a sensibilidade místico-profética da teologia no espaço

Propaganda
Anais do IV Congresso da ANPTECRE
“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”
ISSN:2175-9685
Licenciado sob uma Licença
Creative Commons
A SENSIBILIDADE MÍSTICO-PROFÉTICA DA TEOLOGIA NO ESPAÇO
PÚBLICO
Tiago de Freitas Lopes
Mestre e Doutorando em Teologia Sistemática
FAJE (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia)
[email protected]
CAPES | PROEX
ST 09 – TRADIÇÕES RELIGIOSAS, ESPAÇO PÚBLICO E POLÍTICA
Resumo: A sensibilidade místico-profética no espaço público tem desafiado a teologia cristã a
ampliar seus horizontes. Para o teólogo David Tracy, essa sensibilidade místico-profética, deve
considerar a concepção de Deus enquanto (in)compreensível, fazendo assim, o resgate de uma
teologia apofática. O objetivo deste trabalho é apresentar o sentido de Deus (in)compreensível
na teologia de David Tracy como um caminho para evidenciar a sensibilidade místico-profética
no espaço público. O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira, é apresentado o
pensamento de David Tracy sobre a recuperação do Deus (in)compreensível, a partir de seus
últimos estudos (em sua maioria artigos) e de diálogos dele com pensadores tais como
Gregório de Nissa, Simone Weil, Emmanuel Levinas e Jürgen Habermas. A segunda parte
discorre como essa recuperação pode dar novos horizontes à teologia no espaço público. A
conclusão evidencia a necessidade da teologia cristã voltar-se para o tema da teologia
apofática para desenvolver e comunicar melhor seu discurso teológico.
Palavras-chave: David
(in)compreensível.
Tracy,
Sensibilidade
místico-profética,
Espaço
público,
Deus
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0918
DESENVOLVIMENTOS DO PENSAMENTO DE
RECUPERAÇÃO DO DEUS (IN)COMPREENSÍVEL
Para
David
Tracy1,
Deus
no
DAVID
pensamento
TRACY
contemporâneo,
SOBRE
deve
A
ser
compreendido de forma pública, na qual os públicos do teólogo2, a saber, a igreja, a
universidade e a sociedade em geral, possam compreender o discurso e a mensagem
cristã sobre Deus. Isso envolve, sobretudo, o que David Tracy denomina de pensar
Deus “além dos limites da razão”.
Para isso torna-se necessário voltar a Deus como Deus escondido e
incompreensível, noções que foram desenvolvidas inicialmente na Teologia mística de
Dionísio Areopagita, Vida de Moisés e Comentário ao Cântico dos Cânticos de Gregório
de Nissa e nos Comentários de Gênesis e Salmos de Lutero, obras que foram
esquecidas pela modernidade e pós-modernidade, que parecem ter feito sua opção por
uma noção de Deus mais racional e menos prático-inteligente-espiritual. Por isso, falar
de Deus hoje tende ser privado ao discurso de algumas igrejas cristãs e distante dos
públicos do teólogo.
Dentro do projeto teológico de Tracy, pode-se pensar em certo desenvolvimento
acerca do pensamento contemporâneo sobre Deus. Começando em sua obra Blessed
Rage for order, 1975 na qual, influenciado por Lonnergan, busca um método em
teologia, que também seria útil para lançar bases sobre o problema de Deus. Nessa
obra, Tracy discute o contexto pluralista da teologia contemporânea, propõe o método
revisionista como um modelo aceitável pela teologia, colocando ainda a questão de
Deus como uma metafísica revisitada (TRACY, 1998, p. 146-170).
Em 1981, o projeto de Tracy é expresso especialmente na obra The Analogical
Imagination (A imaginação analógica) que trata de propor formas hermenêuticas para
1
David Tracy nasceu em 6 de janeiro de 1939, em Yorkers, New York. Recebeu sua licenciatura (1964) e doutorado
em teologia (1969) pela Universidade Gregoriana em Roma. Foi um dos fundadores editores do Religious Studies
Review e trabalhou como coeditor do The Jornal of Religion e Concilium.
