pdf - Periódico Alethes

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Alethes
Diagramação: Arthur Barretto de Almeida Costa
Revisão: João Vítor Moreira.
Capa: Edição e montagem de Arthur Barretto de Almeida Costa
sobre São Jerônimo Escrevendo (Galeria Borghese, Roma), de Caravaggio.
Divisórias: Montagens de Arthur Barretto de Almeida Costa sobre
obras diversas de Maurits Corleis Escher.
.
_____________________________________________
Alethes: Periódico científico dos graduandos em Direito
Da UFJF. Vol. 05, N. 08. (Jan. a Jun. de 2015)
Juiz de Fora: DABC, 2015. Semestral. 1.
Direito – Periódicos
ISSN 2177-4633
_____________________________________________
As opiniões expressas são de inteira responsabilidade de seus autores
Esta publicação conta com o apoio do Diretório
Acadêmico Benjamin Colucci, da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Juiz de Fora.
“Todo aquele que ler estas explanações,
quando tiver certeza do que afirmo, caminhe
lado a lado comigo; quando duvidar como
eu, investigue comigo. Quando reconhecer
que foi seu o erro, venha ter comigo; se o
erro for meu, chame a minha atenção.” (
Santo Agostinho, A trindade, p. 28).
Conselho Editorial
Editor Chefe
Acadêmico Alan Rossi Silva (UFJF)
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Dr. Ricardo Sontag (UFMG)
Dr. Thomas da Rosa de Bustamante (UFMG)
Mestrando Vitor Schettino Tresse (UERJ)
Sumário
Conselho Editorial | Editorial Board | 5
Sumário | Summary | 9
Editorial | Editorial | 13
Dossiê Conhecimento | Dossier Knowledge
O Relógio do Sul: da Colonialidade do Saber à Libertação Epistêmica | Southern Clock: from
the Coloniality of Knowledge to Epistemic Liberation | 17
Lucas Parreira Álvares
Artigos | Articles
Confluências entre o universal e o particular na efetivação do justo pela equidade em
Aristóteles | Confluences between the universal and the particular in realization of fairness by equity in
Aristotle | 33
Igor Moraes Santos
Império versus Multidão: a alegoria da guerra e a formação do inimigo, segundo Michael
Hardt e Antonio Negri | Empire versus Multitude: The allegory of the war and the formation of the
enemy, according to Michael Hardt and Antonio Negri | 51
Maíra Cristina Corrêa Fernandes
Natureza das Obrigações Assumidas em Cirurgias Plásticas Estéticas e Repercurssões na
Responsabilidade Civil | Nature of the Obligations Assumed in Aesthetics Surgeries and
Repercurssions in the Civil Liability | 67
Davi Guimarães Mendes
O Direito na prateleira: a Justiça como bem de consumo na sociedade neoliberal | Law in
the shelf: Justice as a consumer good in the neoliberal society | 91
Talles Neves Silva Bhering
As Religiões Afro-Brasileiras e o Direito Penal: Por uma Nova Interpretação | AfroBrazilian Religions and Criminal Law: For a New Interpretation | 111
Gustavo Ernandes Jardim Franco
Leonardo Antonacci Barone Santos
Entrevista | Interview | 131
Entrevista com o Prof. Marcos Vinícius Chein Feres | Interview with Professor Marcos Vinícius
Chein Feres
Normas de Publicação | Publication Norms | 139
ROSSI, A. Editorial
Alethes | 11
ROSSI, A. Editorial
Alethes | 12
ROSSI, A. Editorial
Editorial
“O que é que a ciência tem?
Tem lápis de calcular! Que
mais que a ciência tem?
Borracha
pra
depois
apagar!”
Todo Mundo Explica – Raul
Seixas
Nos últimos 20 anos, a produção científica brasileira aumentou cinco vezes e,
atualmente, mais de dois terços de todas as publicações científicas do continente são feitas
aqui. Do ponto de vista de investimento, em toda a América do Sul, só o Brasil aplica mais
de 1% do seu PIB em pesquisa e desenvolvimento. De forma geral, os valores investidos
anualmente chegam a 59,4 bilhões de reais, somando as iniciativas pública e privada. Estes
dados foram publicados na revista Nature, a mais antiga revista científica do mundo e
também a de maior repercussão, por Richard Van Noorden, editor assistente do grupo em
Londres. Ademais, a despeito do crescente investimento - em números absolutos - na
pesquisa científica em nosso país, argumenta-se que nos últimos 10 anos ela vem perdendo
espaço no Orçamento Geral da União (OGU) - proporcionalmente.
Assim, enquanto membros de um Periódico Científico, resta-nos perguntar: no que
consiste uma pesquisa acadêmica? Quais são seus elementos essenciais? Qual o caminho a
ser percorrido por um pesquisador verdadeiramente comprometido com o conhecimento?
Qual é o objetivo em se estudar ou pesquisar determinado tema? Este vultoso investimento
de dinheiro público destinado à pesquisa está sendo empregado da melhor forma? O critério
quantitativo de avaliação da produção científica é o mais adequado para averiguarmos a
qualidade da mesma? Talvez estes sejam questionamentos relevantes para boa parte dos
pesquisadores de qualquer área do conhecimento e para qualquer ser humano minimamente
interessado nos meios de explorar a si próprio e o mundo ao seu redor, em qualquer época
e lugar de nossa história. Entretanto, consideramos que seja este um momento oportuno
para trazermos a lume estes questionamentos, com o intuito de investigarmos e avançarmos
em pontos cruciais na seara científica de nosso tempo. Consideramos ser necessário que
revisemos as bases fundantes no pensamento acadêmico contemporâneo, procurando
reinventar seus pressupostos e suas “verdades” enrijecidas.
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ROSSI, A. Editorial
Com este espírito, portanto, apresentamos a 8ª edição do Periódico Alethes, que
contou com seis artigos de destacada qualidade e que julgamos estarem aptos a
representarem nesta edição a produção científica dos graduandos e graduandas em nossa
revista. Cada trabalho representa pontos importantes na expressão científica, no que tange
aos questionamentos propostos por este periódico, concretizados em criatividade,
originalidade, consistência e pertinência dos assuntos tratados. Entre os artigos podemos
encontrar diversos temas trabalhados de maneira fértil e enriquecedora, em relação,
principalmente, à filosofia do direito, à teoria da justiça, ao direito penal, à responsabilidade
civil e à sociologia jurídica. Além disso, faz-se necessário ressaltar a expressiva
representação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, entre os trabalhos
apresentados, correspondeu a quatro dos trabalhos destinados a esta edição, somando-se
com um trabalho da Universidade Federal do Ceará (UFC) e outro da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF).
Esperamos que façam um ótimo proveito da leitura e reflexão dos esforços criativos
dispostos nesta publicação. E, sobretudo, que possam, a partir destas provocações,
somarem forças aos questionamentos em torno da realidade científica atual, em um esforço
conjunto de uma sociedade cada vez mais justa, livre e igualitária.
Alan Rossi
Editor Geral da Alethes
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ÁLVARES, L. P. O relógio do sul.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp 17-30, jan./jul.., 2015.
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ÁLVARES, L. P. O relógio do sul.
O Relógio do Sul: da Colonialidade do Saber à Libertação Epistêmica1
Southern Clock: from the Coloniality of Knowledge to Epistemic Liberation
Lucas Parreira Álvares2
Resumo:
O presente artigo busca compreender a construção da Colonialidade do Saber,
fruto do projeto hegemônico europeu tendo como objetivo não só a centralidade do
conhecimento no norte global, mas também a subalternização das outras
epistemologias. Assim, analisaremos as condições do saber atual e a viabilidade de uma
espécie de Libertação Epistêmica, como fruto da contemporaneidade. Tudo isso,
baseado em um episódio do parlamento boliviano que, justificado pela ruptura com o
colonialismo do saber, alterou o sentido dos ponteiros do relógio de sua repartição.
Palavras-chaves: Relógio do Sul. Epistemologias do Sul. Colonialidade do
Saber. Filosofia da Libertação.
Abstract:
This article intends to understand the construction of the Coloniality of
Knowledge, result of the european hegemonic project aiming not only the knowledge
centrality in the global north, but also the subalternization of others epistemologies.
Thus, we will analyze the conditions of the current knowledge and the feasibility of a
kind of Epistemic Liberation, as a result of the contemporaneity. All this, based on an
episode of bolivian parliament that has altered the direction of the clock in the office,
justified by the break with the knowledge colonialism.
Keywords: Southern Clock. Southern Epistemologies. Colonialism of
Knowledge. Liberation Philosophy.
1
Agradecimento especial a todas e todos integrantes do GEIM: Grupo de Estudos em Infiltrações
Modernas, vinculado à Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG, bem como ao professor
orientador, José Luiz Quadros de Magalhães.
2
Graduando em Ciências do Estado pela UFMG e monitor do Grupo de Estudos em Infiltrações
Modernas.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp 17-30, jan./jul.., 2015.
“O fato de os gregos terem
inventado o pensamento filosófico,
não quer dizer que tenham inventado O Pensamento”.
(Walter Mignolo)
1. Introdução - ou “o fato”:
Em junho de 2014, quando o parlamento boliviano alterou o sentido do relógio
da Assembleia Legislativa Plurinacional na Plaza Murilloem La Paz, fazendo com que
os ponteiros movessem no sentido “anti-horário”, – ou seja, girassem para a esquerda –
a imprensa não perdeu a oportunidade de vincular tal modificação a uma questão
meramente ideológica. De fato, tal medida realmente estava associada a uma ideologia,
mas não sob um sentido coloquial do termo, e sim epistemológico: a ideologia
descolonial.
A imprensa brasileira que sistematicamente encontra nas experiências políticas
latinas um horizonte propício a críticas rasas e superficiais, também não deixou a
oportunidade passar. A revista Veja, em tom de deboche, questiona se essa mudança
não seria um atentado “contrário à história”. Além disso, a notícia se atinando à
questões práticas, atribuiu como “sensatos” aqueles que perceberam o problema que
seria olhar para um relógio e não perceber com a rapidez costumeira, sua principal
função: saber qual horário se trata3.
O Ministro das Relações Exteriores da Bolívia, David Choquehuanca, pela
necessidade de justificativa à inusitada mudança, aponta direcionamentos preliminares
para se entender características de rupturas através de um simples giro do ponteiro do
relógio. O Ministrodefendeu que estamos no sul global, em um momento propício para
resgatar nossa identidade e, o que o governo boliviano está fazendo, não é nada mais do
que resgatar seu Sarawi, que significa “caminho”, em Aimara: “de acordo com o nosso
Sarawi e nosso Nan, – também “caminho”, em quéchua4 - nossos relógios deveriam
girar para a esquerda5”. Interessante ressaltar que o Ministro Choquehuenca não só
invoca a tradição indígena por ser representante do povo boliviano, como também é
parte da cultura indígena: o ministro é originário de uma pequena comunidade às
margens do rio Titicaca, e se projetou nacionalmente na defesa da causa campesina.
3
Disponível em: http://migre.me/pEYME.
Família de línguas indígenas da América do Sul, as quais abarcam cerca de 10 milhões de pessoas.
5
Disponível em: http://migre.me/pEZwd.
4
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ÁLVARES, L. P. O relógio do sul.
Segundo o deputado Marcelo Elío, a razão para a mudança passa por “mudar os
polos”, entendendo que o “sul é norte e que o norte é sul”, modificando a mentalidade
dos povos originários do sul a pensar “a partir do sul”, alheio às imposições do norte6.
Essa medida boliviana não se trata de uma imposição, e sim uma alternativa: ela não
obriga a população a comprar novos relógios, e sim, sugere uma nova concepção da
forma de conceber suas relações espirituais junto ao sol – relação essa muito presente na
cultura indígena - reverberando numa nova alternativa de se enxergar as horas.
Tal relação com o sol remete-se também a uma polêmica medida adotada em
2007 pelo governo venezuelano, instituindo que os relógios nacionais deveriam ser
atrasados por meia hora. Apesar do espanto da mídia internacional, essa ação nada mais
era que uma remodelagem de um tempo que se perpetuou por um longo período na
Venezuela do século XX, até meados da década de 60. Evidente que a reação da mídia
internacional não seria outra senão a repulsa imediata a tal medida, alegando que essa
alteração desfiguraria o fuso horário global7. Entretanto a justificativa da Venezuela era
simples: para o trabalhador que acorda cedo, é melhor que se inicie seu labor à luz do
sol, e para a criança que vai à escola, é plausível que a luz do dia traga mais segurança –
isso, além da maior conexão com o sol, no sentido espiritual.
Além da inversão do sentido dos ponteiros, o “Relógio do Sul” exposto no
parlamento boliviano trouxe consigo outra mudança não menos importante: a
substituição da numeração romana para a arábica, procurando se desvincular ao máximo
de qualquer representação que invoque princípios eurocêntricos. O “Relógio do Sul”,
por isso, simbolicamente trouxe consigo uma ruptura colonial. O grupo acadêmico
latino “Modernidade/Colonialidade” tem desenvolvido o conceito do termo “Giro
Decolonial”, cunhado originalmente por Nelson Maldonado Torres que basicamente
significa o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico da
modernidade (BALLESTRIN, 2013). Assim, é possível entender o “Relógio do Sul”
como algo que venha a romper com o Colonialismo do Saber, projeto moderno de
encobrimento do “outro subalterno”. Antes de entender como se dá essa ruptura, é
fundamental explicar em que consiste a Colonialidade do Saber.
2. A Colonialidade do Saber
6
Disponível em: http://migre.me/pEZKZ.
O que não seria uma exclusividade da Venezuela, afinal o horário do Nepal é 15 minutos adiantados em
relação à sua vizinha Índia.
7
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp 17-30, jan./jul.., 2015.
Aníbal
Quijano,
sociólogo
peruano
e
também
membro
do
grupo
Modernidade/Colonialidade é enfático ao criticar o eurocentrismo como fundamento
não só da condição do saber contemporâneo, mas também da dificuldade de se romper
com essa tradição:
A elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma
perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que
demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno,
capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir
conhecimento se reconhecem como eurocentrismo. Eurocentrismo é, aqui, o
nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática
começou na europa ocidental antes de mediados do século XVIII, ainda que
algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas. (QUIJANO, 2005)8
Essa colonialidade do saber modernoestaria sistematicamente atrelada a
qualquer meandro científico, seja na construção narrativa da história, na propensão de
uma matemática universal ou na formulação cartográfica referente aospróprios
interesses europeus. Por isso, Quijano conclui dizendo que a constituição do
eurocentrismo “ocorreu associada à específica secularização burguesa do pensamento
europeu e à experiência e necessidades do padrão mundial de poder capitalista,
colonial/moderno estabelecido a partir da América” (QUIJANO, 2005).
Referente às variações condizentes aos saberes modernos, o sociólogo
venezuelanoEdgardo Lander nos apresenta duas dimensões distintas de suas origens
históricas:
A primeira refere-se às sucessivas separações ou partições do mundo real que
se dão historicamente na sociedade ocidental e as formas como se vai
construindo o conhecimento sobre as bases desse processo de sucessivas
separações. A segunda dimensão é forma como articulam os saberes
modernos com a organização do poder, especialmente as relações
coloniais/imperiais de poder constitutivas do mundo moderno.(LANDER,
2005)
Lander afirma que essas concepções servem de sustento para uma construção
discursiva que neutralizam as ciências sociais e os saberes sociais modernos (LANDER,
2005). Pensando no Relógio do Sul, percebemos que trata-se visivelmente de uma
expressão do saber local junto à organização do poder institucional. Essa relação só
8
Vale ressaltar a proposital junção dos termos “colonial/moderno” feito pelo autor, dado que o grupo
entende que a superação da modernidade só se daria também com a superação da colonialidade, por isso a
rejeição ao termo “Pós-Colonial”.
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ÁLVARES, L. P. O relógio do sul.
seria possível num contexto social onde as representações políticas fossem parte e
estivessem em consonância com o representado. É o caso da Bolívia, que figura como
reflexo de um futuro comunitário, cultural e plurinacional.
A intensidade democrática da Bolívia é uma referência, como aponta José
Maurício Domingues, por duas razões: a primeira, o processo interno vivenciado pelo
país, com a participação popular de diversos setores sociais, principalmente os “povos
originários” que compõem o território boliviano; a segunda, num sentido mais amplo,
abarca a democratização expansiva dos países da América Latina, tendo a Bolívia como
vanguarda desse processo (DOMINGUES, 2009). Aaprovação da nova constituição
boliviana - estabelecendo a Bolívia como um Estado Plurinacional - fez com que as
permanentes reinvindicações populares saíssem do âmbito informal e adquirissem
dispositivos constitucionais, como por exemplo, garantindo a propriedade dos recursos
florestais e hídricos aos povos originários, e reservando cotas parlamentares aos
mesmos, dando não só voz, mas ressonância institucional às suas reinvindicações. A
Bolívia então, se afirma como modelo de construção de uma nova ordem política,
econômica e social internacional, sendo o caminho para se pensar em um Estado –
definitivamente – Democrático e Social (MAGALHÃES, 2008).
Retomando a noção do saber como agente colonial, sua expressão não poderia
estar mais explícita: índio. O termo, que hoje, lexicalmente adquire outros significados,
foi cunhado e estabelecido exatamente pelos colonizadores. As escolas hoje, de ensino
fundamental, geralmente apresentam três iconografias para representar toda a
pluralidade cultural global, dando os nomes “índio, negro e branco”. As palavras de
Álvaro García Linera, sociólogo e atual vice-presidente do Estado Plurinacional da
Bolívia, dão o tom sobre a construção narrativa histórica da América Latina:
A categoria ‘índio’ foi inicialmente introduzida pelos representantes da coroa
espanhola como categoria tributária e fiscal. Essa classificação, apesar de
parcialmente diluir outras formas de identificação autóctonas, estabeleceu
uma divisão de trabalho, uma hierarquia dos saberes e vias de acesso aos
comércios, dando lugar a uma completa estrutura de ‘enclasamentos9’
sociais10. (LINERA, 2008)
9
Termo que dialoga com o conceito de“capital cultural”, de Bourdieu.
Do original: “La categoríaindiofue inicialmente introducida por los representantes de la corona
española como categoría tributaria y fiscal. Esta clasificación, además de diluir parcialmente otras formas
de identificaciónautóctonas, estableció una divisióndeltrabajo, una jerarquización de saberes y vías de
acceso a oficios, dando lugar a uma complejaestructura de enclasamiento social” – Tradução do autor.
10
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp 17-30, jan./jul.., 2015.
Não admira que quando estudamos nas escolas essa variação temporal ao qual
chamamos de “Idade Média”, a nossa referência são apenas de experiências quase que
exclusivamente europeias, afinal, o feudalismo - que é o fenômeno ao qual se referencia
o medievo – nunca se expandiupara a maior parte do globo. Outros exemplos podem
também serem citados, como a disputa por um Mapa Mundi aceitável, aumentando as
proporções territoriais da Europa e colocando-a no Centro-Norte do globo11.
A concentração dos questionamentos acerca desse solidificado movimento
epistêmico europeu se iniciou concomitantemente à formulação do projeto de seu
império, afinal, onde há hegemonia, há também contra hegemonia.
3.Epistemologias do Sul
Recorrentemente invocado no questionamento à colonialidade do saber
“Epistemologias do Sul” é um termo que ganhoumaior ressonância após dar título a
uma conceituada obra de Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses,
referenciada por uma noção de que uma Epistemologia do Sul se assenta em três
orientações: aprender que existe o sul; aprender a ir para o sul e aprender a partir do sul
e com o sul (SANTOS, 1995). Recordemos então que o significado de um “Relógio do
Sul” pode se expressar tanto por “Aprender a partir do sul e com o sul” quanto por
“aprender que existe o sul”. Muito se questiona sobre essa divisão Norte/Sul, mas é
evidente que não há uma delineação territorial que se apresente como verdade dividida
pela linha do Equador. Não: as peculiaridades e pluralidades se sobrepõem a essa noção,
entretanto tal concepção poderia servir – e serve - como provocação, afinal, a
epistemologia predominante é proveniente daquilo que intitulamos “norte”. Os autores
então caracterizam o termo:
Trata-se do conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a
supressão dos saberes levado a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela
norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com
êxito e as reflexões que estes têm produzidos e investigam as condições de
um diálogo horizontal entre conhecimentos. (SANTOS; MENESES, 2009)
11
Mais em: “Uma História do Mundo em 12 mapas”, de Jeremy Brotton, 2014, Editora Zahar.
Alethes | 22
ÁLVARES, L. P. O relógio do sul.
Na tentativa de explicar o surgimento dessa concepção contemporânea de
Epistemologias do Sul12, o sociólogo João Arriscado Nunes nos diz que a transição para
esse novo conceito possui ligação intrínseca com as experiências alternativas do Sul
global e com as interrogações presentes na necessidade de se adotar, por todos esses
anos, um “saber do Norte” para abordar um mundo ocidental que não se esgota. Para
ele, um projeto de Epistemológico do Sul é indissociável desse contexto histórico em
que emergem com particular visibilidade, os novos atores do Sul global, sujeitos
coletivos e outras formas alternativas de conhecimento, a partir de uma visão epistêmica
que era sistematicamente subalternizada, desqualificada e velada (NUNES, 2009).
Por vezes, Nunes e Boaventura se utilizam da expressão “resgate
epistemológico” para se referir à ação que deveria ser feita para solucionar tal impasse.
Faço, porém, uma crítica pontual a essa noção de “resgate do sul global”. A crítica
segue em função principalmente da noção coloquial de “resgate” em que determinados
sujeitos são responsáveis pela libertação dos outros, analogicamente referenciado por
um “sequestro”, por exemplo. Se alguém é sequestrado, quase que invariavelmente é
necessário que outro alguém o “resgate”. Pensando epistemologicamente, resgatar uma
epistemologia é assumir que ela não poderia se libertar singularmente, trazendo então
um elemento problemático para a situação. Acredito que, em contraposição ao resgate, o
ideal seria a tríade: conhecer, compreender e respeitar; ou: conhecer para compreender e
aprender para respeitar. A ideia de resgate pode significar, ainda que involuntariamente,
a manutenção de uma lógica moderna, onde apenas a epistemologia hegemônica seria
capaz de “resgatar e reconhecer” as demais epistemologias como legítimas. Mas o fato é
que as Epistemologias do Sul, em sua totalidade, sempre estiveram “ali”, como a outra
face da lua, que apesar de encoberta por nossa visão ocular, é, definitivamente,
constitutiva da composição da estrutura total desse satélite terrestre.
Ainda referente a essa noção espacial das epistemologias, Ramón Grosfoguel
diferencia “lugar epistêmico” de “lugar social”, evidenciando essa diferença entre a real
legitimidade de “resgatar aquele que precisaria de um resgate”:
O fato de alguém se situar socialmente no lado do oprimido das relações de
poder não significa automaticamente que pense epistemicamente a partir de
um lugar epistêmico subalterno. Justamente, o êxito do sistema-mundocolonial/moderno reside em levar os sujeitos socialmente situados no lado
oprimido da diferença colonial a pensar epistemicamente como aqueles que
12
Concepção contemporânea, pois, evidentemente as epistemologias do sul não são exclusividades do
tempo de agora. Entretanto a intenção é trabalhar as variações presentes na atualidade do conceito.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp 17-30, jan./jul.., 2015.
se encontram em posições dominantes. As perspectivas epistêmicas
subalternas são uma forma de conhecimento que, vindo de baixo, origina
uma perspectiva crítica do conhecimento hegemônico nas relações de poder
envolvidas. (GROSFOGUEL, 2009)
A proposta de um giro epistemológico encontra obstáculos na ambiguidade em
que se situa o que Boaventura chama de “ecologia de saberes”. Segundo o autor, há um
impasse entra a ideia da diversidade sociocultural do mundo que tem emergido nos
últimos trinta anos favorecendo a pluralidade epistemológica como uma de suas
dimensões, e o fato de todas as epistemologias partilharem peculiaridades de seu tempo,
fazendo com que o sentimento de que a ciência como única forma de conhecimento
válido se torne uma premissa – no fundo, a distinção estaria entre “ser” e “ter”
(SANTOS, 2009).
Compreendendo
a
modernidade
como
um
projeto
hegemônico
de
subalternização do “outro” diferente, e entendendo a construção da hegemonia do saber
europeu como projeto de poder colonial, uma das principais rupturas modernas seria
exatamente essa espécie de giro epistemológico, perpassando por outra noção de
relações culturais: conhecendo, compreendendo e respeitando. Daí a contribuição
coloquial presente no verbo “tolerar”, como nos ensina Silvia Viana ao dizer que há
uma diferença abissal entre as orações “eu sou tolerante a você” e “eu te tolero”
(VIANA, 2013). Uma compreensão epistêmica da modernidade nos diria que a relação
Norte/Sul sempre foi baseada nesse “eu te tolero”, e que a busca nisso que Dussel
chama de Transmodernidade, está no “eu sou tolerante a você”.
A noção de Transmodernidade trazida por Dussel é especialmente importante na
compreensão do tempo contemporâneo, em que presenciamos fatos e solidificações
modernas em contraposição a algumas experiências alternativas pontuais, apresentando
a contradição como meio, e o desmanche ao pluri como fim:
O projeto transmoderno é uma co-realização do impossível para a
Modernidade; ou seja, é co-realização de solidariedade, que chamamos de
analéptica, de: Centro/Periferia, Mulher/Homem, diversas raças, diversas
etnias, diversas classes, Humanidade/Terra, Cultura Ocidental/Culturas do
mundo periférico ex-colonial, etc.; não por pura negação, mas por
incorporação partindo da Alteridade. De maneira que não se trata de um
projeto pré-moderno, como afirmação folclórica do passado, nem um projeto
antimoderno de grupos conservadores, de direita, de grupos nazistas ou
fascistas ou populistas, nem de um projeto pós-moderno como negação da
Modernidade como crítica de toda razão para cair num irracionalismo niilista.
Deve ser um projeto “trans-moderno” (e seria então uma “TransModernidade”) por subsunção real do caráter emancipador racional da
Modernidade e de sua Alteridade negada (“o Outro”) da Modernidade, por
Alethes | 24
ÁLVARES, L. P. O relógio do sul.
negação de seu caráter mítico (que justifica a inocência da Modernidade
sobre suas vítimas e que por isso se torna contraditoriamente irracional).
(DUSSEL, 2005)
Por isso, mesmo que as críticas ao “Relógio do Sul” feitas de maneira debochada
atribuam uma razão política para tal, – girar para esquerda como uma guinada
ideológica – definitivamente essa linearidade faz algum sentido para se compreender a
adoção de tal medida. Se entendermos que descolonizar é essencialmente uma medida
no âmbito dos pensamentos socialistas, a ação do governo Boliviano se configurou
como um ato de esquerda. Quando Choquehuanca diz que “estamos no sul e é tempo de
recuperar nossa identidade13”, percebemos um processo de intensa transformação
política no país, onde as relações culturais e identitárias são colocadas em evidência, em
detrimento ao mercado global e ao desenvolvimento desenfreado.
O interessante é que em Lisboa, há décadas já existe um relógio assim. No
British Bar, no Cais de Sodré, existe um relógio que tradicionalmente gira no sentido
contrário. A justificativa no caso se sustenta simplesmente pelas rotações terrestres –
mas ainda assim, marcando o tempo com uma “pontualidade britânica”. Esse episódio
do relógio do British Bar chegou a ser retratado em umfilme de Alain Tanner, intitulado
“A Cidade Branca”. Há uma cena em especial: um diálogo entre o Forasteiro Paul –
representado pelo ator Bruno Ganz – e Rosa, a funcionária do bar – atriz Tereza
Madruga. Para o forasteiro, o relógio da parede o qual seus ponteiros giram para a
esquerda, “parece funcionar ao contrário”. Para Rosa, é evidente que o relógio está
correto, “o mundo é que está ao avesso”. Ainda que os motivos da subversão dos
ponteiros do relógio do British sejam diferentes do parlamento boliviano, a reflexão nos
traz certa intercessão e nos propulsionam alguns questionamentos: por que existiria um
lado certo para o giro do relógio? Existe algum referencial universal capaz de nos situar
a uma condição de saber o vetor das coisas do mundo? E, se não existe, por que tanta
estranheza entre uma experiência que foge ao mínimo do padrão moderno estabelecido?
4. Pensamento (Anti) Cartesiano
Não é espontâneo que as expressões “horário/anti-horário” são britânicas14.
Sabe-se também, que o sentido horário dos relógios, sob uma ótica matemática, está
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Equivalentes a “Clockwise” e “Counterclockwise”.
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vinculado ao “sistema de coordenadas cartesianas”, referenciado por aquele que é
hegemonicamente considerado o primeiro filósofo moderno, o também matemático
René Descartes, que naquela época afirmava que “é bom saber alguma coisa dos
costumes de vários povos para julgarmos os nossos mais salutarmente, e para não
pensarmos que tudo que é contra nossos modos é ridículo e contra a razão”
(DESCARTES, 2001). Esse trecho nos remete ao pensamento descolonial, que
contrapõem essa noção ocidental de subalternização dos saberes, inadmitindo qualquer
pensamento que não se encaixe dentro dos moldes eurocêntricos.
Dessa maneira, Descartes estabelece quatro princípios para seu método:
a) Nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse
evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a
prevenção; b) Dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas
parcelas quantas fosse possível; c) Conduzir por ordem o pensamento,
começando pelo objeto mais simples; d) Dividir cada uma das dificuldades
que examinasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis. (DESCARTES,
2001).
O autor Enrique Dussel discorda da atribuição do início do pensamento
filosófico moderno aos escritos de Descartes, que para o argentino, Descartes deve ser
situado como o grande pensador de um segundo momento da modernidade. Para o
primeiro momento da modernidade, Dussel invoca alguns outros pensadores, como
Ginés de Sepúlveda – opositor de Las Casas, este que, para Dussel, concebe o primeiro
anti-discurso filosófico da modernidade – e Francisco Suárez (DUSSEL, 2009). As
refutações eurocêntricas que Bartolomé de Las Casas teve que lidar nosséculos XV e
XVI, para Dussel se resumem em:
a) a pretensão de superioridade da cultura ocidental, da qual se deduz a
barbárie das culturas indígenas; b) com uma posição filosófica sumamente
criativa, define a diferença clara entre b1) outorgar ao Outro (ao índio) a
pretensão universal de sua verdade, b2) sem deixar de afirmar honestamente
a própria possibilidade de uma pretensão universal de validade na sua
proposta a favor do Evangelho e; por último; c) demonstra a falsidade da
última causa possível de fundamentação da violência da conquista, a de
salvar as vítimas dos sacrifícios humanos, por ser contra o direito natural é
injusta sob qualquer ponto de vista. (DUSSEL, 2009)
Dussel, através de Las Casas, nos traz à tona a percepção de que o próprio
pensamento Cartesiano, tido como propulsor da filosofia e matemática moderna sob a
ótica europeia, é passível de problematizações, desmitificando o “Discurso sobre o
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ÁLVARES, L. P. O relógio do sul.
