1 Estudo da rede de saúde mental de uma cidade da Baixada Fluminense: uma interlocução entre saúde mental, saúde coletiva e psicopatologia psicanalítica I. Introdução Desde o final da década de 1970, a sociedade brasileira vem acompanhando o Movimento da Reforma Psiquiátrica (RP), cujas conquistas o levaram, a partir do início dos anos 2000, à condição de política de Estado. Amarante (2007) enfatiza que a RP deve ser concebida como um processo social complexo que possui diferentes dimensões: social, política, jurídica, epistemológica e técnica-assistencial. Sendo processual, é contínuo e necessita de constante avaliação. No mesmo sentido, Furtado e Onocko Campos (2005) comentam que a institucionalização da Reforma Psiquiátrica garante alguns recursos para a estruturação de programas e serviços alinhados à proposta de desinstitucionalização do louco e da loucura, mas, por outro lado, nos ameaça de perder a dimensão instituinte do Movimento, ou seja, sua potência em questionar as instituições e instaurar o novo. Além disso, os autores apontam o risco de que a regularização dos novos serviços desobrigue a sociedade de repensar a relação estabelecida com a doença mental ao longo dos últimos dois séculos, ao privilegiar a adaptação ao meio e o apagamento do sujeito. Uma das possibilidades de enfrentamento desses riscos é o diálogo entre a saúde mental (que diz respeito às ações políticas e eticamente orientadas, referidas à singularidade de certo grupo, cujos traços comuns são a loucura e a exclusão) e a clínica, que trabalha com o caso tomado em sua singularidade. A clínica vem nos dizer que existe um sujeito no indivíduo que está no mundo, enquanto que a saúde mental nos indica as determinações sociais, políticas e ideológicas que envolvem esse mesmo mundo. O grande desafio é considerar o sujeito do direito e o sujeito do inconsciente, evitando a prática de uma saúde mental ortopédica ou de uma clínica alienada e pouco cidadã (Furtado e Oncocko Campos, 2005). No que diz respeito à dimensão técnico-assistencial da RP, verificou-se, nos últimos anos, uma significativa mudança no foco dos investimentos governamentais, de tal modo que, a partir de 2006, a maior parte do montante de gastos com saúde mental passou a destinar-se a serviços territorializados, que objetivam não apenas o alívio do sofrimento de seus usuários, como também ganhos nas esferas da inserção social e das possibilidades de cuidar de si. Atualmente, o Brasil possui 1620 CAPS e 753 SRTs (nas quais estão inseridos 3091 moradores), além de Centros de Convivência, Oficinas de Trabalho e outros dispositivos 2 voltados para o tratamento e a reinserção social dos pacientes cuja nomeação convencionouse como “portadores de transtornos mentais”.1 Em relação às internações hospitalares, verifica-se diminuição do número de leitos em grandes hospitais psiquiátricos e a prerrogativa oficial de que os pacientes em crise sejam acompanhados, preferencialmente, nos “leitos de hospitalidade noturna” (LAIhg). Estes devem ofertar o acolhimento integral ao paciente em crise e estar articulados com outros dispositivos de referência para o paciente, sendo um componente essencial da porta de entrada da rede assistencial e um mecanismo efetivo de garantia de acessibilidade. Entende-se que a tendência é de que essa rede de leitos de atenção integral se expanda e substitua a internação em hospitais psiquiátricos convencionais2. Atualmente, são 721 hospitais gerais com leitos psiquiátricos ou LAIhg, totalizando 4.081 leitos SUS3. Investigações acerca do trabalho assistencial desenvolvido nos leitos psiquiátricos de hospitais gerais reconhecem que algumas experiências nessas unidades têm se mostrado exitosas na criação de uma “nova linguagem” e um novo modo de produção de saber nos hospitais (Machado e Colveiro, 2003). Entretanto, identifica-se uma série de desafios a serem enfrentados, tais como a resistência local à internação psiquiátrica, restrições econômicas, capacitação profissional deficitária, ausência de um modelo terapêutico que vá além da abordagem farmacológica e ausência de intercâmbio eficaz com a rede serviços de saúde (Larrobla e Dalgalarrondo, 2006; Machado e Colveiro, 2003). Nesse sentido, Araújo (2008) observa que a cultura hospitalar não tem se desenvolvido no sentido de criar vínculos com a comunidade do seu território de abrangência, o que o impede de prestar cuidados integrais, que englobariam a relação com serviços extra-hospitalares, dentre os quais, destacamos aqueles ligados à Atenção Básica à saúde (ABS). Naquilo que diz respeito aos CAPS, pesquisas indicam a eficácia desses serviços no processo de desospitalização e o acolhimento dos pacientes psicóticos, favorecendo o trabalho subjetivo dos mesmos (Kantorski et al., 2009; Onocko Campos et al., 2009). Porém, dentre os problemas de funcionamento avaliados encontram-se a dificuldade de relação com outros serviços da rede, sobretudo com a Atenção Básica à Saúde, e o excessivo número de usuários que, além de sobrecarregar os profissionais, compromete a qualidade da atenção prestada, acarretando o risco de produção de práticas desvinculadas do território de vida dos pacientes 1 Dados obtidos na área de Saúde Mental do Site do Ministério da Saúde: http://portal.saude.gov.br/saude/area.cfm?id_area=925 [acessado em 14/11/2011] 2 Dados obtidos na área de Saúde Mental do Site do Ministério da Saúde: http://portal.saude.gov.br/saude/area.cfm?id_area=925 [acessado em 14/11/2011] 3 Fonte: CNES – pesquisa realizada 06/06/2011. Dados cedidos por Departamento de Regulação, Avaliação e Controle – DRAC. Secretaria de Atenção à Saúde/Ministério da Saúde - SAS/MS. 3 (Cavalcanti et al., 2009; Onocko Campos et al., 2009). Nesse contexto, coordenadores de Unidades Básicas de Saúde mostraram ter idéia vaga e distorcida sobre a função dos CAPS, a despeito do número de pacientes que sua equipe encaminhou para o serviço. Já os agentes de saúde afirmam desconhecer o CAPS e praticar ações de saúde mental baseadas no senso comum (Onocko Campos et al., 2009). Esse cenário sinaliza a dificuldade dos serviços em