2
Tracy divide a teologia em três grandes áreas e direciona a interpretação dos “clássicos cristãos” aos públicos
teológicos: a) teologias práticas, relacionadas ao público sociedade, por propor a práxis como um critério para o
sentido de verdade; b) teologias fundamentais, relacionadas ao público universidade, por conter um discurso
acessível a todas as pessoas e um apelo à experiência e à racionalidade; e c) teologias sistemáticas, representadas,
mas não esgotadas, pelo público igreja, pelo fato de reinterpretar o poder revelador da tradição cristã. Cf. TRACY,
2006, p. 88-89.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0918
que o clássico cristão religioso - a Bíblia e a tradição cristã- sejam interpretados, e não
meramente repetidos3. A questão de Deus é colocada mediante a interpretação do
clássico religioso cristão, de maneira que esta interpretação toque o horizonte pluralista
da teologia. Tracy também aponta Cristo como o evento central da teologia e
hermenêutica cristãs. A intenção inicial de Tracy era um projeto que fosse dedicado
primeiramente ao público acadêmico (Blessed rage for order), à igreja (Analogical
Imagination) e uma obra voltada à sociedade, mas o projeto foi abandonado (SANKS,
1993, p. 719).
Em 2012, Tracy publicou na revista Perspectiva teológica o artigo A teologia na
esfera pública: três tipos de discurso público, em que atualiza seu horizonte acerca da
teologia pública, agora, afirmando que, para que haja publicness4 na teologia, é
necessário três tipos de diálogo: a publicness 1, o diálogo racional; a publicness 2, o
diálogo hermenêutico, que foi o grande eixo da obra A imaginação analógica e a
publicness 3, o diálogo místico-profético, que é foco deste artigo.
Dessa forma, para que haja publicness na teologia, a tradição clássica cristã
deve ser interpretada “além dos limites da razão”, ou seja, compreendida não só de
forma racional e hermenêutica, mas também de forma místico-profética considerando
os símbolos encarnação-cruz-ressurreição e o símbolo da segunda vinda.
A partir da década de 1990, Tracy amplia se horizonte teológico através da
conversação e os diálogos inter-religioso e intercultural. Isso pode ser observado em
obras como Plurality and Ambiguity e Dialogue with the other.
Esses diálogos também devem ser considerados em relação à América Latina e
ao Brasil. Em visita ao Brasil, em 2006, por ocasião do simpósio “O lugar da Teologia
3
Sobre o tema cf. LOPES, Tiago de Freitas. Perspectivas hermenêuticas de uma teologia pública a partir dos
clássicos religiosos cristãos: uma leitura da obra A Imaginação Analógica de David Tracy. Belo Horizonte. Disponível
em http://www.faculdadejesuita.edu.br/documentos/180314-zc9MLOKMZ3cB.pdf; LOPES, Tiago de Freitas.
Aproximações atuais sobre a compreensão de teologia pública. Davar Polissêmica, v. 6, p. 1-23, 2013; LOPES,
Tiago de Freitas. A sociedade como locus teológico: uma aproximação ao pensamento de David Tracy na primeira
parte de sua obra: A imaginação analógica. In: 24º Congresso internacional da SOTER, 2011, Belo Horizonte p. 751760.
4
A tradução do termo publicness para o português no sentido utilizado por Tracy é impreciso e difícil. Poderia ser
traduzido por “publicidade” no sentido de “característica do que é público” (cf. HOUAISS, Dicionário, p. 2.330). No
entanto, a expressão original publicness, utilizada por Tracy em Analogical imagination, será mantida nessa pesquisa
e assumida no sentido de “razão, índole, transparência, caráter, discurso público” de acordo com a tradução feita
pela revista Perspectiva Teológica em um artigo de Tracy, em 2012. Cf. TRACY, A teologia na esfera pública, p. 30,
nota 1. Deve ser observada a diferença entre publicness (discurso público) da teologia e publicity (publicidade), no
sentido de propaganda. Cf. PASSWORD english dictionary, p. 416.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0918
na Universidade do século XXI”, Tracy fez o seguinte comentário a respeito da América
Latina:
É muito importante que haja mais solidariedade intelectual e prática dos
teólogos de todos os hemisférios. [...] E creio importante mencionar
também o povo indígena, que tem igualmente uma história terrível. [...] a
situação no Brasil, no Peru e no México não é como na Argentina e em
outros lugares e nos Estados Unidos. Temos vários apelos favoráveis à
tradição indígena. É tão importante a inculturação religiosa. Convém
pensar também na questão relacionada aos escravos, que também é
uma experiência tão terrível, aqui, na história do Brasil, nos Estados
Unidos e alhures [...]. As pessoas realmente poderiam aprender umas
com as outras [...] (IHU on line. n.6, n. 171, p. 45).
Quanto à sua observação sobre o Brasil, Tracy relata:
Eu fui comovido profundamente, às vezes até oprimido pela cultura brasileirasua criatividade multicultural combinadas com os problemas (especialmente
econômicos) que ainda afligem grandes seguimentos da sociedade brasileira.
