Partilha da Palavra Carta aos Hebreus Apesar de ser habitualmente conhecido como "Carta", este escrito do Novo Testamento não apresenta um início de caráter epistolar, mais parecendo o exórdio de um sermão (1,1-4). Tem um tom oratório, e o autor nunca aparece a dizer que escreve, mas sempre a dizer que fala (2,5; 5,11; 6,9; 8,1; 9,5; 11,32). Só nos últimos versículos (13,22-25) é que temos um final de Carta precedido por uma frase solene (13,20-21), que funciona como peroração. Considera-se, por isso, que estamos diante de um sermão destinado a ser pronunciado oralmente (1,1-13,21) e de um pequeno bilhete (13,2225), que lhe foi acrescentado. Trata-se, então, mais de um discurso do que de uma Carta em sentido próprio. DESTINATÁRIOS Não encontramos no texto nenhuma referência aos Hebreus como destinatários, e nada indica que o grego em que está escrito seja uma tradução do hebraico. É, portanto, difícil dizer quais os seus destinatários, embora o título "aos Hebreus" seja muito antigo (séc. II). Pode facilmente admitir-se que fosse dirigida a judeucristãos, saudosos do culto judaico que antes praticavam. O título parece justificar-se ainda mais, se tivermos em conta o conteúdo da Carta, pois ela pressupõe leitores bem conhecedores do culto e da liturgia judaica. AUTOR, LOCAL E DATA São igualmente imprecisos o autor, o local e a data da sua composição. As Igrejas do Oriente consideraram-na sempre como uma Carta paulina, apesar de muitos reconhecerem as suas diferenças em relação às outras Cartas de Paulo, sobretudo no que se refere à forma literária, à linguagem e estilo, à maneira de citar o AT e mesmo quanto à doutrina. A Igreja do Ocidente negou-lhe a autoria paulina até ao séc. IV e pôs, por vezes, em questão a sua condição de escrito inspirado e canônico. A questão continuou controversa ao longo da história da exegese católica e protestante, mas atualmente é quase unânime a negação da autenticidade paulina. No entanto, admite-se que a CARTA AOS HEBREUS tenha tido origem num companheiro ou discípulo de Paulo, pois há vários pontos de convergência entre ela e a doutrina do Apóstolo: a paixão de Cristo como obediência voluntária, a ineficácia da Lei antiga, a dimensão sacrificial e sacerdotal da redenção e alguns aspectos da cristologia. Trata-se, sem dúvida, de um sermão cristão, cuja origem remonta à Igreja Apostólica, e constitui, por isso, parte integrante da Palavra de Deus. Há apenas um dado que pode apontar-nos para o lugar de composição. Trata-se de 13,24: "Os da Itália saúdamvos." Mas trata-se de uma expressão que nada ajuda, por ser muito vaga e se prestar a várias localizações. Quanto à data de composição, não pode aceitar-se uma época muito tardia, pois Clemente de Roma cita-a por volta do ano 95. Por outro lado, a relativa afinidade entre a sua teologia e a das Cartas do cativeiro (Ef, Cl, Flm), aponta para uma data próxima do martírio de Paulo, situado pelo ano 67. Uma vez que o autor se refere à liturgia do templo de Jerusalém como uma realidade ainda atual, tudo parece convergir para que os últimos anos antes da destruição de Jerusalém e do Templo, ocorrida no ano 70, sejam a data mais provável da sua composição. Teologia A doutrina teológica da Carta aos Hebreus é fundamentalmente cristológica. A consideração da figura de Cristo, Deus e Homem e Grande Sacerdote da Nova Lei, é como a coluna vertebral de todo o documento, aglutinando as suas diversas seções e imprimindo ao conjunto uma extraordinária unidade. O autor da carta quer demonstrar a superioridade do cristianismo sobre o judaísmo: Jesus é superior a Moisés. E exorta seus leitores a permanecerem firmes na fé. A originalidade do autor reside em conferir a Jesus o título de Sumo Sacerdote, que não encontramos em nenhum outro texto do Novo Testamento. É evidente que Jesus não foi sacerdote segundo a Lei judaica. Não pertencia à tribo de Levi, mas à de Judá, nem a uma família sacerdotal. Durante sua vida não exerceu nenhuma das funções próprias dos sacerdotes judeus. A atividade de Jesus se parecia mais à dos profetas. O autor de Hebreus nos demonstra que Jesus Cristo é o Sumo Sacerdote, superior ao sacerdócio da antiga Aliança; e mais, Ele é o único e eterno Sacerdote. A função do sacerdote era servir de intermediário entre Deus e o homem, assegurar as boas relações entre Deus e o povo. Sabemos como essa função sagrada se deteriorou até chegar a converter-se em meros ritos externos, como podemos ver em tantos textos proféticos. Nosso autor dirige sua atenção aos dois elementos que constituem a essência do sacerdócio: uma pessoa que tenha crédito para as relações com Deus e seja solidária com os homens. Se falta um desses elementos, não há sacerdócio, porque falta “intermediário”. Jesus tem direito ao