organizar uma assistência integral e integrada à saúde, tal como preconizam os princípios e diretrizes do SUS, e aponta a necessidade de estudarmos as relações que os serviços de saúde têm estabelecido para o acompanhamento de pacientes de saúde mental, sobretudo no que diz respeito às possibilidades de interlocução entre CAPS e ABS, interlocução esta que se mostra essencial para o processo de desinstitucionalização e inserção social dos pacientes. Interessa-me investigar se há dispositivos sistemáticos de interlocução entre esses dois serviços e como funcionam. Além disso, partindo da suposição de que a estrutura clínica de cada caso é o que deve determinar as estratégias terapêuticas adotadas, pretendo compreender também qual a relação entre essa estrutura e os dispositivos de acompanhamento de pacientes que CAPS e ABS adotam conjuntamente ou isoladamente. Dentre as diferentes estratégias, através das quais uma investigação como esta poderia ocorrer, optei por estudar os principais quadros clínicos apresentados pelos pacientes encaminhados pela ABS para tratamento no CAPS, buscando compreender o processo de encaminhamento e recepção bem como a estrutura clínica que sustenta tais casos e os dispositivos utilizados para seu acompanhamento. Assim, pretendo desenvolver uma pesquisa que produza um diálogo entre saúde mental, saúde coletiva, clínica psicanalítica e psicopatologia psicanalítica e, sem apagar as especificidades de cada uma dessas áreas, crie uma zona comum de discussão acerca das demandas recebidas pela ABS, as possibilidades de construção de espaços de tratamento e as formas de encaminhamentos para os CAPS, ou compartilhamento de trabalhos entre esses dois serviços. Trata-se de uma pesquisa que ainda propõe desdobramentos no campo do ensino e da extensão, colaborando com a formação (de pesquisador e de clínico) de graduandos do curso de psicologia e com a criação de espaços de discussão clínico-institucional para os profissionais da ABS e do CAPS. II. Justificativa II.I O campo da saúde mental na AB Desde 1994 a expansão da ABS no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) tem se dado principalmente através da implantação do Programa de Saúde da Família (PSF), 4 considerado estratégia de reorganização da prática assistencial, com atenção centrada na família a partir do seu ambiente físico e social, possibilitando uma compreensão ampliada do processo saúde-doença e da necessidade de intervenções que vão além das práticas curativas. Organizado através de uma equipe mínima, constituída por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente de saúde, o PSF deve realizar ações de promoção e prevenção de saúde, articuladas com a assistência de média e alta complexidade de forma integrada e contínua (Brasil, 2007). Certos autores defendem que o PSF possui algumas concepções e objetivos comuns com a Saúde Mental, sendo, por isso, um espaço estratégico para se fazer a aproximação desta com a ABS (Nunes et al., 2007; Onocko Campos e Gama, 2008). Nunes et al. (2007) lembram que a consolidação da RP em vários países do mundo se deu com ênfase na construção de uma rede de cuidados que contemple a AB, partindo-se do princípio que uma grande quantidade de problemas de saúde pode ser resolvida nesse nível, sem a necessidade de recorrer a especialistas. Os autores lembram que, já nos anos de 1970 e 1980, a Organização Mundial de Saúde reconhecia a impossibilidade dos serviços de saúde mental ficarem a cargo exclusivo de especialistas e preconizava a descentralização dos serviços, sua incorporação em unidades de cuidados gerais, a formação de cuidadores não especializados e o aumento da participação da comunidade. Há alguns anos o Ministério da Saúde brasileiro tem discutido a necessidade de inclusão da Saúde Mental na AB. Em levantamento feito em 2003, constatou que os profissionais da ABS se deparam cotidianamente com problemas de “saúde mental”, sendo que 56% das equipes de Saúde da Família investigadas referiram realizar “alguma ação de saúde mental”, ligadas ao agravo decorrente de uso abusivo de álcool e outras drogas e diversas formas de sofrimento psíquico. Diante desse quadro, reconhece-se a necessidade de investimentos em capacitação dessas equipes para que possam acompanhar os casos de Saúde Mental através de práticas fundamentadas nos princípios do SUS e da RP. Para tanto, o Ministério da Saúde propõe a realização de Apoio Matricial às equipes de Saúde da Família, a formação como estratégia prioritária e a inclusão da Saúde Mental no Sistema de Informações da ABS, além da viabilização de uma rede de cuidados articulada ao território com parcerias intersetoriais, possibilitando intervenções transversais de outras políticas públicas (Brasil, 2003). Em janeiro de 2008, o Ministério da Saúde lançou a portaria 154 que criou o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), equipes formadas por profissionais que não estão contemplados dentro da Equipe mínima da ESF (como psicólogos, fisioterapeutas, dentre outros), sendo destinados a fazer o matriciamento das equipes e contribuir com a ampliação da abrangência e a resolubilidade da Atenção à Saúde (Brasil, 2008). 5 A despeito dos investimentos que se encontram em curso, os desafios para a inclusão da Saúde Mental na ABS ainda se fazem intensos. Estudos realizados em algumas cidades brasileiras mostram variada gama de problemas, dentre os quais se destacam: 1- restrita inclusão da saúde mental enquanto campo de ação da equipe de PSF, o que se deve a fatores como desconhecimento acerca da reforma psiquiátrica e falta de capacitação dos profissionais, falta de condições para atendimento dos casos de saúde mental no PSF e a inexistência de uma rede de saúde mental, o que inclui falta de entrosamento com os serviços de saúde mental existentes; 2- dificuldade em lidar com problemas mentais mais graves, como a “psicose”; realização de práticas moralizantes, de cunho discriminatório ou apoiadas no modelo biomédico e hospitalocêntrico; 3- ausência de recursos operacionais e teóricos para lidar com a saúde mental no PSF e utilizar os