I DOMINGO DO TEMPO DE QUARESMA (Mt 4, 1-1) AS TENTAÇÕES DE JESUS. (Pe. Ignácio dos padres escolápios) INTRODUÇÃO: Temos como lugar paralelo o evangelho de Lucas, com algumas modificações de pouca importância como são a ordem das tentações e a explicação de Mateus que o jejum era completo tanto de dia como de noite. Temos também um breve resumo de Marcos, sem detalhes, indicando uma tentação prolongada de Satanás. Vejamos algumas palavras-chave para intentar um melhor entendimento do trecho evangélico. FOI LEVADO PELO ESPÍRITO : O grego diz que o fez subir até o deserto. Lucas dirá que o fez voltar ao deserto. Ambas as expressões são perfeitamente exatas. O Jordão estava a mais de 300m sob o nível do mar no lugar onde o Batista batizava e o deserto, com artigo, era precisamente o lugar montanhoso que se encontrava a bastante altura do nível do mar, entre Jerusalém e a margem ocidental do mar Morto. Pelo que respeita a Lucas diz que Jesus voltou do Jordão e foi impelido pelo Espírito ao deserto. Em ambos os casos o agente da ação do movimento de Jesus foi o Espírito de que estava possuído após o batismo segundo Lucas(4,1). Alguém poderá dizer: se no Pai-nosso rezamos não nos deixes cair na tentação como é agora o Espírito quem causa a ocasião da tentação? Devemos pensar que a linguagem bíblica não distingue entre causa e ocasião e entre causas segundas e primárias. Hoje diríamos que o Espírito conduziu Jesus para o deserto e assim foi facilitada a obra do tentador que, segundo os conceitos do tempo, era o lugar povoado pelos demônios com o qual a tentação era previsível. O DESERTO: Com artigo e referido com um verbo que significa subir indica que esse deserto é o famoso de Judá. Deserto por ser lugar inóspito, não por ser um deserto de areia, já que o deserto de Judá é um deserto abrupto, pedregoso e principalmente estéril. Unicamente na primavera existe alguma vida vegetal. Tem 80 Km de comprimento, por 20 ou 25 Km de largura. É uma área montanhosa, desabitada, entre Jerusalém e o mar morto. Unicamente há uma fonte de águas termais em Engadi que formava a seu redor um oásis fértil, cheio de palmeiras, vinhas e árvores de bálsamos. Ao seu redor existem numerosas covas. Foi o lugar escolhido por Davi para fugir de Saul e onde este esteve nas mãos do futuro rei que poupou sua vida.(1 Sm 24, 1-12). Na parte mais alta não havia nada, a nÃo ser pedras como as que o diabo assinala para serem convertidas em pão. Na bíblia o deserto tem dois sentidos, um negativo, como terra estéril, maldita de Deus e habitada pelos espíritos impuros e o outro positivo como lugar e época privilegiada em que Deus dirigia o povo para a terra prometida. Do deserto se pensava que devia proceder o Messias para a instalação do seu reino. A TENTAÇÃO: O verbo usado pelos três evangelistas que narram os fatos é Peirazo, na sua forma passiva e particípio [peirasmenos ser tentado, ou tentare em latim]. É o verbo usado para experimentar se uma pessoa é digna de respeito ou merece confiança. Os fariseus experimentaram Jesus em várias ocasiões(Mt 19, 3). O próprio Jesus experimentou o comportamento de seus discípulos ante o problema de como alimentar a multidão que o seguia num lugar inóspito. È nesse sentido de experimentar qual poderia ser o comportamento de Jesus como Filho de Deus que o tentador o experimenta em situações limites. O peirasmós [tentação] tinha dois diferentes sentidos: 1o) Um sentido bom, experimental como ver se uma coisa é boa. 2o)Um sentido mau: experimentar a fé, a virtude, o caráter, de uma pessoa. E neste sentido está a solicitação ao pecado. Também podemos dividir a tentação em três apartados segundo a causa: Deus que inflige os males como justiça ou como repreensão. O Homem que testa Deus como se não tivesse confiança, tal como fizeram os israelitas em Massa e Meribá. Finalmente os ímpios ou homens maus que tentam os justos e a paciência divina. Evidentemente o tentador é no nosso caso o diabo do qual falaremos mais tarde. E a tentação é para saber que tipo de homem extraordinário era esse Jesus que estava jejuando durante um tempo tão prolongado, separado de todo contato humano. Daí