Método” como marco inaugural do pensamento filosófico moderno. Essa análise passa
a ser importante no sentido em que, para conceber um intelectual como marco de uma
transição histórica, é necessário, sobretudo, definir explicitamente qual a noção do
marco temporal histórico que se trata. A intenção de se relacionar Colonialidade do
Saber, Epistemologias do Sul, e pensamento Cartesiano condiz ao sentido de que a
noção Cartesiana de pensamento filosófico pôde, de alguma maneira, – ainda que essa
pudesse não ter sido a intenção de Descartes - ter influenciado a compreensão
hegemônica européia, fortalecendo e construindo assim uma Colonialidade do Saber,
que, incessantemente na busca da desconstrução desse poder epistemológico, estão as
Epistemologias do Sul, nadando contra a corrente em direção a uma aplicação plural do
saber global.
A modernidade para Dusselse inicia simbolicamente no ano de 1492 a partir de
dois fatos ocorridos nesse ano: 1) a expulsão dos muçulmanos de granada; 2) a invasão
das américas pelos europeus (DUSSEL, 1993). Nesse sentido, Dussel é avesso às outras
noções temporais modernas que atribuem o início dessa Era a fatos como:
“iluminismo”, “renascimento” e “revolução industrial”. Por isso, e por Descartes,
Dussel afirma:
Descartes é considerado o primeiro filósofo moderno. Se a modernidade é
interpretada tal como faz o pensamento decolonial, ou de acordo com a
filosofia da libertação, ter-se-ia que re-situar o século XVI, e os filósofos
desse século, como a origem da filosofia moderna, e não Descartes (...)
Oanti-discurso da Modernidade não surge no Iluminismo, senão no começo
do processo da Conquista. É preciso então, repensar completamente a história
filosófica da Modernidade. (DUSSEL, 2008)
Atribuir o início da modernidade ao século XVI traz uma mudança crucial para
as Epistemologias do Sul: a ênfase. O início da modernidade relacionado a qualquer
outro momento histórico europeu é por si só, eurocêntrico. A importância do século
XVI, e do pensamento Lascasiano está na relação Europa/América, problematizando as
ações e consequências do processo colonial – ainda que os porta-vozes desse processo
sejam homens brancos e europeus, como Las Casas, Sepúlveda, Francisco de Vitória e
António de Montesinos. É por isso que para o grupo Modernidade/Colonialidade, as
noções de Modernidade estão relacionadas sob um aspecto negativo que definitivamente
devem ser superadas – diferente de alguns europeus, como Habermas, que acreditam
que a Modernidade é um processo inacabado, contrariando qualquer perspectiva contrahegemônica e anti-discursiva filosófica desse tempo.
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5. Da Frágil Naturalidade, ou: Considerações Finais
Quando o ministro Choquehuanca vai a público e questiona: “Quem disse que o
relógio tem que girar em um único sentido15?”, é problematizado uma das facetas mais
solidificadas da modernidade: a naturalização. Vimos aqui, que um simples girar dos
ponteiros carrega consigo todo um processo de transformação histórica e da construção
do pensamento ocidental. Essa transformação não se equivale a uma carga, e sim um
fardo, que tantos tentam se desvincular, e outros se apegarem.
É impossível não se lembrar de Bertold Brecht que já na primeira metade do
Século XX nos direcionava a questionamentos basilares para uma compreensão contra a
naturalização
científica,
com
dizeres
simples
de
um
objeto
referencial
específico.“Desconfiai do mais trivial”: tudo aquilo que à primeira vista parece
irrelevante, pode ter sido fruto de um projeto minuciosamente posto. “Examinai o que
parece habitual”: a quem serve a manutenção da tradição? Me recordo que atualmente,
alguns casais promovem uma espécie de “casamento alternativo”, onde a noiva se
desfaz do tradicional véu, e o noivo caminha até o padre usando sua bermuda – padre
esse, que nada mais é do que um amigo do casal. À luz do sol, no gramado de uma
fazenda isolada, a impressão que se apresenta é de uma quebra do modo moderno do
“como fazer”. Entretanto, invariavelmente há algo que se mantêm nesses casamentos: a
ritualística. Os noivos de mãos dadas, o “padre”, o “altar”, as “alianças”. A tentativa de
romper com uma lógica tradicional, nada mais é do que a reafirmação da mesma, com
pequenas efemeridades que, ainda que passem por despercebidas, não promovem uma
reflexão com afinco sobre as raízes cristãs. “Nada deve parecer natural”: apresentar uma
explicação como natural, talvez seja um dos maiores aliados de um processo
generalizado de desmobilização. Quando a matemática nos afirma que a Economia –
ciência social aplicada – vai mal, parece heresia se portar contrário aos números. Ainda
que 2+2 seja igual a 4, faz-se necessário questionarmos as variáveis presentes na
construção desse raciocínio lógico. O que o parlamento boliviano fez, com esse
simbólico gesto, atraiu olhares do mundo inteiro: desde a abordagem ridicularizada da
revista Veja, ao respeitado The New York Times16. Antes de “ridículo” significar “sem
nenhuma importância”, significa “digno de riso”, e ainda que esse constrangimento seja
15
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ÁLVARES, L. P. O relógio do sul.
graça para alguns, para outros pode ser um pequeno passo a uma libertação epistêmica.
O que a Bolívia propiciou ao mundo, equivale a uma prosopopeia banal, em que esse
país abre a boca e diz: “duvidem da modernidade,questionem aquilo que parece natural,
e Libertem-se!”.E Brecht, do alto do pedestal, sussurra: “Obrigado!”.
6. Referências Bibliográficas
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Ciências Políticas, Brasília, v. 1, n. 11, p.88-117, 9 mar. 2013.
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<https://pt.scribd.com/doc/36091067/Anibal-Quijano-Colonialidade-e-ModernidadeRacionalidade>. Acessado em 20 de abr. de 2013.
VIANA, Silvia. Rituais de Sofrimento. São Paulo: Boitempo, 2013. 192 p.
Outros tipos de produção bibliográfica:
A CIDADE BRANCA, Longa-Metragem. Direção: Alain Tunner; produção: Paulo
Branco, Alain Tanner, Antônio Vaz da Silva; Música: Jean-Luc Barbier; França, 1983,
104 minutos.
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SANTOS, I. M. Confluências entre o universal
Confluências entre o universal e o particular na efetivação do justo pela
equidade em Aristóteles
Confluences between the universal and the particular in realization of fairness by equity in
Aristotle
Igor Moraes Santos1
Resumo:
O presente trabalho tem como proposta fazer uma análise da ideia de equidade em
Aristóteles, sob duplo aspecto: suas implicações na relação entre a lei e o fato e no liame entre a
cidade e o cidadão. Evidencia-se a obra do Estagirita como primeiro momento significativo de
discussão da natureza, função e relevância da epieikeia; revela-se a importância da equidade para a
conciliação do universal da lei e da polis e do particular do caso concreto e do cidadão,
apresentando-se como elemento de efetivação do justo nesse cenário aparentemente paradoxal.
Contribui-se, assim, para a recuperação do lugar da equidade na história do pensamento jurídico de
vertente romano-germânica.
Palavras-chave: Aristóteles. Equidade. Justiça. Universal. Particular.
Abstract
This paper aims to analyze the idea of equity in Aristotle, in two ways: its implications on
the relation between the law and the fact and between the city and the citizen. It highlights the
Stagirite's work as the first significant discussion of the nature, role and relevance of epieikeia;
reveals the importance of equity for the reconciliation between the universal of the law and the polis
and the particular of the specific case and the citizen, presenting itself as element of realization of
fairness in this apparently paradoxical scenario. It contributes, therefore, to recover the place of
equity in the history of legal thought of Roman-Germanic system.
Keywords: Aristotle. Equity. Justice. Universal. Particular.
1
Graduando do curso de Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador de iniciação
científica voluntária. Monitor bolsista de graduação da disciplina Instituições de Direito Romano. E-mail:
[email protected].
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1. Introdução
Aristóteles permanece na contemporaneidade como fonte inesgotável de estudos para os
pensadores contemporâneos, tendo em vista a vasta obra que sobreviveu ao tempo e a enorme
influência exercida sobre os teóricos do Medievo e da Modernidade. Especificamente para a
Filosofia do Direito e do Estado, textos clássicos como a Ética a Nicômaco e a Política são
referências indispensáveis para a compreensão do pensamento helênico, do direito natural antigo e
mesmo da história da Hélade. Dentre todos os numerosos temas tratados no Corpus Aristotelicum,
nenhum outro destaca-se mais para o jusfilósofo do que a justiça.
A justiça em Aristóteles é virtude da alteridade, posto somente ser adquirida quando
praticada em relação ao outro. Dentre as diversas manifestações do justo na realidade empírica, o
justo legal é o justo pela observância da lei, a qual é elaborada pelo legislador que, a partir dela,
pretende educar os cidadãos para a virtude, impondo a realização de condutas tidas por virtuosas.
Entretanto, o próprio Estagirita reconhece o surgimento de um problema fulcral decorrente
da generalidade do nomos: por ser essencialmente amplo, o dispositivo normativo pode gerar
injustiça no caso concreto colocado à apreciação do julgador quando aplicado. Com isso, haveria
distorção do objetivo originário da lei, o que é inaceitável. Porém, não basta o simples afastamento
do comando legal ou o recurso ao complemento arbitrário por um novo. Deve-se adotar medida que
consiga fornecer uma resposta racional ao problema aduzido pelo cidadão, mas a partir da
adequação da universalidade expressa pela lei ao particular da situação fática em tela, ou melhor,
conciliando-os pelo reconhecimento do ponto de equilíbrio a uni-los. Aristóteles identifica a
equidade (epieikeia) como forma de efetivação da justiça da qual faz uso o julgador para corrigir o
justo legal.
Embora pareça criação original do grande mestre peripatético, a equidade era noção já
imersa na cultura ática daquele tempo. Inovadora é a observação e o registro dentro de um sistema
filosófico, mas não apenas isso. Vale dizer que Aristóteles, nas exíguas e preciosas páginas em que
discorre sobre a epieikeia, eleva-a a verdadeiro elemento de concretização do justo, no sentido de
que o universal da lei, e mais, da cidade como um todo, precisa ser conciliado com o particular do
caso individual, ou ainda, com o do cidadão integrante da polis. Essas relações, ou melhor, a
necessidade de equilíbrio das mesmas e o respectivo emprego da equidade geram amplas
repercussões na esfera política que merecem ser investigadas.
A equidade chega aos dias atuais como tema de grande relevo para o Direito, tendo sido
retomada em discussão por filósofos do porte de John Rawls e Ronald Dworkin. Ademais, foi
incorporada como instituto jurídico integrante dos ordenamentos jurídicos nacionais, inclusive do
brasileiro, embora relegada como uma das últimas fontes de direito a que o magistrado pode
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SANTOS, I. M. Confluências entre o universal
recorrer no cotidiano forense. Isso é sinal da desconfiança dos juristas, ao menos entre os de filiação
romano-germânica, ao crerem que a equidade abre margem para arbitrariedades e inaceitáveis
subjetividades no processo decisório. Esta falsa percepção pode decorrer, dentre outros motivos, da
dificuldade de uma correta compreensão da equidade pelo jusfilósofo hodierno, visto que, a
despeito de permanecer historicamente imersa na cultura jurídica ocidental, a equidade foi
desconectada das raízes das quais despontou, ao que o pensador contemporâneo não mais conhece
sua concepção original e as bases filosóficas em que era lastreada.
Recuperar o lugar da equidade na Filosofia do Direito é tarefa que há muito interessa e que
somente é possível a partir de um estudo profundo a ser iniciado com um exame minucioso da
epieikeia na obra aristotélica, marco fundamental da gênese grega. Simultaneamente, cabe restaurar
a relação intrínseca da equidade com a ideia de justiça, tanto o mais ao ser perceptível o quão atual
é o debate sobre a contraposição entre o universal e o particular, entre a lei e o fato, entre a cidade
ou o Estado e o cidadão individualmente considerado.
Dessa forma, faz-se necessário expor um fragmento do projeto sistêmico aristotélico, com
ênfase na perspectiva ética e nas implicações político-jurídicas da virtude da justiça, notadamente a
justiça legal, na seara da polis, respeitando o teor próprio da estrutura filosófica peripatética, mas
recorrendo à metodologia dialética para uma leitura que possa extrair o relevo do papel da equidade
enquanto elemento unificador do universal e do particular para a efetivação do justo.
2. As virtudes e a justiça
Aristóteles viveu em um período de intensas transformações na sociedade ateniense. Embora
nascido em Estagira, ainda jovem transferiu-se para Atenas, grande centro cultural e econômico do
mundo helênico nos séculos V e IV a.C.. Esta polis, sempre orgulhosa de seu estilo de vida e de sua
organização social, considerados superiores frente aos dos demais gregos, entrou em profunda crise
ética, em especial com as reformas democráticas empreendidas desde Sólon e consolidadas com
Péricles, além do espírito crítico filosófico então nascente.
O modelo da kalokagathia, o ideal de homem e de cidadão inspirado na antiga nobreza,
acompanha esse novo contexto, entrando em declínio. Novas habilidades são exigidas do cidadão,
qualificação esta ampliada quantitativamente, agora responsável pela administração direta da coisa
pública, como a oratória e a elaboração de leis (JAEGER, 2010, p. 336-340). Surge então uma nova
prática educacional, promovida pelos sofistas, professores itinerantes que, embora defensores de
posições plurais, tinham em comum a descrença numa verdade universal e absoluta. O homem
torna-se critério de medida do mundo, na esteira de Protágoras (PLATÃO, 2010, 166d) e, logo, do
justo, o que, na vida da cidade e do seu direito, implicou o despojamento de sua “auréola racional e
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 33-50, jan./jul.., 2015.
divina” (MONCADA, 1955, p. 13-14), deixando de existir um justo em si a ser buscado. Aqui nasce
a contraposição entre a physis, o mundo natural, eterno e imutável, e o nomos, a lei humana, relativa
e ilusória.
Sócrates e, depois, Platão, empreendem esforços em sentido contrário ao da sofística.
Segundo eles, existe uma verdade objetiva, a qual deve ser alcançada por um método adequado e
seguro. Platão encontrará na dialética esta base sólida para atingir o que define como a Ideia do
Bem.2
Nos passos do mestre, apesar de distintos, Aristóteles pretende superar a oposição dos
sofistas entre o nomos relativizado e a physis submetida à necessidade intransponível, pela “síntese
entre o conceito de physis entendida como nomos ou ordem, segundo a tradição pré-socrática, e a
teleologia do logos como razão do melhor segundo a tradição socrático-platônica” (LIMA VAZ,
1988, p. 156). Assim, conclui Lima Vaz:
Dando primazia à noção de fim (telos) imanente à natureza (physis) enquanto “princípio do
movimento” (arque kineseos), a concepção aristotélica permite articular organicamente a
atividade propriamente ética do homem e a atividade política na unidade de um mesmo
saber prático. Rigorosamente distinto do fim prosseguido pela atividade técnica ou poiética
que se ordena para a perfeição de uma obra exterior ao agente, o fim almejado pela
atividade prática é interior ao próprio agente, vem a ser, o estado designado como “vida
feliz” (eudaimonia) ou “bem viver”(eu zen) que não é senão a autorrealização do homem
segundo a sua essência.” (LIMA VAZ, 1988, p. 156-157.)
Para o Estagirita, o bem mais elevado para o homem, ser racional, é a eudaimonia,3
coincidente com a vida contemplativa, pela qual é permitido ao homem realizar as suas
potencialidades, cultivar a inteligência (ARISTÓTELES, 1984, 1177a-1177b). Deve-se analisar a
forma de vida apta a proporcioná-la e a organização social que, no plano coletivo, consiga garantila, ou seja, a vida contemplativa e a melhor comunidade.
Na Ética a Nicômaco, “o modo mais excelente de realização do bem que é a virtude” (LIMA
VAZ, 1999, p. 119-120), arete, é a melhor forma de concretização da vida contemplativa. A
concepção de virtude, no entanto, não foi criação do mestre do Liceu, estando anteriormente
presente na cultura helênica e alcançando relevo inédito em Sócrates e, posteriormente, com Platão,
para quem a justiça seria a unidade harmônica, quer na alma, quer na cidade, desde logo associada
2
3
Nesse sentido, ver a tese de doutoramento de LIMA VAZ, 2012.
“O termo eudaimonia costuma ser traduzido na linguagem usual por felicidade, denotando o sentimento de bemestar ou auto-satisfação do agente, o que realça seu caráter contingente e transitório. No sentido original, porém,
eudaimonia, literalmente 'proteção por um bom daimon', significa a excelência ou perfeição resultante no agente da
posse do bem ou bens que nele realizam melhor sua capacidade de ser bom. A expressão recente eudaimonismo ou
eudemonismo, que remonta a Kant, ao exprimir o aspecto subjetivo da busca interessada e do sentimento de
felicidade, é portanto, imprópria para caracterizar a ética aristotélica e, mesmo, a ética grega em geral. A concepção
da eudamonia na EN (…) tem sido objeto de interpretações diversas, todas porém concordes em que a eudaimonia
para Aristóteles corresponde à posse do bem objetivamente melhor para o agente, capaz de proporciona-lhe o viver
bem (eu zen) e o agir bem (eu prattein) (…).” (LIMA VAZ, 1999, nota 24 da p. 118).
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SANTOS, I. M. Confluências entre o universal
ao equilíbrio entre as diferentes partes, que cumprem as suas respectivas funções (PLATÃO, 2001,
433a-b).
Aristóteles amplia o relevo ético das virtudes, primeiramente pela identificação da existência
de numerosas virtudes para além das tradicionalmente elencadas, a exemplo da própria justiça, as
quais podem ser classificadas segundo as atividades da alma: as virtudes éticas (morais, do caráter)
e as virtudes dianoéticas (intelectuais) (ARISTÓTELES, 1984, 1103a). As primeiras derivam do
hábito (hexis, disposição estável), da prática reiterada que atualiza o que o homem carrega em si em
potência, e são o meio-termo entre o excesso e a falta, os quais constituem os vícios; as segundas
são virtudes da alma racional, representadas por duas fundamentais: a sabedoria (sophia), associada
ao saber teórico, e a prudência (phronesis), ligada ao saber prático.
Especificamente a justiça (dikaiosyne), segundo a classificação aristotélica, é uma virtude
ética. Portanto, também é alcançada pelo hábito: é justo quem pratica a justiça.4 Porém, apresenta
algumas peculiaridades: dentre todas as virtudes, é a única em que os extremos do excesso e da
falta5 implicam o mesmo vício, a injustiça, além de não se ater ao sujeito virtuoso, mantendo em
foco o outro e a comunidade. É virtude social, a mais perfeita, a unir a ética e a política.
Assinala Bittar:
A dikaiosyne é compreendida como uma virtude porque esta é o objeto próprio das
preocupações éticas, que constituem o conjunto objetivo de questões próprias ao ramo do
conhecimento humano que busca uma análise do próprio comportamento humano, tanto em
seus aspectos psicológicos quanto em seus aspectos sociais. No pensamento peripatético
não se encontra a distinção moderna que se faz entre a ética social e a ética individual, uma
vez que ambas se fundem num único objetivo, fim da atividade do Estado, assim como da
própria existência do indivíduo. Neste sentido, o que é o justo da coletividade também o
será, de uma certa forma, para o indivíduo, tendo-se em vista a sua inserção nesta
perspectiva maior de vida social. Trata-se de uma ética da convivência humana, pilar
sobre o qual se assenta toda a razão de existir da comunidade, à qual está atrelado o
indivíduo – e isto não por acidente, mas por natureza -, dentro da filosofia de Aristóteles.
Os conceitos éticos e políticos, nesta perspectiva filosófica, estão reciprocamente
condicionados um pelo outro; a imbricação entre ambas as esferas, sejam consideradas
praticamente em suas consequências e efeitos, sejam consideradas, teoricamente, uma
política, que trata do bem-estar social e da administração daquilo que é comum a todos,
uma ética, que pertine, sobretudo, ao direcionamento da conduta humana, tem por
consequência a interação dos conceitos que de suas dimensões promanam. (BITTAR,
1999, p. 73-74).
4
5
Destrinchando os elementos da justiça aristotélica, identifica Salgado o outro, a vontade (deliberação), a
conformidade com a lei, o bem comum e a igualdade (SALGADO, 1995, p. 37-51).
“A justiça, compreendida em sua caracterização genérica, é uma virtude (ἀρετή), e como toda virtude, qual a
coragem, a temperança, a liberalidade, a magnificência, entre outras, é um justo meio. Não se trata de uma simples
aplicação algébrica do ponto de localização da virtude, mas de situação desta em meio a dois outros extremos
equidistantes com relação à posição mediana, um primeiro por excesso, um segundo por defeito. A dificuldade de
mensuração do 'justo meio' reside na adaptação abstração concebida como 'justo meio' à esfera particular e
específica de cada qual; a relatividade deste com relação à esfera subjetiva humana, que, além de complexa, tende
com maior facilidade, a estancar-se em um dos extremos até que seja alcançado o ponto justo e adequado de
equilíbrio da conduta ética própria para aquele indivíduo em particular.” (BITTAR, 1999, p. 76-77).
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 33-50, jan./jul.., 2015.
Em razão da peculiar importância da justiça, o Estagirita dedica todo o livro V da Ética a
Nicômacos ao seu estudo, o qual é iniciado com a constatação da pluralidade de sentidos com que o
termo era usualmente empregado (ARISTÓTELES, 1984, 1129a).
O primeiro observado é o de justiça legal, segundo o qual é justo aquele que respeita a lei
(nomos). Na esteira de Platão, o legislador, provido da prudência, é identificado como o “diretor da
comunidade política” (BITTAR, 1999, p. 91). Tem por objetivo imediato incutir virtudes aos
cidadãos por meio das leis ao impor-lhes a prática reiterada de certas condutas e proibir outras.
Assim, o indivíduo e o grupo social caminharão para o bem, ou seja, para alcançar a eudaimonia,
caracterizando um processo de paideia coletiva. Por isso destaca Jaeger que o homem grego era
“educado no ethos da lei”, como constantemente repetido pelos grandes teóricos áticos do séc. IV
(JAEGER, 2012, p. 142).
Importa realçar, desde logo, o papel do nomos no todo maior da cultura helênica, em linhas
sintéticas registradas por Pinto Coelho:
Em razão da forma na qual se dá a unidade entre indivíduo e sociedade na união entre ethos
(mundo do espírito, da liberdade) e Ethos (padrões de comportamento), o nomos ('momento
de plena configuração objetiva e racional do ethos') é 'forma superior de manifestação do
ethos', apenas enquanto uma expressão da forma objetiva (Ethos) de vida do povo. (PINTO
COELHO, 2010, p. 134).
As sinonímias justiça total ou justiça universal decorrem precisamente do fato de essa
dimensão da justiça reunir em si todas as virtudes, por esse papel de formação do sujeito
intencionado pelo legislador, em comunicação com o espírito vigente na polis daquilo que é tido por
certo e errado, que deve ser feito e vedado. Nesta face da justiça é patente a razão de ser reputada
como a virtude por excelência: é obtida pelo agir em relação ao outro e, aqui, observando a lei,
respeita-se os demais, contribui para a eudaimonia, não conquistável individualmente.
Nas palavras do próprio Estagirita:
A forma da justiça, então, é a virtude perfeita, não absolutamente, mas em relação a outrem.
E, portanto, a justiça é frequentemente considerada como a mais excelente das virtudes e
'nem a estrela d'alva nem a estrela da noite' são tão admiráveis; e proverbialmente se diz
que 'na justiça toda virtude está compreendida'. E é a virtude perfeita no sentido pleno
porque quem a possui é capaz de usá-la também para outrem e não meramente para si;
muitos homens exercitam sua virtude em seus próprios assuntos, mas não em suas relações
para a excelência. Por isso é considerado verdadeiro o dito de Bias, que “o mando mostrará
o homem”, pois necessariamente quem governa está em relação com outros homens e é um
membro da sociedade. Por essa mesma razão se diz que somente a justiça, entre todas as
virtudes, é o 'bem de um outro', visto que se relaciona com o nosso próximo fazendo o que
é vantajoso a um outro, seja um governante, seja um associado. Ora, o pior dos homens é
aquele que exerce a sua maldade tanto para consigo mesmo como para com os seus amigos,
e o melhor não é o que exerce a sua virtude para consigo mesmo, mas para com um outro;
pois que difícil tarefa é essa. Portanto, a justiça neste sentido não é uma parte da virtude,
mas a virtude inteira; nem é seu contrário, a injustiça, uma parte do vício, mas o vício
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SANTOS, I. M. Confluências entre o universal
inteiro. O que dissemos põe a descoberto a diferença entre a virtude e a justiça neste
sentido: são elas a mesma coisa, mas não o é a sua essência. Aquilo que, em relação ao
nosso próximo, é justiça, como uma determinada disposição de caráter e em si mesmo, é
virtude.” (Tradução extraída, com adaptações, de ARISTÓTELES, 1991, p. 98-99)6
Para finalizar o eixo principal da classificação aristotélica da justiça, convém indicar a outra
grande acepção consistente na justiça particular. Ao contrário do justo legal, implica apenas “parte
da virtude”, por isso, justo particular (to dikaion) (ARISTÓTELES, 1984, 1130a, 14 et seq). É a
“partilha adequada, em que cada um não recebe nem mais nem menos do que a boa medida exige.”
(VILLEY, 2009, p. 41). Nela está expressa a noção grega de igualdade, mas manifestada em dois
sentidos: a justiça distributiva e a justiça corretiva.
A primeira trata da distribuição equânime de cargos, honras e riquezas na sociedade, além de
deveres, responsabilidade e tributos, enfim, de ônus e bônus das “relações público-privadas”
(BOBBIO, 2007, p. 19-20). Os diferentes sujeitos envolvidos podem ser originalmente iguais ou
desiguais, o que é medido pelo mérito de cada um, este definido segundo a constituição de cada
polis. Para garantir a justeza das relações entre indivíduos com méritos distintos, a distribuição dos
bens sociais deve ser proporcional ao que merece cada sujeito, caracterizando uma igualdade
geométrica.
A segunda noção de justiça particular é o de justiça corretiva (dikaion diorthotikon). Nesta
está pressuposta a relação (privada) entre iguais que, por algum motivo, tornou-se desigual e
precisa, portanto, retornar ao status anterior, caracterizando uma igualdade aritmética. Subdivide-se
em justiça sinalagmática ou comutativa, melhor exemplificada pelos vínculos de troca, como os
contratos, de origem voluntária, e em justiça reparativa, que atua corrigindo injustiças de origem
involuntária, como atos de violência ou de clandestinidade. Ascende a figura do juiz que, dotado da
prudência, personifica o justo e medeia a aplicação desta dimensão da justiça (BITTAR, 1999, p.
92).7
6
7
Original em inglês: “This form of justice, then is complete excellence – not absolutely, but in relation to others. And
therefore justice is often thought to be the greatest of excellences and “neither evening nor morning star” is so
wonderful; and proverbially “in justice is every excellence comprehended”. And it is complete excellence in its
fullest sense, because it is actual exercise his excellence towards others too and not merely himself; for many men
can exercise his excellence in their own affairs, but not in their relations to excellence. This is why the saying of
Bias is thought to be true, that “rule will show the man”; for a ruler is necessarily in relation to other men and a
member of a society. For this same reason justice, alone of the excellences, is thought to be another's good, because
it is related to others; for it does what is advantageous to another, either a ruler or a partner. Now the worst man is
he who exercises his wickedness both towards himself and towards his friends, and the best man is not he who
exercises his excellence towards himself but he who exercises it towards another; for this is a difficult task. Justice
in this sense, then, is not part of excellence but excellence entire, nor is the contrary injustice a part of vice but vice
entire. What the difference is between excellence and justice in this sense is plain from what we have said; they are
the same but being them is not the same; what, as a relation to others, is justice is, as a certain kind of state without
qualification, excellence.” (ARISTÓTELES, 1984, 1129b-1130a).
“Aristóteles acrescenta à palavra justiça vários qualificativos que demonstram a possibilidade de classificá-la de
diferentes modos, segundo o critério que se adota”, como o justo político, justo doméstico, justo privado, justo
diante da comunidade, justo geral, uso legal, justo original, justo absoluto e justo relativo, como sintetizado por
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 33-50, jan./jul.., 2015.
3. Equidade: elemento conciliador entre universal e o particular para a efetivação do
justo legal
A lei, expressão do justo legal, como anteriormente tratado, carrega em si mensagem ou
comando com pretensão de validade universal. Com efeito, no processo histórico de formação da
democracia ateniense, um dos grandes princípios conquistados pelo demos, a partir das pressões
sociais frente à oligarquia dominante, foi a isonomia, isto é, a igualdade de todos os cidadãos
“perante a lei” (GLOTZ, 1953, p. 151)8. Obviamente, no sentido da doutrina aristotélica, essa
igualdade perante a lei não é a absoluta, ou melhor, pode ser necessário ao legislador revestir de
forma legal conteúdos distintos a fim de concretizar o justo. Entretanto, mesmo quando é conteúdo
único o que se pretende válido a todos os cidadãos em dada lei, a mera aplicação estrita do
dispositivo normativo pode provocar um efeito contrário, produzindo injustiça.
Para conservar a pretensão da validade universal, o teor normativo deve ser amplo a ponto
de abarcar, ao menos em tese, todas as hipóteses possíveis de conduta para que o cidadão aja
virtuosamente ao conformar a sua ação ao mandamento legal. Como anteriormente mencionado, a
lei é um dos principais instrumentos da paideia na Grécia Antiga, entendida como “educação do
Homem de acordo com a verdadeira forma humana” (JAEGER, 2011, p. 14), ou seja, como
formação. E este sujeito não é o indivíduo da Modernidade, atômico, isolado, mas é membro de
uma coletividade maior, a polis, e somente reconhecido como homem quando dela integrante: é
zoon politikon. Por isso, a paideia deve ser também realizada de modo coletivo, em que a lei
aparece como o recurso mais propício para moldar uma sociedade virtuosa.