avanços técnico e metodológico que esse programa vem alcançando. Ou seja, inexiste no PSF uma “estratégia” para lidar com a saúde mental. (Nunes et al., 2007). Outros estudos afirmam que a ações de saúde mental da ABS, em grande parte, ainda se traduzem pelo predomínio do modelo biomédico, de tal modo que a penetração da Reforma Psiquiátrica mostra-se tímida. Nesse contexto, formas de abordagem baseadas na escuta e no acolhimento são escassas. (Tanaka e Ribeiro, 2006; Brêda e Augusto, 2009; Silveira e Vieira, 2009). Segundo Nunes et al. (2007) a área de saúde mental desenvolveu teorias e métodos de compreensão e abordagem do sujeito, as quais raramente foram incorporadas por outras clínicas, o que foi evidenciado pele exílio do campo da saúde mental em relação às instituições de saúde, cujo exemplo foi a criação de ambulatórios e hospitais psiquiátricos separados dos hospitais gerais. Pode-se supor que, atualmente, as consequências desse exílio recaem sobre a ABS, campo de necessária confluência das diversas disciplinas da área da saúde. Consequentemente, verifica-se que os profissionais da ABS já lidam no seu cotidiano com os “portadores de transtorno mental”, mas desejam se qualificar para esse trabalho, pois, em sua maioria, sentem estar descumprindo uma “ética de cuidado”, sem saber como agir de modo diferente, ou percebem-se angustiados e despreparados para lidar com situações afetivamente exigentes. Essa necessidade de qualificação dos profissionais aponta também que é imprescindível que as instituições de ensino se estruturem para oferecer uma formação adequada aos profissionais que terão um papel cada vez maior no cuidado aos “portadores de transtornos mentais”, tendo em vista a conjuntura atual de progressiva desospitalização. Onocko Campos e Gama (2008) observam que até mesmo os profissionais que têm uma formação específica em saúde mental, como psicólogos e psiquiatras, têm dificuldade em trabalhar na ABS. Nesse sentido, o Conselho Federal de Psicologia publicou documento em 6 1994 afirmando que os cursos de graduação em psicologia ainda não oferecem uma formação clínica que capacite o aluno a iniciar uma trajetória profissional nos serviços do SUS. Já no que diz respeito à formação médica, Valentini et al. (2004) lembram que os cursos de graduação oferecem conteúdos de saúde mental muito descontextualizados da ABS, possibilitando que os alunos aprendam sobre temas de psicopatologia e psicologia em situações muito diversas daquelas que encontrarão no seu dia a dia de trabalho. Nesse sentido, pontuam que a maioria dos médicos brasileiros é treinada em ambulatórios psiquiátricos e hospitais, onde as situações clínicas se apresentam de forma diversa daquela encontrada na ABS. Os autores defendem a formação técnica permanente no contexto de trabalho. Asseveram que a falta de capacitação de algumas categorias profissionais para lidar com problema de saúde mental acarreta sofrimento psíquico para o próprio trabalhador, comprometendo a qualidade da atenção (Valentim et al., 2008). Acerca dessa questão, Onocko Campos e Gama (2008) argumentam que o tema saúde–doença envolve grande mobilização de questões emocionais no profissional, levando-os, muitas vezes, a realizar diagnósticos apressados e condutas extremamente técnicas e desumanas. Por outro lado, tendem também a proporcionar uma abertura muito grande ao sofrimento vivenciado pelo usuário, de forma a deixar-se invadir pelo problema, não conseguindo manter uma distância que lhes permita certo discernimento a respeito da situação. Nesse caso, perdem a potência de sua intervenção, evidenciando não conseguirem desenvolver uma clínica: tendem a dispensar um “cuidado” parecido com aquele que um parente angustiado poderia oferecer. Diante do cenário delineado pela problemática da inserção do campo da saúde mental na ABS, considero urgente que destinemos esforços de pesquisa acerca dos recursos conceituais e metodológicos de que os profissionais poderiam dispor para exercer uma prática clínica consistente no seu cotidiano de trabalho. Trata-se de conhecimentos que, segundo Onocko Campos (2005), servem para aumentar a eficácia dos cuidados, bem como colaborar com a produção de saúde do próprio trabalhador, configurando-se como uma espécie de motor da ampliação da clínica. Considerando os desafios e dificuldades que envolvem o acompanhamento de pacientes com problemas relacionados à saúde mental na ABS, elegi como foco das investigações aqueles casos que se mostraram como impasses para os profissionais desses serviços e, por isso, foram encaminhados aos CAPS. Deste modo, espero poder compreender os elementos determinante dos impasses, as dificuldades diante dos casos, as representações acerca da problemática da saúde mental e as estratégias construídas para o tratamento quando 7 dois serviços passam a ser envolvidos: A ABS que encaminha os casos e o CAPS que os recebe. Para tanto, entendo que um dos aspectos que merecem ser investigados diz respeito ao diagnóstico psicopatológico dos pacientes encaminhados. Parece-me pertinente construir questões para esse contexto de atenção, tais como: Quem são os sujeitos que procuram a ABS? Quais as demandas subjacentes às queixas que apresentam? Como articulam tais demandas? Como se posicionam diante do mundo social que habitam? Suponho que sem o debate acerca dessas interrogações (debate infinito, uma vez que elas remetem ao singular de cada caso) não é viável pensar na clínica possível ao contexto da ABS. Esse debate deverá enriquecer-se com a compreensão do modo como esses sujeitos são percebidos, diagnosticados e tratados pela ABS e pelos CAPS. II.II Sobre queixas, acolhimento e diagnóstico: em busca do sujeito Onocko Campos e Gama (2008) afirmam que é comum que a enorme demanda por atendimento a problemas de saúde na ABS encontre-se reprimida, seja em função da pouca capacitação profissional para atendê-la, do número insuficiente de profissionais na equipe, ou da inadequação das concepções que os trabalhadores possuem sobre intervenção na área de saúde pública. Diante desse quadro, percebem que grande parte