que as duas primeiras tentações estejam precedidas de uma condição que é a base da experiência que pretende: Se és Filho de Deus, ou melhor: Se filho fosses do Deus, como parece indicar o grego. O DIABO: Diábolos é tradução grega da palavra Satãn <07854>[adversário] que a setenta também mantém como satanás. A palavra grega diábolos significa propriamente caluniador ou acusador. Aparece pela primeira vez em forma de serpente no Gênese. Com o nome de Satân aparece pela primeira vez em 1 Cr 21, 1. como causa impulsora do recenseamento feito por Davi. Ele é um dos principais personagens do livro de Jó constituindo o opositor a Javé e pretendendo através de sérios males abalar a fé do justo em seu Deus. Finalmente aparece no livro do profeta Zacarias que dá uma definição de Satã como sendo o personagem que estava à direita do anjo de Javé para acusar o sumo sacerdote Josué a quem defende o anjo. Em Tobias temos o nome de Asmodeo [Asmodaus o demônio mau como o define o grego] que por não ser o livro escrito em hebraico não sai em bíblias evangélicas e é considerado deuterocanônico pela Igreja e apócrifo pelos evangélicos. Parece que depois do exílio o nome de Satãn, assim como o de outros espíritos malignos, foi eliminado e proibido O diabo é pois uma pessoa singular que recebe outros nomes como Abadom em hebraico e Apoliom em grego (Ap 9, 11). Ambos os termos têm o mesmo significado: destrutor ou destruição, sendo o seu ofício o de príncipe das regiões infernais ou do abismo, tendo como ministério a morte e o estado de desordem e perturbação da terra. O mal é seu fim e o produz até nos corpos por meio da possessão. Jesus identifica o diabo com Satanás na última rejeição de sua solicitação: Retira-te, Satanás (10). E o rejeitará com as mesmas palavras[ypage, Satanás] com as quais afastará a proposta de Pedro (16, 23) contrária ao ministério messiânico, projeto do Pai. Jesus reconhece o poder de Satanás como príncipe (senhor ou rei é só Deus) deste mundo (Mt 12, 16). Marcos diz claramente que o Diabo era Satanás (1, 13) nas tentações do deserto. Satanás ou o diabo tem, segundo Jesus, um ofício principal: ser o inimigo do projeto de salvação do homem do qual Jesus era causa principal por meio do seu messiado ou Reino. Jesus é o semeador da verdade [meu reino é a verdade e para isso vim ao mundo]e no campo do mundo existe um inimigo que semeia joio [a mentira]entre o trigo: ele é o diabo(Mt 13, 39). Por isso ele é chamado pai da mentira(Jo 8, 44). Não só é pai da mentira mas como diz o livro da Sabedoria por causa da inveja do diabo a morte entrou no mundo e a experimentam os que lhe pertencem (2, 24). O JEJUM: No judaísmo clássico pressupõe completa abstenção de alimento e bebida. Os judeus tinham dois dias de completo jejum de ocaso a ocaso, ou dia e noite: o Dia da expiação e o dia 9 do mês Av [quinto mês correspondente a julhoagosto]. Os demais dias de jejum eram do nascer do sol até seu ocaso, como os dias de Ramadão dos árabes. Nos dias de jejum os jejuantes costumavam se sentar no chão vestidos de aniagem [o famoso saco] e com cinzas sobra a cabeça.(2 Sm 12, 16; Est 4, 1e Jn 3, 6). Se o jejum de Jesus foi de 40 dias e noites sem comer e possivelmente sem beber, foi um fato extraordinário que não podia passar por alto ao diabo, que como demônio habitava nos lugares desérticos (Mt 12, 43), segundo a crenças da época. Em termos médicos atuais o jejum prolongado produz um estado de neurose em que o real e o imaginário podem se confundir. Seria esta a explicação da visão diabólica de Jesus, e de seus transportes ao templo e à montanha alta onde todos os reinos estavam representados? É uma hipótese que não é totalmente descartável. Entre as causas do jejum está a preparação para estar em contato com Deus como fez Moisés que precisamente subiu a uma montanha desértica e jejuou 40 dias e 40 noites sem comer nem beber (Ex 34, 28). FILHO DE DEUS: 1o) O justo é chamado filho de Deus (Sb 2, 18) 2 o) O povo de Israel por sua vez recebe o mesmo título (Sb 18, 13) .3 o) Jesus recebe este título dos demônios, os anjos do diabo (Mt 8, 29). 