fica claro a relação entre o apego de Nietzsche à
filosofia terrena e o materialismo de Feuerbach que prega o mundo sensível:
"Em outras eras, blasfemar contra Deus era o maior dos absurdos;
porém Deus morreu, e morreram com ele tais blasfêmias. Agora, o que causa
mais espanto é blasfemar da Terra, e ter em mira as entranhas do
impenetrável e não a razão da Terra." 4 A título de curiosidade, vejamos o
que Nietzsche fala em O Crepúsculo dos Ídolos: "O homem seria tão somente
um equívoco de Deus? Ou então seria Deus apenas um equívoco do
homem?"5 . Como se vê, o cerne do pensamento nietzscheano encontra
procedência em Feuerbach. Outros paralelos podem ser traçados, como o da
crítica ao plano transcendente, herança religiosa e platônica:
"Este mundo, o eternamente imperfeito, pareceu-me um dia a imagem
de uma contradição eterna, e uma alegria inebriante para o seu imperfeito
criador (...) Ai, meus irmãos! Este Deus que eu criei era obra humana e
humano delírio, como os demais deuses.
Era homem, apenas um fragmento de homem e de mim. Esse fantasma
surgia das minhas próprias cinzas e da minha própria chama, e realmente
nunca veio do outro mundo" 6
Como se vê, filósofos das mais diversas áreas de atuação se
aproveitaram das veredas abertas pela crítica de Feuerbach à religião e à
teologia. Mas tal alcance não o livrou de críticas, como por exemplo a dos
religiosos, que sugeriram um outro título para o seu livro: "A essência do
Anti-Cristianismo" e a do pensador anarquista Max Stirner, que fazia parte da
esquerda hegeliana. Stirner -criador de um individualismo radical que
fundamenta a liberdade- ataca Feuerbach dizendo que este substituíra
meramente a palavra Deus pela palavra homem. Dessa forma, Feuerbach
rezaria pelo homem. Segundo Stirner, ele não teria deixado de ser hegeliano,
porque apenas transpôs o ideal teológico e divino por uma noção abstrata de
humanidade.
Mas Feuerbach teve influência ativa nos hegelianos de esquerda. Engels
escreveria, mais tarde, que todos os neo-hegelianos foram feuerbachianos.
Dentre eles estava Marx, que de inicio adotou alguns conceitos e terminologia
de Feuerbach. No primeiro manuscrito de 1844, Marx trata da questão da
alienação. Tal termo fazia parte do vocabulário de Feuerbach, para quem a
religião era uma alienação, pois, colocando sua essência e sua humanidade
num Ser fora de si próprio, no mundo invertido da divindade, o homem vira
um ser que não se pertence. Esse é o aspecto religioso da alienação que
Feuerbach usa. O homem adora os ídolos que projeta. O próprio Marx afirma
que, quanto mais se atribui a Deus, menos sobra para o homem .7
O termo alienação foi usado também por Hegel, fazendo parte da
dialética, pois o homem aparecia em cada etapa da dialética como distinto do
que era antes. Althusser observa que Marx aplicou a teoria da alienação de
Feuerbach à política e a economia. 8 Para Althusser, Marx "esposou" a
terminologia e a problemática de Feuerbach durante as suas obras de
juventude.9 Por isso, o impacto das obras de 1845, no momento em que
rompe com Feuerbach seria muito grande.
Para Marx, a alienação religiosa seria gerada pela alienação econômica.
Tal estado é, para Marx, resultado da realização de o trabalho aparecer como
a desrealização do trabalhador. O objeto produzido pelo trabalhador aparece
como estranho e independente a ele. As mercadorias existem para suprir
necessidades. O sistema capitalista transforma o trabalhador e o trabalho em
mercadorias, ao privar o trabalhador dos objetos que produz. Quanto mais ele
produz, menos pode possuir. Essas apropriação do objeto pelos possuidores
da propriedade, se realiza como alienação do trabalhador. Este, ao pôr sua
vida na produção de objetos que não lhe pertencem, perde a posse desta.