Entretanto, ao passo que o nomos pretende gozar de validade universal, sendo aplicável a
todos os cidadãos e a todas as situações que possam surgir, tem-se que esse pressuposto, quando
cotejado com a realidade empírica, mostra-se inatingível. O legislador humano é limitado, não é um
deus capaz de a tudo prever, onisciente no tempo e no espaço. Ademais, a comunidade está em
constante evolução, ao que surgem novas e inesperadas conjunturas que, de alguma forma, mantêm
conexão com a razão de existir da lei. Por isso, acaba por não ser possível que o corpo textual da lei
abranja todas as situações realizáveis, podendo, então, recorrer o legislador à equidade, que
“parcialmente é e parcialmente não é intencionada” por ele (ARISTÓTELES, 1984, 1374a, 27-30).
SALGADO, 1995, nota 55 da p. 36.
8
Romilly afirma que nos tempos homéricos inexistiam leis que poderiam ser ditas propriamente políticas, mas
somente normas de cunho religioso e familiar, ao lado das leis postas pelos governantes, chamadas thesmoi. O
surgimento da lei em sentido diverso somente teria ocorrido com o nascimento da escrita e das primeiras cidades na
Hélade, entretanto, foi apenas com a criação das instituições democráticas que a lei torna-se efetivamente lei política
(nomos). (ROMILLY, 2001, p. 10-13).
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SANTOS, I. M. Confluências entre o universal
Assim, após discorrer sobre as espécies de justiça e percebendo as implicações delas
decorrentes, notadamente da justiça legal, Aristóteles traz a lume a figura da equidade (epieikeia) na
Ética a Nicômaco.
A solução para o problema aventado, com a equidade, não implica exclusão da lei, abstrata,
com pretensão de universalidade, ou ainda a inserção de um novo dispositivo legal. Por certo, o
nomos foi posto pelo povo, consoante os princípios democráticos, de forma que o órgão julgador,
quer unitário, quer colegiado, não pode se colocar acima do demos promovendo a derrogação ou a
criação legislativa. Pelo contrário, a lei é mantida, mas, no momento de sua aplicação, caberá ao
julgador, e não mais ao legislador, amoldá-la ao fato que, em sua particularidade, é colocado em
apreciação. Há adaptação da lei. A aplicação literal, nos moldes originalmente propostos, é afastada,
optando o julgador em conformar o nomos às inarredáveis peculiaridades que fazem daquele fato
diverso dos demais ordinariamente examinados.
Entretanto, a equidade não é sinônimo de arbitrariedade. O aplicador, embora diverso do
legislador, não deve se esquecer deste, e mais, retorna à gênese da lei e dos objetivos dela ao ter
sido criada. Ao aplicar a lei, o magistrado faz “o que o próprio legislador teria dito se estivesse
presente ou colocado em sua lei se soubesse” (ARISTÓTELES, 1984, 1137b), algo não muito
diferente da concepção moderna de mens legis. Se neste momento ainda seria possível criticar a
margem de discricionariedade desenfreada supostamente concedida ao intérprete, deve-se lembrar
que este é o prudente por excelência, ou seja, agente dotado da virtude da prudência (phronesis) que
realiza prévia deliberação das escolhas a fazer (ARISTÓTELES, 1984, 1140a et seq).9
Para ilustrar, é célebre a alusão feita pelo Estagirita à “régua de Lesbos”, instrumento então
empregado pelos arquitetos da ilha de Lesbos, no mar Egeu, que assumia a forma da superfície das
pedras a fim de medi-las. Da mesma forma, a lei amolda-se ao caso concreto, dando-lhe uma
solução justa em correspondência com as especificidades que apresenta. É adequação, palavra de
origem latina (adaequo) que expressa bem a ideia proposta, em que ad, como prefixo, significa “em
direção a”, e aequus, a equidade, entendida enquanto o justo como igualdade (TORRINHA, 1945,
p. 15 e 30), noção a que remontam tanto gregos quanto romanos.
Decerto, équo é aquilo que é justo. Portanto, a equidade é modo de concretização do justo,
ao contrário do que defende Salgado, para quem, em Aristóteles, a equidade pode ser entendida tão
somente como “forma de abrandar o rigor da lei”. Porém, com este doutrinador caminhamos quanto
à observação de que, segundo o Estagirita, há correção da lei, e não dos fatos, sobre os quais agirá a
aequitas dos romanos, “para se enquadrarem no justo do direito” (SALGADO, 2006, p. 215). Ao
retificar a lei, a relação de assimetria entre o comando legal e a situação concreta desaparece: são
9
Sobre a prudência aristotélica, ver AUBENQUE, 2008, particularmente p. 173-244.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 33-50, jan./jul.., 2015.
colocados em posição de equilíbrio o universal da lei e a particularidade do fato posto em tela.
Novamente, importa realçar a dimensão da contraposição entre o nomos e o fato. A
universalidade do primeiro, no sentido já destrinchado de pretensão de validade universal, é
colocada em colisão com o particular do caso concreto. Por certo, cada caso é único. São partes
distintas, motivos diversos, circunstâncias de tempo e espaço e outras variáveis que, combinadas,
resultam numa multiplicidade praticamente infinita de possibilidades. Para muitas das vezes a lei é
suficiente, pois, em sua generalidade intrínseca, consegue absorver os cenários passíveis de
previsão pelo legislador humano e finito. Para outras, não. Ao menos não na configuração original.
De qualquer forma, é necessário um ponto de equilíbrio entre a totalidade universal da lei e a
limitada particularidade do caso concreto. Se a lei é suficiente para responder ao problema trazido
pelo fato em análise, é sinal de que o equilíbrio foi, em tese, alcançado sem a necessidade de uma
intervenção específica. Todavia, se ela não se apresenta como tal, caberá ao juízo do prudente
julgador encontrar essa posição de equilíbrio, o que nem sempre é fácil ou evidente, uma vez que
pode ser dinâmico, e não fixo, visto que a própria realidade está, em regra, em constante
transformação.
Deve-se ponderar, por fim, que a noção de efetivação ou concretização ora empregado tem o
sentido de conciliação. Pela equidade, o justo, para tornar-se real, avança frente à lei e ao evento
ímpar ao qual deve ser aplicado, mas sem desprezá-los, e sim assumindo-os no seu âmago. O fruto
derradeiro é o justo, porém, em nova forma, superior. Por isso, não seria equivocado adotar por
sinônimo, em certa medida, a expressão hegeliana “suprassunção” (Aufhebung), a exprimir,
simultaneamente, superação dos momentos separados, e elevação a um novo plano, pelo qual o
resultado dialético da conciliação é começo e fim.10
Em suma, havendo equilíbrio entre a lei e o fato, entre o universal e o particular, o justo
pode ser concretizado. Compete ao julgador, feita a análise preliminar e, sendo necessário, a
adaptação equitativa, dar continuidade ao processo. O objetivo a orientar a atuação de quem julga é
a efetivação do justo, o que nem sempre será possível, dado que a lei pode ser em si injusta ou,
ainda, a equidade sozinha pode não ser suficiente. Muitas são as probabilidades do mundo sublunar,
cambiante e incerto, e a equidade, embora possa obter resultados formidáveis em muitos casos, não
pode ser tida por absoluta.
De todo modo, observa-se que a equidade não é um mero instrumento para a concretização
do justo, ao permitir a disposição da lei e do fato particular em uma relação de equilíbrio, mas
10
O recurso à dialética hegeliana mostra-se aqui conveniente e apropriada para expressar a ideia de superação e
elevação frente aos momentos anteriores separadamente considerados. Também a concepção de universalidade e
particularidade que move o presente estudo decorre de influência do sistema filosófico de Hegel, invocado como
lente para a leitura das confluências dos polos em estudo, embora não restringindo a exposição ao rigorismo próprio
da obra do mestre germânico, uma vez que as peculiaridades do sistema aristotélico devem ser preservadas, em
respeito aos princípios hermenêuticos histórico-filosóficos.
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SANTOS, I. M. Confluências entre o universal
verdadeiro princípio norteador da polis. Aristóteles, na Retórica, descreve-a como “um tipo de
justiça que vai além da lei escrita” (ARISTÓTELES, 1984, 1374a, 27). Em outras palavras, o
Estagirita entende que a equidade chega a ser uma forma de justiça, e, como lembra na Ética a
Nicômaco, entre o justo e o equitativo, “enquanto ambos são bons, o equitativo é superior”
(ARISTÓTELES, 1984, 1137b, 9-10). Superior pela maior precisão conquistada pelo contato
imediato com o caso concreto e, com isso, obter a efetivação do justo, o que não significa diferentes
graus de justiça conquistados, vez que, ou se age justamente, ou não. Como acima mencionado, é
resultado dialético, o universal e o particular suprassumidos. Enfim, a equidade é preceito imanente
à cultura grega, da mesma maneira impregnada pelas noções do justo e de igualdade, as quais
praticamente se confundem na ordem social da cidade.
4. Relações entre o sujeito e a cidade: a comunidade pela equidade
A justiça, segundo Aristóteles, é a virtude caracterizada pela alteridade, em que o outro, seja
um indivíduo, seja toda a comunidade, é também considerado e somente com ele é realizado. É “a
síntese de todas as virtudes éticas, na medida que as ordena e proíbe os vícios”, como também
“ordem social, visto que promove a reta distribuição dos bens da cidade e resolve de forma
equitativa os conflitos dos cidadãos.” (MAGALHÃES GOMES, 2009, p. 406). Nesse sentido, a
eudaimonia, enquanto bem maior a ser perseguido, não é alcançado apenas na subjetividade do ser
particular, mas depende de uma integração social harmônica no âmago da polis. Em vista disso, na
Ética a Eudemo, destaca que “o bem envolve algo além de nós, mas a divindade é o seu próprio
bem” (ARISTÓTELES, 1984, 1245b, 18-19).11
Em outras palavras, o bem é comum e perpassa a justiça, pois, com esta, o homem descobrese como integrante da comunidade política, como zoon politikon. A justiça é o critério maior a
medir o equilíbrio na vida política e, em sua acepção universal, visa a elevar a cidade e os seus
cidadãos, tornando-os virtuosos e, dessa forma, mais próximos da eudaimonia.
Nas palavras de Magalhães Gomes:
Assim, se a justiça é, em sentido universal, estar igualmente obrigado às mesmas regras que
o outro e, em sentido particular, igualdade aritmética e geométrica, ou seja, o que é igual
para cada sujeito, é na convivência social que ela se atualiza. Porque é em coletividade que
nos tornamos conscientes de nossa igualdade e desigualdade, a partir da descoberta do
outro (da natureza e do outro em si). No outro experimentamos a identidade e a diferença e
nos tornamos conscientes de que somos, ao mesmo tempo, os mesmos e cada um, enfim, de
11
A passagem é lembrada por Ricken, que completa: “Aristóteles tem um conceito social de felicidade, em que a
felicidade do indivíduo é vinculada à felicidade das pessoas da comunidade em que ele vive. Segundo a Ética a
Nicômaco (I, 5, 1097b 9-11) esse círculo abrange, para além da família e dos amigos, os concidadãos da polis, e
para isso Aristóteles se refere à sua tese antropológica de que a pessoa é 'por natureza um ser político', portanto só
poderia encontrar sua total realização como ser humano na comunidade da polis.” (RICKEN, 2008, p. 152)
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 33-50, jan./jul.., 2015.
que somos iguais em essência, mas, de fato, singulares. A justiça é a virtude que expressa a
auto-concepção do sujeito como membro de uma comunidade de homens iguais e livres, ou
seja, a sua visão de si mesmo como cidadão. (MAGALHÃES GOMES, 2009, p. 125).
O quadro traçado na Política é amplo e abrange desde a distinção da polis frente a outras
formas de organização social até a análise dos diferentes regimes políticos,12 no intuito de mostrar a
melhor constituição, a concluir por aquele que garanta a estabilidade em meio às formas radicais. E
esta harmonia implica, ou mesmo depende, do equilíbrio entre o indivíduo e a cidade, figuras
distintas, mas interdependentes. Outros tipos de agrupamento humano, como a família e aldeia, não
se confundem com a comunidade política, pois não têm como objetivo maior o bem
(ARISTÓTELES, 1984, 1252a-1253a), apesar de decorrer delas, exprime um passo adiante.
Observa Vergnières:
A polis não é o indivíduo, é comunidade; a diferença é clara: indivíduo vivo é um composto
cujas partes permanecem em potência, uma comunidade é pluralidade cujas partes ou os
elementos estão em ato; dito de outro modo, as famílias, as aldeias, mas também os
particulares perseguem um fim que lhes é próprio, irredutível à finalidade política, ainda
que estejam, ao mesmo tempo, incluídos na cidade. (VERGNIÈRES, 1998, p. 155-156)
Por conseguinte, indivíduo e comunidade devem coexistir e, para isso ser possível, deve
haver equilíbrio. Se interesse individual e coletivo não coincidem, não se excluem. Como ficou dito,
o bem da polis é, apenas em maior medida, o bem do próprio sujeito. E com isso não quer
Aristóteles defender a prevalência incomensurável da cidade sobre o cidadão de modo que deve
este, em sua subjetividade, conformar a sua finalidade pessoal ao que dele exige a comunidade
política, o que, última instância, representaria a anulação da subjetividade e a afirmação da plena
preponderância da objetividade do núcleo social ético. O Estagirita pretende expor, na verdade, que
a integração entre indivíduo e grupo social é tal que o fim daquele está incorporado ao da cidade,
harmoniosamente, inexistindo conflito ou imposição. Se há coincidência entre homem e cidadão,
isto transcorre da inclusão do fim humano no fim da polis e, à vista disso, a existência de ambos
está interligada de forma a que se complementem mutuamente. É algo além do jogo indivíduo e
coletividade, é o comum como resultado, a koinonia, ou seja, a comunidade. E, precisamente, é
“justo aquilo que é para o benefício comum” (ARISTÓTELES, 1984, 1160a, 9-14).
Aristóteles quer isso explanar nas primeiras linhas da Política:
Toda polis é uma comunidade de alguma espécie, e cada comunidade é estabelecida tendo
em vista algum bem. Mas, se todas as comunidades objetivam algum bem, a polis ou a
comunidade política, que é a mais elevada de todas, e que engloba todo o resto, objetiva o
bem em uma escala maior do que qualquer outra, e o bem mais elevado. (ARISTÓTELES,
12
Sobre as formas de governo em Aristóteles, ver BOBBIO, 1998, p. 55-63.
Alethes | 44
SANTOS, I. M. Confluências entre o universal
1984, 1252a, 1-7)13 (Tradução nossa).
Philippe, em comentário a essa passagem, comenta:
Esse início da Política mostra bem a estreita dependência da filosofia política em relação à
ética “pessoal” que Aristóteles elaborou. A insistência sobre o bem o manifesta claramente.
E é a κοινωνíα, o pôr em comum entre os homens, que realiza uma continuidade entre a
ética e a política: a κοινωνíα é o fundamento do amor de amizade e o fundamento das
relações dos homens engajados na mesma cidade. Ora, a κοινωνíα é de algum modo o bem
vivido numa intersubjetividade. Portanto, ao olhar o bem objetivo e o bem vivido em ética
e em política é que se poderá precisar filosoficamente a ordem que existe entre uma e outra.
(PHILIPPE, 2002, p. 82)
Se há justiça imersa nas relações entre o sujeito e a cidade, pode-se recorrer à equidade, para
que seja dirigida a equilibrá-las. Com efeito, não existem apenas o universal da lei e o particular do
fato, vínculo em que a aplicação do nomos ao evento concreto inserido dentro de circunstâncias
fáticas específicas pode gerar injustiças inaceitáveis, de forma que mais uma vez a equidade pode
ser invocada. Há o universal da cidade, do grupo social como um todo, e o particular do cidadão, do
sujeito individualmente considerado, embora este só possa ser compreendido como tal enquanto
membro da ordem política.
Na verdade, não se coloca aqui uma nova dimensão independente de expressão do universal
e do particular a demandar a solução equitativa, mas sim outra perspectiva do mesmo nexo
conflituoso, agora pelo viés da polis. De um lado, o nomos é a lei da cidade e o fato sempre traz um
sujeito que deve se submeter ao comando legal. De outro, a polis representa, em última instância, o
mundo humano ordenado em harmonia com as leis eternas e imutáveis que regem o kosmos,
realidade a que Lima Vaz designa por “universalidade nomotética” (LIMA VAZ, 1988, p. 150). Da
relação entre nomos e physis, nasce para o indivíduo a ameaça de que essa universalidade o engula,
suprimindo qualquer margem de liberdade. Em contrapartida, em Aristóteles, o fim da cidade é o
fim do homem, vez que essencialmente político. Logo, é no seio da comunidade que brota
novamente a ideia de justiça, neste momento, em um plano mais elevado, e, por consequência, a
ideia de equidade.
De fato, o conflito entre a universalidade e a particularidade é inerente às relações humanas
em sentido amplo, não apenas entre lei e cidadão, mas igualmente, entre a cidade e o cidadãoindivíduo. E esta última faz, por fim, um retorno dialético ao primeiro, dado que a lei aparece como
instrumento ordenador da polis, garantidor da justiça e, portanto, postula o equilíbrio entre os
13
No original: “Every state is a community of some kind, and every community is established with a view to some
good. But, if all communities aim at some good, the state or political community, which is the highest of all, and
which embraces all the rest, aims at good in a greater degree than any other, and at the highest good.”
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 33-50, jan./jul.., 2015.
termos da relação. Não obstante consiga, ainda que de forma relativa e provisória,14 tal equilíbrio,
desencadeia desarmonia no novo liame que surge, a saber, entre a lei e o cidadão com seu caso
particular.
Como solução, o nomos não pode ser eliminado. É mecanismo idôneo, expressão de
racionalidade, fundamental para a polis:
A justiça para Aristóteles é a ordem racional, ou seja, a organização normativa da
comunidade de acordo com a razão. A lei é o instrumento, o objeto que carrega em si o
justo universal, ou seja, as normas, os comandos racionais que ordenam a prática de todas
as virtudes éticas, que distribuem equitativamente os bens da cidade entre os seus cidadãos,
que resolvem, de acordo com os ditames da razão, os conflitos que surgem no seio da
sociedade. Mais. O justo, virtude normativa, é garantido pela força política.
(MAGALHÃES GOMES, 2009, p. 403)
Destarte, justifica-se mais uma vez a equidade, aqui trazida a lume como unificadora ou
mediadora, indireta e última, do universal da cidade e da particularidade do sujeito, ao fazer com
que o fim do indivíduo coincida com o fim da cidade, com que o caso fático daquele agente
específico esteja em harmonia com a lei da polis, enfim, ao engendrar um resultado novo e
derradeiro, em que o homem e a cidade se confundem no senso de comunidade. Em outras palavras,
suprassume os termos e garante a coesão político-social em um novo nível de constituição, a única
em que a justiça é plenamente realizada.
Nesse sentido, como ressalta Villey, certo é que, em conclusão à doutrina aristotélica, “é a
equidade que tem a última palavra” (VILLEY, 2009, p. 63), o que se justifica, em esfera máxima,
para a “garantia da liberdade e da igualdade” (FASSÒ, 1982, p. 64), resumidos na ideia de justiça.
5. Considerações finais
No pensamento ético aristotélico, a equidade aparece como elemento unificador do universal
e do particular, permitindo assim a efetivação do justo. Mostra-se, portanto, como instituto muito
mais complexo e rico no contexto da obra do Estagirita, mesmo quando considerado o espaço
relativamente limitado dedicado por ele à sua exposição. É necessário sensibilidade e esforço
hermenêutico para reconhecer as intricadas implicações da equidade no âmbito da cidade e as
repercussões mais dramáticas no plano da justiça e da lei.
Percebe-se que, por um lado, a equidade concilia o universal da lei e o particular do caso
específico em análise. Por outro, sendo a justiça virtude imanente nas relações no seio da polis e,
14
A lei não é suficiente per si para obter o equilíbrio pleno. Sozinha, levaria ao esfacelamento da constituição política
da cidade, uma vez que, não verdadeiramente conciliados a polis e o cidadão, cedo ou tarde haveria o rompimento
de ambos. É necessário algo mais, o que é suprido pela equidade, que permitirá a superação e a elevação da cidade
e do indivíduo-político a um novo plano, do que resultará a efetivação do justo político em sentido completo.
Alethes | 46
SANTOS, I. M. Confluências entre o universal
inclusive, na sua própria constituição, como organização conforme os ditames da razão, é termo de
mediação, por modo indireto e final, entre o universal da cidade e o particular representado pelo
cidadão que nela é integrado.
O nomos, como lei emanada soberanamente da polis, pretende-se válido universalmente,
consequência da experiência democrática e dos princípios que regem o sistema político. Aplicável
igualmente a todos, falha por não conseguir o legislador prever todas as hipóteses possíveis, do que
decorre um descompasso entre a lei e o particular do caso proposto para o qual inexiste solução
expressa ou, ainda, aplicado como está, gerará injustiça. A equidade, neste primeiro momento, como
corretivo legal, reconcilia o universal e o particular, garantindo uma resposta adequada e, desse
modo, efetivando o justo.
O homem, enquanto animal político, é membro integrante da cidade, da comunidade de
agentes racionais, e participa da elaboração da lei, produto da polis, que pretende assegurar a coesão
social. Entretanto, essa mesma lei não é suficiente, quando sozinha, para equilibrar a relação
explicitamente assimétrica entre o universo político da cidade-estado e o indivíduo-cidadão que a
ele está indissoluvelmente agregado. Essa conjuntura característica da eticidade clássica helênica
não pode ser relegada, ao que se exige do hermeneuta a ampliação de suas lentes: a equidade
ressurge nesta outra dimensão, dialeticamente ligada à anterior, pelo que, uma vez mais, faz com
que o sujeito particularmente concebido seja harmonizado com a cidade, porém, agora, tendo por
fruto a comunidade, espaço de congregação do individual e do coletivo, e além, do particular e do
universal.
Não cabe afirmar, quanto ao sujeito, tal como o fato ou a situação contraposta à lei, a
consideração do indivíduo único e especial frente aos demais, ao menos na Antiguidade, concepção
esta originada no pensamento cristão a partir da Idade Média. Mas isso não quer dizer que não haja
a percepção do indivíduo e espaço para a sua existência.
Tradicionalmente afirma-se a preponderância do grupo social no mundo helênico, pelo que a
cidade exigiria a submissão absoluta do sujeito, lógica manifestada sobretudo no respeito à lei,
similarmente ao diálogo narrado por Sócrates no Críton, ou mesmo no projeto político da
República, ambas obras de Platão. Todavia, ressalta-se que esta concepção não parece ser absoluta,
ao menos não sendo mais uma realidade no contexto dos séculos V e IV a.C., principalmente
quando defrontado com a noção de comunidade colocada por Aristóteles, em que a vida comum é
mais do que a vida em coletividade e na qual os fins particulares e universais coincidem, não se
excluem.
A polis torna-se, por conseguinte, no caminhar da história e do pensamento helênicos, o
locus de fusão entre o sujeito, agente criador de leis, a assumir a direção do seu destino, e o grupo
social. Como comunidade ética total, é o lugar que concede ao homem a característica particular
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 33-50, jan./jul.., 2015.
que o diferencia dos demais seres vivos e, assim, o resultado singular a que compreende a vida
humana, por ação da epieikeia.
Jaeger, com precisão, descreve em poucas palavras esse quadro grego, ressaltando o caráter
superior que a vida em comum representa:
A antiga cidade-estado era para os cidadãos a garantia de todos os princípios ideais da vida;
(πολιτενεσθαι) significa participar na existência comum. Tem também o simples
significado de 'viver'. É que ambas as coisas eram uma só. Em tempo algum o Estado se
identificou tanto com a dignidade e o valor do Homem. Aristóteles designa o Homem como
ser político e, assim, distingue-o do animal pela sua qualidade de cidadão. Esta
identificação da humanitas, do ser-homem, com o Estado, compreende-se apenas na
estrutura vital da antiga cultura da polis grega, para a qual a vida comum é a súmula da vida
mais elevada e adquire até uma qualidade divina. (JAEGER, 2010, p. 146).
Em suma, a comunidade não é qualquer organização política, senão aquela em que
assumidos e superados os conflitos das expressões do universal e do particular, a justiça pode ser
plenamente efetivada. E a noção de equidade desponta como unificadora de esferas do ser e do agir
aparentemente antagônicas, seja de modo direto, na relação entre lei e eventos fáticos, seja indireto,
no campo maior da polis e do indivíduo. Reitera-se, a epieikeia promove a concordância do
universal e do particular em dupla dimensão, assim possibilitando a efetivação do justo, permeando
o grupo social, o sujeito individualmente considerado e a lei.
Conclui-se que, recuperada a tradição grega, é evidenciado o lugar da equidade como
elemento silencioso de ligação de toda a estrutura política, entre a polis e o cidadão, entre a lei que
dela emana e aplicada às ocorrências fáticas, únicas e peculiares na essência. Restam lançadas as
bases fundamentais para a composição completa da história jusfilosófica da ideia de equidade, a
perpassar os romanos, com os quais assumirá às claras o posto de princípio orientador do direito,
como aequitas, insculpida nos textos jurídicos clássicos e celebrada nas letras dos poetas latinos; os
medievais, com a retomada de Aristóteles e a agregação do pensamento cristão ao clássico,
permitirá a adoção de novas facetas, com destaque para Tomás de Aquino; e os modernos, pelo que
tomará caminhos difusos até ser alijada de qualquer posição de proeminência no sistema jurídico
romano-germânico, conquanto viva na equity do common law.
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FERNANDES, M. C. C. Império versus Multidão
Império versus Multidão: a alegoria da guerra e a formação do inimigo,
segundo Michael Hardt e Antonio Negri
Empire versus Multitude: The allegory of the war and the formation of the enemy,
according to Michael Hardt and Antonio Negri
Maíra Cristina Corrêa Fernandes1
Resumo:
O artigo propõe expor conceitos relacionados à alegoria da guerra e à formação da identidade
do inimigo enquanto subterfúgios necessários para consolidar e manter a nova ordem global, o
Império, e seus respectivos valores, segundo Michael Hardt e Antonio Negri. Dialogando com a teoria
do Direito Penal do Inimigo, de Günther Jakobs, em perspectiva ao estado permanente de guerra
imperial, aliado aos conceitos de estado de exceção de Giorgio Agamben, pretende-se traçar
panoramas de reação que tal tendência político-econômica mundial, o Império, atualmente investe
contra movimentos insurgentes opositores ao seu biopoder. Busca-se elucidar que tais represálias são
tentativas para atingir membros da diversidade representada pela Multidão. Para tanto, abordam-se
exemplos da “caça às bruxas” aos hackers, evidenciada nos episódios das prisões dos fundadores dos
sites “WikiLeaks”, “The Pirate Bay” e “Megaupload”, cujas similitudes convergem na atuação em
rede, produzindo e disseminando o comum na internet em detrimento dos interesses imperiais.
Palavras-chave: Guerra. Exceção. Inimigo. Biopoder.
Abstract:
The present work has as objective to expose the concepts related to the allegory of the war
and the enemy's identity formation as necessary quibbles to consolidate and maintain the new global
order called Empire and it's respectives values, according to Hardt's and Negri's work. In a dialogue
with the Criminal Law's Theory of the Enemy, from Günther Jakobs, under the permanent state's
perspective of imperial war drafted by Hardt and Negri, alied to the concepts of state of exception by
Giorgio Agamben, it means to trace the prospects of the reactions that such worldwide economic
policy's tendency, the Empire, is actually investing against opposition's insurgent movement to his
own biopower. It seeks to clarify such reprisal are attempts to reach members of the diversity
presented by the Multitude. To this end, it approaches examples of the "witch-hunt" for the hackers,
evident in the prison of the "WikiLeaks", "The Pirate Bay" and "Megaupload" founders, whose
similitude converges in the act in form of web, creating and disseminating the common on the internet
in detriment of order and the imperial's interests.
Key-words: War. Exception. Enemy. Biopower.
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Currículo Lattes disponível em:
http://lattes.cnpq.br/8259854593672997. Atualização em 13/03/2015.
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1. Império2
Com a globalização da produção capitalista e a ampla ascensão do mercado em nível mundial,
significativas mudanças se estruturaram tanto em âmbito político, quanto econômico e social. Ainda
que o sistema de produção capitalista possuísse tendências a alcançar a economia em nível
internacional, torna-se evidente a ruptura nas relações globais de poder idealizadas pela modernidade
com as da contemporaneidade, sendo, atualmente, perfeitamente plausível a concepção de uma estrita
união do poder econômico com o poder político.
Nesse sentido, os filósofos Michael Hardt e Antonio Negri, divergindo das premissas que
simplificam os processos de globalização à mera ascensão dos Estados-nação capitalistas dominantes
ao mercado mundial, iniciam os estudos de uma nova noção de direito, um novo registro de autoridade
e um projeto original de produção de normas e de instrumentos legais de coerção que fazem valer
contratos e resolver conflitos, denominando-os de Império (HARDT; NEGRI, 2001).
Inicialmente, insta salientar que o Império não se trata de mero fenômeno de evolução do
imperialismo, tal como era praticado pelas potências modernas, com base essencialmente na
soberania do Estado-nação ampliada para territórios estrangeiros. Em vez disso, surge agora um poder
em rede, uma nova forma de soberania, que tem como elementos fundamentais, ou pontos nodais, os
Estados-nação dominantes, juntamente com as instituições supranacionais, as grandes corporações
capitalistas e demais poderes (HARDT; NEGRI, 2005). Ou seja, houve uma transição da lei
internacional tradicional – definida por contratos e tratados –, para um novo poder soberano e
supranacional, uma noção imperial de direito, fruto das mudanças da constituição material biopolítica
das sociedades (HARDT; NEGRI, 2001).
A concepção de Império uniu categorias jurídicas e valores éticos universais, dispondo-os em
um único funcionamento, como um todo orgânico:
“O conceito de Império é apresentado como um concerto global, sob a direção de um único
maestro, um poder unitário que mantém a paz social e produz suas verdades éticas. E, para
atingir esses objetivos, ao poder único é dada a força necessária para conduzir, quando for
preciso, ‘guerras justas’ nas fronteiras contra os bárbaros e, no plano interno, contra os
rebeldes” (HARDT; NEGRI, 2001).
Esta tendência a uma nova ordem mundial é baseada em um direito afirmado e envolvido no
espaço ilimitado da universalidade, daquilo tudo que é considerado civilização, abrangendo todo o
tempo dentro de seu fundamento moral. “O Império exaure o tempo histórico, suspende a História, e
2
Trabalho de conclusão de iniciação científica com bolsa, financiada pelo programa PROBIC/FAPEMIG, e de
participação do grupo de pesquisa “O Estado de Exceção no Brasil Contemporâneo”, sob a orientação do Professor Doutor
Andityas Soares de Moura Costa Matos da Universidade Federal de Minas Gerais.