dos serviços adota um esquema de atendimento através de “fila de espera” de tal forma que vão chamando os usuários na medida da disponibilidade dos profissionais. Para os autores, essa estratégia mostra-se problemática porque prescinde da avaliação de risco dos casos, podendo acarretar em desatenção a sujeitos com sofrimentos mais graves, que necessitariam de intervenções urgentes. Sugerem como solução para esse impasse a introdução de dispositivos de acolhimento, tal como preconizado pela Política Nacional de Humanização. Esse dispositivo: (...) permite que todo usuário que demande um atendimento na área de saúde mental seja ouvido de maneira mais profunda, por um profissional da área de saúde mental ou de outra área com capacitação e que o andamento do caso seja feito a partir de critérios pré definidos relacionados ao risco, ao sofrimento e urgência do problema. Assim, é possível dar um primeiro amparo ao portador de sofrimento mental e a partir das informações colhidas hierarquizar e organizar o fluxo e o tipo de oferta de tratamento que o serviço realizará. Às vezes essa escuta qualificada pode demandar mais de um encontro. (Onocko Campos e Gama, 2008, p. 236) Concordo com os autores acerca da possível eficácia dos dispositivos de acolhimento, mas suponho que estes podem recair nos mesmos problemas anteriormente discutidos, se não se sustentar em algumas questões: Quem são os “acolhidos”? Onde se situa o sujeito que demanda? Qual a articulação ele faz entre sofrimento e desejo? De que qualidade são os riscos identificados? Note-se que o enfrentamento dessas questões, bem como a possibilidade de mantê-las vivas, é pré-condição para que os profissionais não precisem recorrer a práticas moralizadoras, descriminalizantes e tutelares, que tendem a colocar o sujeito no lugar de 8 vítimas indefesas, eternamente dependentes, ou de algozes imorais, que não obedecem as orientações de cuidado provindas do “conhecimento científico”, tal como frequentemente identificamos nos serviços de saúde. Com base nessas considerações, proponho a realização de uma pesquisa que abarque a temática do diagnóstico em saúde mental, podendo realizar o estudo de alguns casos clínicos de pacientes que procuram atendimento de saúde mental na AB, bem como a discussão dos mesmos junto à equipe que os recebeu. Com isso, espero que a pesquisa possa contribuir com a capacitação dessa equipe e, concomitantemente, compor a formação de alunos de graduação em psicologia, formação esta que poderá proporcionar uma aprendizagem sobre psicopatologia contextualizadas na rede de serviços do SUS, possivelmente um futuro campo de trabalho. Algumas pesquisas apresentam discussões sobre os principais quadros psicopatológicos identificados nos pacientes atendidos na ABS. Maragno et al (2006) encontraram prevalência de 24,95% de indivíduos com transtorno mental comum - TCM (segundo classificação do CID X) numa unidade do PSF-QUALIS da periferia de São Paulo/SP, sendo mulheres, idosos, pessoas de baixa escolaridade e menor renda per capta os grupos considerados mais vulneráveis. Já Barros (2005) encontrou uma prevalência de TCM de 17,4% numa população de 3.890 pessoas com 18 anos de idade ou mais, na cidade de Pelotas/RS. Sem desconsiderar a função informativa desses estudos, considero que são necessários outros tipos e pesquisas na área da psicopatologia, envolvendo o trabalho na ABS e no CAPS. Traduzindo o diagnóstico através dos atuais sistemas de classificação (DSM-IV e CID-X) essas investigações informam números (necessários para o planejamento de políticas), mas que pouco dizem sobre os sujeitos que demandam atenção das equipes da ABS (o que é imprescindível para o exercício da clínica). Tal como afirma Quinet (2001), a estratégia utilizada pelo DSM-IV e pela CIDX de descrever síndromes, através da apresentação de fenômenos, favorece a comunicação entre colegas, mas impossibilita-nos de realizar uma clínica “(...) em que cada caso seja efetivamente um caso e na qual os fenômenos sejam considerados sintomas (...) ” (idem, p.74). Monseny (2001) afirma que a CID X e o DSM-IV nasceram como instrumentos para investigação e estatística e supõe que poucos psiquiatras considerem que eles tenham valor clínico para orientar sua prática. Sendo assim, para o autor, esses sistemas de classificação ganham usos burocráticos, voltados particularmente para o controle da assistência pública. Na mesma direção, Serpa Jr. et al. (2007) defendem que o modo de classificação proposto pelo 9 DSM-IV e pela CID-X, pretensamente “a-teorica”, deixa de fora tanto a dimensão subjetiva do adoecimento, quanto os aspectos relacionais e sociais. Diante dessas reflexões, pretendo desenvolver uma pesquisa no âmbito da saúde pública, mas circunscrita ao campo clínico, o que conduz a escolha de formas de estudo diferentes daquelas acima citadas, uma vez que voltadas à singularidade de alguns casos e não a apresentações de dados epidemiológicos de prevalência ou morbidade. Essa opção vai ao encontro do alerta que Serpa Jr (2001) faz acerca do papel da psicanálise diante dos atuais sistemas classificatórios: (...) O que outrora fora experimentado na ordem da estranheza, do insuportável e do enigma irresolúvel, parece em vias de ser dominado pelo conhecimento positivo. O que de excepcionalmente digno de ser ouvido com atenção pelos psiquiatras a psicanálise tem a dizer nesse momento (...)