4o)Somente após a tempestade acalmada os discípulos no barco chegam à conclusão de que Jesus era filho do Deus (vivo). 5 o) Pelo conjuro de Caifás sabemos que filho do Deus vivo significava Messias(Mt 26, 23). O centurião romano e os outros custódios, presentes à morte de Jesus na cruz acreditaram que ele era verdadeiramente filho de Deus (Mt 27, 54). A distinção entre filho de Deus e filho do Deus(vivo) a temos observado cuidadosamente em nossa tradução do grego. A pergunta é: era filho de Deus um título messiânico? Cremos que sim. Não bastasse a conjura de Caifás, temos o Salmo 2, 7.em que o salmista declara o Messias como filho de Javé (2). Jesus nunca usou esse título em seu favor, apesar de que no anúncio de seu nascimento o anjo dirá que a criança será sagrada e chamada filho de Deus (Lc 1, 35).Somente no evangelho de João em três ocasiões, Jesus, falando de si mesmo, dirá que ele falará aos mortos e os que dentre eles escutam a sua voz como de filho do Deus viverão.(5, 25). Em 10, 36 Jesus afirma que não blasfema ao se declarar filho do Deus. Em 11, 4 dirá que a doença de Lázaro é para glória do Deus e do filho do Deus. Segundo o testemunho de João o Batista Jesus era o Filho do Deus (1, 34). Provavelmente esta frase não tenha o sentido pleno que hoje damos à mesma e que vemos no prólogo de Marcos: princípio do evangelho de Jesus, o Ungido, filho de Deus(Mc 1, 1). E no final de seu evangelho afirmará o evangelista João: estas coisas foram escritas para que creiais que Jesus é o Messias, o filho do Deus(20, 31). Como temos visto os evangelistas distinguem entre filho de Deus e filho do Deus, sendo que este último termo tem como causa da geração o único Deus dos judeus e não deuses pagãos. Jesus adotou para si mesmo o título messiânico sem compromisso de filho de homem, correspondente à visão de Daniel do reino do Messias em 7, 13. Seguro que o diabo sabia que Jesus era o Messias. Daí a pergunta: Se filho fosses do Deus, ou seja se fosses o Messias. PRIMEIRA TENTAÇÃO: Parece que pelo menos duas das tentações são das que poderíamos chamar messiânicas, a primeira e segunda que começam com o mesmo prelúdio: Se fosses filho do Deus. O diabo vem dizer: eu sei que és filho de Deus. Se portanto queres te comportar como tal, podes muito bem transformar estas pedras em pão. Não sejas bobo e sacia tua fome. O que o diabo pede é que Jesus use seus poderes sobrenaturais em proveito próprio, para saciar sua fome. Jesus responde com uma cita da Escritura rememorando um fato acontecido na época do deserto. Em Deuteronômio 8, 3 Javé relembra seu povo de Israel de como o humilhou fazendo-o sentir fome e alimentou-te com o maná que nem tu nem teus antepassados conheciam, tudo para te mostrar que o homem não só vive do pão, mas que o homem vive de tudo aquilo que sai da boca de Deus. Ou seja, antes do que o pão devemos saber qual é a vontade de Deus e cumpri-la fielmente. SEGUNDA TENTAÇÃO: O diabo o tomou e levou para a cidade sagrada [= Jerusalém] e o colocou sobre o pináculo [pterygion] do templo. Que coisa era o pterygion? A palavra é derivada de pterix que significa asa, sendo pois o significado de pterygion extremo, barbatana, asa pequena, pináculo. Ou seja a parte extrema ou mais alta do templo. Como Mateus fala do ierós, devemos pensar num dos quatro ângulos da parte externa do templo, ou seja dos quatro pórticos que o rodeavam. A parte mais alta era o pórtico Real do sul. Deste ponto alto Jesus devia se atirar para que sucedesse o que estava escrito no salmo 91 sobre o justo que confia em Deus: Ele ordenou aos teus anjos que te guardem em teus caminhos (12) Eles levar-te-ão nas mãos para que o teu pé não tropece em nenhuma pedra (13). A desgraça jamais te atingirá e nenhuma praga vai chegar à tua tenda.A resposta de Jesus é tomada de Deuteronômio 6 16-18: Não tentes a Javé teu Deus como o tentastes em Massa(17) Observa cuidadosamente os mandamentos de Javé, teu Deus, e também os testemunhos e estatutos que ele te ordenou.18) Faz o que é justo e bom aos olhos de Javé para que tudo te corra bem. A prova a qual submeteram os filhos de Israel o poder e a fidelidade divina está encerrada nesta frase do Êxodo 17, 7: Está Javé