Eu viajei muito pelo mundo, mas raramente fiquei tão impressionado pela
cultura brasileira nas suas várias formas (IHU em formação. N. 8, ano 2006, p. 36. ) .
Em relação ao trabalho de Tracy sobre Deus, deve-se considerar as obras
Talking about God (1983) e On Naming the presente: God, Hermeneutics, and church
(1994). Desde 1994, Tracy não publica livros, pois está trabalhando em uma importante
obra sobre Deus. A respeito de seus recentes estudos, um de seus entrevistadores
relatou o seguinte: “[...] Durante a década passada, o professor Tracy tem continuado
seu trabalho sobre o que seus estudantes e amigos descrevem como “o enorme Projeto
sobre Deus”5.
Há um importante artigo publicado em 2005 sob o título Forma e fragmento: a
recuperação do Deus escondido e incompreensível” em que a grande questão
estudada por Tracy é “saber como um cristão pode ser radicalmente negativo-apofático
e místico e ao mesmo tempo, trinitário [...]” (TRACY, 2005, p. 227). Neste artigo, Tracy
dialoga com Lutero, Pascal, Kierkegaard e Levinás pensando em categorias como a
ética, o outro, o infinito, o Bem e a inquietude de Simone Weil 6, em especial, sua
relação como a metáfora bíblico-cristã “Deus é amor” (I João 4,8)
5
Cf. HOLLAND, S, 2002.. “For the past decade, Professor Tracy has been as work on what his friends and students
describe as ‘a huge God-project’ […]”. (Tradução nossa).
6
Cf. TRACY, 2014. A respeito das Obras de Simone Weil, Cf. Oeuvres completes. Paris: Gallimard.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0918
Esta breve situação dos desenvolvimentos teológicos de Davi Tracy, nos oferece
indicações sobre as recentes pesquisas teológicas dele, que atualmente, ocorrem no
sentido da busca de Deus como escondido-incompreensível. Pode-se contudo observar
a insistência de Tracy no caráter místico-profético da teologia no espaço público,
assunto que será brevemente apresentado a seguir.
A SENSIBILIDADE MÍSTICO-PROFÉTICA
O diálogo místico-profético (que Tracy chama de publicness 3) baseia-se na
percepção de que a esfera pública7 necessita da ajuda de realidades que estão além da
razão pública. Esse tipo de ajuda é necessário para assegurar que a esfera política
(tecnoeconômica e cultural) não se feche em um sistema totalitário, em que a realidade
social é constituída apenas pela realidade da esfera política. Assegura também que as
Igrejas não controlem a esfera política e que o Estado não controle a esfera das
religiões (TRACY, 2012, p. 44-45).
Na obra A imaginação analógica, Tracy mostra que a sociedade é servida
pela esfera pública (tecnoeconômica, política e cultural) e que “numa sociedade que
funcione bem nenhuma esfera domina as outras duas. A publicness 1 (razão dialogal) e
a publicness 2 (razão hermenêutica) resistem às invasões da poderosa e onipotente
esfera tecnoeconômica. Assim, a religião também se vê ameaçada quando é
considerada como mais um item de consumo e a esfera cultural também se encontra
sob ameaça se tudo for tido como “político” (TRACY, 2012, p. 45).
Para Tracy, a esfera pública situa-se entre a esfera política e a esfera
cultural. De outro lado, “os clássicos das diversas tradições [...] fornecem novos
recursos culturais e religiosos para a esfera pública”. Um exemplo dado por Tracy é o
fato da opção pelos pobres ser valiosa não só para a Igreja, mas também para toda a
esfera pública, em que “a sociedade deve decidir sobre sua responsabilidade com os
membros mais pobres” (TRACY, 2012, p. 45).
Neste sentido a esfera pública necessita da ajuda de realidades além da
razão pública e a publicness 3, a razão místico-profética, propõe um valor público das
7
Tracy utiliza-se das categorias de Jürgen Habermas para definir as noções de esfera pública e esfera política. Cf.
TRACY 2010.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0918
realidades para “além dos limites da razão”, o que ele também chama de “fé”,
“revelação”, “incompreensível”, “inefável”. Assim, para ir “além dos limites da razão”,
deve haver demandas proféticas, escatológicas e extraordinárias, recursos que podem
ser denominados de místico-proféticos (TRACY, 2012, p. 45-46).