título de Sumo Sacerdote porque é Filho de Deus e irmão nosso “provado em tudo, sem todavia pecar” (4,15). Cristo superou os limites em sua obediência ao Pai e em sua solidariedade com os homens. Embora fosse Filho, Jesus aprendeu a obediência pelo sofrimento; há, pois, uma correlação entre sofrer e aprender, correlação que já os gregos exprimiam no trocadilho páthos-máthos, sofrimento é escola. A teologia de Hebreus pode ser resumida em uma declaração tríplice da atuação de Cristo, que corresponde às três divisões principais do sermão: Primeiro: Cristo é visto como a nova palavra de Deus, a comunicação de Deus à humanidade em um novo estilo pessoal. É palavra expressa na vida e morte de um ser humano que é também Filho de Deus. Segundo: Cristo atua como o sumo sacerdote único e eterno cujo sacrifício na morte expia o pecado para sempre, estabelece uma nova aliança e proporciona um novo acesso a Deus. Terceiro: o discernimento que Cristo tem do mundo celeste de Deus é o modelo de fé que os cristãos precisam para perseverar na esperança. É um notável perfil da fé cristã que se concentra na pessoa e no papel do próprio Cristo. Reflexões: Dentro do motivo cristológico da carta, se sobressaem especialmente importantes observações sobre a relação entre judaísmo e cristianismo, a fé e a revelação, a doutrina das realidades últimas e a vida cristã no mundo, caminho para a eternidade. Judaísmo e Cristianismo A relação entre as duas religiões positivas - judaísmo e cristianismo -, ou sejam entre as duas que contêm a Revelação sobrenatural, como preparação e culminação do desígnio salvador de Deus, respectivamente, não é considerada só do ponto de vista da defesa da fé cristã. A argumentação da carta não aponta para uma desqualificação religiosa do judaísmo, mas unicamente para lhe designar o lugar preparatório que lhe corresponde no plano divino de salvação. A idéia central da epístola é que a Lei mosaica é impotente para salvar o homem caído em Adão. Proclama-se neste sentido a caducidade religiosa da Lei Antiga, abolida por Cristo e substituída pela Lei Evangélica, que é lei de graça, liberdade e exigência interior. Foi este precisamente o grande esclarecimento dogmático do Concilio de Jerusalém. Tal como se narra em At 15, estabelece-se nessa primeira assembléia que não é preciso cumprir os ritos da Lei mosaica para salvar-se, e que conseqüentemente os batizados procedentes da gentilidade não estão obrigados a observá-los para ser cristãos. A carta tem muito em conta estes pressupostos e de alguma maneira desenvolve-os. A superioridade do Novo Testamento relativamente ao Antigo - que é patente, não só pela doutrina sobre Cristo, mas também pelo ensino sobre os sacramentos e o sacrifício e pelo constante testemunho dos Apóstolos não afeta, contudo, a unidade de ambos. Sobretudo através da utilização de figuras ou tipos do A T. Todas as figuras da Antiga Aliança olham para Cristo e esperam nEle. Tanto Moisés como Melquisedec são “tipos” do Messias e Sacerdote da Nova Lei, respectivamente. O cristianismo é, portanto, culminação do judaísmo, de modo que, isolada do Evangelho, a religião mosaica torna-se ininteligível.O princípio dogmático que aqui se enuncia encerra, como é lógico, múltiplas conseqüências, não só para entender a história da salvação e a compreensão teológica do judaísmo, mas também para a vida dos convertidos, aos quais a carta parece dirigir-se. Fé e Revelação A carta aos Hebreus é uma “palavra de exortação” (13,22) a perseverar na fé. Ainda que sejam numerosos os lugares em que se trata desta virtude, Hb 11,1, oferece uma concisa mas rica definição de fé: “ A fé é uma posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que não se vêem”. Esta definição se tornou clássica nos comentários dos Padres e Doutores da Igreja. A fé, segundo se expõe na epístola, é entendida como hábito, como disposição que move a manter a fidelidade ao que Deus manifestou. A fé, com efeito, assenta em Jesus, “iniciador e consumador da fé” (12,2). Ele é a causa da nossa fé e nEle cremos em primeiro lugar. Ele é quem, como autor da graça, infunde em nós essa virtude. Partimos da fé em Jesus e chagaremos à contemplação do Seu rosto na Pátria definitiva. No Céu a fé se transformará em glória. Daqui nasce a sua estreita vinculação com a esperança. Fé em Cristo, no Seu sacrifício, na Sua Ressurreição e glorificação, são o ponto de apoio da esperança cristã. Cristo penetrou nos céus, abrindo assim o caminho a todos os homens. Por isso, vale a pena sofrer, vale a pena resistir à tribulação.