? A resposta, a meu ver, nos remete a uma decisão, uma escolha ética que nos leva a dizer que existe algo a mais do que aquilo que enxergamos na aparência dos sintomas, na ordem ilusória dos quadros classificatórios, na performance sempre incerta dos psicofarmácos, ou seja, existe algo que também nos causa de modo singular, nos situa como sujeitos. (...) (Serpa Jr.,2001, p.35) O interesse em conhecer esse “algo a mais”, causa da singularidade, levou-me a escolher a psicanálise freudiana como referencial teórico para a concepção de sujeito que permeará a investigação. Em 1917, Freud já dizia que a psicanálise impôs à humanidade seu terceiro golpe narcísico provando que o “eu não é senhor nem mesmo em sua própria casa”, na medida em que sua mente possui enorme substrato de conteúdos inconscientes, aos quais pode ter acesso apenas indiretamente. Ao longo de sua construção, a teoria freudiana questiona a noção cartesiana de sujeito da razão e introduz a concepção de um sujeito constantemente marcado pela contradição, pela incessante briga de instâncias psíquicas que lutam por objetivos opostos, pela incerteza, pelo desejo. Um sujeito constituído a partir de sua relação com o mundo social (Freud, 1921) e eternamente às voltas com a castração, seja porque a recalcou e precisa lidar com os sintomas advindos dessa escolha, seja porque a rejeitou e está submetido ao conteúdo indesejado que retorna no real de seu corpo, sem simbolização, seja porque escolheu trabalhar, incessantemente, para desmenti-la (Quinet, 2009). Tal como Rinaldi e Alberti (2009) defendem, a clínica a ser desenvolvida com esse sujeito é aquela que toma sua fala não como “(...) registro de sua doença ou da demanda pela assistência, mas como índice da sua condição subjetiva. (...) [trata-se de] uma perspectiva ética que não é a da moral assistencialista que já sabe de antemão o que é melhor para o sujeito (...)”. (idem, p.541). Assim como as autoras, considero que o campo da saúde mental pode se beneficiar com o desenvolvimento de uma pesquisa sustentada pela ética da 10 psicanálise, uma ética que considera o sujeito a partir de sua fala e busca a sua singularidade (que emerge do inconsciente), através do estudo do “caso a caso”. Dialogar com as equipes da ABS e do CAPS a partir desse posicionamento ético pode contribuir com a formação dos profissionais e a ampliação ou criação de espaços permeáveis à emergência do sujeito, um sujeito que demanda e, ao mesmo tempo, é implicado com seus sintomas, sujeito que pode sofrer injustiças sociais, mas é potencial autor de novas possibilidades de relação com o mundo, sujeito do desejo. Entendendo que o diagnóstico oferece a direção do tratamento, basear-me-ei na psicopatologia psicanalítica e no diagnóstico estrutural. Sobre essa forma de trabalhar o diagnóstico, Quinet (2009) afirma: Enquanto os critérios de diagnóstico têm variado e se ampliado na psiquiatria contemporânea, a psicanálise vem lidando com praticamente as mesmas referências diagnósticas empregadas por Freud. Isto porque, se as formas do sintoma mudam de acordo com o discurso dominante na civilização, as estruturas clínicas permanecem as mesmas e declinam em neurose, perversão e psicose para a psicanálise, ou seja, conforme o sujeito lida com a falta inscrita na subjetividade, falta que condiciona a forma de cada um se haver com o sexo, o desejo, a lei, a angústia e a morte. (idem, p. 10) Portanto, ao trabalhar com o diagnóstico estrutural, procuraremos identificar como o sujeito lida com o drama da castração, como faz sua travessia pelo Complexo de Édipo e como se posiciona diante do Outro (o outro da cultura, fonte de todos os significantes a partir dos quais constrói suas relações com o mundo social). Esse modo de conceber o diagnóstico nos permite apreender qual é a escolha do sujeito (escolha pela neurose ou pela psicose, tal como propõe a teoria freudiana), um sujeito que precisa de tratamento, mas que está implicado com seus sintomas e expressa, ainda que indiretamente, o seu desejo. Por conseguinte, ele não deve ser tratado como objeto de ensinamentos ou ordens respaldadas pela ciência. Essa dimensão de escolha impõe um posicionamento ético do profissional de saúde diante do outro, o qual deve ser concebido na sua propriedade de sujeito. A meu ver, contribuir para que haja espaço para esse sujeito (assim concebido) nos equipamentos públicos de saúde é um dos deveres daqueles que utilizam a psicanálise como referencial teórico. Quinet (2009) ensina ainda que o diagnóstico estrutural deve ser buscado no registro do simbólico, onde o sujeito articula suas principais questões, a partir do modo como faz a sua travessia pelo Complexo de Édipo. Note-se que, se o sujeito percebe-se castrado a partir do Complexo de Édipo, essa castração sempre incide sobre sua mãe, até então Outro absoluto do qual ele era objeto e com o qual mantinha a relação dual, incestuosa. A entrada do pai, configurando a cena edípica, evidencia também a castração da mãe. Partindo dessa idéia, 11 resumidamente, pode-se afirmar que a neurose ocorre a partir do recalque da castração do Outro, com a submissão à lei do incesto e ao desamparo constitucional. Ocorre nesse caso a negação, mas o elemento negado é conservado no inconsciente, o que torna o sujeito destinado a lidar com suas expressões indiretas, através de sonhos, chistes, atos falhos (as psicopatologias do cotidiano) ou do sintoma neurótico. Acatando a proibição da relação incestuosa com a mãe e reconhecendo a castração desta, o sujeito experimenta a falta que passa a compor sua subjetividade e o ascende à condição de desejante. Já na perversão, o sujeito nega o elemento da castração, mas o conserva, dessa vez no fetiche. Alberti (2005, p 357) pontua que o perigo real da castração é tão desesperadamente assustador que o sujeito prefere desmenti-lo. Assim, a perversão não se traduz por atos perversos, mas pela impossibilidade do sujeito de “(...) suportar o questionamento subjetivo em função do desmentido da castração”. Consequentemente, ele “(...) precisa organizar toda a sua vida em função disso, criar condições para desmenti-la [a castração], mantê-la distante de qualquer influência em sua vida psíquica, articular formas para não ver a ausência do falo no Outro (...). (idem, p351) Finalmente, na psicose, o sujeito rejeita a realidade da castração, utilizando um mecanismo que Lacan veio a chamar de “foraclusão”. Embora expulsa, a realidade da castração não deixa de existir e retorna no real do corpo do sujeito, através dos fenômenos psicóticos, como as alucinações. Além desse retorno do foracluído no real, o preço que ele paga pela negação absoluta da castração é sua submissão ao Outro absoluto (já que não castrado), mantendo-se na posição de objeto de gozo deste (Quinet, 2009). Acreditando que