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FERNANDES, M. C. C. Império versus Multidão
convoca o passado e o futuro para dentro de sua própria ordem ética, (...) ordem como algo
permanente, eterno e necessário” (HARDT; NEGRI, 2001).
E é sob esta ótica que o Império governa, internamente fraturado por divisões e hierarquias,
bem como acossado por um estado de guerra perpétua, cuja banalização da figura do inimigo e a
suspensão permanente dos direitos de seus cidadãos sob o pretexto da excepcionalidade, aliado à
justificação através da eficiência nos moldes do poder de polícia, tornam-se basilares para a
consolidação, manutenção e perpetuação dos valores imperiais em âmbito global, retroalimentando o
sistema.
2. Alegoria da guerra global
2.1 A guerra, antes como exceção, torna-se regra na contemporaneidade
A guerra na Era moderna foi tradicionalmente concebida como um conflito armado entre
entidades políticas soberanas, entre Estados-nação. Contudo, na medida em que a autoridade soberana
dos Estados-nação, inclusive os dominantes, vem declinando em detrimento de uma nova forma
supranacional de soberania – o Império –, as condições e natureza da guerra e da violência política
necessariamente estão mudando, transformando-a num fenômeno geral, global e interminável
(HARDT; NEGRI, 2005).
Ao passo do conflito entre entidades estritamente soberanas, a guerra civil, por sua vez, foi
conceituada, também pelo direito internacional surgido na modernidade, enquanto conflito armado
entre combatentes soberanos e/ou não-soberanos dentro de um mesmo território soberano. E,
novamente, com o Império emergindo no cenário mundial, a guerra civil igualmente não mais seria
entendida no contexto do espaço nacional, pois este deixou de ser a unidade efetiva de soberania, em
detrimento do ambiente global (HARDT; NEGRI, 2005).
Desta perspectiva, os autores evidenciam que todos os atuais conflitos armados do planeta
devem ser considerados como guerras civis imperiais, existindo dentro do sistema global,
condicionando-o e sendo por ele condicionado. Assim, a guerra se tornou uma condição generalizada.
Ainda que em determinados locais e conjecturas as hostilidades aparentemente tenham cessado, a
violência letal está presente enquanto potencialidade constante, sempre pronta para irromper a
qualquer momento. “Não se trata aqui de guerras isoladas, portanto, mas de um generalizado estado
permanente de guerra global que de tal maneira torna menos distinta a diferença entre guerra e paz,
que já não somos capazes de imaginar uma paz verdadeira ou de ter esperança nela” (HARDT;
NEGRI, 2005).
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 51-65, jan./jul.., 2015.
Sob este aspecto, é abordada a principal diferenciação do novo estado de guerra global
perpétua com a concepção moderna das teorias de soberania. Na Era moderna, havia uma
preocupação em abolir a guerra civil que assolava os recém-nascidos Estados-nação europeus,
buscando isolar os conflitos armados nas margens da sociedade e limitando-os a períodos
excepcionais. Somente a autoridade soberana podia fazer a guerra, e somente contra outro poder
soberano. Ou seja, os conflitos armados foram expulsos do âmbito interno do campo social nacional,
sendo reservados apenas a conflitos externos entre Estados, deste modo, tornando a guerra, a exceção,
e a paz, a regra. “Separar a guerra da política era o objetivo fundamental do pensamento político
moderno e de sua prática” (HARDT; NEGRI, 2005).
Entretanto, tornou-se cada vez menos viável isolar a guerra nos limites dos conflitos entre
Estados e promover a paz enquanto regra, vez que as antigas concepções de soberania entraram em
declínio com o advento da nova ordem imperial. Assim sendo, é cada vez mais difícil distinguir a
guerra da política, pois “o estado de exceção tornou-se permanente e generalizado; a exceção
transformou-se em regra, permeando tanto as relações internacionais quanto o espaço interno”
(HARDT; NEGRI, 2005).
Nesse ínterim, valendo-se do conceito de estado de exceção desenvolvido pelo filósofo
Giorgio Agamben, deve-se entender a violência excepcional permanente dentro da guerra imperial
como regra estruturante da soberania desta nova ordem global.
O modo pelo qual a vida atualmente é incluída e excluída revela o estado limite do
ordenamento, de excluir a si próprio, estando incluso em si. Em outras palavras, a soberania é a lei
além da lei, ou seja, a indiscernabilidade entre lei e vida, o próprio estado de exceção (AGAMBEN,
1995).
No contexto biopolítico, do ponto de vista da soberania imperial, o único espaço político seria
a vida-nua3, um dos conceitos resinificados por Agamben. A violência soberana não se funda em um
pacto, mas na exclusão e inclusão da vida-nua na lei, sendo elemento político originário da
contemporaneidade. O referencial dos conflitos políticos se altera a partir do momento em que a
política se torna a biopolítica. As linhas divisórias tornam-se indistintas, a figura soberana torna-se
institucionalizada, ocasionando uma cisão no direito, ou seja, um espaço onde a lei vigora, mas não
tem força, um campo cinza do ordenamento jurídico em que a soberania se apresenta apenas como
estado de exceção (AGAMBEN, 1995).
Para Agamben, a lacuna do ordenamento jurídico não é uma carência do texto legislativo que
deve ser integrada pelo judiciário, mas a suspensão do ordenamento para garantir sua existência
(AGAMBEN, 2003). A lacuna não é interna à ordem, mas guarda a relação desta com a realidade. O
3
Em suma, a “vida-nua" para o autor refere-se à experiência de desproteção e ao estado de ilegalidade daquele que é
acuado em um terreno vago, submetido a viver em estado de exceção.
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FERNANDES, M. C. C. Império versus Multidão
estado de exceção, portanto, se apresenta como uma lacuna fictícia que se origina para garantir a
existência e a aplicação da norma. O estado de exceção é o momento em que a aplicação da lei é
suspensa, mas em que ela mesma se mantém em vigor.
Entre o direito público e o fato político, entre a ordem jurídica e a vida, forma-se uma
verdadeira “terra de ninguém”, onde se constitui o estado de exceção permanente, e somente ao
revelar este paradigma é que se pode descobrir a diferença entre político e jurídico, entre direito e
vida ou entre paz e guerra.
A paz civil, diante deste contexto, serve apenas para pôr fim a uma forma de guerra e abrir
caminho para outra, ilustrado nas palavras de Hardt e Negri:
“A guerra transformou-se num regime de biopoder, vale dizer, uma forma de governo
destinada não apenas a controlar a população, mas a produzir e a reproduzir todos os aspectos
da vida social. (...) Isto não significa que a guerra foi domesticada ou que sua violência tenha
sido atenuada, e sim que a vida cotidiana e o funcionamento normal do poder passaram a ser
permeados pela ameaça da violência da guerra” (HARDT; NEGRI, 2005).
Diante do exposto, percebe-se que a guerra não é mais um mero direito de intervenção
concebido no âmbito entre os Estados-nações dominantes. Enquanto pontos nodais da complexa rede
imperial, o que está por trás da guerra global não é um permanente estado de emergência e exceção,
mas um permanente estado de emergência e exceção justificado pelo apelo a valores essenciais de
justiça (HARDT; NEGRI, 2001). No Império, a ética, a moralidade e a justiça ganham novas
dimensões.
“O Império está surgindo hoje como o centro que sustenta a globalização de malhas de
produção e atira sua rede de amplo alcance para tentar envolver todas as relações de poder
dentro de uma ordem mundial – e ao mesmo tempo exibe uma poderosa função policial
contra novos bárbaros e escravos rebeldes que ameaçam sua ordem. O poder do Império
parece estar subordinado às flutuações da dinâmica do poder local e aos arranjos jurídicos
parciais e mutáveis que buscam, mas nunca conseguem plenamente, levar de volta a um
estado normal em nome da ‘excepcionalidade’ de métodos administrativos” (HARDT;
NEGRI, 2001).
2.2 Guerra justa, permanente e direito de polícia
Consolidado este novo modelo de guerra imperial, vale ressaltar o retorno dos discursos de
guerra justa no âmbito dos conflitos globais, sintetizando o rompimento drástico com os esforços da
Era moderna em normatizar a guerra enquanto situação excepcional.
A bellum justum é um conceito ligado a antigas ordens imperiais, seu passado remonta à
tradição bíblica, que envolve a banalização dos conflitos e a celebração da luta como instrumento
ético, ideias fortemente refutadas pelo pensamento moderno e pela comunidade internacional, através
de tratados junto às Organizações das Nações Unidas (ONU) e outras instituições supranacionais.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 51-65, jan./jul.., 2015.
Contudo, o novo poder imperial retoma essa antiga prática de sacralização da guerra, justificando-a
através de motivações éticas e não políticas. Assim sendo, a atual ótica de guerra tornou-se justificável
em si mesma.
Ademais, percebe-se que tais conflitos não possuem limites, tornando-se indeterminados em
termos espaciais e temporais. E como consequência, as relações internacionais e a política interna
tornam-se cada vez mais parecidas e misturadas. Nesse contexto de entrecruzamento das atividades
militares e policiais para garantir a segurança, é cada vez menor a diferença entre o que está dentro e
o que está fora do Estado-nação, a guerra de baixa intensidade vai ao encontro das ações policiais de
alta intensidade (HARDT; NEGRI, 2005).
Se a guerra já não é uma situação excepcional dentro do Império, e sim a regra, por óbvio tal
estado perpétuo de conflitos não pode ser uma ameaça à atual estrutura de poder, nem uma força
desestabilizadora, mas um mecanismo ativo que esteja constantemente criando e reforçando a atual
ordem global. “A guerra deixou de ser o elemento final das sequências de poder – a força letal como
último recurso – para se tornar o primeiro e fundamental elemento, constituindo a base da própria
política” (HARDT; NEGRI, 2005).
Todos os conflitos, todas as crises e todas as desavenças fazem avançar efetivamente o
processo de integração e demandam uma maior autoridade central. A consolidação deste novo modelo
de guerra nada mais é do que fruto da mudança de paradigma da modernidade para a
contemporaneidade, reconhecendo que apenas um poder estabelecido, imperial, superdeterminado
com relação aos Estados-nação e relativamente autônomo é capaz de funcionar como centro da nova
ordem mundial, exercendo sobre ela uma norma efetiva e, caso necessário, coerção (HARDT;
NEGRI, 2001).
Segundo os autores, o Império é formado não com base na força, mas na capacidade de mostrar
a força como algo supostamente a serviço do direito e da paz. Ele não nasce da vontade própria, é
convocado a nascer e constituído com base em sua capacidade em resolver conflitos. Suas
intervenções tornam-se juridicamente legitimadas somente quando já está inserido na cadeia de
consensos internacionais destinados a resolver conflitos existentes. Portanto, a soberania imperial não
cria a ordem pondo fim à “guerra de cada um contra todos”, e sim propondo um regime de
administração disciplinar e controle político diretamente baseado em contínuas ações de guerra. A
aplicação constante e coordenada da violência torna-se condição necessária para o funcionamento da
disciplina e do controle.
“Para assumir o controle da situação tão completamente fluida, e dominá-la, é necessário
assegurar à autoridade que intervém (1) a capacidade de definir, sempre de forma
excepcional, as demandas de intervenção; e (2) a capacidade de mobilizar forças e
instrumentos que, de várias maneiras, podem ser aplicados à pluralidade e diversidade dos
arranjos em crise” (HARDT; NEGRI, 2001).
Alethes | 56
FERNANDES, M. C. C. Império versus Multidão
Em nome da excepcionalidade da intervenção, nasce um verdadeiro direito de polícia. A
formação deste novo direito está ligada ao emprego da prevenção, da repressão e da força retórica,
destinadas à reconstrução do equilíbrio social – tudo isso é próprio da atividade de polícia. “A
legitimidade do arranjo imperial sustenta o exercício do poder de polícia, ao passo que a atividade de
uma força global de polícia demonstra a verdadeira eficácia do arranjo imperial” (HARDT; NEGRI,
2001).
Assim, a guerra parece caminhar ao mesmo tempo em duas direções aparentemente opostas,
embora não se excluam. Por um lado, ela é reduzida a formas de ação policial, e por outro, elevada a
um nível absoluto, ontológico, em prol dos inalcançáveis valores perpetuados pelo Império, tais quais
a justiça e a paz mundial. Com efeito, o estado de exceção, atualmente, traduz a tendência
contemporânea de uma generalização sem precedentes do discurso da segurança como técnica
eficiente de governo (AGAMBEN, 2003).
Porém, a violência inerente do poder de polícia e do estado permanente de guerra imperial
não é legitimada de maneira mais eficaz com base em alguma estrutura estabelecida a priori, seja
moral ou legal, mas apenas a posteriori, de acordo com os seus resultados. Qualquer poder militar
e/ou policial será investido de legitimidade somente na medida em que se mostrar eficaz na correção
de desordens globais – não necessariamente de restabelecer a paz, mas manter a ordem. Sendo assim,
a presença constante de um inimigo e a ameaça de desordem são necessárias para legitimar a violência
imperial, pois uma guerra para criar ou manter a ordem social não pode ter fim. Envolverá
necessariamente o contínuo e ininterrupto exercício do poder e da violência (HARDT; NEGRI, 2001).
3. A criação do Inimigo
Seguindo a lógica de um estado perpétuo de guerra global, justificada em si mesma, a fim de
espalhar os valores do Império, Hardt e Negri iniciam suas considerações acerca da importância da
formação de um inimigo diante deste contexto. Inicialmente, destaca-se que os inimigos apresentados
pelos autores no âmbito imperial não são, necessariamente, Estados-nação ou comunidades políticas
específicas, ou sequer como indivíduos, e sim como conceitos abstratos ou talvez um conjunto de
práticas. “Hoje o inimigo, como a própria guerra, é banalizado (reduzido a objeto de rotineira
repressão policial) e tornado absoluto (como Inimigo, uma ameaça total à ordem ética)” (HARDT;
NEGRI, 2001).
Percebe-se, portanto, que os discursos de guerra servem para mobilizar todas as forças sociais
e suspender ou limitar as trocas políticas normais. “A guerra contra um conceito ou um conjunto de
práticas, mais ou menos como uma guerra de religião, não conhece limites espaciais ou temporais
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 51-65, jan./jul.., 2015.
definidos. Tais guerras podem estender-se em qualquer direção, por períodos indeterminados”
(HARDT; NEGRI, 2005).
Não apenas a presença do inimigo contribui para o estado permanente de guerra, como
também assevera as consequências trazidas pelos discursos da guerra justa, tanto em âmbito externo,
quanto interno. O inimigo, que tradicionalmente era enxergado fora, e as “classes perigosas”, que
tradicionalmente se encontravam dentro, tornam-se assim cada vez mais difíceis de distinguir,
servindo conjuntamente como objeto do esforço da guerra.
O fato de serem identificados como inimigo tende efetivamente a criminalizar as várias formas
de contestação e resistência social. Nesse diapasão, a fusão conceitual da guerra com o policiamento
representa um obstáculo para todas as forças de transformação social.
Outra consequência é a reorientação da concepção dos lados da batalha ou das condições de
inimizade. Na medida em que o inimigo é abstrato e ilimitado, também a aliança de amigos é
expansiva e potencialmente universal. Em princípio, toda a humanidade pode unir-se contra um
conceito ou prática abstrata como, por exemplo, o terrorismo. Não surpreende, portanto, que o
conceito de guerra justa tenha voltado especialmente no contexto da guerra contra o terrorismo e das
diferentes operações militares promovidas em nome dos direitos humanos.
O conceito de justiça serve, justamente, para universalizar a guerra além de quaisquer
interesses particulares e políticos, para abarcar o interesse da humanidade, como um todo (HARDT;
NEGRI, 2005). O inimigo ganha o status de verdadeira encarnação do mal, algo repugnante ou
sexualmente pervertido, tornando-o absoluto, tirando-o da esfera política e o limitando à esfera moral,
simplificando suas ações em conceitos gerais como “crime contra a humanidade” ou “elemento de
alta periculosidade”, por exemplo.
A partir desta análise, encontram-se algumas convergências com a teoria do Direito Penal do
Inimigo, desenvolvida pelo professor Günther Jakobs, em relação às tendências de represálias do
Império contra os movimentos insurgentes de resistência ao seu biopoder, encontrando na
configuração da figura do inimigo, aval suficiente para elencar uma série de medidas que
propulsionam o contexto de guerra global permanente desta nova ordem mundial.
Jakobs elaborou em sua teoria que o direito penal, enquanto mecanismo repressivo e
preventivo do Estado, deveria ser dividido em dois sistemas diferentes, propostos para compreender
duas categorias de indivíduos também considerados diferentes – os cidadãos e os inimigos –, cujos
postulados transitam dos princípios do democrático direito penal do fato e da culpabilidade para um
discriminatório direito penal do autor e da periculosidade (SANTOS).
“(...) o direito penal pode ver no autor um cidadão, isto é, alguém que dispõe de uma esfera
privada livre do direito penal, na qual o direito só está autorizado a intervir quando o
comportamento do autor representar uma perturbação exterior; ou pode o direito penal
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FERNANDES, M. C. C. Império versus Multidão
enxergar no autor um inimigo, isto é, uma fonte de perigo para os bens a serem protegidos,
alguém que não dispõe de qualquer esfera privada, mas que pode ser responsabilizado até
mesmo por seus mais íntimos pensamentos” (GRECO, 2005).
Nesse sentido, a pena para o cidadão seria uma reação contra-fática dotada do significado
simbólico de afirmação da validade da norma, como contradição ao fato passado do crime, cuja
natureza de negação da validade da norma a pena pretende reprimir.
“O fato, como fato de uma pessoa racional significa algo, ou seja, uma rejeição da norma,
uma agressão à sua validade, e a pena significa igualmente algo, ou seja, a imposição do autor
seria incompetente e a norma continuaria valendo inalterada, portanto, a configuração da
sociedade continuaria mantida. Tanto o fato como a coação penal são, neste ponto, meios de
interação simbólica e o autor é tomado seriamente como pessoa” (JAKOBS, 2004).
Por outro lado, a pena para o inimigo seria uma medida de força dotada do efeito físico de
custódia de segurança, como obstáculo antecipado ao fato futuro do crime, cuja natureza de negação
da validade da norma a pena pretende prevenir.
“Em lugar de uma pessoa competente, que é contraditada com a pena, portanto, coloca-se o
indivíduo perigoso, contra quem – aqui: com uma medida preventiva, não com uma pena – é
procedido de modo fisicamente efetivo: combate ao perigo, em lugar de comunicação, Direito
penal do inimigo (...), em vez de Direito Penal do cidadão” (JAKOBS, 2004).
Assim sendo, de modo resumido, segundo o autor, para o cidadão a pena criminal preservaria
o significado simbólico de (re)afirmação da validade da norma, como sanção contra fatos passados,
enquanto que para o inimigo a pena criminal teria um significado físico de custódia de segurança
preventiva, como medida para evitar o perigo de fatos futuros.
Nesse diapasão, o cidadão seria autor de crimes normais, que preserva uma atitude de
fidelidade jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de manter as expectativas normativas da
comunidade, conservando a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque não desafia o sistema
social. Já o inimigo seria autor de crimes de alta traição, que assume uma atitude de insubordinação
jurídica intrínseca, uma base subjetiva real capaz de produzir um estado de guerra contra a sociedade,
com a permanente frustração das expectativas normativas da comunidade, perdendo a qualidade de
pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social (JAKOBS, 2004).
Ao introduzir no sistema de justiça criminal a categoria do inimigo como um diferenciado tipo
de autor de fatos puníveis, a proposta do direito penal do inimigo introduz também um duplo sistema
de imputação penal e processual penal.
O sistema penal seria constituído por um direito penal da culpabilidade pelo fato passado de
autores definidos como cidadãos, por um lado, e por um direito penal preventivo da medida de
segurança pelo perigo de fato futuro de autores definidos como inimigos, por outro lado (SANTOS).
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 51-65, jan./jul.., 2015.
Já o sistema processual penal seria cindido entre a imputação fundada no princípio acusatório
para o cidadão, acusado com as garantias constitucionais do devido processo legal (ampla defesa,
presunção de inocência, etc.), por um lado, e a imputação fundada no princípio inquisitório para o
inimigo, punido sem as garantias constitucionais do devido processo legal (defesa restrita, presunção
de culpa etc.), com investigações ou inquéritos secretos, vigilâncias sigilosas, interceptação
telefônica, escuta ambiental, prisões temporárias, proibição de contato com advogado etc., por outro
lado (SANTOS).
Assim, o papel do Direito Penal do Inimigo não é compensar o dano causado à vigência de
uma norma, como ocorre com o Direito Penal do Cidadão, mas sim eliminar o perigo representado
pelos indivíduos (não-pessoas) que se encontram fora da ordem social estabelecida e não oferecem
garantias de que voltarão a agir com fidelidade às normas instituídas por esta ordem social. Para
Jakobs, a condição de pessoa não é atributo natural do ser humano, mas sim uma atribuição normativa,
ou seja, a pessoa não se confunde com o ser humano existencial, uma vez que, enquanto este é
resultado de processos naturais, aquela é um produto social (CALLEGARI; WERMUTH, 2010).
Com efeito, o duplo sistema de imputação de Jakobs suprime seculares garantias
constitucionais do Estado Democrático de Direito, a partir do momento em que propõe o processo
contra o inimigo não precisar ter forma de justiça, porque não é regido pelo devido processo legal; ao
contrário, o processo contra o inimigo deve ter, justamente, forma de guerra. A formulação teórica de
Jakobs cancela o próprio princípio do Estado de Direito na medida em que pressupõe o poder em
mãos de um soberano que individualiza inimigos por decisão política e contra quem não se pode
oferecer resistência. Ou seja, a prevalência de uma pretensa razão instrumental leva à razão de Estado
e à consequente negação do Estado de Direito (ZAFFARONI, 2007).
Nesse sentido, problematiza-se tal teoria hermética a partir do momento em que os agentes do
Império, discricionariamente, se utilizam destas justificativas presentes na função preventiva e
excepcional da teoria do direito penal aplicada à figura do inimigo, enquanto estratagema para a
manutenção dos seus interesses políticos e econômicos.
Necessário se faz criticar a elaboração de subterfúgios para a coerção e repressão do direito
contra a figura de certos inimigos, verdadeiras encarnações do mal na Terra, vez que a manutenção
de garantias constitucionais como o devido processo legal e a punibilidade dos fatos passados, e não
dos autores e a periculosidade em cometer fatos futuros, não garante resultados satisfatórios ao
Império em sua guerra permanente para a manutenção do status quo e a perpetuação de seus valores.
Vale-se de um apelo ao poder de polícia e à perseguição absoluta dos inimigos elencados,
suspendendo uma série de direitos dos cidadãos em prol do extermínio de movimentos de resistência
à onda imperial. Dentre inúmeros exemplos de aplicabilidade dos conceitos de guerra justa, perpétua
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FERNANDES, M. C. C. Império versus Multidão
e global e da formação da figura do inimigo, notório foram os casos de perseguição a hackers e
fundadores de alguns sites de compartilhamento de ficheiros na internet.
4. A “caça às bruxas” do Império contra a Multidão no cyberespaço
Enquanto contraposição do Império, a Multidão se apresenta como alternativa viva que vem
se constituindo dentro da nova ordem global. Em uma das faces, o Império dissemina sua rede de
hierarquias e divisões que mantém a ordem através de novos mecanismos de controle e permanente
conflito. A globalização, contudo, também é a criação de novos circuitos de cooperação e colaboração
que se alargam pelo mundo, facultando uma quantidade infinita de encontros (HARDT; NEGRI,
2005).
Segundo Hardt e Negri, o conceito de Multidão não é sinônimo de povo, população ou massa.
A população é caracterizada pelas mais amplas diferenças, enquanto o povo é uno, isto é, reduz a
diversidade a uma unidade, transformando a população numa identidade única. Em contrapartida, a
Multidão é múltipla e, como uma multiplicidade de todas as diferenças singulares, não pode nunca
ser reduzida a uma única identidade. Já as massas têm como essência a indiferença, pois “todas as
diferenças são submersas e afogadas nas massas. Todas as cores da população reduzem-se ao cinza”
(HARDT; NEGRI, 2005), constituindo um conglomerado indistinto e uniforme que se move em
uníssono.
Ao contrário do que se infere, embora se mantenha múltipla, a Multidão não é fragmentada,
anárquica ou incoerente. Isto porque, como um sujeito social internamente diferente cuja constituição
não se baseia na unidade, a ação da multidão se baseia naquilo que ela tem em comum, um conjunto
de singularidades cooperantes (HARDT; NEGRI, 2005).
A Multidão proporciona a possibilidade de que, mesmo mantendo as diferenças, os indivíduos
descubram os pontos comuns que permitam a comunicação uns com os outros, visando a agir
conjuntamente. Este movimento também pode ser encarado como uma rede, aberta e em expansão,
na qual todas as diferenças podem ser expressas livre e igualitariamente, uma rede que proporciona
os meios da convergência para que se possa trabalhar e viver em comum (HARDT; NEGRI, 2005).
Essa comunicação, colaboração e cooperação não se baseiam apenas no comum, como também o
produzem. O próprio trabalho, através das transformações da economia, tende a criar redes de
cooperação e comunicação e a funcionar dentro delas.
Assim, “esta produção biopolítica e a expansão do comum que acarreta é um dos principais
pilares em que se assenta hoje a possibilidade de democracia global” (HARDT; NEGRI, 2005).
Nesse sentido, a internet tem se mostrado um amplo espaço de debate, em que a Multidão
pode encontrar acesso para semear o comum e, ao mesmo passo, produzi-lo. As insurgências de
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 51-65, jan./jul.., 2015.
diversos sites para compartilhamento de ficheiros e de fóruns para a propagação e discussão de
informações são fortes exemplos da ação da Multidão diante do poder em redes e hierarquizado do
Império.
“Uma rede distributiva como a Internet constitui uma boa imagem de base ou modelo para a
Multidão, pois, em primeiro lugar, os vários pontos nodais se mantêm diferentes, mas estão
todos conectados na rede, e além disso as fronteiras externas da rede são de tal forma abertas
que novos pontos nodais e novas relações podem estar sendo constantemente acrescentados”
(HARDT; NEGRI, 2005).
Logo, inúmeras forças imperiais representativas dos pontos nodais do Império, tanto em
âmbito político quanto econômico, começaram a pressionar as autoridades para que medidas drásticas
fossem tomadas contra uma série de hackers que se utilizavam do espaço comum e do anonimato na
internet para a divulgação de informações e/ou compartilhamento de diversos arquivos. Fez-se nítida
a formação da figura do inimigo e, consequentemente, a suspensão de uma série de garantias a estes
indivíduos (passados a não mais serem considerados como cidadãos) a partir do momento em que se
tornaram alvo da guerra imperial.
Uma verdadeira “caça às bruxas” se iniciou contra alguns membros e fundadores de sites, tais
quais “The Pirate Bay” e “Megaupload”, responsáveis por facilitar o acesso a arquivos
compartilhados na rede, o que acabava gerando uma série de prejuízos a poderosas empresas,
principalmente da indústria do entretenimento como gravadoras, editoras e produtoras. Sob o pretexto
da violação dos direitos autorais e a organização difusa em grupos anônimos de usuários da rede de
computadores, fortes repressões foram direcionadas contra estes sítios, culminando na prisão de seus
fundadores4.
Em janeiro de 2012, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos comunicou oficialmente
a prisão do fundador do site “Megaupload”, Kim Schmitz, e de outros três executivos, na Nova
Zelândia. À época, houve investigação durante dois anos antes de os agentes tomarem medidas contra
os acusados, culminando nas condenações por crimes no estado da Virgínia, EUA, de sete pessoas
ligadas ao site. No mesmo ano, o sueco Gottfrid Svartholm, um dos fundadores do “The Pirate Bay”,
foi preso no Camboja, devido a uma condenação na Suécia de pagamento de multa de US$ 1,1 milhão
e doze meses de prisão, por um crime relacionado à tecnologia da informação previsto na lei sueca5.
Notórios também foram os casos de perseguições políticas a membros da internet que
ajudaram a divulgar informações sigilosas de governos e organizações supranacionais, cidadãos que
muitas vezes foram considerados inclusive como terroristas, sendo obrigados a pedir asilos políticos
em diversos países, pressionados pelos mecanismos repressivos do Império. Dentre alguns exemplos
4
5
Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/8650
Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/8650
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FERNANDES, M. C. C. Império versus Multidão
estão o fundador do site WikiLeaks6, Julian Assange e o ex-agente da CIA, Edward Snowden7,
responsáveis por vazar informações confidenciais, principalmente dos EUA.
Julian Assange, editor do site “WikiLeaks”, coleciona não somente inúmeros prêmios como
jornalista, mas também centenas de investigações sobre corrupção, guerras e a indústria da vigilância
ao longo de sua história como ativista político na internet. As denúncias e documentos publicados no
“WikiLeaks”, sobretudo as relacionadas ao governo americano e à Guerra do Afeganistão,
desencadearam ações de retaliação de várias forças político-econômicas imperiais.
Em sua estadia na Suécia em 2010, onde iria proferir uma série de palestras, Assange foi
acusado de estupro e assédio sexual. Foram expedidos dois mandatos de prisão, retirados poucos dias
depois. Porém, no final do mesmo ano, o processo foi reaberto, até que finalmente a justiça sueca
acionou a Interpol pedindo sua extradição.
Nessa mesma época, dois dias após a publicação de 250 mil documentos diplomáticos
confidenciais do Departamento de Estado Norte Americano, a Interpol distribuiu aos 188 países
associados à chamada “notificação vermelha”, que significa alta prioridade para a localização, prisão
e extradição de Assange. Em dezembro de 2010, o jornalista se apresentou para a Polícia
Metropolitana de Londres, ocasião em que negou as acusações de estupro e de assédio sexual.
Foi-lhe concedida liberdade condicional, após pagar fiança, muito embora as autoridades
tivessem recolhido seu passaporte, além de decretado toque de recolher e o uso de uma pulseira com
dispositivo eletrônico de localização. Até que, em 2012, pressionado por boatos que o acusavam,
inclusive, de terrorismo, Assange pediu asilo político à Embaixada do Equador em Londres, para não
ser extraditado à Suécia.
Já em 2013, Edward Snowden, ex-agente da CIA, tornou-se inimigo político ao revelar
mundialmente a manutenção do governo americano, sob o comando do presidente Barack Obama,
dos programas de vigilância doméstica criados na Era Bush, o quais consistiam, basicamente, na
vigilância de milhões de telefonemas e de e-mails privados de cidadãos americanos sem relação com
terroristas, monitorizados pelas agências de espionagem do país.