Para Tracy, o conhecimento místico supera os “limites da razão” e, como
conhecimento, também “deveria entrar na esfera pública diretamente, não como
resultado de um debate racional (publicness 1) nem apenas como um clássico cultural
religioso (publicness 2). Para mostrar a participação do místico-profético na esfera
pública, Tracy oferece alguns exemplos: A cidade de Deus, de Agostinho; o
pensamento social católico; o realismo cristão, de R. Niebhur; as teologias políticas da
libertação (TRACY, 2012, p. 47).
Tracy sustenta que a fé é um novo conhecimento, não apenas de novas
crenças cognitivas, mas também de “um novo fundamento para o conhecimento, um
conhecimento de confiança radical (fides fiducialis), que leva ao novo, ao infinito e a
epektasis”8, uma busca por Deus que faz com que o desejo por Ele aumente cada vez
mais e seja insaciável (TRACY, 2012, p. 47).
Dessa forma, a ênfase na práxis, no olhar de Tracy, enfatiza a atenção
teológica na situação “socioética do sofrimento em massa e da opressão e alienação
amplamente difundida numa cultura global emergente” mais do que na crise intelectual
do cristão moderno (TRACY, 2006, p. 129).
A análise que pode ser feita é que a publicness 3, unida à publicness 1 e à
publicness 2, pode ajudar, na avaliação de Tracy, a deprimida esfera pública de nossa
sociedade, pondo à sua disposição os ricos recursos das tradições religiosas cristãs (e
outras também) (TRACY, 2012, p. 50).
CONCLUSÃO
Pode-se
compreender
que
uma
sensibilidade
místico-profética
torna-se
necessária para que a teologia possa dialogar com o espaço público, sem abrir mão
8
Cf. TRACY, 2012, p. 47. Sobre a doutrina da Epektasis cf. NYSSE, La vie de Moïse,(sc1); PAMPALONI, Massimo.
A imersão infinita: para uma introdução a Gregório de Nissa. Cadernos Patrísticos, v. 5, n.9. Florianópolis: ITESC,
maio de 2010. p. 69-88.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0918
daquilo que é central na proclamação cristã, isto é, oferecer uma saída que esteja além
da razão, o que podemos chamar também de fé, pois, o místico-profético resgata e
insere no espaço público, a noção de Deus como amor, graça e esperança. O desafio
aqui é fazer Deus conhecido por sua (in)compreensibilidade, em que “Deus é amor”
para todos, e não somente para alguns. Voltar a este tema apofático em uma cultura
tecnológica, imediatista e materialista é o desafio da teologia contemporânea.
Referenciais
HOLLAND Scott. This Side of God; A conversation with David Tracy. The Christian Century,
Cross
Currents,
spring
2002,
vl.
52,
n.1.
Disponível
em
<http://www.crosscurrents.org/spring2002.htm>. Acessado em 28 de setembro de 2010
NYSSE, La vie de Moïsé: ou traité de la perfection em matiére de vertu. 10. Ed. Paris: Du
Cerf, 1955. Sources Chrétiennes, n. 1.
SANKS, Howland T. David Tracy’s Theological Project: An overview and some implications.
Theological Studies, n. 54, 1993.
TRACY, David. Blessed Rage for Order. The new pluralism in theology. 4. Ed. San
Francisco: Harper & Row, 1998.
______. God as Infinite: Ethical Implications. Chicago Conference on God and Ethics.
Chicago, Abril de 2014.
______. Pluralidad y Ambiguedad: Hermenêutica, religión, esperanza. Madrid: Trotta, 1997.
______. A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo:
Unisinos, 2006.
______. A Teologia na esfera pública: três tipos de discurso público. Revista Perspectiva
Teológica, ano 44, n. 12, Belo Horizonte: Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia,
Jan/Abr. 2012. p. 29-51.
______. A volta de Deus na teologia contemporânea. Concilium, 256, 1994/6. Petrópolis:
Vozes, 1994.p. 49-61.
______. Dialogue with the other: the inter-religious dialogue. Peeters Press: Louvain, 1990
______. On Naming the present: God, hermeneutics, and church. New York: SCM Press,
1994.
______. Forma e fragmento: a recuperação do Deus escondido e incompreensível. In:
GIBELLINI, Rosino (org). Perspectivas teológicas para o século XXI. São Paulo: Santuário,
2005. P. 227-278.
______. Simone Weil: le masque et la personne. L’Herme Simone Weil. Paris: Éditions de
L’Herne, 2014, p. 301-306.
______.; COBB, John B. Talking About God: Doing Theology in the context of modern
pluralism. New York: The Seabury Press, 1983.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0918
Download