Como afirma Marx, "a alienação do trabalhador no seu produto significa
não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência
externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se
torna um poder autônomo em oposição com ele".10
Marx critica a economia política de então esconder a verdadeira relação
entre o empregado e o empregador. O Estado submete os trabalhadores a
seus próprios interesses. O trabalhador ganha um salário que não consegue
comprar os produtos que ele próprio produziu. Ele produz coisas para os ricos,
mas pouco sobra para ele. Esta é a contradição básica do sistema capitalista
na época de Marx. O empregado aparece então apenas como instrumento
para o bem estar dos possuidores.
Marx, dialeticamente, oferece um quadro de inversões para as atividades dos
trabalhadores: quanto mais produz, menos possui, quanto mais civilizado é o
produto feito por ele, tanto mais bárbaro ele se mostra. Nas fábricas as
limitações a que o empregado é submetido, como os movimentos repetitivos,
as jornadas de trabalho sobre-humanas, o baixo salário, a repressão e outras,
apenas evidenciam seu caráter apenas funcional. Ele não transforma mais a
natureza para fazer coisas que estão relacionadas a ele, ou que vão beneficiálo diretamente. Sua atividade apenas vai garantir que não morra de fome,
pois o salário mínimo é a soma das condições mínimas de subsistência
(alimentação e moradia).
A alienação para Marx ocorre não na relação do trabalhador com o
produto de seus trabalhos, mas também na própria atividade produtiva. Ou
seja, o trabalho não pertence à natureza do trabalhador, mas sim é condição
para que esse sobreviva minimamente, sendo obrigado a se adequar à
condições de trabalho acima descritas. Por esse fato, ele apenas se esgota, e
não se realiza na plenitude de suas capacidades mentais e físicas. Como
afirma Marx, o trabalho "não constitui a satisfação de uma necessidade, mas
apenas um meio de satisfazer outras necessidades". 11 Estas outras
necessidades geralmente se reduzem à prioridades mínimas, como
alimentação, moradia. O meio para satisfazê-las é o dinheiro, um valor que
não existe naturalmente, mas é abstraído e convencionado. O trabalhador
vendeu seu tempo, seu sentimento, sua força, suas aspirações pelo dinheiro,
e na posse de algum, pode trocá-lo por qualquer tipo de mercadoria, inclusive
pelas que ajudou a produzir. Este trabalho alienado é um processo de
mortificação, em que homem exerce uma atividade cansativa que não condiz
com sua aspiração de indivíduo opinante, de cidadão livre, ou mesmo de
animal, que tem emoções, orgulho, instinto, prioridades físicas. Marx afirma
que o trabalhador só consegue ser livre nas funções animais, como beber,
procriar, comer, mas nas atividades humanas se vê reduzido a animal. Mas
estas funções animais primárias estão implicadas com o sistema social a
ponto de perderem seu sentido original.
O homem, ao modificar sua animalidade e sua humanidade,
subordinado-a a um sistema social de valores e limitações, modifica-se, perde
sua essência. E as esperanças humanas são então projetadas em um além,
num Ser Divino, perfeito, de valores eternos. Esta alienação religiosa,
subordinada à alienação econômico-política, leva o homem à incapacidade de
reconhecer sua humanidade em si mesmo, porque seu Deus é definido por
tudo aquilo que ele mesmo não possui, ou que perdeu.
Marx, depois de reconhecer dois aspectos do trabalho alienado - a
relação do trabalhador com o produto de seu trabalho, e a relação do
trabalhado ao ato de produção, a auto-alienação - fala de uma terceira
determinação do trabalho alienado, que parte das outras duas. Marx, usando
de um vocabulário feurbachiano sobre Ser genérico, afirma que os dois
primeiros tipos de alienação alienam o homem enquanto espécie. A atividade
produtiva se transformou em social. Os meios de sobrevivência do homem
estão condicionados pelas leis de mercado e do trabalho. Dessa forma, a vida
genérica do homem serve de meio para a vida individual, pois a atividade
produtiva é o único modo de continuar existindo fisicamente. Marx então faz
uma comparação entre o homem e o animal, que lembra muito a Introdução
da Essência do Cristianismo. Ele afirma o animal é a sua própria atividade,
não se distingue dela.12 Enquanto o homem possui uma "atividade vital
consciente", pois submete sua atividade vital à vontade e à consciência.