um trabalho diagnóstico a partir desse referencial teórico pode nos informar sobre a subjetividade de alguns pacientes que procuram a ABS, contribuindo com a direção do tratamento destes e com a ampliação das discussões clínicas nesse contexto de trabalho, delineei a pesquisa cujo objeto, objetivos, método e cronograma apresento a seguir. II.III A escolha da cidade onde o estudo será realizado Escolhi desenvolver essa pesquisa em Seropédica, município de pequeno porte da região metropolitana do Rio de Janeiro/RJ. Trata-se da cidade que sedia a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na qual sou professora adjunta, responsável pelas disciplinas de Psicopatologia e Psicologia da Personalidade. O curso de psicologia foi recentemente estruturado, encontrando-se no seu terceiro período. Sua criação é fruto de um movimento de expansão da universidade, desencadeado pela integração da UFRRJ ao Programa de reestruturação e expansão das universidades federais (REUNI) e pelo 12 crescimento econômico pelo qual vem passando a região. Trata-se da única graduação pública em psicologia na baixada fluminense, o que lhe confere a responsabilidade para com a formação de seus alunos, bem como o desafio de contribuir com a qualificação dos diferentes serviços públicos da cidade, inseridos no campo da psicologia, como a assistência em saúde mental. Seropédica está localizada na Baixada Fluminense, região que possui aproximadamente 8 milhões de habitantes e vem passando por significativo crescimento no setor de serviços, em função de diversificados investimentos, como reordenação do porto localizado na cidade de Sepetiba, construção de indústrias siderúrgicas previstas para as cidades de Itaguaí e Santa Cruz, pólo petroquímico localizado no município de Duque de Caxias e modernização das estradas que atravessarão a região a partir da construção do Anel Rodoviário que ligará o recôncavo da Guanabara ao porto de Sepetiba, articulando-a à área onde será construída uma refinaria de petróleo no município de Itaboraí. A despeito desse evidente quadro de expansão econômica, os municípios da Baixada Fluminense apresentam os menores índices de desenvolvimento humano (IDH) do estado, expressos pela precariedade do saneamento básico, transporte público, habitação, segurança, saúde e educação. O município de Seropédica possui 78.1864 habitantes e IDH 0,475, considerado baixo pelo Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD). Sua rede de saúde é composta por 19 Postos de Saúde, 1 Hospital Maternidade, 1 CAPS I (que funciona de segunda a sexta-feira, de 8 às 17 horas), 1 Residência terapêutica, com 08 moradores e 1 serviço móvel de emergência - SAMU, sendo que 3 Postos de Saúde, bem como o Hospital, oferecem atendimento 24horas para a população6. Conta com coordenação de PSF, mas não há divulgação no site da cidade acerca do número e da distribuição de Equipes de Saúde da Família. Pesquisas preliminares, desenvolvidas no CAPS de Seropédica, mostraram que a grande parte dos casos de saúde mental é atendida neste serviço, inclusive aqueles pacientes cujos diagnósticos estão relacionados a quadros neuróticos que poderiam ser acompanhados em ambulatórios ou na ABS. Pacientes em crise, que necessitam de cuidados intensivos no 4 Informação obtida através do IBGE, Censo de 2010, disponível em http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?uf=33&dados=21 [acessado em 14/11/2011] 5 Informação obtida através do Atlas do Desenvolvimento Humano/PNUD, disponível em http://www.pnud.org.br/atlas/ [acessado em 14/11/2011] 6 Dados obtidos no site: http://www.portalseropedica.com.br/saude/index.htm [acessado em 14/11/2011] 13 período noturno, podem ser encaminhados pelo CAPS aos Postos de Saúde 24horas, para retornarem ao serviço de origem no dia seguinte de manhã. A cidade de Seropédica será tomada como um caso típico da Baixada Fluminense. O estudo em profundidade acerca dos dispositivos clínicos utilizados para interlocução entre ABS e CAPS deverá gerar material reflexivo útil para as demais cidades da região, podendo ser instrumento para o planejamento da rede de saúde mental. Além disso, o desenvolvimento da pesquisa em Seropédica permitirá o conhecimento sistematizado do funcionamento da rede de saúde do município e a construção de relações de trabalho com gestores e profissionais dos serviços, contribuindo para a organização de futuros campos de estágio na área de saúde para os graduandos de psicologia. III Objeto de estudo da pesquisa O objeto da pesquisa é a rede de saúde mental do município de Seropédica, representada pela ABS e pelo CAPS. III Objetivos III.I Objetivos Gerais Objetiva-se conhecer o trabalho de saúde mental desenvolvido na rede de saúde da cidade de Seropédica, especialmente no que diz respeito à relação entre ABS e CAPS. III.II Objetivos Específicos • Conhecer a organização de rede de saúde da cidade de Seropédica e a forma de inserção da área da saúde mental nessa rede. • Conhecer o trabalho clínico na área de saúde mental desenvolvido pelos profissionais da Atenção Básica da cidade. • Estudar o acompanhamento relatado em prontuário de todos os pacientes encaminhados ao CAPS pela ABS no ano de 2009, identificando a existência de dispositivos de tratamento compartilhados entre os dois serviços. • Fazer o estudo de caso de, pelo menos, 3 pacientes encaminhados por Unidades Básicas de Saúde para o CAPS. • Discutir os casos estudados e a direção do tratamento com as equipes que acompanham os pacientes indicados para o estudo. • Contribuir para a qualificação das relações de trabalho entre Atenção Básica e atenção especializada em Saúde Mental no município de Seropédica. 