Além disso, denunciou que os EUA mantinham espionagens à missão da União Europeia em
Nova York e 38 embaixadas, entre elas as da França, Itália e Grécia e dos países do Oriente Médio.
Também revelou que os serviços de informação britânicos espiaram o G20 e que a NSA usava
parcerias com empresas telefônicas americanas para invadirem as redes de comunicação de países
como o Brasil, China, Índia e Paquistão.
6
Disponível em http://www.infoescola.com/biografias/paul-julian-assange/
Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Mundo/noticia/2013/06/quem-e-edward-snowden-o-ex-agente-quevazou-documentos-de-espionagem-dos-eua.html
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 51-65, jan./jul.., 2015.
Ao analisar esses casos, além da tensão da produção do comum, relacionada às dinâmicas da
rede mundial de computadores versus os interesses imperiais de grandes conglomerados econômicos
e políticos, evidencia-se, também, o apelo à mecanismos estatais poderosos na busca e apreensão
desses fundadores, como o discurso dos direitos autorais e a ameaça ao terrorismo fundamentando
tais decisões políticas, colimando na perseguição e nas prisões decretadas em áreas fora da jurisdição
e da competência territorial dessas autoridades, revelando a normalidade e permanência de um estado
de exceção, de uma guerra imperial contra esses inimigos políticos deliberadamente criados no
imaginário internacional.
Pelo exposto, de acordo com Hardt e Negri, a genealogia das modernas resistências, revoltas
e revoluções evidencia uma tendência para organizações cada vez mais democráticas, das formas
centralizadas de comando ou ditadura revolucionária para organizações em rede que deslocam a
autoridade para relações colaborativas (HARDT; NEGRI, 2005), constituindo uma verdadeira
ameaça, imprevisível, aos interesses políticos e econômicos do Império.
Com efeito, essa Multidão, em contraposição à dinâmica imperial, é o único sujeito social
capaz de realizar a democracia, isto é, o governo de todos por todos, “a multidão é carne viva que
governa a si mesma” (HARDT; NEGRI, 2005). E é o comum, the common, que permite que a
multidão se comunique e aja em conjunto. Além da comunicação e da colaboração terem suas origens
no comum, elas também produzem o comum. Hardt e Negri defendem, portanto, que a Multidão
produz o comum, e o comum, ao ser compartilhado, serve de base para a produção futura, numa
relação expansiva em espiral (HARDT; NEGRI, 2005).
"Quando uma rede disseminada ataca, investe sobre o inimigo como um enxame: inúmeras
forças independentes parecem atacar de todas as direções num ponto específico. (...) O ataque
em rede apresenta-se como algo semelhante a um enxame de pássaros ou insetos num filme
de terror, uma multidão de atacantes irracionais, desconhecidos, incertos, invisíveis e
inesperados. Se analisarmos os interiores de uma rede, no entanto, veremos que é
efetivamente organizada, racional e criativa. Tem a inteligência do enxame. (...) A
inteligência do enxame baseia-se fundamentalmente na comunicação" (HARDT; NEGRI,
2005).
Revela-se, portanto, uma tendência das organizações de resistência e revolucionárias não só
para se constituírem em meios para alcançar uma sociedade democrática, como para criar,
internamente, dentro de sua estrutura organizacional, relações democráticas.
Por um lado, a Multidão encontrará cada vez mais espaço propício para a difusão de sua
diversidade na internet, dentre outros contextos e, por outro, o Império permanecerá contra-atacando
com seus aparatos repressores fundamentados na formação da figura do inimigo e na manutenção do
estado perpétuo de guerra global, a fim de defender seus valores no status quo. E nesse embate diário
pela construção radical da democracia, cada fagulha de movimento que ascende na rede de
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FERNANDES, M. C. C. Império versus Multidão
comunicação é uma oportunidade, uma chance, uma chama de revolução, para implodir as complexas
e opressoras relações imperiais.
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<http://revistaepoca.globo.com/Mundo/noticia/2013/06/quem-e-edward-snowden-o-ex-agente-quevazou-documentos-de-espionagem-dos-eua.html/>. Acesso em: 30 nov. 2014.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 51-65, jan./jul.., 2015.
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MENDES, D. G. Natureza das obrigações assumidas
Natureza das Obrigações Assumidas em Cirurgias Plásticas Estéticas e
Repercurssões na Responsabilidade Civil
Nature of the Obligations Assumed in Aesthetics Surgeries and Repercurssions in the
Civil Liability
Davi Guimarães Mendes1
Resumo:
O presente trabalho intenciona esclarecer se as obrigações assumidas em cirurgias
estéticas são de resultado ou de meios e quais seriam as repercussões no campo da
responsabilidade civil, a depender da classificação. Para isso, realiza-se um breve apanhado
histórico da responsabilidade civil dos médicos e das cirurgias estéticas, apresentando, em
seguida, os principais posicionamentos dos juristas brasileiros e estrangeiros acerca da
questão, a fim de se indicar os pontos de conflito. Por fim, analisa-se criticamente a questão, a
fim de se determinar se seriam de resultado ou de meios as obrigações assumidas em cirurgias
estéticas, indicando-se, igualmente, os reflexos da classificação na responsabilidade civil do
cirurgião esteticista e se fazendo sucintas considerações acerca desta, aplicando-se a teoria
dos deveres anexos ou secundários.
Palavras-Chave: Obrigações; Responsabilidade; Civil; Cirurgia; Estética.
ABSTRACT:
This paper aims at making clear if the obligations assumed in aesthetic surgeries are of
result or of means, and what would be the repercussions in the civil liability area, depending
on the classification. In order to do that, a short historical overview of the doctors civil
responsability and of the aesthetic surgeries is carried out, being presented, after that, the main
understandings of the brazilian and foreign jurists about this issue, for the sake of indicating
the points of conflict. Lastly, the subject is critically analyzed, in order to determinate if the
obligations assumed in aesthetic surgeries are of result or of means, being indicated, as well,
the reflexes of the classification in the matter of the aesthetic surgeon civil liability and being
made succint considerations about it, applicating the theory of the attached or secondary
duties.
Keywords: Obligations; Liability; Civil; Surgery; Aesthetic.
1
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 67-89, jan./jul.., 2015.
Introdução
A classificação das obrigações entre obrigações de resultados e de meios é, apesar das
divergências existentes quanto à sua utilidade, uma das mais recorrentemente levantadas pela
doutrina especializada, delineando-se sua utilidade prática no que se refere à distribuição do
ônus da prova da existência de culpa, elemento essencial para a caracterização da
responsabilidade civil.
Apesar de pacificado o entendimento de que o médico, profissional liberal que é,
assume obrigação de meios, persiste dissenso quanto à classificação das obrigações assumidas
nas cirurgias plásticas, sobretudo aquelas de fins meramente estéticos, destacando-se a
importância da pesquisa nesta área, principalmente em face das consequências de ordem
prática de tal classificação.
Pretende o presente estudo contribuir para o esclarecimento de qual seria a natureza
das obrigações assumidas nos procedimentos cirúrgicos estéticos e quais seriam os
desdobramentos desta no campo da responsabilidade civil.
Por meio de uma metodologia exploratória, far-se-á uma breve narrativa histórica do
tratamento dispensado à responsabilidade civil médica e às cirurgias plásticas estéticas,
passando-se, em seguida, para a apresentação dos principais posicionamentos doutrinários e
jurisprudenciais sustentados atualmente quanto ao tema ora em comento.
Por fim, analisa-se de forma crítica a questão, procurando-se delimitar com maior
precisão a distinção entre obrigações de meio e de resultado e trazendo-se à baila a teoria dos
deveres anexos ou secundários, na tentativa de esclarecer certos equívocos em que ainda
incorre a doutrina pátria.
1. Breve histórico da responsabilidade civil médica e da cirurgia plástica estética
Cumpre realizar breve recorte histórico acerca do tratamento da responsabilidade do
médico pelo exercício de suas atividades profissionais, além de apontamentos relacionados à
forma como eram concebidos os procedimentos estéticos em tempos pretéritos,
principalmente em face de ser recente o desenvolvimento de uma consciência jurídica que
responsabilizasse adequadamente, sem excessos ou omissões, o médico pelos danos por ele
cometidos ao paciente, sendo igualmente nova a aceitação das cirurgias plásticas, sobretudo
as estéticas, pela comunidade médica e pela sociedade.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 67-89, jan./jul.., 2015.
Primitivamente, é de grande destaque o Código de Hamurabi, porque, conforme
explica Carvalho (2012, p. 6), foi esta uma das primeiras codificações a prever
responsabilidade daqueles que praticavam o curandeirismo e que causassem danos aos seus
pacientes, devendo-se observar, contudo, que inexistia o conceito moderno de culpa,
respondendo o curandeiro objetivamente pelos danos causados, dependendo a punição da
extensão dos prejuízos, e podendo ela chegar até à amputação da mão deste.
Percebe-se, portanto, a severa punição àqueles que causassem danos, respondendo eles
ainda que não tivessem agido culposamente, o que, inclusive, conforme explicado por Breda
(1997, p. 11), resultou em uma estagnação dos avanços científicos na área, eis que era
tamanha a severidade das penas que havia desincentivo às práticas de curandeirismo.
Explica Miguel Kfouri Neto (2013, p. 60) que foi somente na Grécia antiga, por volta
do século V a.C., que se pode constatar o primeiro verdadeiro estudo no campo da medicina,
muito em função das contribuições de Hipócrates. Nesta época, firmaram-se preceitos até hoje
essenciais no que se refere à ética médica, como o juramento de Hipócrates.
Concomitantemente a isto, surgiu o entendimento de que a responsabilidade do
médico não pode ser objetiva, mas deve obedecer a critérios tais como a morte do paciente e a
desobediência às prescrições feitas aos que exerciam a medicina, pelo que se percebe a
necessidade do elemento culpa para a caracterização da responsabilidade dos médicos. Nada
obstante, ainda eram extremamente severas as penas àqueles que desrespeitavam os preceitos
da atividade médica e com isso causavam danos aos pacientes, sendo citados casos, por
exemplo, de médicos que chegaram a ser crucificados por conta disto.
Já em Roma, ressalta-se a elevação cultural e sanitária da medicina, que se alçou ao
patamar de profissão, organizando-se cursos e iniciando-se o processo de especialização da
atividade médica. Todavia, a principal contribuição romana à área da responsabilidade civil
médica foi o próprio desenvolvimento do instituto da responsabilidade civil, sistematizandose, a partir da Lei Aquília, os requisitos para que fosse intentada ação reparatória, conforme
explicação de Miguel Kfouri Neto:
Para intentar a actio legis Aquiliae, era necessário: a) que o dano tivesse causado
injuria, isto é, contrariasse o direito; b) uma falta positiva (in committendo). Deixar
o escravo alheio morrer de fome, por constituir culpa in omittendo, não gerava
responsabilidade. Qualquer falta imputável ao autor era suficiente: in lege Aquilia et
levíssima culpa venit; c) um dano corpori corpore datum – o dano deveria ter sido
causado por contato direto do corpo do autor com o da vítima. (KFOURI NETO,
2013, p. 58)
Com o progresso da medicina enquanto ciência, foi possível se passar a uma mais
racional avaliação dos erros e da culpa dos profissionais de saúde. Entretanto, na França, no
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 67-89, jan./jul.., 2015.
começo do século XIX, era quase inexistente a responsabilidade jurídica dos médicos,
chegando-se a proclamar a exclusiva responsabilidade moral destes, e só havendo qualquer
tipo de responsabilização em caso de falta grave e visível, que demonstrasse manifesta
imperícia ou imprudência, isto é, apenas o erro grosseiro, elementar, responsabilizava o
médico, estando incumbido ainda, com o ônus da prova, o paciente (KFOURI NETO, 2013,
p. 63).
Mais recentemente, contudo, fortaleceu-se o entendimento de que é plena a
reparabilidade do dano médico, desenvolvendo-se, inclusive, a teoria da perda de uma chance
(perte d’une chance), responsabilizando-se o médico por perder mesmo apenas uma chance
de cura ou sobrevivência do paciente (KFOURI NETO, 2013, p. 63). Ademais, segundo
doutrina de Rui Stoco (2011, p. 642), pacificou-se o entendimento de que é a responsabilidade
civil do médico de natureza contratual e subjetiva.
O que se percebe é que houve, durante a história, grandes alterações no tratamento
dispensado à responsabilidade civil dos médicos, passando-se de um momento de intensa
responsabilização, ignorando-se o conceito de culpa, até outro diametralmente oposto, em que
só se cogitava de responsabilidade moral dos profissionais de saúde, até que se alcançasse o
entendimento atual, de que o médico é plenamente responsabilizável por seus erros, sendo sua
responsabilidade civil de natureza contratual e subjetiva.
Já no que se refere à cirurgia estética, é ela definida por Ferreira (2000, p. 62) como
aquela em que se dá novas formas estruturais ao corpo, objetivando-se melhorar a aparência e
a autoestima de pessoas cujos problemas não tenham sido causados por doenças ou
deformidades. Igualmente conceituando esses procedimentos, Pitanguy, Salgado e Radwanski
(1999, p. 78), os definem como aqueles que têm como função precípua harmonizar a imagem
e o espírito do indivíduo.
Há de se deixar claro que, no presente trabalho, considerar-se-á, para fins de melhor
esclarecimento, a cirurgia plástica como gênero do qual são espécies a cirurgia reparadora e a
cirurgia estética.
É a cirurgia plástica especialidade médica de desenvolvimento extremamente recente,
tendo sido, por muito tempo, área subaproveitada, inexistindo grande interesse na pesquisa.
Isso se deu, segundo Pitelli (2011, p. 94), em função da perseguição da igreja católica
medieval, que considerava imperdoável heresia o ato de modificar o corpo humano, ainda que
com finalidade reparadora.
Com a diminuição da influência da igreja, a partir do final do século XIX foram
permitidas as intervenções cirúrgicas plásticas de caráter reparador, mantendo-se, contudo, a
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rejeição às cirurgias plásticas estéticas, argumentando-se, por exemplo, que não se podia
admitir a intervenção no corpo são, por fins meramente embelezadores, dada a sacralidade
deste (PITELLI, 2011, p. 95).
No início da década de 1930, contudo, passou-se a admitir cirurgias plásticas estéticas
quando da correção de imperfeições estéticas congênitas ou adquiridas, para melhorar a
qualidade de vida do indivíduo.
A total aceitação das cirurgias plásticas estéticas, entretanto, só veio a partir da década
de 1950, momento coincidente com o aprimoramento das técnicas de cirurgia plástica por
conta da segunda guerra mundial, sendo fator digno de nota a rápida e total transição existente
no campo das cirurgias plásticas embelezadoras que, de especialidade amplamente rejeitada e
inclusive proibida, passou a área reconhecida, regulamentada e procurada pelos médicos,
conforme explicação de Poli Neto e Caponi (2007, p. 571).
Destaca-se, por fim, que não obstante se verificar uma progressiva aceitação da
cirurgia plástica estética, que até o início do século passado era terminantemente proibida,
pela comunidade médica e pela sociedade, persiste preconceito em relação a essa
especialidade, muito em função da falta de conhecimento quanto às suas especificidades.
2. Principais posicionamentos quanto à classificação das obrigações assumidas em
cirurgias plásticas estéticas em de resultado e de meios
A ciência jurídica, como anteriormente comentado, há muito se debruça acerca da
classificação das obrigações assumidas em procedimentos cirúrgicos estéticos em obrigações
de resultado e de meios, além dos reflexos daquela quando da aferição da responsabilidade
civil do médico, pelo que se apresenta, agora, as principais contribuições dos juristas acerca
desta temática, necessárias para que posteriormente se faça uma análise crítica destas
concepções.
A classificação das obrigações quanto ao seu conteúdo, conforme magistério de Farias
e Rosenvald (2014, p. 310), Pereira (2013, p. 47) e Tartuce (2014, p. 96), é originada dos
estudos de René Demogue, que dividiu as obrigações naquelas de resultado, em que o
devedor está vinculado a obter determinado resultado, presumindo-se sua culpa em caso de
descumprimento, e naquelas de meio, em que o devedor estaria obrigado não a obter o
resultado, mas a atuar com o máximo de diligência, cuidado e dedicação necessários para que
se alcançasse o resultado, respondendo por descumprimento o devedor tão somente naqueles
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casos em que não atuar da forma aconselhável, ou seja, apenas quando proceder com culpa,
não sendo esta presumida.
Resumindo esta classificação, Yussef Said Cahali (1988, p. 320) assevera que nas
obrigações de meio: “o que exige do devedor é pura e simplesmente o emprego de
determinados meios sem ter em vista o resultado o devedor”, enquanto naquelas de resultado:
“ao contrário, obriga-se a chegar a determinado fim sem o qual não terá cumprido sua
obrigação”.
Classicamente, posicionou-se a doutrina pátria no sentido de que, no geral, seriam
obrigações de meio aquelas tomadas por médicos, com exceção das cirurgias plásticas, em
que haveria obrigações de resultado. Segundo Sílvio Rodrigues (1995, p. 185) a distinção
estaria explicada porque, diferentemente do resto da medicina, nas cirurgias plásticas o
paciente é pessoa sadia e quer reparar situação meramente desagradável, mas não doentia,
pelo que o resultado almejado seria o único admissível, caracterizando-se, portanto, a
obrigação de resultado.
Realizando relevante diferenciação quanto às cirurgias reparadoras e as puramente
estéticas, mais recentemente, estão Tartuce (2014, p. 99), Kfouri Neto (2013, p. 213) e
Gonçalves (2012, p. 217), explicando estes que, no caso de cirurgias estéticas reparadoras de
defeitos congênitos ou adquiridos, não se trataria de obrigação de resultado, mas de meios, em
face do viés essencialmente terapêutico do procedimento, restando como de obrigações de
resultado tão somente as cirurgias meramente embelezadoras.
É este entendimento doutrinário mais recente o majoritário, prevalecendo, no Brasil,
de forma quase inconteste. Nada obstante, sendo o objeto deste estudo as cirurgias estéticas,
em especial, é de se admitir que, no tocante a estas, são ambos os entendimentos
convergentes, considerando estas sempre como obrigações de resultado. Relembra-se, para
melhor situar o leitor, a distinção feita quando da introdução, qual seja, a de que, no presente
trabalho, considera-se a cirurgia plástica gênero do qual são espécies a cirurgia reparadora e a
cirurgia estética, não se confundindo as duas.
Posiciona-se a jurisprudência de forma consonante à mais moderna doutrina, entendo
que a cirurgia plástica reparadora não pode ser considerada obrigação de resultado, em face de
seu caráter terapêutico, diferentemente da cirurgia meramente estética, que, sem este fim,
seria de resultado, conforme esclarecedor julgado do Superior Tribunal de Justiça:
Responsabilidade civil. Médico. Cirurgia estética e reparadora. Na espécie, trata-se
de ação de indenização por danos morais e materiais ajuizada pela recorrida em
desfavor dos recorrentes. É que a recorrida, portadora de hipertrofia mamária
bilateral, foi submetida à cirurgia para redução dos seios – operação realizada no
hospital e pelo médico, ora recorrentes. Ocorre que, após a cirurgia, as mamas
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ficaram com tamanho desigual, com grosseiras e visíveis cicatrizes, além de ter
havido retração do mamilo direito. O acórdão recorrido deixa claro que, no caso, o
objetivo da cirurgia não era apenas livrar a paciente de incômodos físicos ligados à
postura, mas também de resolver problemas de autoestima relacionados à sua
insatisfação com a aparência. Assim, cinge-se a lide a determinar a extensão da
obrigação do médico em cirurgia de natureza mista – estética e reparadora. Este
Superior Tribunal já se manifestou acerca da relação médico-paciente, concluindo
tratar-se de obrigação de meio, e não de resultado, salvo na hipótese de cirurgias
estéticas. No entanto, no caso, trata-se de cirurgia de natureza mista – estética e
reparadora – em que a responsabilidade do médico não pode ser generalizada,
devendo ser analisada de forma fracionada, conforme cada finalidade da
intervenção. Numa cirurgia assim, a responsabilidade do médico será de
resultado em relação à parte estética da intervenção e de meio em relação à sua
parte reparadora. A Turma, com essas e outras considerações, negou provimento
ao recurso (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº
1.097.955/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 27.09.2011, grifo nosso)
São dois os principais argumentos daqueles que defendem esta posição, ora
esmiuçados:
Primeiramente, a doutrina especializada aponta que são as obrigações assumidas por
profissionais de saúde, via de regra, caracterizadas como de meios por conta da incerteza
quanto ao alcance da cura. Nada obstante, não intentando as cirurgias estéticas a cura, isto é,
não tendo fins terapêuticos, não se poderia cogitar de álea nestas obrigações, pelo que seriam
elas obrigações de resultado. Expondo de forma precisa esta posição, está Miguel Kfouri
Neto:
A regra geral dita que o médico não pode obrigar-se, no desempenho de sua
atividade profissional, a obter resultado determinado acerca da cura do doente e
assumir o compromisso de reabilitar sua saúde. Consequentemente, no que se refere
às demais especialidades médicas que tenham por fim a cura direta do paciente
(cardiologia (...)), o médico especialista vincula-se a uma obrigação de meios – e sua
responsabilidade se circunscreve à prestação do ato médico com a devida diligência,
vale dizer, observada a lex artis, no estado de desenvolvimento em que se encontra a
ciência médica, naquele momento. Há uma série de especialidades cuja finalidade
específica não é a cura direta do enfermo – constituem, antes, meios auxiliares
para se alcançar tal objetivo. Os médicos especialistas em análises clínicas,
bioquímica e radiologia, por exemplo, assumem obrigação de resultado, sem
que o exame, em si mesmo, conduza à cura. (KFOURI NETO, 2013, p. 208, grifo
nosso)
Em segundo lugar, diferentemente das demais especialidades médicas, nas cirurgias
plásticas estaria o paciente são, desejando unicamente se embelezar, alterar uma condição
desagradável, porém não doentia. Sendo assim, interessar-lhe-ia tão somente o resultado, não
bastando o empenho do cirurgião, que estaria, portanto, assumindo uma obrigação de
resultados. Presume, portanto, a doutrina, que só poderia se submeter uma pessoa sadia a uma
cirurgia meramente embelezadora se a ela fosse prometido um resultado, e não tão somente a
diligência e cuidado do profissional de saúde. Sílvio Rodrigues esclarece esse
posicionamento:
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Enquanto naquele caso trata-se de pessoa doente que busca uma cura, no caso da
cirurgia plástica o paciente é pessoa sadia que almeja remediar uma situação
desagradável, mas não doentia. Por conseguinte, o que o paciente busca é um fim
em si mesmo, tal como uma nova conformação do nariz, a supressão de rugas, a
remodelação de pernas, seios, queixo, etc. De modo que o paciente espera do
cirurgião, não que ele se empenhe em conseguir um resultado, mas que obtenha o
resultado em si. (RODRIGUES, 1995, p. 249, grifo do autor)
No que se refere aos efeitos disto no campo da responsabilidade civil, não é uníssona a
doutrina ou a jurisprudência. Explica Tartuce (2014, p. 96) que, nas obrigações de resultado
ou de fim, responder-se-ia objetivamente, independentemente de culpa, ou por culpa
presumida, acostando julgados que sustentam ambas as visões.
Nada obstante, ao se analisar a doutrina de Farias e Rosenvald (2014, p. 312) e Kfouri
Neto (2013, p. 215), conclui-se que é entendimento mais coerente aquele que considera que,
sendo as cirurgias estéticas obrigações de resultado, permanece a responsabilidade civil delas
advinda de caráter subjetivo, havendo, contudo presunção de culpa contra o médico, recaindo
sobre ele o ônus de provar que agiu diligentemente, e não sobre a vítima o encargo de provar
o contrário. É este o entendimento majoritário da doutrina pátria atualmente, rejeitando-se
quase por completo a ideia de que obrigações de resultado ensejam responsabilidade objetiva,
visão esta referendada pela jurisprudência mais recente, conforme julgado do Superior
Tribunal de Justiça:
Os procedimentos cirúrgicos de fins meramente estéticos caracterizam verdadeira
obrigação de resultado, pois neles o cirurgião assume verdadeiro compromisso pelo
efeito embelezador prometido. Nas obrigações de resultado, a responsabilidade
do profissional da medicina permanece subjetiva. Cumpre ao médico, contudo,
demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à
sua atuação durante a cirurgia (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Recurso
Especial nº 1.180.815/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.08.2010, grifo nosso)
Há de se rejeitar prontamente, portanto, a ideia de que cirurgias estéticas ensejam
responsabilidade civil objetiva para os profissionais por elas responsáveis, devendo-se, no
caso de considerá-las como obrigações de resultado, seguir pelo mais abalizado entendimento
que entende que, sendo assim, permanece a responsabilidade subjetiva, havendo, contudo,
culpa presumida em desfavor do médico.
Isto posto, resta claro que, mesmo dentre aqueles que compartilham do entendimento
majoritário de que são as cirurgias estéticas exemplos de obrigações de resultado, persistem
discordâncias no que se refere, por exemplo, à extensão da caracterização de obrigação de
resultado às cirurgias reparadoras, e os efeitos quando da responsabilidade civil, sendo mais
coerentes, dentro deste grupo, aqueles que consideram como obrigações de resultado tão
somente as cirurgias estéticas, entendendo como obrigações de meios as cirurgias reparadoras,
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e que igualmente se posicionam no sentido de ser a responsabilidade subjetiva dos médicos,
nesses casos, subjetiva, havendo, todavia, no caso da cirurgia estética, culpa presumida do
médico, por entenderem ser esta uma obrigação de resultado.
Por outro lado, é minoritária a doutrina, no Brasil, que entende ser obrigação de meio
aquela assumida pelo cirurgião plástico estético, sendo os maiores representantes desta linha,
no País, os ministros do STJ Ruy Rosado Aguiar Júnior e Carlos Alberto Menezes Direito
(1995, p. 40) que afirmam serem todas as obrigações assumidas por médicos, no exercício de
suas profissões, obrigações de meio, haja vista serem os procedimentos adotados no exercício
da medicina sempre sujeitos a riscos imprevisíveis.
Interessante notar, contudo, que, dentre os pesquisadores do direito alienígena, há
relevantes expoentes no sentido de que são as obrigações assumidas em intervenções
cirúrgicas estéticas de meio, pelo que se cita o jurista platino Luís O. Andorno, que esclarece
sua mudança de posicionamento, passando mais recentemente a defender que seriam as
obrigações assumidas em intervenções cirúrgicas estéticas caracterizadas como de meio, nos
seguintes termos:
Se bem que tenhamos participado durante algum tempo deste critério de ubicar a
cirurgia plástica no campo das obrigações de resultado, um exame meditado e
profundo da questão levou-nos à conclusão de que resulta mais adequado não fazer
distinções a respeito, ubicando também a cirurgia estética no âmbito das obrigações
de meio, isto é, no campo das obrigações gerais de prudência e diligência.
(ANDORNO, 1993 apud KFOURI NETO, 2013, p. 215)
Sendo assim, conclui o autor que o cirurgião plástico, assim como os demais médicos,
não estaria obrigado a obter um resultado satisfatório para o cliente, devendo tão somente
utilizar o procedimento mais adequado de acordo com as previsões técnicas da ciência médica
para se alcançar o resultado pelo paciente pretendido.
Em semelhante sentido, estão os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais
pacificados na França, citando-se, por exemplo, os juristas franceses Penneau (1977 apud
CARVALHO, 2012, p. 37), que já em 1977 explicava que a doutrina e jurisprudência
francesas, no que pese certa hesitação, tinham firmado posicionamento no sentido de que são
obrigações de meio aquelas assumidas em procedimentos estéticos, e Leleu (2005, p. 102),
que afirma que apesar de serem estas obrigações de meio, haveria, para o médico, nesses
casos, uma “obrigação de meios reforçada”, existindo um reforçado dever do profissional de
informar os pacientes do risco da operação a que se submetiam, além de avaliar, caso a caso,
se as chances de se alcançar o resultado compensariam os riscos corridos na operação.
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Contrapondo-se aos argumentos apresentados pela doutrina majoritária para sustentar
que inexistiria, nas obrigações assumidas por cirurgiões esteticistas, álea que justificasse a
classificação destas como de meios, está Pitelli (2011, p. 96), que critica o entendimento
daqueles que consideram que o risco estaria relacionado tão somente ao resultado final da
obrigação do médico, que seria a cura, inexistindo risco, portanto, no caso de o procedimento
não visar a cura, como no caso das cirurgias estéticas.
Explica ele que a álea está presente também em todos os processos intermediários, tais
como a resposta imunológica do paciente, sua resposta aos fármacos, a performance dos
mecanismos fisiológicos e fisiopatológicos e os mecanismos de cicatrização, pelo que haveria
risco na cirurgia estética, justificando-se a classificação das obrigações assumidas em face
desta como de meios.
No que tange ao argumento daqueles que defendem que são de resultado as obrigações
assumidas nas cirurgias estéticas por presumirem que os pacientes saudáveis só se submetem
a estas por esperar um resultado, e não somente os esforços do médico, contra-argumenta
Pitelli (2011, p. 99) que não seria admissível se supor uma manifestação de vontade de toda
uma classe de profissionais sem verificar, no caso concreto, se ela seria condizente com a
realidade, isto é, não se poderia considerar como de resultado a obrigação do cirurgião
estético por presumir que ele prometera um resultado sem levar em conta a realidade fática.
Ademais, quanto à alegação de que o paciente que busca a cirurgia estética, por estar
saudável, e só ter a perder, diferentemente do paciente enfermo que procura tratamentos
terapêuticos, só desejaria aquele resultado específico nas cirurgias estéticas, o doutrinador em
questão assevera que “todo paciente que procura o médico para tratar-se também quer um
resultado determinado: a cura. Ninguém em sã consciência procura o médico para ficar “meio
bom”. Nem por isso a obrigação dos médicos nesses casos passa a ser de resultado”.
Dando tratamento distinto à temática, e ressaltando que as cirurgias plásticas estéticas
teriam sim caráter terapêutico, em face de sua importância psicológica para o paciente, está
Juarez Moraes Avelar (2000, p. 187), que igualmente sustenta sua posição pela classificação
dessas obrigações em de meios por conta do risco que paira sobre todos os procedimentos
médicos.
Em se falando da responsabilidade civil do profissional de saúde, neste caso não há
divergência, entendendo-se que, uma vez caracterizada a obrigação assumida pelo médico na
cirurgia estética como de meio, é a sua responsabilidade de natureza subjetiva, competindo ao
paciente, em princípio, provar a culpa do profissional de saúde, podendo haver, como nas
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demais relações de consumo, inversão do ônus da prova, nos termos do Art. 6º, VIII, do
Código de Defesa do Consumidor2.