(10,19ss) Mas a fé em Cristo é fé na Revelação, porque Cristo é a máxima Revelação do Pai. Deus manifestou-nos o Seu próprio Filho, a Palavra perfeita do Pai, que falou aos homens (1,1-2). A fé em Cristo exige, portanto, não só a fé na Sua pessoa, mas também fé nos Seus preceitos e ensinamentos. Daí que as numerosas exortações de caráter moral entrelaçadas com as de caráter dogmático sejam conseqüências que surgem da fé no Filho de Deus e no que Ele nos revelou. Cristologia Escatologia A doutrina relativa a Jesus Cristo, que predomina na carta, apresenta uma grande riqueza e ao mesmo tempo uma marcada simplicidade. O autor sagrado expõe a doutrina sobre a Redenção universal operada por Jesus Cristo Mediador, mediante o Sacrifício da Cruz e o derramamento do Seu sangue. Cristo é ao mesmo tempo a vítima perfeita que expia todos os pecados dos homens e verdadeiro Sumo Sacerdote que oferece a Deus Pai o culto agradável, verdadeiro e eterno. Nos versículos iniciais a carta enuncia a preexistência do Verbo, Sua atividade criadora e a Sua igualdade com o Pai (1,1-3). Como pressuposto imprescindível da Sua atividade redentora temos a consideração de que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O divino e o humano nunca aparecem justapostos, mas como realidades inseparáveis do ser divino e humano do Senhor. Só aparece a única Pessoa do Verbo encarnado, do Filho de Deus, que em todas as ocasiões e em todas as ações cumpridas na terra manifesta a Sua única condição de Deus feito carne. A doutrina sobre as últimas realidades ou novíssimos do homem ocupa na carta um lugar aparentemente secundário, porque as afirmações teológicas sobre estas verdades fazem-se a propósito de outros assuntos. Mas a escatologia penetra todo o escrito. O cristianismo tem duas dimensões: é algo já iniciado aqui na terra, mas que encontrará a sua perfeita realização só no Céu. A terra prometida a Abraão era certamente a Palestina, mas não só isto. Era muito mais. Era a graça de Cristo, que é penhor de Glória futura. Portanto, a terra prometida, na qual todos somos chamados a entrar, é o Céu. Sendo o Sacerdócio de Cristo superior aos Anjos, ao legislador da Antiga Lei e ao sacerdócio levítico, isto lhe permite redimir com superabundância o gênero humano. A redenção operada por Cristo é um remédio universal para uma necessidade universal. Só Cristo é o verdadeiro e Sumo Sacerdote e só o Seu é verdadeiro sacerdócio, ou seja, um sacerdócio cuja mediação tem a capacidade de apagar os pecados. A partir de então, todo o verdadeiro sacerdote o será apenas se tem o chamamento e a unção sacerdotal, que vem de Jesus. Não se chega ao sacerdócio pela herança ou pelo nascimento dentro de uma tribo, mas por vocação e chamamento livre do Senhor, único Sacerdote do Novo Testamento. O Sacrifício de Cristo é irrepetível e produziu os seus efeitos salvadores de uma vez para sempre. Não pode já repetir-se, dada a sua eficácia infinita. Na Santa Missa atualiza-se incruentamente o mesmo Sacrifício da Cruz: Jesus Cristo “renova” o oferecimento ao Pai que fez “de uma vez para sempre”. Além de apresentar a figura e obra de Jesus Cristo sob o ponto de vista do Seu Sacerdócio eterno e de desenvolver, portanto, as conseqüências dos títulos de Sacerdote e Mediador, a carta aplica a Cristo quatro títulos principais: Filho, Messias, Jesus e Senhor. Têm um sentido ontológico, ou seja, manifestam algum aspecto do ser de Cristo. Carta refere-se igualmente ao Senhor noutros lugares com as denominações de Santificador, Herdeiro, Mediador, Pastor e Apóstolo, esta última única em todo o Novo Testamento. A tensão para as realidades do mais além está presente ao longo de toda a epístola. É um modo de apresentar a vida do cristão, como um caminho a partir da salvação já realizada, mas ainda não consumada, para o Reino da cidade futura, cujo construtor é Deus (11,10; 12,8) e cuja cabeça é Jesus. A carta fala com freqüência da segunda vinda de Cristo ou Parusia, como Juiz de vivos e mortos (10,25). Anuncia também o juízo futuro (10,27) e referese à renovação final do mundo(12,26-28). A vida temporal do cristão A existência cristã no mundo concebe-se e ensina-se como uma peregrinação para a Pátria celestial, até entrar no “repouso” de Deus. Fiel a esta perspectiva da vocação cristã, a carta acentua com freqüência as virtudes da fé e da esperança. O caminho para a Pátria, em que não faltarão dificuldades e obstáculos, leva-se a cabo com Cristo como guia. Textos seletos 1,5-14 O Filho é superior aos anjos. 3,1-6 O Filho é superior a Moisés, que não era mais do que um servidor fiel, ao passo que Cristo é o Senhor da casa. 7,1-28 Melquisedec. O sacerdócio de Cristo é mais agradável a Deus e mais útil aos homens do que o levitico. 8,7-13 A primeira aliança, imperfeita e provisória. 9,1-18 O sacrifício de Cristo, eficaz e definitivo. 11,1 Definição de fé. 13,8 Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje; ele o será para a eternidade.