14 • Contribuir para a criação de parcerias entre a Universidade e serviços da rede de saúde de Seropédica, possibilitando a futura criação de um campo de estágio em psicopatologia e saúde mental. IV Método Pretende-se utilizar para a esta pesquisa a metodologia qualitativa, baseada no paradigma construtivista. Este se apresenta numa perspectiva relativista que considera que a verdade é construída por consensos e a pesquisa é fruto de interações e reconstruções mútuas entre objeto, investigador e realidade estudada. Entende-se que os sujeitos são históricos e sua linguagem é limitada ao tempo e ao espaço em que fora construída, sendo necessário considerar seu contexto de produção (Denzin e Lincoln, 1994). Portanto, não se supõe o desvendamento de uma verdade sobre os sujeitos estudados, mas a construção de um material provindo das interações entre ele e o pesquisador e da fala que adveio dessa relação. Sendo um estudo qualitativo, delinear-se-á uma investigação em profundidade do fenômeno em questão, buscando a compreensão dos elementos que o constituem a partir dos sentidos construídos e atribuídos pelos sujeitos de pesquisa: profissionais e pacientes. Assim, pretende-se compreender o funcionamento da rede de saúde mental da cidade de Seropédica, com seus impasses e potencialidades, a partir do entendimento produzido pelos diferentes sujeitos que nela trabalham. Admite-se que tal entendimento pode conter contradições e idiossincrasias próprias das construções humanas, permeadas por disputas políticas e paixões de diversas ordens. O estudo de caso de alguns pacientes encaminhados pela ABS para o CAPS possibilitará a discussão dos mesmos junto às equipes dos dois serviços, conduzindo à compreensão das relações entre os elementos da estrutura clínica dos casos e os motivos do encaminhamento ou dos dispositivos clínicos de acolhimento adotados. Embora não objetive assumir o tratamento desses pacientes cujos casos serão estudados, considero que investigação e construção do diagnóstico um trabalho clínico. Para tanto, baseio-me nas indicações técnicas que Freud (1912) faz àqueles que exercem a psicanálise. Ou seja, o método utilizado para interação com os sujeitos será fundamentado nas recomendações freudianas acerca da livre associação do analisando e da escuta livremente flutuante do analista. Também em relação aos profissionais de saúde, considero que o pesquisador deve assumir uma postura clínica, baseada na consideração do entrevistado como um sujeito que desencadeará um processo de construção de sentidos sobre o objeto investigado. Tal 15 construção é facilitada pela disponibilidade do pesquisador a uma escuta livre de preconceitos e aberta a alteridade (Turato, 2010). IV.I Questões éticas A despeito da distância e das diferenças entre pesquisa científica e prática da clínica psicanalítica, acredito que a primeira pode se apoiar em alguns preceitos éticos da segunda. Essencialmente, é trabalho do pesquisador o constante auto-exame e a apresentação do seu trabalho para a comunidade, de modo a identificar seus desejos, preconceitos, e outros aspectos que venham dificultar sua escuta daquilo que o sujeito da pesquisa tem a dizer. E se, em certa medida, tais aspectos são inevitáveis, é seu dever evidenciá-los. Ou seja, cabe-lhe o exercício de um posicionamento ético favorecedor do livre pensar, do livre associar e do livre falar do sujeito. Um posicionamento próximo ao do analista que se coloca em reserva, favorecendo as associações e significações do analisando (Figueiredo, 2008). Cumpre ainda ao pesquisador submeter à análise e ao debate os seus pressupostos teóricos e suas construções do material pesquisado, seja através da publicação científica, seja em discussões com os profissionais que trabalham na realidade estudada. A presente pesquisa realizará ainda alguns procedimentos éticos exigidos pelos comitês científicos: o projeto será submetido ao Comitê de Ética da UFRRJ, bem como ao Comitê de Ética da prefeitura da cidade estudada. Conforme determina a resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, os sujeitos receberão todas as informações acerca das fases da investigação e seus objetivos, devendo assinar um Termo de Consentimento LivreEsclarecido no momento do aceite da participação no projeto e tendo garantidos os seus direitos em relação a sigilo, preservação da identidade e interrupção da participação no estudo. IV.II Estratégia de construção do material de pesquisa Serão adotadas as seguintes estratégias de investigação: • Apresentação da pesquisa aos gestores da área da saúde, bem como à equipe dos serviços envolvidos no estudo. • Entrevista semi-dirigida, em profundidade, com gestores do CAPS, ABS e PSF, com a finalidade de conhecer o funcionamento da rede de saúde da cidade e a inserção da área de saúde mental nesse contexto. • Grupos focais com equipes das Unidades de Saúde da Família que fazem acompanhamento de pacientes em sofrimento psíquico. 16 • Consulta a documentos que informem sobre os serviços da rede, sua missão e funcionamento. • Exame de todos os prontuários de pacientes encaminhados pela ABS ao CAPS. • Exame de documentos oficiais do CAPS que contenham informações sobre admissão e acompanhamento dos pacientes (livro de acolhimento, livro de intercorrências, dentre outros que a equipe informar). • Sessões de entrevista clínica com pacientes previamente indicados pela equipe do CAPS para elaboração do diagnóstico estrutural. Serão feitas o número de sessões necessárias à conclusão desse trabalho, não sendo possível uma delimitação prévia. • Reuniões para discussão dos casos estudados com a equipe do CAPS e da ABS. IV.II.a Principais temáticas a serem abordadas nas entrevistas ou examinadas nos prontuários As entrevistas clínicas com pacientes abordarão temáticas relacionadas à infância, vida familiar, vida escolar, atividades laborais, relacionamentos amorosos e sociais, vivências de crise, relação com sintoma e queixas, motivações e circunstâncias que levaram a busca pelo tratamento, relação com os serviços de saúde, dentre todos os outros que os entrevistados desejarem abordar. Essas temáticas serão sugeridas pela pesquisadora, que respeitará as associações do entrevistado, sem impor qualquer tipo de sequência para a fala dos mesmos. As entrevistas com os gestores da ABS e do PSF abordarão as seguintes temáticas: concepções e representações sobre saúde mental, sofrimento psíquico e transtornos mentais; relação com os pacientes da saúde mental; recursos disponíveis para a recepção e