Sendo assim, percebe-se que, no que pese terem a doutrina e jurisprudência pátrias
firmado posicionamento no sentido de serem de resultado as obrigações assumidas em
cirurgias estéticas, há dissenso oriundo tanto dos pesquisadores brasileiros, que debatem a
validade dos argumentos apresentados pela doutrina majoritária, quanto do direito alienígena,
sendo notável o fato de que entre a doutrina e jurisprudência francesa persiste posição
absolutamente diferente da predominante no Brasil, sendo amplamente aceita a caracterização
das obrigações dos cirurgiões esteticistas como de meios, e não de resultado.
3.
Classificação
das
obrigações
assumidas
em
cirurgias
estéticas
e
responsabilidade civil médica: comentários à luz das críticas à classificação da teoria dos
deveres anexos
Verifica-se, na doutrina nacional, grandes imprecisões quando do estudo do direito
obrigacional no que concerne à classificação das obrigações em de resultado e de meios, o
que fica especialmente evidente ao se observar os argumentos utilizados pelos pesquisadores
do direito para justificar a caracterização das obrigações assumidas nas cirurgias estéticas em
de resultado e de meios.
Na tentativa de melhor delinear esta classificação, recorre-se aos críticos dela, que, ao
apontarem suas deficiências, propiciam uma série de reflexões que permitem uma melhor
definição do que seriam as obrigações de resultado e de meios. Feito este recorte, torna-se
possível uma segura classificação das obrigações assumidas em procedimentos cirúrgicos
estéticos como de resultado ou de meio.
Apesar de a classificação das obrigações quanto ao seu conteúdo ser adotada
pacificamente no Brasil e na França, em Portugal, por exemplo, posiciona-se a doutrina
majoritária no sentido de não haver base para a distinção entre as obrigações de resultado e de
meio (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 313).
É que, conforme explicado por Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (2002, p. 131) e
Ana Prata (2005, p. 569), todas as obrigações são obrigações de resultados, haja vista que a
prestação é sempre a satisfação do interesse do Credor, e também são obrigações de meios, eis
2
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: (...)
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no
processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as
regras ordinárias de experiências; (...)
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que, para que sejam alcançados tais resultados, deve sempre o Devedor se utilizar
diligentemente de todos os meios hábeis, só se responsabilizando por este esforço, isto é, não
respondendo pela inexecução sem culpa.
São precisos os apontamentos feitos pela doutrina especializada portuguesa, que deixa
claro que é inconcebível que alguém contrate tão somente os esforços de outrem, sem esperar,
contudo, que seja alcançado o resultado, pelo que todas as obrigações pressuporiam a
utilização de certos meios para o alcance de um resultado desejado.
Todavia, apesar de se acolher os argumentos apresentados pelos juristas, não é, como
sugerem eles, imprestável a classificação das obrigações em de resultado e de meio. Ocorre
que, em verdade, mais do que apontar a inutilidade desta classificação, a doutrina portuguesa
colabora ao demonstrar o verdadeiro teor desta, qual seja: o da probabilidade de, dados os
meios escolhidos, alcançar-se um determinado resultado.
Apesar de todas as obrigações pressuporem um resultado desejado que, para ser
alcançado, depende da escolha de meios idôneos, é inegável o fato de que, a depender destes
meios, pode-se ter uma maior ou menor certeza do alcance deste resultado.
É exatamente disto que se trata a classificação das obrigações entre aquelas de
resultado e aquelas de meios, nomenclatura, portanto, pouco precisa.
As chamadas obrigações de resultado são aquelas em que, por conta dos meios
utilizados, é possível se prever com segurança a consecução do resultado, isto é, são estas
obrigações em que o estado da técnica do meio elegido encontra-se tão desenvolvido que é
possível se afirmar, com grande certeza, que, agindo diligentemente o devedor, alcançar-se-á
o resultado pretendido.
É o caso, por exemplo, da obrigação assumida por um engenheiro que faz o projeto de
uma casa: as técnicas utilizadas para este fim chegaram a tamanho patamar de avanço que é
possível se determinar com quase absoluta certeza o resultado a que se chegará, sendo a
obrigação deste, portanto, de resultado.
Já as obrigações de meios são aquelas em que, por outro lado, não é possível se
garantir que será alcançado o resultado almejado, ainda que aja o devedor da forma mais
diligente possível, haja vista que os meios utilizados não permitem essa previsibilidade, ou
seja, são estas obrigações em que os meios ainda não alcançaram ainda um nível de avanço
científico que possibilite a determinação segura de um resultado.
Cita-se, como exemplo, a obrigação assumida por um advogado que faz o
acompanhamento processual de um cliente: ainda que o advogado se utilize de toda a
diligência esperada, fazendo uso também das mais avançadas teses e conhecimentos, é
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impossível se determinar com grande certeza o resultado da ação, sendo a obrigação assumida
nesse caso, portanto, de meios.
Corroborando esta explicação, está Fábio Konder Comparato (1978, p. 535), que
atribui à aleatoriedade do resultado o fundamento da classificação das obrigações em de
resultado e de meios, isto é, naquelas obrigações em que a álea estivesse presente, estar-se-ia
tratando de obrigações de meios, enquanto naquelas em que houvesse grande previsibilidade
do resultado, tratar-se-ia de uma obrigação de resultado.
Reflexo disto é a opção pretoriana de, verificada a obrigação de resultado, decidir pela
inversão do ônus probatório. Ora, tamanha é a certeza de que se alcance o resultado prometido
nestas obrigações, em face dos meios utilizados, que permitem grande previsibilidade da
atividade, que, verificada a inexecução, presume-se que tenha agido o devedor, ao menos, de
forma culposa – presunção esta que, vale ressaltar, é relativa, haja vista que, conforme
explicação de Gustavo Tepedino (2006, p. 89), mesmo nestas obrigações, é o insucesso uma
possibilidade a ser cogitada.
Isto posto, fica claro que o debate existente quanto à classificação das obrigações
assumidas por cirurgiões esteticistas é, em verdade, debate quanto à previsibilidade de alcance
do resultado conferida pelos meios utilizados na realização desses procedimentos cirúrgicos.
Em outros termos, esta classificação diz respeito à possibilidade ou não de se prever com
grande segurança os resultados da cirurgia plástica estética, dadas as técnicas e procedimentos
cirúrgicos de que hoje dispõem os médicos cirurgiões plásticos esteticistas.
Contudo, o que se percebe é que relevante parcela da doutrina, clássica e moderna,
ainda comete graves confusões nesta questão. Por exemplo, posicionando-se acerca da
classificação das obrigações assumidas nas cirurgias estéticas, Rui Stoco (2011, p. 629), Caio
Mário da Silva Pereira (1995, p. 157), Sílvio Rodrigues (1995, p. 249) e Carlos Roberto
Gonçalves (2003, p. 366), dentre outros3, justificam suas posições pelo que supostamente
seria prometido pelos cirurgiões esteticistas ou pelo que seria esperado pelos pacientes
quando da realização do procedimento cirúrgico, afirmando que nas cirurgias estéticas o
médico prometeria um resultado, e, portanto, seria a obrigação por ele assumida de resultado.
Ora, além da visível falha de argumentação ao se supor a priori o que seria prometido
pelas partes contratantes, sem a devida atenção ao caso concreto, como apontado por Pitelli
3
Por todos: MATIELO, Fábio Zamprogna. Responsabilidade civil do médico. Porto Alegre: Sagra Luzzato,
1998. p. 56. MAGALHÃES, Teresa Ancona Lopez. Dano estético: responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999. p. 91. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Cirurgia plástica e
responsabilidade civil do médico: para uma análise jurídica da culpa do cirurgião plástico. Revista do Instituto
de Pesquisas e Estudos, p. 15-24, 2004. p. 19.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 67-89, jan./jul.., 2015.
(2011, p. 99), falha a doutrina ao trazer para a discussão fator que não interessa na
classificação das obrigações quanto ao seu conteúdo, interessando, por outro lado, à
investigação do cumprimento ou não, por parte do médico, de seus deveres contratuais
anexos, neste artigo também abordados.
Conforme demonstrado, a classificação das obrigações em de resultado e de meios
depende única e exclusivamente da análise objetiva de seu conteúdo, sendo estas de resultado,
quando for previsível a consecução do resultado prometido, dados os meios utilizados, e de
meios, quando, por outro lado, houver indeterminação, também por conta dos meios
utilizados.
Caso contrário, estar-se-ia admitindo a impossibilidade prática de se levar a frente a
classificação das obrigações como de resultado e de meios, haja vista que teriam elas que ser
aferidas sempre no caso concreto, investigando-se o que as partes haviam prometido ou
esperavam daquela relação, ou, pior do que isso, ter-se-ia que admitir uma declaração de
vontade padrão para certas obrigações, a despeito das declarações de vontade
verdadeiramente emitidas.
Fica claro, portanto, que a classificação das obrigações como de resultado ou de meios
independe da declaração de vontade das partes, não se negando, entretanto, a importância
desta última, mais a frente abordada.
Sendo assim, argumento mais convincente, dentre os utilizados por aqueles que
defendem que são obrigações de resultado aquelas assumidas em procedimentos cirúrgicos
estéticos, é aquele que afirma que a álea dos procedimentos médicos se concentra na
possibilidade de cura, inexistindo nos casos em que se almeja fim diverso, isto é, a ciência
médica ainda não teria atingido patamar de desenvolvimento técnico elevado o bastante para
garantir a cura de um enfermo, mas já haveria feito para garantir, por exemplo, o resultado de
uma cirurgia plástica estética (KFOURI NETO, 2013, p. 208).
Há de analisar, portanto, as técnicas da medicina e perquirir se já se encontra a ciência
da medicina plástica avançada o bastante para se prever com segurança os seus resultados, ou
seja, para só então se chegar a uma classificação das obrigações assumidas em cirurgias
estéticas em obrigações de resultado e de meios.
Nesse sentido, é quase uníssono o posicionamento, tanto de juristas quanto de
médicos, no sentido de que as intervenções cirúrgicas para fins estéticos, assim como as
demais, têm riscos que fogem à atuação do profissional de saúde.
Franco, Cardoso e Franco (2006, p. 112) apontam que, nas cirurgias estéticas, o risco
de infecção pós-cirúrgica é o mesmo das demais intervenções cirúrgicas. Campana et al
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(2012, p. 109), por outro lado, destacam a existência de riscos nas cirurgias plásticas estéticas,
diferentemente ponderados por homens e mulheres. Forster (1997 apud STOCO, 2011, p.
629) explica que a cirurgia estética é tão incerta quanto as demais, haja vista ocorrer no
mesmo meio que as outras, qual seja, o ambiente biológico humano, sendo este, por sua
própria dinâmica e instabilidade, imprevisível. Avelar (2000, p. 187) explica que a cirurgia
plástica é uma especialidade que, como as demais áreas da medicina, está exposta a reações
imprevisíveis do organismo humano, podendo inúmeros fatores pré e pós-operatórios
influírem nas reações orgânicas e nos resultados dos pacientes. França (2003, p. 243)
reconhece igualmente que, assim como os demais procedimentos cirúrgicos, encontram-se as
cirurgias estéticas em uma “área de álea”, em que há indefinição quanto à consecução efetiva
do resultado. Oliveira (2008, p. 120) destaca que as reações do paciente a uma cirurgia são
individuais, sendo, portanto, imprecisos os resultados das intervenções cirúrgicas, inclusive
nos casos das cirurgias estéticas.
Em verdade, mesmo entre os defensores que é a obrigação assumida nas cirurgias
estéticas de resultado, como Décio Policastro (2013, p.13) e Sérgio Cavalieri (2003, p. 378) é
inegável o fato de que comporta ela, assim como os demais procedimentos cirúrgicos, risco,
que não permite sua previsibilidade.
É inegável que as cirurgias plásticas estéticas, assim como as demais intervenções
cirúrgicas, são procedimentos sujeitos a riscos imprevisíveis, inclusive pelo próprio fato de
que todo indivíduo que se submete a uma cirurgia tem uma resposta biológica única, que não
pode ser previamente determinada, pelo que é impossível, no estado atual de desenvolvimento
da ciência médica, pretender-se prever o resultado de uma intervenção cirúrgica estética.
Resta claro, portanto, que a mais correta classificação das obrigações assumidas em
cirurgias plásticas estéticas é a de que são elas obrigações de meios, e não de resultado, eis
que está o cirurgião esteticista sujeito, assim como os demais médicos, a fatores
imprevisíveis, que tornam de difícil determinação o resultado de sua atividade, ainda que
praticada esta com a máxima diligência.
O que se percebe, na doutrina majoritária, que entende como de resultado esta
obrigação, é, primeiramente, uma confusão quando da classificação das obrigações em de
resultado e de meios, atribuindo esta classificação a uma presunção das declarações de
vontade emitidas por médicos e pacientes, abordagem equivocada, haja vista que, conforme
explicado, são as obrigações classificadas como de resultado ou de meios independentemente
das declarações de vontade das partes, sendo esta classificação objetiva e relacionada ao grau
de aleatoriedade da obrigação assumida.
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Ademais, percebe-se um preconceito sem motivos dentre aqueles que argumentam
que, não tendo as cirurgias plásticas estéticas fins terapêuticos, seriam os resultados destas
determináveis, assim como os das obrigações de resultado, tendo em vista que é o
entendimento quase uníssono no sentido de que, independentemente dos fins a que se
propõem as cirurgias plásticas estéticas, são seus riscos e imprevisibilidades os mesmos dos
demais procedimentos cirúrgicos, sendo igualmente impossível a determinação do resultado.
Isto posto, há de se concordar com a doutrina minoritária brasileira, além dos juristas
platinos e franceses, que consideram como de meios as obrigações assumidas por médicos,
mesmo quando da realização de cirurgias plásticas estéticas, já que, conforme demonstrado,
está a álea igualmente presente nestas intervenções cirúrgicas, sendo estas, portanto,
imprevisíveis, pelo que é descabida sua classificação como obrigações de resultado, sendo
mais correta a caracterização como obrigações de meios.
Concluindo-se pela classificação das obrigações assumidas nas cirurgias estéticas
como de meios, é natural que se reconheça a inexistência de culpa presumida por parte do
devedor, haja vista que, conforme ensinam Farias e Rosenvald (2014, p. 312), a importância
da classificação das obrigações entre obrigações de meio e obrigações de resultados é
exatamente a distribuição da carga probatória: sendo obrigação de meios, o ônus de provar
recai sob o paciente, que deve provar que a inexecução se deu por conta da atuação culposa
do médico, sendo obrigação de resultado, o ônus de provar é do médico, que deve provar que
não agiu de forma culposa.
Cumpre ressaltar, contudo, que, ainda que não havendo, via de regra, essa inversão
ônus probatório, poderá esta ser determinada pelo Magistrado, nos moldes do Art. 6º, VIII, do
Código de Defesa do Consumidor, caso entenda o Pretor que é o consumidor, neste caso, o
paciente, hipossuficiente ou que são suas alegações verossímeis.
Interessante, contudo, é questionamento advindo de argumento apresentado por boa
parte da doutrina brasileira para sustentar que seriam as obrigações assumidas nas cirurgias
estéticas de resultado, e não de meios, qual seja, o de que, nesses casos, o médico prometeria
alcançar um resultado.
Este argumento, já desenvolvido e combatido no presente trabalho, por não ser
relevante na caracterização das obrigações quanto ao seu conteúdo, haja vista que, conforme
explicado, essa classificação é feita independentemente das declarações de vontade feitas
pelas partes, faz cogitar da seguinte situação: e se o cirurgião esteticista, no que pese a
natureza da obrigação por ele assumida ao exercer sua atividade, afirmar ao seu paciente que
é certa a consecução do resultado por este esperado, dando a entender para ele que a
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obrigação naquele momento firmada seria de resultado? Para responder esta indagação, trazse a teoria dos deveres anexos ou secundários, que foi, no Brasil, primeiramente desenvolvida
por Clóvis do Couto e Silva, em sua obra “A Obrigação como Processo”.
Explica Couto e Silva (2007, p. 93), que os deveres anexos, decorrentes da aplicação
do princípio da boa-fé objetiva à relação obrigacional, abrangem toda a relação jurídica,
podendo ser inclusive observados após o adimplemento da obrigação principal, consistindo
em indicações, atos de proteção, de vigilância, de guarda, de cooperação e de assistência.
Nesse sentido, entende-se ser a cláusula geral de boa-fé objetiva, positivada no Art.
422 do Código Civil4, conforme ensinado por Judith Martins-Costa (1998, p. 15), um
comando jurídico que, dentre outras funções, tem a de integrar os contratos formados pelas
partes, também por meio dos deveres anexos ou secundários.
Imperioso se destacar que, em caso de violação de deveres anexos, há espécie de
inadimplemento obrigacional, havendo responsabilidade objetiva do infrator, isto é,
independe de culpa a responsabilidade daquele que infringe deveres obrigacionais secundários
(TARTUCE, 2014, p. 93).
Neste sentido está o Enunciado nº 24 do Conselho da Justiça Federal e do Superior
Tribunal de Justiça, aprovado na I Jornada de Direito Civil, cujo teor é “Em virtude do
princípio da boa-fé, positivado no Art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres
anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.
Dentre estes deveres, interessa para o caso ora em comento principalmente o chamado
dever de informação ou de esclarecimento. Explica Couto e Silva (2007, p. 94) que este dever
se dirige ao outro participante da relação jurídica, consistindo no dever que uma parte tem de
tornar claras, para a outra parte, caso tenha esta conhecimento imperfeito, errôneo ou mesmo
total desconhecimento, todas as circunstâncias relevantes da obrigação.
Farias e Rosenvald (2014, p. 174) explicam que este dever se dá em função de um
déficit de informações, isto é, uma parte possui informações, enquanto a outra delas necessita.
Por fim, Cláudia Lima Marques (2002, p. 772) sucintamente define que o dever de
informação consiste na comunicação e no compartilhamento, por corolário da boa-fé, das
informações relevantes que uma parte tinha e que a outra ignorava.
No caso dos procedimentos médicos, compete ao profissional de saúde, portanto,
esclarecer ao paciente, por exemplo, os riscos que este corre ao se submeter ao procedimento,
além do fato de que está este sujeita à álea, não sendo garantido o alcance do resultado
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Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.
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pretendido, haja vista que, na relação médico e paciente, apenas aquele, via de regra, tem os
conhecimentos científicos e a formação técnica adequada para informar a outra parte dos
riscos da operação médica (FORTES, 1999, p. 131).
Em se falando das cirurgias estéticas, posiciona-se a doutrina francesa no sentido de
que é o dever de informação do médico ainda maior, não se tratando as obrigações assumidas
em cirurgias plásticas estéticas de obrigações de meios como as demais, mas sim de
obrigações de meios reforçados (obligations de moyens renforcées), em que não haveria
inversão do ônus probatório, como nas obrigações de resultado, mas um incremento do dever
de informação do profissional. (CORTÉS, 2001, apud WIDER, 2002, p. 135).
Explica esta posição da doutrina francesa o ministro do Superior Tribunal de Justiça
Carlos Alberto Menezes Direito, em seu voto vista no REsp 81.101/PR:
A orientação hoje vigente na França, na doutrina e na jurisprudência, se inclina por
admitir que a obrigação a que está submetido o cirurgião plástico não é diferente
daquela dos demais cirurgiões, pois corre os mesmos riscos e depende da mesma
álea. Seria, portanto, como a dos médicos em geral, uma obrigação de meios. A
particularidade reside no recrudescimento dos deveres de informação, que deve ser
exaustiva e de consentimento, claramente manifestado, esclarecido, determinado
(Penneau, La responsabilité..., p. 35). Duas decisões da Corte de Lyon e da Corte de
Cassação de 1981, comentadas por Georges Durry (Revue Trimestrielle de Droit
Civil, p. 153), reafirmam que se trata de uma obrigação de meios, porque em toda
operação existe uma álea ligada à reação do organismo, e acentuam a existência de
um dever particular de informação. Mais recentemente, em 21.02.1991, a Corte de
Versailles, reconhecendo a existência de uma obrigação de meios, condenou o
cirurgião plástico que não comparou convenientemente os riscos e os benefícios de
uma operação considerada prematura, deixando de fornecer a exata informação de
todos os riscos (Recueil Dalloz-Sirey, 1993, p. 29). (BRASIL, Superior Tribunal de
Justiça, Recurso Especial nº 81.101/PR, Rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 13.04.1999)
Discorda-se da nomenclatura “obrigação de meios reforçados”, haja vista que,
conforme explicado, a classificação em questão diz respeito à previsibilidade de alcance do
resultado da obrigação assumida, que não diz respeito aos deveres anexos desta, sendo
matérias distintas, podendo-se falar, por outro lado, que são as obrigações assumidas em
cirurgias estéticas, “obrigações de dever de informação reforçado”, havendo de se concordar
que, nas cirurgias estéticas, sendo evitável o risco que corre o paciente, recai sob o médico
uma responsabilidade muito maior de informar a outra parte sobre os riscos de se submeter a
tal procedimento, ou seja, o dever anexo de informação do cirurgião esteticista é maior que o
das demais especialidades médicas.
Sendo assim, no caso proposto pela doutrina pátria, em que o cirurgião esteticista não
informa ao paciente os riscos da operação a que este se submete, o que há não é obrigação de
resultado, havendo, em verdade, obrigação de meios como todas as demais assumidas em face
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de procedimentos cirúrgicos, observando-se, contudo, quebra do dever anexo de informação
por parte do médico, ficando caracterizado o inadimplemento deste, ainda que sem culpa.
Ou seja, nesse caso, o que acontece é uma quebra do dever obrigacional secundário de
informação, recaindo sobre ele a responsabilidade contratual decorrente do inadimplemento,
responsabilidade esta que, vale ressaltar, é objetiva, independendo da verificação da culpa do
profissional.
Fica claro, portanto, que, sendo as obrigações de meios aquelas assumidas em
cirurgias estéticas, é, em regra, a responsabilidade civil do médico subjetiva, cabendo ao
paciente a prova de que a inexecução da obrigação se deu por conta de culpa do profissional.
Todavia, nestas obrigações é o dever anexo de informação do médico reforçado, devendo
este, ainda mais do que os demais profissionais de saúde, deixar claro para o paciente os
riscos da operação a que este se submete. Caso não cumpra devidamente com seu dever de
informação, considera-se o médico inadimplente ainda que não tenha agido culposamente, ou
seja, é sua responsabilidade de natureza objetiva.
Conclusões
O presente trabalho teve como escopo a análise crítica da classificação das obrigações
assumidas em cirurgias estéticas como de resultado ou de meios, além dos reflexos desta
classificação no campo da responsabilidade civil do médico.
Iniciou-se com uma breve exposição histórica do tratamento concedido à
responsabilidade civil do médico e às cirurgias plásticas estéticas mais especificamente, o que
se mostrou de grande proveito, notando-se grande influência do histórico tratamento
preconceituoso dado aos procedimentos estéticos na abordagem feita por parte da doutrina
hodiernamente.
Posteriormente, foi feito um aparado dos principais argumentos apresentados pelos
defensores da classificação das obrigações assumidas em cirurgias estéticas como de resultado
e como de meios, citando-se referências doutrinárias e jurisprudenciais. Neste momento,
identificou-se que as principais divergências se concentravam, primeiramente, na
possibilidade ou não de se presumir a declaração de vontade, por parte do médico, no sentido
de prometer o resultado da cirurgia estética, e na existência ou não de álea na intervenção
cirúrgica estética, em face de seu caráter embelezador, e não terapêutico.
No momento seguinte, empreendeu-se uma definição do significado da classificação
das obrigações quanto ao seu conteúdo, determinando-se que dizia esta respeito à
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previsibilidade, dados os meios utilizados, da consecução do resultado almejado, não sendo
relevante para esta discussão as declarações de vontade emitidas pelas partes, haja vista que
essa classificação se fazia pelo conteúdo da obrigação, objetivamente considerado.
Ademais, investigou-se se o fato de não ter a cirurgia estética fins terapêuticos
importava na inexistência de riscos na sua realização, constatando-se que, independentemente
de sua finalidade, estava a cirurgia estética sujeita aos mesmos riscos existentes nos demais
procedimentos cirúrgicos, sendo as posições que afirmam ser estas intervenções previsíveis,
diferentemente das demais cirurgias, possíveis reflexos do histórico preconceito que recai
sobre esta especialidade médica, e concluindo-se, portanto, pela classificação das obrigações
assumidas em cirurgias estéticas como obrigações de meio, em face da imprevisibilidade de
seu resultado, sempre sujeito a reações biológicas individuais inesperadas.
Por fim, esclareceu-se ser a responsabilidade civil do médico cirurgião esteticista, no
exercício de sua atividade, a mesma dos demais profissionais médicos, de caráter subjetivo,
incumbindo ao paciente a prova de que agiu o médico de forma culposa, sendo cabível,
todavia, a inversão do ônus probatório pelo Magistrado, segundo os critérios apresentados no
Código de Defesa do Consumidor. Nada obstante, explicou-se que tem o médico, na
realização de cirurgias estéticas, dever anexo de informação reforçado, haja vista o caráter não
terapêutico destas, responsabilizando-se objetivamente, isto é, independentemente de culpa, o
profissional que viola esse dever ao não informar adequadamente o paciente dos riscos da
operação a que se submete.
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O Direito na prateleira: a Justiça como bem de consumo na sociedade
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Law in the shelf: Justice as a consumer good in the neoliberal society
Talles Neves Silva Bhering1
Resumo:
O presente estudo visa compreender a formação da noção contemporânea de Justiça,
inserida em um ambiente normativo atravessado pelas premissas capitalistas e suas matizes
neoliberais. Deste modo, é feita uma análise da superestrutura que condiciona o comportamento
dos sujeitos de direito, atendendo ao novo paradigma normativo que surge após os eventos de 11
de setembro de 2001. Nesse sentido, o artigo propõe um novo conceito sociológico: a Justiça
como bem de consumo.
Palavras-chave: Justiça como bem de consumo. Capitalismo. 11 de Setembro. Sociedade
neoliberal.
Abstract:
The present article seeks to comprehend the birth of the contemporary notion of Justice,
under a normative environment crossed by the capitalist premises and their neoliberal marks. In
this way, the work analyses the superstructure that conditions the behaving of the individuals of
right, obeying a new paradigm of the norm that come after the events of September 11 of 2001.
Therefore, the article proposes a new sociological concept: Justice as a consumer good.
Keywords: Justice as a consumer good. Capitalism. September 11. Neoliberal society.
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Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora/MG
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1. Introdução: A luta pelo reconhecimento na sociedade abissal e o mito neoliberal da
igualdade
Este artigo não se pretende a discutir puramente questões de Direito. Assim como qualquer
área do conhecimento, o mundo jurídico é atravessado pelas diferentes experiências de vida das
pessoas que o constroem diariamente. A transdisciplinariedade é, pois, não apenas um discurso
bonito, mas uma metodologia bastante eficaz para a desconstrução da ideia de que os saberes estão
divididos em categorias estáticas e intransponíveis. E, além disso, possibilita uma escrita mais
livre, sem o fetiche de se fiar ao tecnicismo e o reducionismo de se prender a uma única fonte.
Este artigo discutirá a ideia da Justiça como bem de consumo, isto é, como um conjunto de
valores e morais passíveis de serem adquiridos e comercializados. Dialogando com diferentes
autoras e autores, o conceito apresentado será introduzido e apresentado, visando a desconstruir
algumas estruturas neoliberais que sustentam a mercantilização do Direito. Para iniciar, far-se-á
uma análise das diferentes produções dos discursos de (des)igualdades, desde o episódio do
domingo Sangrento na Rússia, passando pela construção da sociedade neoliberal e o marco dos
atentados de onze de setembro.
Começa-se, pois, com a seguinte pergunta: por que estudar História? Por que analisar os
eventos que aconteceram no passado? As diferentes formas de produção do discurso histórico só
se justificam porque a História e memória são distintas, e a verdade é um ponto virtualmente
inalcançável. Além disso, estudar os feitos da humanidade nos permite observar pontos em
comum, e a partir disso traçar estratégias de poder para evitar que situações de opressão se
repitam. Nesse sentido, História e democracia convergem para uma finalidade em comum: o
respeito à dignidade de todas e todos.
Com efeito, o excerto a seguir procura dialogar as experiências históricas com o objetivo
deste artigo. Estamos na Rússia em 1905, em um dia violento, no decorrer de um processo que
culmina na revolução de 1917. O cenário é desolador:
[Diante dos eventos] do Domingo Sangrento, milhões de mentes primitivas saltaram da Idade
Média para o século XX. Eles vieram com amor e reverência depositar seus problemas aos
pés de seu Querido Pai Czar. As balas e o sangue varreram todos os vestígios de amor e
credulidade. Agora eles se sabiam órfãos e tinham de resolver seus problemas sozinhos.
(WOLFE, 1948, p. 286. Grifo nosso).
A decisão de começar este trabalho relembrando o lamentável episódio do massacre russo de
1905 demonstra a que extremo uma comunidade pode chegar na luta de classes: em momentos de
crise, mesmo o sagrado direito à vida pode ser relativizado. Naquela época, a Rússia vivia uma
época de grande agitação social, repleta de incongruências e desigualdades latentes de um
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moribundo país agrário, mas que se pretendia civilizado. Felizmente, foi este mesmo país que nos
premiou com três gerações de autoras e autores brilhantes na literatura, em um contexto marcado
pela luta pelo reconhecimento em uma sociedade extremamente dividida. Fatiada em camadas
quase intransponíveis, o país ainda convivia com a exploração servil no campo e as tensões
provocadas pelos eslavófilos - representados por Moscou, a tradição e glória russa – as matizes
ocidentalizantes, que reivindicavam sua herança europeia. O cenário do Domingo Sangrento,
como foi conhecido, é São Petersburgo, cidade costeira localizada ao norte do país, na ponta
direita do Golfo da Finlândia.
Como demonstra Marshall Berman (1985), a construção da cidade não se deu
impunimente, sendo cimentada sob a morte de mais de 150 mil servos. O objetivo de Petersburgo
era aproximar a Rússia da estética europeia, na qual seriam erguidos casarões, largos boulevardes
e animados cafés. Nesse sentido, o modelo de criação da cidade é uma manifestação do desejo de
ocidentalizar a pátria russa nas artes e na ciência – mas não dos ventos da democracia liberal.