Feuerbach, como já observamos, afirmava que a diferença principal entre o
homem e o animal é que o homem tem consciência no sentido estrito, que
tem como objeto o seu gênero, a sua espécie.13
Marx continua sua argumentação observando que, se o animal também
produz, o homem reproduz toda a natureza, enquanto o animal apenas se
reproduz a si. É interessante notar que Marx, embora esteja tratando de uma
questão já exposta por outros autores, consegue aprofundar as questões,
usando um vocabulário ainda hegeliano, ainda feuerbachiano. Isso acontece,
porque naquele momento, Marx transformava sua consciência filosófica em
economia política. Os Manuscritos tem esse duplo caráter, o filosófico e o
econômico. Segundo Althusser, os encontros anteriores de Marx com a
economia política tratavam apenas de algumas questões e efeitos
relacionados com a política econômica. 14 Marx encara, nos Manuscritos, a
Economia Política de verdade, formulando teorias que tratam dela como um
todo, procurando seus fundamentos. No início dos Manuscritos, Marx afirma
que a Economia Política de então parte do fato da propriedade privada sem o
explicar. A propriedade privada era pressuposto, por isso os economistas não
a haviam problematizado como deviam. Nos Manuscritos, são levantados
diversos conceitos e problemas que aparecerão mais tarde em O Capital. Marx
analisa a economia política burguesa a partir de um conceito chave, o de
trabalho alienado.
O homem, ao reproduzir-se fisicamente na natureza através da
transformação da mesma pelo trabalho, reflete a si próprio no mundo
objetivo. Sua individualidade é refletida pela obra que ele mesmo criou. Como
já dissemos, a atividade produtiva é social, ou seja, pertence à vida genérica
do homem, que ao representar-se, representa também a humanidade. O
trabalho alienado tira do homem o fruto de sua produção, tirando assim, ao
mesmo tempo, a sua vida genérica. Para Marx, o homem só era capaz de
realizar suas forças intelectuais e físicas interagindo com o ambiente. O
homem depende da natureza para crescer e conseguir sustento. Sua
consciência não pode ser fechada, subjetiva, mas sim ser moldada pela
realidade natural e social. O trabalho alienado transforma o homem estranho
a si mesmo e ao ambiente onde vive. Segundo a concepção etimológica,
alienatus é aquele que não se pertence, aquele que pertence a outro. O
homem, alienado-se no seu trabalho, na sua vida genérica, aliena-se também
dos outros homens. Marx continua dizendo que o ser estranho a quem
pertence o trabalho alienado tem de ser algo real, objetivo. Dessa forma, não
é nem à natureza nem aos deuses que ele pertence, mas sim ao próprio
homem. O produto do trabalho pertence a alguém distinto do trabalhador, ou
seja o capitalista. O trabalho é sofrimento para alguns, enquanto suas
condições o afastam de si e da natureza, mas é fruto de gozo para aquele que
desfruta dos produtos.
Portanto, a propriedade privada é fruto do trabalho alienado. A
propriedade privada, para Marx, é conseqüência e causa do trabalho alienado,
da mesma forma que o salário também é conseqüência deste. Marx chegou
ao conceito de trabalho alienado a partir da economia política, que "tudo
atribui 15 à propriedade privada" e nada ao trabalho. Ela apenas formulou as
leis do trabalho alienado, e não denunciou o seu caráter hostil à natureza
humana, escravizador, que transforma o homem em um instrumento da
riqueza de outros. Marx, depois de explicitar as implicações do trabalho
alienado, parte para a explicação da propriedade privada.