no meio de nós, ou não? É tratar de ver se Deus está sempre da parte de uma pessoa, faça o que faça esta pessoa de sua vida. TERCEIRA TENTAÇÃO: O diabo levou Jesus a um monte muito alto e lhe mostrou todos os reinos do mundo e suas glórias. Lucas nada diz sobre o monte mas que elevando-o mostrou-lhe num instante todos os reinos, do Kosmos e sua glória, segundo Mateus; ou da oikumene[o mundo sob o império romano] segundo Lucas. O diabo promete entregar todos eles se prostrando-te [peson, caindo]me adorares [ proskineses]. A proskinese era o ato de submissão de um súdito a seu rei ou de um vencido ao vencedor reconhecendo sua superioridade. Tratando-se de ato religioso a proskinese significa adoração. Por isso a resposta de Jesus é uma citação de DT 6, 13: Temerás o Senhor teu Deus e a ele adorarás[latreuseis]e a ele servirás[kolletheseis]e pelo seu nome jurarás. As citações de Mateus e Lucas são idênticas e não correspondem literalmente ao texto grego dos setenta. Ambos empregam dois verbos proskineou e latreuo, que significam prostrar-se em sinal de admitir a superioridade e oferecer obediência e adorar como Deus. Jesus claramente indica que o diabo não tem lugar em sua vida. Por isso a palavra final é upage, retira-te, vá embora. OS ANJOS: Então o diabo o deixa e os anjos vieram e o serviam. Marcos também fala dos anjos como servidores. Já Lucas evita os anjos e afirma que o diabo se retirou até nova oportunidade [kairós]. Deste evangelho temos prova segura da existência dos anjos, não como mensageiros mas como seres superiores a modo do diabo mas em sentido bom. Não se pode crer no diabo e duvidar da existência dos anjos bons. PISTAS: 1) Jesus é o sacerdote semelhante a nós todos em tudo a exceção do pecado(Hb 4, 15) Por isso foi tentado. Não que a causa das tentações em nossa vida seja como as de Jesus diretamente provindo do diabo, mas não podemos esquecer que estes episódios estão intimamente unidos a uma etapa de Jesus que é sua exclusão do mundo, sua preparação para um ministério essencial de sua vida: como realizar e expandir o reino. Também neste sentido aparecerá o inimigo como tentador na vida de muitos homens ilustres na hstória da salvação. 2)Tanto Mateus como Lucas nos mostram as tentações como uma luta dialética entre dois especialistas: Jesus e o Diabo. A proposta de satãn é: está escrito e a resposta de Jesus está na mesma ordem de verdade. A bíblia pode ser interpretada de modo diabólico e de modo correto. Qual é o critério para que a sua interpretação seja verdadeiramente correta? Na primeira tentação vemos que esse critério não pode ser a nossa comodidade ou egoísmo. 3)Na segunda tentação vemos como o milagre não é o modo de interrogar a Deus e pedir sua presença onipotente em nossas vidas. Deus não está sujeito às nossas necessidades, mas nelas e no sofrimento devemos ver que é importante nossa obediência como dependentes sem exigir atuações extraordinárias por parte de Deus. 4) Na última tentação Jesus afirma o princípio fundamental de nossa vida: Deus é o único Senhor e a ele unicamente devemos obediência e adoração. O mundo, os reinos, sua glória, não merecem uma resposta totalitária de nossa parte. EXEMPLO: na vida dos santos temos junto aos grandes favores divinos a oposição de Satanás também visível e clara. José Calasanz de pequeno ouviu que o diabo era o inimigo de Deus e da humanidade e saiu com uma faca a matá-lo. Como visse numa árvore uma sombra pareceu-lhe que era o diabo e corajosamente subiu faca na mão para matá-lo. A tradição conta que o maligno o empurrou caindo a criança da árvore mas sem se machucar. Quando já de idade e fundador das Escolas Pias, José subiu uma escada para colocar um pesado sino que devia contribuir ao bom funcionamento das escolas. Diante dos seus alunos e quando estava no alto da escada todos viram uma sombra que empurrou o santo. Na queda ele quebrou uma das pernas e por isso até sua morte ficou mancando. Hoje em que tantos se tornam céticos da existência de Deus cada vez mais o diabo tem entrada entre as crenças populares. Será que é mais fácil acreditar no mal que ter fé no bem e sua presença no meio de nós?