Neste período, o sistema de governo era uma monarquia, onde a nobreza contrastava com as
misérias de um país agrário e majoritariamente faminto. Devidamente alocado em um palácio
luxuoso em Petersburgo, o czar detinha em suas mãos um poder de vida e morte sobre seus
súditos, isto é: uma situação absolutista em plena alvorada do século XX.
Com efeito, o Estado Nacional russo formou-se em torno do culto e respeito às instituições
nobiliárquicas, especialmente a monarquia czarista que governava o Império desde o início do
século XVIII. No meio das divisões, entretanto, ainda havia espaço para um sentimento fraternal,
por parte da população, com seu governante: as inúmeras pessoas que se juntaram na praça,
visando alguns direitos trabalhistas simples, levantavam carinhosamente suas palavras ao Querido
Pai Czar. Havia não somente uma relação de respeito, mas uma identificação paterna na figura do
Czar, tido como o grande provedor e protetor de toda a sociedade. A resposta do “papai”, todavia,
foi bem além de uma mera briga de família. Simplesmente ordenou que vinte mil homens
atacassem a multidão, com toda a violência, massacrando centenas de pessoas de uma vez só. Não
chegou nem a ouvir o que os manifestantes - pacificamente - teriam a dizer.
O que tal episódio, quase perdido entre as prateleiras dos livros de História, pode trazer de
útil à análise que se pretende fazer? Como inserir o discurso histórico, tão importante para a
autorreflexão social, nas cabeças codificadas do mundo jurídico? Primeiramente, pode-se retirar
desta passagem um ensinamento valioso: quando se trata de um conflito entre subtração/exigência
de direitos, os interesses de classe sempre estão presentes – e não podem ser tão ingenuamente
negligenciados. Em uma comunidade onde as classes dominantes determinam a produção
normativa e o comportamento do Direito, sendo imaginável qual o desfecho mais provável nesta
querela.
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O episódio retrata um período em que certos sujeitos históricos perceberam a cidadania em
si e se imaginaram também sujeitos de direito, em um processo de luta pelo reconhecimento.
Tratava-se de alargar o conceito de cidadania, reconhecendo em si próprios e nos outros a
plenitude do ser, traduzindo o inconformismo com as contradições russas, que se avultavam de
maneira muito mais visível. E, como já dito, este processo nunca ocorre impunemente, sem que as
estruturas de poder sejam minimamente abaladas pelas possibilidades de subversão da ordem.
Celeiro de produção intelectual e literária, Petersburgo se destacou pela formação de grandes
mestres da literatura mundial, apesar de todo o clima repressivo e as tensões da cidade. Brilhantes
escritores como Gogol, Tolstoi e Bieli retratam com precisão a luta pelo reconhecimento, em um
momento histórico que precede a Revolução de 19172. No livro “Memórias do Subsolo”,
Dostoievsky retrata o Homem Subterrâneo, um habitante de Petersburgo que faz de tudo para
obter uma identidade reconhecida, chegando ao ponto de cometer inúmeros abusos contra si
mesmo, apenas com o objetivo de ser percebido.3 E por que esta geração de autores, de mais de
cento e cinquenta anos atrás, continua atual?
Fato é que, enquanto a sociedade de classes existir, haverá tensão, ainda que mínima. As
relações de poder em um sistema capitalista são baseadas na premissa da desigualdade dos povos
e da existência de diferenças (sob o argumento do equilíbrio do sistema). E, onde há tensões desse
tipo, existem também a invisibilidade e a exclusão, motores sociais da luta pelo reconhecimento.
Contudo, Axel Honneth (2003) chama atenção para o fato de que as expectativas normativas
morais condicionam a percepção que os indivíduos possuem sobre si mesmos, e na medida em que
essa percepção é desrespeitada, obtém-se combustível para uma prise de conscience, isto é, uma
tentativa de afirmação de si.
A atualidade dos escritores russos do século XIX é percebida na medida em que, após tantos
anos de experiência humana na Terra, as sociedades ainda carecem de justiça social e enfrentam
problemas e mazelas gerados por elas mesmas. Todavia, é preciso reconhecer as diferenças
históricas daquele período e a contemporaneidade, sob pena de cometer graves anacronismos e
incorrer em erros. O cerne da questão, qual seja, a dominação de seres humanos pelos seus pares,
é assunto permanentemente em voga, o que permite inferir que o tema arrolado é de enorme
relevância.
2
Só é possível entender a Revolução de Lenin compreendendo o momento de invisibilidade social que existia na
sociedade russa e suas implicações para a conjuntura nacional.
3
Neste livro, o Homem Subterrâneo, enquanto caminhava pela Rua Nevsky, percebeu que um homem havia sido
jogado dolosamente do segundo piso de um bar. A mentalidade deste homem genérico é tão subalternizada que ele
insiste em entrar no mesmo bar e procurar confusão com o autor da agressão, simplesmente para ser reconhecido como
alguma coisa – não importando as consequências. Sua frustração é tão grande que ele não consegue ao menos uma
briga, pois sua existência medíocre o impede de ser um indivíduo visível à sociedade.
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É importante notar que não há que se falar em reconhecimento para a classe privilegiada,
uma vez que sua dominação, a priori, já é a sua justificação. Sua afirmação é uma consequência
natural de uma comunidade marcada por forças de dominação e opressão, que incutem no próprio
sistema (e suas manifestações na fabricação dos corpos) o seu modelo de política. Deste modo,
pode-se afirmar que processos históricos de exclusão são provocados por uma uniformização das
elites no modo de conceber as relações sociais. É o que acontece, por exemplo, na sociedade
patriarcal, que condiciona as relações de gênero e sexualidade em um modelo de
heteronormatividade compulsória, ignorando outros modos de vida igualmente válidos – mas que
não gozam da mesma legitimidade (BUTLER, 2003).
Assim, tudo o que foge do padrão é considerado desviante, anormal, característico de um
comportamento que não merece a mesma valoração. O fato é que existem muitas diferenças entre
as pessoas, no que se refere às suas virtudes, características e formas de interpretação dos
fenômenos sociais. A regra do mundo, segundo esse olhar simples, é a diversidade. Entretanto, a
partir do momento em que essas distinções são hierarquizadas e normatizadas, tem-se uma tensão
social. O que se tira de lição é que o padrão em uma sociedade não é uma construção ingênua,
mas reflete de maneira concisa o modo de organização de uma comunidade, bem como os atores
preponderantes neste processo.
Nesta mesma direção, é desejável novamente se debruçar sobre as narrativas históricas para
elucidar melhor as relações sociais. Isso significa que os processos de subjetivação dos indivíduos,
longe de ser independentes e livres, são condicionados pela noção de identidade que outros grupos
sociais lhe atribuem. Estas características, a princípio externas, podem moldar igualmente o
pensamento e a identidade dos sujeitos, em uma troca de experiências do self (ego) com o
ambiente externo, e vice-versa. Ou seja, as pessoas são marcadas pelo seu local de fala,
atravessadas tanto pelas diferentes experiências de vida, como pela sua existência a partir do olhar
do outro. Elementos como a cor da pele, religião, a orientação sexual ou a vulnerabilidade
econômica são características singulares a cada pessoa, que num mundo ideal são destituídas de
atribuições valorativas. Quando há uma hierarquia entre características pessoais, está-se diante de
uma sociedade excludente, que determina sumariamente um padrão de existência – à imagem da
elite e à revelia dos outros grupos sociais.
E como não identificar esse processo de hierarquização na sociedade brasileira, cuja marca
mais saliente é a injustiça social? O autor Boaventura de Sousa Santos, famoso economista
português, tenta explicar o porquê da permanência das desigualdades em uma sociedade que se
proclama igual. Assim, cria o conceito de sociedade abissal, que seria derivada da mentalidade
colonizadora europeia dos últimos 500 anos. A colonização é a prova material da dominação e da
subjugação de um povo a outro, como demonstram os escritos de Las Casas (TODOROV, 1984).
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É a externalização, no mundo naturalístico, de um pensamento que se julga superior ao outro, de
uma nação (ou, na contemporaneidade, de um grupo de multinacionais) que confere a si própria o
direito de pilhagem e a titularidade do poder divino de vida e morte.
Embora a colonização tenha atingido seu eclipse há alguns anos, Boaventura de Sousa
Santos (2007) denuncia que o âmago da exclusão perdura nas linhas abissais, muros abstratos que
segregam e colocam “nos seus devidos lugares” as diferentes comunidades ao redor do globo. Na
prática, as relações humanas denunciam o pensamento abissal, diagnosticado através de práticas
sociais que reafirmam a injustiça social, bem como a formação de estereótipos4 e a criminalização
de certas condutas e origens.
É razoável admitir que essas atividades, assim como toda a comunicação humana, opera
através da utilização de signos linguísticos, com o fim de transmitir uma ideia ou conceito. Como
já dito, se o local de fala é preponderante para a produção do discurso, conclui-se que a linguagem
também é atravessada por essas características, refletindo uma posição ideológica por natureza
(HABERMAS, 1968). A literatura, o cinema, os debates presidenciais e até mesmo a ciência,
enquanto atividades essencialmente humanas, são marcadas pela soma das experiências de cada
indivíduo em uma sociedade.
O Direito, por sua qualidade de ciência social aplicada, não escapa à ação ideológica e à
ingerência anormal de determinadas classes sociais. Poderia até ser inferido que a produção
jurídica seria um reflexo da elite local: basta olhar para o Congresso Nacional de qualquer país, e
veremos o poder econômico distorcendo a real configuração da realidade. Será que é apenas mero
fato, coincidência, que a configuração atual do Congresso (legislatura 2015 - 2018) não lembra
nem de longe a estrutura da sociedade brasileira?5 Parece-me coerente dizer, pois, que junto às
linhas abissais e à luta pelo reconhecimento, está atrelada a noção de sub-representatividade, ou
mesmo de invisibilidade. Quantos LGBTTs ocupam vagas na Câmara? Quantos congressistas são
negros? Onde estão as mulheres no Plenário?
Em uma democracia “imperfeita”, o poder econômico distorce estas relações de
representação, sem a menor dúvida. A conclusão lógica que se chega é inevitável: a produção de
normas (e consequentemente o Direito) está impregnada pela luta de classes, na qual as elites
possuem larga vantagem (e inclusive estão “ganhando”). As leis, deste modo, são o resultado não
apenas de uma discussão procedimental ou de uma discussão racional baseada no ethos de
4
A origem lexical da palavra estereótipo faz clarividente o seu conceito material. Do grego stereós, sólido + typos, tipo,
a palavra faz referência à estereotipia, atividade relacionada à prática do tipógrafo de imprimir (a partir de moldes préfabricados) uma determinada informação.
5
Vide <http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Congresso-eleito-e-o-mais-conservador-desde-o-fim-daditadura-diz-Diap/4/31948> e <http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/blog/eleicao-em-numeros/post/quasemetade-da-nova-camara-dos-deputados-sera-formada-por-milionarios.html>. Acesso em 15 de abril de 2015. Nas
últimas eleições, o número de milionários na Câmara saltou de 194 para 248, quase metade dos 513 deputados. Isso
quer dizer que quase a metade da população brasileira é milionária?
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determinada comunidade. Sendo produtos de linguagem, também estão condicionadas ao
pensamento dominante e abissal, que reproduz as estruturas de manutenção do poder fático.
Seria difícil, pois, sustentar a igualdade pela igualdade, como um valor em si. Deve-se
assinalar que a sociedade abissal foi construída sob a égide da subjugação dos povos e a
normatização de um estilo único de produção de conhecimento, materializado nas relações sociais.
Com efeito, o discurso da igualdade pode ser instrumentalizado para defender justamente o
contrário, ao mascarar – e até mesmo justificar – as desigualdades em um sistema.
Nesse sentido, a ideia de igualdade formal coloca diferentes sujeitos históricos na mesma
posição, como se eles tivessem as mesmas oportunidades de acesso à educação, saúde,
alimentação, etc. Ao longo da vida, ao contrário, este conflito apresenta de forma muito clara: não
somos iguais e nem podemos ser iguais em um modelo capitalista de consumo. A regra é clara:
enquanto houver a sociedade abissal, haverá processos formadores de desigualdade. Entretanto,
esconder esta realidade é uma útil ferramenta de dominação de poder, interessante tanto ao modelo
neoliberal quanto aos movimentos de conservação no Direito, criando um mito bem contado.
Audível para os setores mais reacionários, pode sustentar diferentes discursos que se
pretendem garantidores da igualdade em um Estado Democrático de Direito. Afinal, se somos
todas e todos seres humanos, por que uma diferenciação institucionalizada, como as cotas raciais
no vestibular? Pra que tratar diferente um grupo de pessoas, se perante a lei somos todos iguais?
Qual a necessidade de políticas afirmativas em geral? Ou qual o propósito de uma lei específica
para o feminicídio, ou para a criminalização da lgbtfobia?
Quantas e quantas vezes esse discurso não reverbera em nossa sociedade? Isso demonstra
não só a força de uma falácia rasteira, mas a capilaridade deste pensamento no Brasil. Como bem
disse Foucault, “efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam
identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder.”
(FOUCAULT, 2012, p. 103). O poder fabrica os corpos, condiciona os indivíduos e transforma o
mundo através da linguagem, em um processo que Michel Foucault denomina de microfísica do
poder. Ou seja: a linguagem, longe de ser um elemento exógeno e independente, é peça
fundamental no quebra cabeças que constitui o mundo.
E o mesmo pensador francês explora a fundo essa temática, considerando de forma
brilhante que, se o poder dominante dissesse não a todo tempo, não seria tão atraente, e já haveria
de certo levantes e revoluções contra ele. Ao contrário, o poder molda os comportamentos de uma
forma sutil, quase imperceptível, e só possui tamanha eficiência porque é sedutor. Embora
agressivo e presente em várias instâncias da vida, mostra seus dentes não nos salões e cafés, mas
nas instituições de controle social que permeiam a sociedade.
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Essa noção é importante para compreender o sucesso do mito neoliberal e as
consequências deste modelo para a organização da vida em sociedade, que reproduz as redes de
biopoder - e, logicamente, o pensamento hegemônico. No próximo tópico, explorar-se-á como o
mito da igualdade sustenta um sistema de opressões ainda vigente, e como esta superestrutura
influencia a noção de Justiça para as pessoas. Como o Direito é encarado, para a sociedade
neoliberal? Qual a função que os sistemas jurídicos estão cumprindo nesta nova ordem?
2. A justiça como bem de consumo e os aparatos de produção do consenso
A Justiça não é, nem nunca foi, um consenso geral, ou um valor universalmente aplicável.
Isto é perceptível graças às particularidades de cada comunidade e os trajetos históricos que
determinam certas características e comportamentos sociais. A Constituição da Bolívia, por
exemplo, reconhece fontes tradicionais de Direito, reconhecendo a autonomia dos povos indígenas
e suas formas de decisão local, promovendo diferentes formas de produção do justo. Todavia, essa
é uma exceção na ordem global, caracterizada intensamente pelo modelo neoliberal, que
condiciona os indivíduos a pensarem a Justiça como algo consumível, assim como todas as outras
coisas.
Como citado, este sistema se utiliza do discurso da igualdade para a naturalização das
desigualdades inerentes de uma sociedade abissal. Este movimento, por suposto, não ocorre
impunemente, uma vez que é extremamente vantajoso para o neoliberalismo a permanência do
status quo. Os estudos de Thomas Pikkety, por exemplo, apontam a intensa desigualdade de renda
vivida por Estados Unidos e Reino Unido após a postura neoliberalizante de Ronald Reagan e
Margareth Thatcher. Simbolizada pela ideia de Estado Mínimo, o programa neoliberal prevê
privatização de serviços públicos, a autonomia do setor privado e a não intervenção estatal em
contratos particulares.
É notável, no sistema neoliberal, a produção de consensos, afirmativas logicamente
plausíveis, mas que se pretendem universais e incontestáveis. Nesse contexto, ganham especial
importância os economistas, autoridades técnicas capazes de interpretar os números e estatísticas e
apontar o melhor caminho. Muitas vezes se esquece que a teoria econômica é apenas uma
abstração matemática capaz de interpretar o fenômeno econômico, mas que possui uma premissa
básica de todo modelo metafísico: longe de apresentar a realidade, é um classificação teorética que
se pretende aproximar-se da realidade. Como todo conhecimento humano, o saber econômico é,
mais uma vez, construído a partir de boas histórias, que convencem mais pessoas pelo rigor
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metódico e o teor da argumentação. Trata-se, de fato, de uma construção social, assim como a
biologia, a geografia, a História, etc.6
Veja-se, por exemplo, a questão da terceirização do trabalho, apontada por capitalistas
atuais como a saída para a dinamização das economias, possibilitando que as empresas contratem
mais. O principal argumento é que, com a redução do custo da mão-de-obra, as entidades
econômicas seriam capazes de produzir mais mercadorias e serviços a um custo menor.
Entretanto, pode-se interpretar a terceirização como uma equação simples: se as trabalhadoras e
trabalhadores trabalharão a mesma quantidade de horas, fazendo as mesmas tarefas, por um
salário menor, há a retirada de poder de compra deste indivíduo!
Na verdade, se uma empresa gastava x com a folha de pagamento, e agora gasta x – 1,
acrescentando um intermediário (as instituições de prestação desse serviço), coloca-se um novo
agente explorador na relação de trabalho. O resultado é que a mais-valia7 (isto é, a quantidade da
produção fabricada por cada trabalhadora e trabalhador e apropriada pelos donos dos meios de
produção) aumenta, porque terá de produzir o mesmo por uma remuneração menor. A diferença é
que, se antes estas pessoas trabalhavam para um patrão, agora sustentam dois, em contratos
precarizados, com direitos reduzidos e um salário cada vez mais achatado.
Fato é que, com o aprofundamento dessas medidas, os estudos econômicos sugerem que o
peso do capital especulativo8 – que normalmente se herda das gerações passadas – ganha uma
importância maior no total da renda nacional (PIKKETY, 2014, p. 257). Ao possibilitar a
concentração de renda, a diminuição real do custo de salários e a perda de força de sindicatos e
movimentos sociais, obtém-se um quadro de produção de desigualdade muito severo. Uma vez
que a massa salarial perde espaço na composição da renda nacional, são poucos diretamente
beneficiados (e não são os assalariados). Na medida em que um pequeno grupo - que goza de suas
posses duramente herdadas - domina a maioria do patrimônio em uma sociedade, possibilita-se
condições perfeitas para a concentração ainda maior de renda.
Pode-se interpretar o fenômeno das terceirizações, assim como de todos os outros
movimentos neoliberais, por inúmeras vias. Mas por que o aparato de produção de consenso entra
em cena para defender apenas um lado? Este é o ponto nevrálgico para o entendimento da Justiça
6
Na verdade, esse é um dilema da ciência como um todo, uma vez que, sendo fruto da linguagem, reflete as noções de
poder que atravessam todos os corpos e seu comportamento. Não vamos adentrar nesta frutífera discussão, porque o
foco deste artigo é construir socialmente uma discussão possível, pensando de uma outra forma os sistemas jurídicos, a
verdade e o contexto econômico vigente.
7
A mais-valia é um conceito criado por Karl Marx, em meados do século XIX, como parte de sua teoria econômica que
destrincha as relações de trabalho. O economista dialoga com a mais-valia no primeiro volume de sua obra mais
conhecida, O capital.
8
Neste caso, o capital é entendido de maneira mais específica que a de Marx. Estamos considerando capital apenas os
recursos sob a forma de rendimentos especulativos, nas diferentes formas jurídicas que os caracterizam, como o
investimento em ações, a renda de aluguéis, títulos do Tesouro Direto, entre outros. Não incluímos, nesta definição, as
diferentes manifestações do capital no setor produtivo da economia (como investimento em indústrias ou o volume de
contratos de compra e venda de algum produto).
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na sociedade neoliberal. Neste sistema, os ganhadores já estão definidos, apesar de haver intenso
lobby a favor do mito do self made man, isto é, a pessoa que conseguiu vencer na vida “pelas
próprias pernas”. Como colocar, no mesmo patamar, sujeitos que vem de experiências
completamente diferentes? Como dizer, no contexto brasileiro, que pessoas negras, que tiveram
oportunidades negadas a vida inteira simplesmente pela cor, possuem chances iguais de uma
pessoa branca? A meritocracia mascara os processos históricos de produção das desigualdades que
são inerentes a qualquer sociedade capitalista, que se baseia em castas ou classes de acordo com o
montante de dinheiro.
A intensificação do neoliberalismo cria justamente esse mito da igualdade, o que favorece
sua própria existência e o legitima como a única via possível. Em um cenário de globalização e
mercantilização das relações sociais, obtém-se um sistema que reduz as decisões políticas a meros
cálculos econômicos: a quantidade de desemprego desejável, a equação do consumo x demanda,
entre outros. Tudo é reduzido aos números - e aos especialistas que estão autorizados ou não a
interpretar estas estatísticas, afinal, a ciência também é um campo (BOURDIEU, 2010).
Ao mesmo tempo em que insiste em dizer que tudo é possível com esforço e dedicação,
que a meritocracia é a chave do sucesso, o sistema define as possibilidades desde o nascimento e
já identifica que são os ganhadores – e quem serão os losers. Elenca meia dúzia de exemplos de
ascensão social como modelo a ser atingido, de pessoas que, apesar das dificuldades, venceram na
vida (acumularam algum capital ou status quo). O que ninguém conta (ou pior: já está tão
naturalizado que ninguém mais se constrange) é a quantidade de miseráveis que esta sociedade
exige para sua própria sobrevivência.
A mídia, nesse diapasão, formula um discurso de legitimação destas práticas, ao
normalizar as relações sociais, promover a domesticação das massas e encobrir as tensões de
classe, raça e gênero. No Estado Brasileiro, este quadro é agravado em função da grande
concentração dos veículos informativos nas mãos de poucas famílias9, o que condiciona a
veiculação de notícias aos interesses de grupos sociais bastante afeitos à normatização e
conservação do poder (COIMBRA, 2001).
Ao ligar os televisores, é possível observar o conteúdo de programas (ditos jornalísticos),
que exploram seus argumentos de uma maneira ridiculamente rasteira, pinçando certos casos de
violência para justificar posições extremamente conservadoras. É possível virar os canais,
procurando um contraponto, querendo ouvir outro discurso, mas sem sucesso. Esta realidade
conduz à falsa noção da produção de consensos na sociedade, que só não se realizam em função
9
É interessante perceber que, mesmo com a vedação constitucional, expressa no § 5º do artigo 220 (Os meios de
comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio), o que ocorre na
prática é a concentração explícita de alguns grupos empresariais sobre uma enorme cadeia que envolve a TV, jornais
impressos e digitais, rádios e revistas.
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de determinados grupos sociais (como os defensores dos Direitos Humanos). Para além de
infantilizar o debate, o discurso midiático propõe uma leitura superficial e maniqueísta da
conjuntura política, reduzindo as possibilidades a duas propostas. Ou se está do lado da “gente do
bem”, do homem de família, ou se está do lado dos “vagabundos”, do “pessoal dos direitos
humanos”, da anarquia e da desordem.
Esta postura de fabricação de posições frontalmente opostas mascara a complexidade dos
problemas sociais, reduzindo as questões a “soluções” práticas e instantâneas, que se aplicadas,
resolveriam todos os males. Não se discute, entretanto, as bases estruturais do problema, ou o
porquê de tais fatos serem apenas o resultado de uma série de fatores. Apenas se escolhe um lado
mágico, o da voz sábia dos comentadores do telejornal, que traduziriam a vontade da maioria e a
voz do verdadeiro povo brasileiro.
Não à toa, os grupos midiáticos no Brasil são concentradores e poderosos. Longe de ser
apenas atores discretos e coadjuvantes, são protagonistas na sociedade neoliberal. Seu arsenal
argumentativo é a parte principal de um sistema de (des)informação, o qual chamo de aparato de
produção de consensos. Os veículos midiáticos são o local, por excelência, de divulgação das
vitórias neoliberais, e, também, de denúncia do comportamento dos desviantes, de escracho do
diferente e da produção de cabeças condicionadas ao poder dominante.
O indivíduo é condicionado a pensar a vida em extremos, onde tem que escolher apenas
um dos lados antagônicos de um mesmo assunto. Não é permitido o diálogo com as diferentes
opiniões, sendo encorajado que se escolha um lado e se mantenha firme a ele. Não se atina para o
fato de que o conhecimento pode ser construído apenas como uma circunferência – sem aresta
aparente – que, como tal, não apresenta um vértice, mas é o produto de várias experiências de
vida. Os diferentes atores são como pequenos arcos que, separadamente, não fazem muito sentido,
mas juntos, são concatenados de maneira a produzir algo de tangível. Talvez o mal da Academia
seja considerar a educação como um processo de transmissão do saber, de quem possui mais
autoridade para dizer o que é ou não certo em determinadas circunstâncias.
É certeira, pois, a análise sociológica de Bourdieu (2010), ao imaginar a ciência e o Direito
como campo, locais por excelência da disputa de poder e de egos. Neste pensamento, a sociedade
de consumo cria a mitologia das autoridades, de pessoas iluminadas por um habitus e que estão
mais aptas a interpretar as situações do cotidiano (os “especialistas”). Os perigos que essa visão de
mundo traz residem justamente no poder de limitar as discussões fundamentais à democracia a um
grupo de “sábios”, técnicos capazes de decodificar a vontade da natureza e do Direito10.
10
Essa estrutura de poder lembra claramente a sociedade espartana, que possuía um conselho de velhos (Gerúsia) que
detinham, por autoridade, a possibilidade de decidir questões fundamentais da cidade. Sua decisão era soberana e não
passível de questionamento pelos outros espartanos (FUNARI, 2002).
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Feita a análise pela expertise, pode-se enfim colocar os assuntos à apreciação social.
Acontece que essa apreciação não ocorre de forma democrática, mas é apresentada à população as
soluções possíveis, os remédios disponíveis, como se houvesse de fato uma relação naturalística
entre causa e efeito. Esse raciocínio só é possível, dentro de um sistema secular, graças à ideologia
do consumo, que substitui o totem da mitologia divina para a igualmente mitológica ideia de
emancipação via consumo. Ou seja, seria possível construir sujeitos de direito a partir da
ampliação das possibilidades de relações de compra e venda, nas quais o indivíduo reconhece
outros seres humanos e se vê reconhecido.
Pode-se trabalhar a ideia do consumo em diferentes vetores. A estrutura do capital envolve
conceitos como mais valia, valor de uso e valor de mercado, reificação e fetiche da mercadoria,
como ensina Marx (1996). As relações sociais passam a se definir, nesse sentido, de acordo com
as relações do capital. Com efeito, um novo conceito surge, na esteira destes eventos: a justiça
como bem de consumo. Não a Justiça com J maiúsculo, aquela dos valores morais e do ethos
social. A justiça como um produto, ao alcance da prateleira, esperando apenas um interessado em
esticar o braço e apanhá-la. E, como consumidores comuns, as pessoas atraídas por este produto
não estão atentas às linhas pequenas na embalagem.
Assim como no capitalismo, em que as pessoas comuns compram roupas sem saber que
aquele tecido foi manuseado por mãos escravizadas, também não possuem sapiência da “cadeia de
produção” para que aquela ideia chegasse pronta para ser consumida. Isso não é apenas uma
omissão, mas é uma desonestidade intelectual: não dizer e explicitar o seu local de fala deixa uma
coloração opaca no argumento. Ou seja, esconder a experiência de vida que o sujeito se valeu para
construir seu discurso cria a ilusão de que as ideias são coisas prontas e acabadas, que não
precisam ser questionadas, não são passíveis de desconstrução. Quantas vezes não se lança mão de
argumentos de autoridade para justificar uma situação?
A justiça como bem de consumo é útil para a sociedade capitalista. Quando as ideias são
tão pobremente discutidas no seio da sociedade, não se chega a um real e sincero debate. Esta é a
razão pela qual tantos depoimentos, de pessoas de bem, se consideram apolíticos: não se misturam
com essa gentalha que governa o país. Se eximem da curiosidade, através de um confortável
rótulo, que as afasta tanto da responsabilidade em assumir uma posição política quanto ao desafio
de contestar a ordem e o establishment. E, desta forma, podem continuar suas vidas felizes de
consumo, livres para comprar o último smartphone disponível pela grande empresa da maçã.
Em uma sociedade que não se vira para suas idiossincrasias, que não destrincha as estruturas
de poder que permitem a conservação das desigualdades, é muito fácil o desenvolvimento de
oligarquias e monopólios. O sistema jurídico, ao que parece (apesar da discordância de
respeitáveis juristas) não está deslocado da realidade social, não é algo exógeno e restrito a
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BHERING, T. N. S. O Direito na prateleira
interpretação dos doutores da lei. É, antes de tudo, fruto dessa sociedade abissal, e carrega em si as
contradições da luta de classes e das opressões que permeiam o discurso do homem-brancoheterossexual-cristão, que se pretende universal11. O problema é que essa fala elimina qualquer
possibilidade de construção do diferente, encerrando todos os indivíduos em um padrão préestabelecido.
Neste terreno, a justiça como bem de consumo é ideal para o livre progresso do capitalismo,
que aparece no bojo de um processo de empobrecimento da argumentação e de manutenção dos
discursos dominantes. Afinal, a experiência do conhecimento muda as realidades, possibilita a
abertura de cérebros para o questionamento e a dúvida. Em meio a este mar de certezas
capitalistas, em que os números e as estatísticas determinam o navegar do barco, pensar diferente
pode significar o perigo de retirar o leme e de ficar à deriva. No próximo tópico, discutir-se-á
como a reação aos eventos de 11 de Setembro de 2001 foi importante para o aprofundamento da
justiça consumível, em um contexto de escolha entre segurança e liberdade.
3. Os eventos de 11 de setembro, o fetiche da segurança e o paradigma da justiça
consumível
É difícil definir, com palavras, a profundidade dos acontecimentos de 11 de Setembro de
2001, na cidade de Nova York. A imagem das Torres Gêmeas caindo não era apenas a destruição
física do local e a perda de milhares de vidas, ou a quantidade absurda de fumaça que tomou a ilha
de Manhattan. Essa construção pictórica envolve muito mais simbolismos: era como se a América,
em seu coração financeiro, sangrasse, se mostrando - pela primeira vez em séculos – vulnerável,
suscetível a ataques como em qualquer outro lugar do globo.
A forma como aconteceram os atentados, a partir do sequestro de aviões, com pessoas
comuns a bordo, foi um aspecto extremamente relevante para as reações que se seguiram àquela
fatídica manhã. Assim como houve o rapto de uma aeronave, qual seria a garantiria que esse
evento não se repetisse? Ao mesmo tempo, o fato da organização Al-Qaeda ter reivindicado para
si a autoria das atrocidades aumentou ainda mais o movimento de xenofobia no mundo ocidental,
com clara inclinação islamofóbica.