Essa importância que Marx dá às condições materiais da transformação
humana, esta aplicação da economia à filosofia levariam Marx a romper com o
idealismo da esquerda hegeliana. A famosa afirmação de Marx, no Manifesto
Comunista, de que a história de toda sociedade até hoje tem sido a história
da luta de classes, está ligado à maturidade de seu pensamento que encontra
marco definitivo no ano de 1845, com a publicação de A Ideologia Alemã, em
co-autoria com seu amigo, Engels. Neste livro estão lançados a base do
materialismo histórico e do materialismo dialético, que ficaram sendo
conhecidos como uma designação da teoria marxista, apesar de Marx não
usar exatamente estas expressões, mas sim "concepção materialista da
história". Nas teses sobre Feuerbach, Marx dirige àquele que havia sido seu
inspirador, como já vimos, críticas duras. O centro dessa crítica é
fundamentado pela economia, pela atividade humana produtiva, pela política.
O motor da história não pode ser, de modo algum, as idéias ou as teorias,
mas sim a atividade humana objetiva - o trabalho.
Os filósofos sempre separaram o mundo intelectivo do mundo cotidiano,
prosaico. De fato, há essa diferença entre o ócio e o negócio. O cultivo do
espírito, necessário para as atividades intelectuais, não se realiza com o
trabalho obrigatório. Os filósofos, muitas vezes propuseram uma linha de
ação
prática,
como
Bacon
e
Descartes,
mas
a
filosofia,
na
contemporaneidade, perdeu muito espaço para a ciência, às vezes ocupando
até um papel adjunto, de fundamentação da ciência. Isto se deve sobretudo à
aplicação prática da ciência. A ciência é o saber racional do mundo, mas suas
descobertas tem valor prático sobretudo por direcionar melhor a
transformação da natureza em produtos utilizáveis pelo homem.
Marx critica os filósofos por desprezarem a praxis e se preocuparem
apenas com a teoria. A praxis estava sendo entendida até então como uma
atividade suja e mundana, e não estava sendo respeitado seu caráter
revolucionário. Marx ataca Feuerbach por limitar sua crítica da auto-alienação
ao terreno religioso, divino. O fundamento terreno que projeta nas nuvens
um reino autônomo deve ser explicado pela decadência e contradições
presentes no próprio processo evolutivo terreno. Por isso, a realidade terrena
deve ser revolucionada. O fato de que as relações sociais são todas práticas e
sensíveis leva à revelação que o indivíduo abstrato, sozinho, é apenas social.
A XI tese adquire importância como crítica à filosofia, especialmente ao
Idealismo alemão, que representavam o mundo invertido, do invisível
colocado acima do sensível, da idéia colocada acima da matéria.
Marx critica, em Sobre a Questão Judaica, esta inversão. Vejamos este
famoso trecho:
"O fundamento da crítica religiosa é o seguinte: o homem faz a religião,
a religião não faz o homem (...). O homem é o mundo do homem, o Estado, a
sociedade. (...) Portanto, a luta contra a religião é indiretamente a luta contra
aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A religião é o suspiro da
criatura oprimida, o sentimento de um mundo perverso, e a alma das
circunstâncias desalmadas. É o ópio do povo". 16
Nas teses sobre Feuerbach, Marx afirma que o sentimento religioso é um
produto social relacionado a uma forma determinada de sociedade. Para ele, a
fonte da deficiência religiosa deveria ser buscada na deficiência do próprio
Estado. Esta deficiência deveria ser suprimida com a tomada de consciência
do homem como um ser espécie, num coletivismo que mudava o homem
individual, abstrato. Daí advém a divisão da sociedade em classes sociais.
Marx lembra que o homem não é apenas um produto das condições materiais,
pois a interação com a natureza possui um aspecto criativo e subjetivo. As
circunstâncias são feitas pelos homens, e o próprio educador deve ser
educado. Mas sua crítica ao idealismo é cortante, como se vê no Prefácio à
Economia Política, onde Marx diz: "O processo de vida material condiciona o
processo de vida social, política e individual em geral. Não é a consciência dos
homens que lhes determina o ser, mas pelo contrário, é o seu ser social que
lhes determina a consciência."17 E em A ideologia Alemã afirma que não é a
consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a
consciência. 18
O termo ideologia foi criado por Destutt de Tracy, que fazia parte de um
grupo chama de ideólogos franceses. Nesse grupo constam também nomes
como Cabanis, Volney, Garat, Daunou. A ideologia é a ciência que tem por
objeto de estudo as idéias, suas origens, formação e relação com os signos.