acompanhamento de casos de saúde mental; planejamento dos serviços e da rede para o tratamento de pacientes com problemas relacionados ao campo da saúde mental; mecanismos e dispositivos utilizados para a relação com o CAPS; avaliação da rede de saúde mental. As entrevistas com a gestora do CAPS abordará as seguintes temáticas: funcionamento do CAPS; demanda atendida; dispositivos clínicos adotados para o acompanhamento dos pacientes; dispositivos e mecanismos utilizados para organizar a recepção de pacientes novos; mecanismos e dispositivos utilizados para a relação com a ABS; avaliação da rede de saúde mental. O exame dos prontuários procurará identificar as seguintes questões: motivo do encaminhamento do paciente; estratégias utilizadas para o encaminhamento; forma como são relatados os atendimentos realizados na ABS; formas de interlocução entre CAPS e ABS no momento do encaminhamento e da recepção do paciente; hipóteses diagnósticas formuladas 17 para os casos; dispositivos clínicos disponibilizados ao paciente e seus familiares; evolução do caso; existência de compartilhamento de mecanismos de acompanhamento entre CAPS e ABS; formas de encaminhamento do paciente para tratamento clínico da ABS; evolução do caso; existência de discussão do caso entre CAPS e ABS. A opção pelos prontuários de 2009 se deve à necessidade de conhecer um período maior de acompanhamento do paciente, sem perder a possibilidade de identificar questões ainda atuais, relacionadas à dinâmica de funcionamento dos serviços. Para as discussões dos casos clínicos junto às equipes da ABS e do CAPS, a pesquisadora apresentará a construção do caso, realizada a partir das entrevistas, bem como suas hipóteses relacionadas à estrutura clínica dos pacientes. Em seguida, estimulará que os profissionais façam suas considerações em relação ao caso e às propostas de tratamento, bem como às dificuldades, temores e anseios despertadas pelo relato. Durante as discussões serão investigadas as possibilidades, impasses e resistências para o compartilhamento de algumas estratégias de acompanhamento. IV.III Análise do material empírico Todas as sessões de entrevista com profissionais e pacientes serão gravadas e transcritas. Após a realização de escuta e leitura exaustivas desse material, as entrevistas com profissionais serão analisadas através do método de Análise de Conteúdo (Bardin, 1994). Já as entrevistas com pacientes serão analisadas a partir do referencial psicanalítico (Freud, 1912; Freud, 1917; Figueiredo e Machado, 2000) V Sujeitos de pesquisa Convidaremos os seguintes sujeitos para participar da pesquisa: • Secretário municipal de saúde • Coordenador da Atenção Básica • Coordenador do PSF • Equipe de profissionais do CAPS • Equipe de profissionais da unidade básica de saúde ou do PSF que encaminharam os pacientes cujos casos foram estudados • Todos os profissionais de saúde mental que, por ventura, trabalhem na Unidade Básica V.I A escolha dos casos a serem estudados Serão estudados os prontuários de todos os pacientes encaminhados ao CAPS pela ABS no ano de 2009. Já para o estudo de caso, será solicitado que a equipe do CAPS indique 18 três pacientes encaminhados pela UBS há, no máximo 01 mês, preferencialmente com diferentes hipóteses diagnósticas, segundo avaliação dos profissionais que o receberam. Note-se que, tal como preconiza a literatura (Turato, 2010), por se tratar de um estudo qualitativo, que não pretende a generalização de resultados, optei por estudar poucos casos, de forma a poder aprofundar a análise voltada para cada um deles. VII Cronograma da pesquisa Atividades Semestre 1º. 2º. Aproximação do campo de pesquisa e consulta a documentos oficiais X Entrevistas com gestores e grupo focal com equipe X Reunião com equipe para identificação dos pacientes X Grupos focais com equipes de Saúde da Família X Realização das entrevistas clínicas X X Leitura e análise dos prontuários X X Realização de reuniões com a equipe para discussão dos casos estudados X Elaboração do Relatório da pesquisa e de material de publicação científica X VII Desdobramentos para o campo do ensino e da extensão Considero que os campos da pesquisa, do ensino e da extensão devem estar em permanente diálogo, de modo que possam oferecer uns aos outros as questões, recursos para conhecimento e discussão, reflexões provindas da experiência clínica e da teoria, problemas a serem enfrentados e possíveis direcionamentos para impasses. Trata-se de campos cuja vitalidade depende dessa inter-relação. Sendo assim, proponho alguns possíveis desdobramentos para esta pesquisa: Num campo de intersecção entre pesquisa e ensino, proponho compor um grupo de pesquisa em Psicopatologia e Saúde Mental com alunos e docentes interessados. Neste, deveremos fazer discussões teóricas sobre a psicopatologia psicanalítica e sobre a Política de Saúde Mental brasileira, com seu percurso e desdobramentos na realidade dos serviços. A partir disso, proponho que alguns alunos participem junto de mim das entrevistas com gestores e do estudo dos prontuários. Acredito que tais atividades, uma vez que amparadas por supervisão e discussão teórica, contribuirão para a formação dos alunos na área da pesquisa, bem como no campo de trabalho da saúde pública. 19 Ainda no campo do ensino, suponho que a continuidade dessa pesquisa pode conformar um campo de estágio em psicopatologia e saúde mental, na medida em que os alunos dos nono e décimos períodos do curso poderão realizar as entrevistas clínicas e o estudo de caso, supervisionados pela docente/pesquisadora. Além da construção diagnóstica, as discussões junto à equipe poderão mostrar-se como um potente espaço para a formação profissional da área da saúde pública. No campo da extensão, a discussão dos casos junto às equipes poderá criar uma parceria de trabalho e uma demanda por mais conhecimento e discussões. A discussão dos casos, fundamentada em estudo teórico, poderá se configurar em uma estratégia de educação permanente aos profissionais e elaboração de conhecimentos para os alunos. 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