Posteriormente, em um sentido mais amplo passou a significar um sistema de
idéias que refletem uma visão de mundo e orientam uma ação política. Marx,
como fez com o conceito de alienação, toma o termo num sentido próprio,
dando-lhe conotação pejorativa.
Marx inicia A ideologia Alemã ironizando os pensadores recentes
hegelianos por acharem que uma revolução no plano do pensamento foi mais
importante que a Revolução Francesa. A Alemanha estava atrasada em
relação aos outros países da Europa, como a França e a Inglaterra. A
Inglaterra era o pais mais industrializado, e foi em sua vivência na França
que Marx se tornou verdadeiramente um comunista. A Alemanha sofreu um
processo de unificação tardio com Bismarck, e nela ainda estavam presentes
certos elementos feudais. Para Marx, a filosofia alemã estava ainda
nitidamente ligada ao sistema hegeliano, de forma que toda a crítica que se
empreendeu ao hegelianismo não a tornava independente e superadora de
Hegel. Esta crítica é dirigida especialmente a Feuerbach, Bruno Bauer e Max
Stirner. Apesar das frases destes pensadores que supostamente abalaram o
mundo, Marx denuncia seu caráter conservador. Para Marx, a chave estava na
conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã.
A mudança do modo de produção artesanal, feudal, para o modo de
produção capitalista acarretou uma série de exigências dos novos grupos
comerciais, como por exemplo a livre competição econômica. Os valores
entendidos como representações da realidade ignoravam a base de toda
ideologia, a existência no plano material, sendo entendidos como válidos para
toda a humanidade, quando na verdade eram pertencentes apenas a uma
classe determinada, geralmente a dominante.
O grau de avanço de um país, portanto, é determinado pelas relações de
trabalho e pelas formas de produção. Marx aplica então esta concepção à
história, afirmando que cada nova fase da divisão de trabalho acarreta uma
mudança nas relações entre os indivíduos. Assim, inicia uma teoria da
história, onde o homem ativo - aquele que produz as condições materiais de
existência- teria evoluído em diferentes estágios, desde os tempos de
caçador-coletor. Apresenta três formas de propriedade: a tribal, a comunal e
a estamental. A quarta forma de propriedade estaria ainda acontecendo: a
propriedade burguesa. Como observa no Manifesto Comunista, a burguesia
revolucionou totalmente a economia e as formas de produção, gerando um
novo tipo de mercadoria industrial. A burguesia teria acabado com antigas
tradições da cultura popular, de formas de relacionamento. Marx inclusive
chega a afirmar que a burguesia transformou as relações familiares em
relações monetárias.
Com a Revolução Industrial e a produção em escala, os países mais
adiantados conseguiram acumular uma riqueza jamais vista. O homem, ao
satisfazer suas primeiras necessidades, chega inevitavelmente a novas
necessidades. Para satisfazer suas novas necessidades, precisava transformar
os meios de produção, que estariam constantemente se revolucionando.
A questão se houve ou não um corte no pensamento do Marx maduro para o
jovem Marx é respondida pelo próprio com sua afirmação de que ajustara
suas contas com o a consciência filosófica de outrora. Iniciar a Ideologia
alemão com a crítica aos jovens hegelianos, grupo ao qual fez parte, marca
seu avanço em direção a uma visão própria. Como mostramos, seu
vocabulário, e sua própria consciência de si anteriores eram feuerbachianos
ou inspirados em outras filosofia. Foi cm sua análise do sistema capitalista e
seu apego à Economia Política que Marx traçou profundamente seu marco na
história. O socialismo, ao qual só aderiu tardiamente, adquiriu com ele status
científico. É na relação de O Capital com as outras obras que podemos
identificar este rompimento de pensamento. Resta perguntar se foi um corte
político ou epistemológico. Louis Althusser foi criticado por estabelecer "fases"
para Marx, desde sua juventude como romântico em Bonn até o intelectual
máximo da esquerda. Althusser afirma, em Análise Crítica da Teoria Marxista,
que houve uma "cesura epistemológica" situada na Ideologia alemã. Nesta
obra estão novos conceitos em profusão, que ainda seriam desenvolvidos e
que mostram sem nenhuma duvida que Marx passou a fazer uma nova teoria
da história, e uma teoria da ciência. Porém, como em toda transição, sempre
encontramos elementos antigos ainda não totalmente superados nas novas
realizações. Marx não chegou ao estilo claro e ao mesmo tempo erudito de O
capital do nada, mas evoluindo de si mesmo, e arregimentando cada vez mais
a filosofia, a ciência, a economia para transformá-las.
O Primeiro capítulo de O Capital é destinado à análise da mercadoria. A
mercadoria é um objeto que satisfaz as necessidades dos homens, e
distingue-se por qualidade e quantidade. Uma mercadoria pode ter valor de
troca e valor de uso. O valor de uso é real, imediato, determinado pela
utilidade. As mercadorias com esse valor diferenciam-se pela qualidade. O
valor de troca pode apenas ser diferenciado pela quantidade, pois produtos
iguais tem o mesmo valor. Dessa forma x mercadorias a eqüivalem a y
mercadorias b. A quantidade de trabalho empregados nestas mercadorias
estabelecem o valor de troca entre elas. Mas a relação entre as mercadorias,
entre os produtos, não existe por si só. É a convenção social quem determina
o valor de uma mercadoria em relação a outra. Pois foi relacionando-se
socialmente que o homem logrou produzi-la. No capitalismo, esta base social
da mercadoria aparece como encoberta. A igualdade do esforço humano de
produção (trabalho) fica disfarçada sob a igualdade dos produtos como
valores. A mercadoria tem características sociais, na medida em que os
homens trabalham uns para os outros. O homem que consegue se manter
sozinho foi superado desde a aparição da primeira sociedade, a tribal. Na
primeira forma de interação social, a família, já está implícito a dependência
dos membros de um grupo entre si. Um ferreiro que só mexe com ferro
necessita de pão. E o padeiro que só mexe com pão necessita de ferro. Esta
característica da produção foi levado ao máximo no sistema capitalista, onde
o trabalho é especializado e há padrões universais para o intercâmbio de
trabalhos e de mercadoria, como o valor do ouro e do dinheiro.
O mistério da mercadoria consiste no encobrimento das características
sociais dos produtos do trabalho humano, que aparecem como características
materiais e pertencentes ao próprio objeto. Em última análise, o valor de uma
coisa é atribuído pelo sujeito. Uma muleta não teria muito valor para atleta
saudável, mas seria indispensável para um manco. Um produto nada mais é
do que a natureza transformada. Uma muleta é madeira transformada,
medida, trabalhada. Mas não deixa de ser mera madeira, se olhada
objetivamente. No entanto, esta mesma madeira é transformada em
mercadoria. O homem, um ser físico estabelece uma relação com a madeira,
outra coisa física. Mas o valor da madeira enquanto mercadoria nada tem de
físico. Ou como afirma Marx, "Uma relação social definida, estabelecida entre
os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre as
coisas."19 A isto Marx chama de fetichismo da mercadoria. As coisas,
tomadas num ponto objetivo, tem apenas existência material. É no plano
físico onde acontecem as coisas, o trabalho, a transformação. No entanto, é o
homem que, abstraindo e convencionado com outros homens através da
linguagem, transforma o objeto em uma mercadoria de valor pessoal,
subjetivo. E com a troca de mercadoria, estabelece-se um outro tipo de valor.
Os trabalhos pessoais e privados pertencem ao todo do trabalho social,
e é a relação social entre os indivíduos que cria a relação entre os trabalhos.
Os homens, inconscientemente, igualam os diferentes tipos de trabalho e
produtos numa qualidade comum do trabalho humano. Dessa forma, o valor
de uma mercadoria é um signo social, que precisa ser decodificado por
padrões comportamentais comuns para se efetivarem como valorosos em um
sentido específico.
O interessante é notar a relação do conceito de mercadoria com a
diferença clássica da filosofia entre a coisa-em-si e a coisa-para-si. Esta
distinção problematizada por Kant na forma de aporia, levada ao máximo no
Idealismo e colocada sob outra perspectiva pelo Absoluto hegeliano, é um
problema filosófico diretamente ligado aos autores que mais influenciaram
Marx. Este, por sua vez, aplica-o aos valores do mercado e da economia, sem
largar mão de sua posição materialista. Marx, afinal, não nega que as coisas
adquirem um valor apenas na perspectiva do sujeito, mas submete esta
perspectiva à relações definidas entre os membros do corpo social. Não é o
indivíduo sozinho que, em sua percepção estabelece relações determinantes
para o modo de se ver a realidade, mas sim as relações sociais entendidas
com base em coisas materiais, existentes além da existência individual.
Notas
1.FEUERBACH, Ludwig, A essência do Cristianismo, página 9. Editora
Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução de Serrão, Adriana Veríssimo.
Lisboa, Portugal. Voltar
2.Idem, página 22. Voltar
3. XENÓFANES de Colofão, Tapeçarias, V, 110 e Tapeçarias, VII, 22, in PréSocráticos, página 70. Coleção Os Pensadores. Tradução de Padro, Anna L.
A. de . Editora Nova Cultural. São Paulo, 1996. Voltar
4. NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, página 10. Tradução de
Fonseca, Eduardo Nunes. Coleção Ciências Sociais e Filosofia. Editora Hemus.
São Paulo, SP.
5. NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, página 10. Tradução de
Pugliesi, Márcio e Bini, Edson. Editora Hemus. São Paulo, SP, 1984. Voltar
6. NIETZSCHE, Friedrich, Assim Falava Zaratustra, página 26. Voltar
7.MARX, Karl, Manuscritos Económico-Filosóficos., página 159. Tradução de
Morão, Artur. Editora Edições 70. Lisboa, Portugal. Voltar
8. ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista, página 36. Tradução
de Lindoso, Dirceu. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967. Voltar
9. O mesmo autor sugere uma classificação para a obra de Marx, que teria
"fases":
1840-1844 Obras da Juventude
1845 - Obras da cesura epistemológica - Marx rompe com Feuerbach e
Hegel e funda sua própria doutrina, o materialismo histórico.
1845- 1857 - Obras da maturação
1857 - 1883 - obras de maturidade Voltar
10. MARX, Karl, Manuscritos Económicos-Filosóficos, página 160. Voltar
11.Idem, página 162. Voltar
12. Idem, página 164. Voltar
13. Ver nota 1. Voltar
14. ALTHUSSER, Louis, Análise crítica da teoria marxista, página 136. Voltar
15.MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos, página 169. Voltar
16. MARX, Karl, Sobre a Questão Judaica. apud McLELLAN, David, As Idéias
de Marx, página 40. Tradução de Neto, Aldo Bocchini. Editora Cultrix. São
Paulo,1977. Voltar
17. Idem, página 50. Voltar
18. MARX, Karl, A Ideologia Alemã, página 37. Tradução de Bruni, José Carlos
e Nogueira, Marco Aurélio. Livraria e Editora Ciências Humanas. São Paulo,
1982. Voltar
19. MARX, Karl, O Capital, página 81. Tradução de Sant´Anna, Reginaldo.
Difel Editorial S.A. São Paulo, 1982. Voltar
BIBLIOGRAFIA
Além da bibliografia citada nas notas, usou-se ainda:
1. GIANNOTTI, José Arthur. Notas sobre a categoria "modo de produção" para
uso e abuso dos sociólogos in Filosofia Miúda e demais aventuras. Editora
Brasiliene, 1985.
2. JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia.
Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1990.
3. LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. Diversos
tradutores. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1996.
Download