Deste modo, o inimigo poderia estar em quaisquer lugares: nas praças, nos edifícios, no
metrô, ou seja, onde houvesse grande aglomeração de seres humanos. O inimigo, pela primeira
vez, tinha se tornado um ente abstrato e onipresente, ao mesmo tempo real e amorfo, mas cada vez
mais poderoso e capaz de destruições inimagináveis. O medo de um ataque era verdadeiro -
11
Poderíamos falar, até mesmo, em uma espécie de Matrix, onde as pessoas são condicionadas desde o nascimento a ter
uma postura heteronormativa e a produzir os discursos de forma a reproduzir as estruturas de dominação.
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bastava olhar para os lados e perceber uma pessoa potencialmente periculosa, um movimento em
falso, um cruzamento de olhares.
O discurso do medo foi intensamente explorado, não só nos pronunciamentos oficiais, como
na mídia em geral – ou seja, do aparato de produção de consensos. Todas e todos deveriam temer
por suas vidas, assim como pela integridade da nação, já que os terroristas poderiam estar em
todos os lugares12, prontos para atacar. E, como a linguagem fabrica e condiciona os corpos, as
palavras de ameaça logo se tornam constituintes do próprio indivíduo, acanhado com as
possibilidades de sofrer um atentado difuso, escondido em lugares sórdidos, mas sempre à
espreita. O medo, mais do que nunca, ronda a nossa sociedade, trazendo um espectro sombrio e
desastroso.
Diferentemente de épocas passadas, em que os inimigos estavam claros e encerrados em um
perímetro territorial, facilmente identificáveis, na contemporaneidade o terror é espalhado,
camuflado. Não se tem mais a noção de guerra como um conjunto de soldados que se encontram
periodicamente para a batalha (de onde sai um vencedor), mas o terror está primeiramente
relacionado aos civis, pessoas comuns como quaisquer outras, mas que possuem inclinações
subversivas.
Esta sensação de insegurança parece replicar a construção histórica de Estado de Natureza,
definido por Thomas Hobbes em sua principal obra, O Leviatã (HOBBES, 1976). Segundo o autor
inglês, na situação primordial de natureza, havia a ideia de luta de todos contra todos, ficando
célebre sua frase: o homem é o lobo do próprio homem. Deste medo generalizado, advém a noção
de Estado, que surge como um pacto necessário para conter os arbítrios dos próprios seres
humanos contra eles mesmos.
Baseado na troca da liberdade pela segurança, o contrato social hobbesiano confere ao
Estado poderes suficientes para manter a ordem das coisas e o livre desenvolvimento das
sociedades. Os ataques de 11 de setembro podem ser encarados, na perspectiva ocidental de
mundo, como uma reedição do estado de natureza, de medo difuso, simbolizado pela ameaça
abstrata de ataques terroristas. Assim, deve-se encarar os atentados como um novo capítulo na
História, que traz um novo paradigma normativo-institucional para os Estados-nação. No bojo
desses eventos, o Congresso americano aprovou, em 2001, o Patriot Act, uma legislação que
relativiza os direitos fundamentais sob o princípio maior da segurança.
Nesse sentido, tem-se a produção de uma falsa dicotomia entre segurança e liberdade,
gerando a necessidade de um novo contrato social, que negocia ainda mais a troca dos direitos
12
Dizem que Hollywood, em seus filmes de ficção científica, antecipa realidades próximas de acontecer, prevendo
novas tecnologias e suas implicações de poder no mundo fático. Como não se lembrar, diante desses eventos, de filmes
como Blade Runner, o Caçador de Androides (Ridley Scott), ou de distopias como Admirável Mundo Novo, de Aldous
Huxley?
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BHERING, T. N. S. O Direito na prateleira
pela obrigação estatal de promover a segurança. Seria desonestidade afirmar que todos os
habitantes abarcados por aquele Estado concordaram com a modificação legal e o afrouxamento
das liberdades individuais. Como todo contrato social, a aprovação popular é condicionada a um
aparente consenso existente na comunidade, que, no caso de 11 de setembro, se tratava de reprimir
as possibilidades de terrorismo. E, novamente, o aparato de consenso é útil aos setores dominantes
da sociedade.
Com efeito, este sistema ideológico produz uma visão distorcida da realidade, apresentando
uma solução de Justiça mágica e ao alcance de todos, como um produto em uma prateleira. Como
já salientado, entretanto, soluções paliativas e pontuais não são capazes de resolver questões
profundas e complexas, que demandam um verdadeiro comprometimento em chegar às raízes do
problema. A ideologia neoliberal combate o que é superficial e aparente, uma vez que o
questionamento de suas próprias fundações significaria a sua ruptura.
Ademais, é no contexto de crise ontológica que as pessoas costumam se refugiar nos
nacionalismos, isto é, em comunidades humanas baseadas no sentimento de pertencimento a uma
identidade territorial e cultural. E, como toda construção social, o discurso oficial de Estado
explora toda essa complexidade sensível, através de hinos, das Forças Armadas, das seleções
nacionais de esportes, etc. Nesse sentido, a ideia de justiça como bem de consumo ganha especial
notabilidade.
O paradoxo entre segurança e liberdade é intensamente explorado nos meios de
comunicação, espalhando o sentimento do medo e estimulando a visão maniqueísta dos fatos. Ou
se está conosco, ou se está com eles. Além de promover a desumanização de certos seres
humanos, e a estigmatização de comunidades humanas inteiras, o discurso do consenso condiciona
os indivíduos a pensar de forma binária, através da formulação rasteira de premissas e visões de
mundo altamente contestáveis. E, como locus específico da divulgação do poder dominante, é
apresentado de maneira sedutora, de forma absolutamente simpática.
Não somente os veículos midiáticos são responsáveis pela conservação das estruturas
dominantes. Joseph Nye (2002) ensina que as potências lançam mão de duas formas de poder: o
soft power e o hard power. O primeiro é representado pela divulgação do estilo de vida
hegemônico através de novelas, filmes, livros e músicas, em uma dominação sutil – mas decisiva
para a manutenção da ordem. O segundo é o poder em seu sentido mais escancarado, como o
complexo industrial-bélico, as sanções econômicas, os bloqueios comerciais.
Nesse sentido, Chomsky (1992) afirma que a linguagem é determinante para a produção de
indivíduos que formulam pensamentos binários, o que favorece diretamente as potências
ocidentais, com destaque aos Estados Unidos. A cultura do discurso hegemônico elimina as
diversidades, e aniquila os diferentes modos de saber e de conhecer, empobrecendo e reduzindo as
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possibilidades de conhecimento. A globalização, nesse sentido, pode ser definida como um
processo hostil às posturas tradicionais e locais. Ao vender uma ideia de aldeia global, esconde
sua pretensão de uniformização dos agentes e sua conformação com o projeto de poder dominante.
E, por mais que o sistema capitalista seja ontologicamente ligado à crises periódicas,
inevitáveis em um modelo que apregoa a voracidade e o crescimento constante, algumas
premissas básicas permanecem. Isso se fortalece após os atentados terroristas, uma vez que, mais
do que nunca, as pessoas precisam escolher rapidamente um lado, e comprar a ideia de justiça
como uma fórmula que soluciona todos os problemas de uma só vez. A judicialização da política é
um exemplo claro destes acontecimentos.
Ingeborg Maus (2010) formula a noção do Judiciário como superego da sociedade, isto é,
uma válvula de escape em uma sociedade que deposita muito mais confiança na Justiça do que nos
outros poderes. Como o consumo se pretende ser o locus de identidade e existência humanas, temse uma sombria perspectiva de homens e mulheres fechados à política, com uma aversão completa
a tudo que cheire a deliberação estatal. Esta ideia está intrinsecamente ligada ao modo de vida
neoliberal, que transfere para o mercado todas as decisões substanciais da sociedade, como se
mercado fosse um ser quase divino, que responderia automaticamente (e da maneira mais
satisfatória possível) os anseios e necessidades dos seres humanos.
Novamente, as pessoas se viram para o Judiciário assim como apresentam uma relação de
compra e venda. Esperam que a mercadoria produza uma significação especial em suas vidas,
atendendo às suas justas reclamações... Ingenuidade ou não, o fato é que o sistema de Justiça não
está somente abarrotado de processos e reivindicações, mas está repleto de gentes que não
admitem perder, que são convencidos por suas próprias razões. Nesse sentido, é poderosa a noção
de justiça como mais um bem de consumo, não mais como a concatenação dos valores morais e do
ethos social, mas um lugar para se ter razão.
4. Possíveis conclusões
É interessante perceber a estrutura dos trabalhos acadêmicos: início, meio e fim. No começo,
as autoras e autores não estão tão preocupados em apresentar suas ideias, mas sim de divagar e
introduzir o assunto. O meio é caracterizado por uma intensa vontade de dizer, de concatenar as
ideias, de produzir o conhecimento. E a conclusão é a parte mais ingrata: o que fazer, no mundo
real, com as teorias formuladas? Deve-se fazer mais perguntas, ou ter a ousadia de responder à
algumas questões?
Este artigo não pretende responder todos os questionamentos. Todavia, os trabalhos
acadêmicos só fazem sentido se formarem parte de um processo de abertura de mais portas. Como
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BHERING, T. N. S. O Direito na prateleira
diria Foucault (2012), não é possível dizer tudo ao mesmo tempo: por mais que algumas palavras
e conceitos carreguem uma grande plurissignificação13, é uma tarefa inútil tentar condensar as
verdades científicas em poucas palavras – até porque as verdades científicas são - antes de
qualquer coisa - construções sociais da linguagem, histórias bem contadas e que fazem sentido
para a linguagem.
Entretanto, arrisca-se à árdua tentativa de síntese e à proposição de comportamentos a serem
pensados a partir de tudo que foi levantado. O conceito de justiça como bem de consumo só faz
sentido se combinado com as estruturas de poder que possibilitam sua existência, que não se
restringem somente ao modelo neoliberal, mas é atravessado por uma concepção de mundo
hegemônica.
A produção de consensos, por outro lado, é facilitadora de um discurso de poder dominante.
Pode-se concluir, nesse sentido, que desmantelar o aparato de produção de consensos é uma tarefa
não somente transgressora, mas de suma importância para a oxigenação da democracia e para a
visibilidade dos discursos. Mais do que nunca, é preciso estar atento às soluções mágicas, às
poções e compostos milagrosos, e às pessoas que vendem estas ideias.
É necessário, pois, estar atento e vigilante, para detectar nos diferentes discursos as esferas
de biopoder que perpassam, na constituição humana, um projeto de poder. Como construir um
foco de resistência a um sistema de dominação tão eficiente e complexo? Trata-se,
primordialmente, de não mais enxergar o capitalismo como a única forma possível de organização
social, mas sim como uma alternativa que, ao contrário do que se prega, produz as desigualdades –
e depende delas. O modelo neoliberal é como os corpos biológicos, que a todo o momento está
fadado ao colapso, a não ser que algo seja feito. A história do consumo mostra as diferentes
convulsões que este sistema passa, ao invés de trazer a sonhada estabilidade e a segurança
jurídica.
Ora, se o capitalismo neoliberal não cumpre suas promessas ao povo, por que ele continua
vigente? A resposta é mais simples do que parece: o capital serve aos interesses hegemônicos, aos
donos do mundo, e não às operárias e operários que sustentam toda esta bonança. Nesse cenário, é
de suma importância a produção e valorização da História não hegemônica, isto é, estimular as
narrativas históricas que tragam a memória das comunidades excluídas, como a das mulheres, da
população LGBTT, das negras e negros, dentre outras.
13
Não poderia deixar de fazer menção ao filme Koyaanisqatsi, de Francis Ford Coppola, que, apesar de não mencionar
um só diálogo, constrói sua narrativa a partir de uma série de imagens filmadas ao redor do globo, como o movimento
acelerado das nuvens, diferentes formas de transporte humano, entre outras. Koyaanisqatsi é uma palavra proveniente
da língua Hopi (falada em uma comunidade indígena no atual estado do Arizona) e significa “vida fora de equilíbrio”,
um conceito altamente complexo. Segundo o diretor, o filme é construído apenas com imagens e uma trilha sonora
porque a linguagem humana já não seria capaz de descrever toda a complexidade da vida.
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Para as estudiosas e estudiosos do mundo jurídico, uma atitude transgressora em relação à
ordem é justamente enxergar o Direito de uma maneira mais ampla, mais generosa. Analisar
juridicamente um conflito significa, antes de tudo, perceber os locais de fala dos diferentes atores,
trazendo uma reflexão de conjuntura, e não apenas o que os Códigos determinam. Pensar os
sistemas judiciais pela via contra-hegemônica é, pois, afirmar uma postura transgressora, que não
pensa as relações sociais como formas de replicação das estruturas do capital. É rechaçar a justiça
como mais um bem de consumo, em uma sociedade permeada por todos os lados pelas forças
econômicas.
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FRANCO, G. E J.; SANTOS, L. A. B. As Religiões Afro-Brasileiras
As Religiões Afro-Brasileiras e o Direito Penal: Por uma Nova
Interpretação
Afro-Brazilian Religions and Criminal Law: For a New Interpretation
Gustavo Ernandes Jardim Franco1
Leonardo Antonacci Barone Santos2
Resumo:
A história brasileira sempre mostrou o direito penal se voltando contra as religiões de matriz
afro-brasileira, tipificando-as como condutas antissociais desde o Código Penal de 1850. O atual
código não proíbe, embora ao artigo 208 tenha sido dada uma interpretação que exclui essas
religiões minoritárias do seu alcance de proteção. Nesse sentido, busca se desconstruir as razões
jurídicas dessa interpretação excludente.Em um primeiro momento, analisa a doutrina do tipo penal
e mostra as impropriedades dessa interpretação, a partir da noção do bem jurídico tutelado. Em
seguida, pugna pela interpretação constitucionalmente adequada do artigo. Ao fim, delineia os
contornos jurídicos do discurso de ódio que envolve as religiões afro-brasileiras e as religiões
evangélicas.
Palavras-Chave: Religiões afro-brasileiras. Liberdade de crença. Crimes contra o
sentimento religioso. Discurso de ódio.
Abstract:
Brazilian history has always shown criminal law turning against afro-brazilian religions,
typifying them as antisocial behavior since the Penal Code of 1850. The current code does not
prohibit them, although its article 208 has always been interpreted in a way that excludes so-called
minority religions from its protection. Deconstruction of the legal reasons for this restrictive
interpretation is seeked. First, it analyzes the doctrine of the penal type and shows the inadequacies
of this interpretation, from the notion of legal interest. Then advocates the constitutionally
appropriate interpretation of the article. Finally, outlines the legal contours of hate speech involving
Afro-Brazilian religions and protestant religions.
Keywords: Afro-brazilian religion. Freedom of belief. Crimes against the religious sense.
Hate speech.
1
2
Graduando em Direito pela UFMG
Graduando em Direito pela UFMG. Bolsista de Iniciação Científica/CNPQ. Monitor de Teoria da Constituição.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 111-128, jan./jul.., 2015.
I. Introdução
O sentimento religioso está bastante presente na cultura e vida do brasileiro. Ainda que
tenhamos logrado a laicidade, é inegável que as religiões, principalmente as cristãs, exercem efeitos
sobre a realidade política e jurídica do Brasil – e, feliz ou infelizmente, é no mínimo improvável
que fosse diferente.
Não apenas em nossa história mas na de todo ocidente, existiram momentos em que os
conceitos de Estado e Fé se encontravam atrelados. Um atentado contra a religião é sancionado
pelas mãos do Estado, bem como a religião garante alguma legitimação e justificação para o Poder
Político. Para PRIORE, a religião era aspecto de primeira relevância na cultura colonial, e nosso
país nasceu sobre à sombra da cruz:
Não apenas da que foi plantada na praia do litoral baiano, para atestar o domínio português,
ou da que lhe deu nome – Terra de Santa Cruz -, mas da que unia Igreja e Império, religião
e poder. Essa era uma época em que parecia impensável viver fora do seio de uma religião.
A religião era uma forma de identidade, de inserção num grupo social – numa irmandade
ou confraria, por exemplo – ou no mundo. (PRIORE, 2010, p. 28),
Pode temporal e Poder religioso se fundiram de maneira simbiótica no Padroado, pelo qual o
Estado brasileiro tinha sua religião oficial inscrita na Constituição.
Com o tempo, quebramos esse paradigma, inclusive para permitir a contemplação de cultos
que diferem daquele majoritário, todos dignos de proteção jurídica. A Constituição de 1891 afirmou
a liberdade religiosa e pôs fim ao padroado. Contudo, os brados republicanos não chegaram nas
periferias brasileiras, de forma que, no tocante a matéria religiosa, se mantiveram aqueles
preconceitos que influenciaram – e ainda influenciam – o Direito em desfavor de religiões
minoritárias.
Ainda hoje, práticas como as da Umbanda ou do Candomblé sofrem preconceito frequente
não só pela população em geral, que nutre concepções errôneas sobre sua organização, mas pelos
próprios membros do sistema que deveria protegê-las: o Estado. Em maio de 2014, o juiz Eugenio
Rosa de Araujo, titular da 17ª Vara Federal, ao apreciar pedido do Ministério Público Federal de
retirar do Youtube vários vídeos com ofensas à Umbanda e ao Candomblé, incluindo de pastores
evangélicos que disseminavam ódio contra elas, não só negou o pedido como declarou que as
crenças afro-brasileiras “não contém os traços necessários de uma religião” (BRISOLLA, 2014,
p.1).
Contudo, essa situação não é sustentável dentro de um Estado Democrático de Direito e urge
por mudanças. O presente estudo foca no artigo 208 do Código Penal, pugnando por uma
interpretação constitucionalmente adequada que inclua religiões minoritárias, de forma que uma
Alethes | 112
FRANCO, G. E J.; SANTOS, L. A. B. As Religiões Afro-Brasileiras
religião e seus adeptos devem estar sob proteção do poder estatal, independentemente de sua origem
ou de suas particularidades.
Quais são os traços realmente necessários de uma religião senão a existência do sentimento
religioso? Religiões majoritárias, como a Católica e Evangélica, apesar de divergências,
reconhecem certa “legitimidade” umas nas outras e até mesmo em outras que, apesar de não tão
amplamente difundidas, tem número expressivo de praticantes (e representação midiática), como o
Judaísmo. Nesse sentido, seus membros buscam a tutela penal através do artigo 208, tipo de suma
importância para que não sejam vilipendiados, incomodados ou difamados.
Simultaneamente, entretanto, o Candomblé, a Umbanda e outras crenças minoritárias, afrobrasileiras ou não, mesmo que também tenham grande numero de praticantes e estejam enraizadas
na cultura brasileira, não são reconhecidas enquanto religião “oficial” e tornam-se vitimas não
apenas das condutas que o art. 208 supostamente evitaria, mas de ataques como o do juiz federal
citado.
Sob o império da Constituição Cidadã, surgem palpáveis esperanças. O artigo 208, se
utilizado de acordo com uma interpretação correta, será direcionado ao fim da ignorância, do
preconceito e do ódio, e cumprirá seu objetivo mais importante: dar voz ao direito a diferença e
proteger e zelar por todo brasileiro, independente de origem.
II. Análise doutrinária do artigo 208
Objetivando uma compreensão crítica do tipo penal questionado, deve-se primeiro perpassar
por alguns assuntos básicos e iniciais para que depois se avance sobre o conteúdo deste estudo.
Segue o artigo para melhor leitura:
Art 208.Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;
impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato
ou objeto de culto religioso:
Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa
Parág. Único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo
da correspondente à violência. (BRASIL, 1940)
É objetivo do artigo 208 do Código Penal proteger o extremamente abstrato sentimento
religioso, ameaçado pelas ações previstas na norma. É protegida ainda a liberdade de culto e de
crença (PRADO, 2010), tal como prevê o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal: “VI – é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL,
1988).
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 111-128, jan./jul.., 2015.
O Código de 1940, a sua época, apresentou inovações quanto ao bem jurídico.
Diferentemente do Código anterior, o legislador optou por destacar os crimes contra os cultos
religiosos dos crimes contra a liberdade individual. Dessa forma, a atenção maior não é tanto mais
para a liberdade de crença, embora ainda seja relevante, mas para a própria religião e o senso
religioso. Como diz a Exposição de Motivos n. 68, o Código mudou “pois o que passa a ser,
precipuamente, o objeto da proteção penal é a religião como um bem em si mesma” (BRASIL,
1940).
Sendo esses os bens jurídicos tutelados, objetos de interesse em questão, deve-se entender
que não é relevante a religião atingida. O que o artigo 208 do Código pretende é tutelar o
sentimento religioso tomado como interesse ético, nos termos do anunciado no próximo item. Nessa
sintonia, o abrigo não pode ser exclusivo para aquelas maiores religiões monoteístas, cristianismo,
islamismo e judaísmo. O Direito não protege Jesus Cristo, a bíblia, a missa, o padre e a hóstia. Na
verdade, ele deve tutelar todas as concepções religiosas, na medida em que a lesão a qualquer
religião afeta esse interesse ético da sociedade em conservar e abrigar o senso religioso.
Mais a frente, diga-se que poderá ser sujeito ativo do delito qualquer pessoa, sem quaisquer
impedimentos ou pré-requisitos. Não é necessário que alguém, para ser apto a praticar a conduta
tipificada, tenha qualquer característica específica. É delito, pois, comum e inclusive indivíduos
pertencentes à religião ultrajada podem praticá-lo ou, como lembra Bitencourt (2014), pastores e
sacerdotes qualquer crença podem figurar como autores do delito.
É importante também delinear o sujeito passivo do delito, cuja figura se estende desde
pessoa física até a coletividade. Tendo em vista que o tipo em comento não se presta para tutelar
uma ou outra característica religiosa, mas todo o sentimento religioso, torna-se difícil precisar
quem sofrerá o crime e em quais circunstâncias. Nesse sentido:
Alguns o determinam crime vago, em razão da indeterminação do sujeito passivo, pois
protegeria interesses coletivos (sentimento religioso e liberdade de culto), sendo o sujeito
passivo imediato desse crime a coletividade e, mediatamente, a pessoa que sofrer a ação
diretamente. (BITTENCOURT, 2014, p. 459)
É impossível identificar algo que incorpore e represente a completude do sentimento
religioso. Ainda assim, o artigo visa a proteger os cultos, cerimônias, edificações, imagens e as
pessoas que professam a fé. Não se faz necessário, pois, que haja um sujeito passivo estável e
perfeitamente identificável, porque a religiosidade e a fé, por serem tão abstratas, não permitem
essa precisão.
Em análise mais minuciosa, note-se ainda, que o próprio tipo penal diferencia, em alguma
medida, o sujeito passivo em cada hipótese. Em “escarnecer alguém publicamente”, passivo é o
indivíduo zombado; Em “impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso”, se fere a
Alethes | 114
FRANCO, G. E J.; SANTOS, L. A. B. As Religiões Afro-Brasileiras
coletividade, igualmente na hipótese de “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto
religioso” (BITENCOURT, 2014).
Temos então que o tipo penal descrito é de amplo alcance. Não são feitas diferenciações
entre religiões e o delito se aplicaria a quaisquer práticas, atos, cerimônias ou demonstrações de
sentimento religioso. Objetivamente, a lei tem aptidão para proteger práticas religiosas de qualquer
tipo, ainda que a interpretação esbarre em preconceitos ou desentendimentos, como é o caso das
religiões afro-brasileiras em comento.
Cada uma das três modalidades previstas no artigo contam com suas particularidades. A
primeira conduta prevista no dispositivo, escárnio por motivo de religião ou função, diz respeito à
troça, zombaria, invariavelmente pública e amplamente divulgada, a pessoa por motivo de crença
ou religião. A ofensa deve se erigir contra a pessoa específica, e não contra o grupo religioso
(BITTENCOURT, 2014, p.461). Não é necessário que a pessoa esteja presente, mas o termo em
público, como diz Luiz Regis PRADO (2010), é elemento essencial do tipo. O sentido de função
no artigo, diferentemente do significado do direito administrativo, indica para a atividade exercida
por padres, pastores (e pais-de-santo) e sacerdotes em geral.
Quanto aos núcleos do tipo impedir e perturbar, diz Hungria, “não basta, para que se
configure,um simples desvio da atenção ou recolhimento dos fiéis: é necessária uma alteração
material, sensível, do curso regular do ato do culto [...] A lei não especifica os meios. Exige
somente a idoneidade” (HUNGRIA apud PRADO, 2010, p. 571). Dizem respeito, pois, à quaisquer
condutas que impossibilitem, atrapalhem, tumultuem ou dirijam-se contra realização de culto ou da
livre prática religiosa, desde que estas não atentem contra a lei por si só.
Por fim, a terceira conduta descrita diz respeito ao vilipêndio público de ato ou objeto de
culto religioso. Vilipendiar significa ultrajar ou menosprezar, e Regis PRADO (2010) volta a
chamar atenção para o elemento normativo publicamente – na presença de várias pessoas ou outro
meio que o torne público. Mais uma vez, a internet, assim como a imprensa, são grandes canais para
tais ações. Já o objeto vilipendiado deve estar diretamente associado à pratica religiosa, de forma
que objetos não direcionados ao culto ou que não integrem sua essência, e.g., objetos à venda ou
não usados para celebração de atos religiosos, não merecem a tutela penal.
Quanto aos elementos subjetivos dos delitos previstos no art. 208, Rogério GRECO (2012,
p. 432) traz que “o delito de ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo
somente pode ser praticado dolosamente, não havendo previsão para a modalidade de natureza
culposa”. É necessário, que haja dolo, direto ou eventual; intenção e consciência do agente de
escarnecer, impedir, atrapalhar ou vilipendiar, ainda que não haja restrição quanto ao meio ou modo
utilizado para tanto. Na primeira e terceira condutas descritas, ainda, é necessário o especial motivo
de agir: “[...] é indispensável [...] que atue o agente em razão de crença ou função religiosa ou com
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 111-128, jan./jul.., 2015.
o fim de ofender o sentimento religioso do sujeito passivo, caso contrário configurará apenas o
crime de difamação ou injúria” (PRADO, 2010, p. 572).
No caso do parágrafo primeiro do artigo, existe a possibilidade de majoração da pena em um
terço. Se a violência for um crime em si, haverá a soma das penas aplicadas; por exemplo, aquele
que comete lesão corporal e perturba uma cerimônia religiosa terá as penas cumuladas. Ainda que
se induza a aplicação de concurso formal, pela existência de uma ação e dois ou mais crimes, a
expressa indicação legal do parágrafo para que se afaste o concurso formal e se aplique a cumulação
material das penas, independentemente da existência de desígnios autônomos (BITENCOURT,
2014).
Temos que o delito previsto no art. 208 é crime comum, doloso, “formal (na modalidade de
escarnecer, não exigindo resultado material); material (nas formas de impedimento ou
perturbação)” (BITENCOURT, 2014, p. 462). A ação penal, por sua vez, será pública e
incondicionada.
De porte de boa análise doutrinária sobre o artigo em tela, podemos avançar no
entendimento. Os falsos conceitos a respeito das religiões de matriz africana que, inscritos no
imaginário popular, reputam-nas como perigosas eram prementes na redação do Código Penal de
1940.O mito da afronta aos bons costumes, impetrados por uma sociedade tradicionalista e
conservadora torna difícil a difusão – ou, ao menos, a aceitação – de uma tutela jurídica que as
coloque em igualdade com as religiões tradicionais. Ainda que integrantes da matriz cultural e
religiosa brasileira, o candomblé e a umbanda, representam parcela historicamente discriminada da
sociedade, tornando ainda mais grave a falta de parcimônia na aplicação da lei. O preconceito
arraigado na sociedade contamina as decisões judiciais e urge a reinterpretação penal e
constitucionalmente adequadas.
III. Por uma nova interpretação
Os enredos que ligam as religiões afro-brasileiras ao direito penal remontam marcadamente,
ao fim do Império e início da república brasileira. A criminalização do candomblé e da umbanda, ao
lado da capoeira, eram a mais genuína expressão do preconceito e do racismo imperante na
sociedade brasileira da virada do século XIX para o XX. O grito republicano por certo não havia se
feito ouvir (não teria chegado) às periferias onde restavam os ex-escravos e seus descendentes em
situação de completo abandono social e sem alguma perspectiva de inclusão:
Além dos sofrimentos da pobreza, tiveram de enfrentar uma série de preconceitos
cristalizados em instituições e leis, feitas para estigmatizá-los como subcidadãos, elementos
sem direito a voz na sociedade brasileira.[…] A ciência européia da época, que passou a ser
vista como critério definidor das sociedades civilizadas era marcada por visões racistas, na
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FRANCO, G. E J.; SANTOS, L. A. B. As Religiões Afro-Brasileiras
qual os brancos ocupavam o primeiro lugar do desenvolvimento humano, e os negros, o
último. (PRIORE, 2010, p.219-220)
O Código Criminal de 1890, bem como a ciência jurídica, via a prática dessas religiões
como condutas anti sociais e o aparelho estatal acabava por perseguir seus PRATICANTES,
tipificando-os como vadios, desordeiros (especialmente, na capoeira) ou curandeiros.O artigo 157
do Código se encarregava de enquadrá-los. Como se vê, o espiritismo, religião hoje professada por
milhares de brasileiros, era explicitamente criminalizado. No mesmo crime, puniam-se as condutas
das religiões de matriz afro-brasileiras:
"Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar talismanse cartomancias,
para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestiascuraveis ou
incuraveis, emfim, para fascinar e subjulgara credulidade publica. Pena: de prisão cellula
rpor um a seis meses, e multa de 100$000 a 500S000."(sic) (CASTRO, 2007, p. 432)
O mesmo código continha, na altura dos artigos 185 e 186, disposições penais para proteger
as cerimônias religiosas, seus objetos e seus cultos, em disposição muito semelhante ao já
comentado artigo 208 do atual Código Penal. Por desventuras da história, a interpretação
dogmática, embebida de preconceitos e racismos, que não entendia as religiões afro-brasileiras com
aptas desta proteção é ainda hoje aplicada, ainda que no seio de um Estado Democrático de Direito.
O Direito Penal, a este tempo (e até hoje), exercia um forte papel político, haja vista era
instrumento de controle social e de repressão, focado, por vezes, na marginalização de grupos
sociais ao invés da proteção de bens jurídicos:
Ao reprimir as práticas que não se enquadravam na concepção de religião vigente, com
direito à proteção legal, torna-se explícita uma distinção entre o status concedido a uma
parte da população e a outro segmento, cujas tradições, por não seguirem a matriz cristã,
não teriam direito à liberdade de expressão, podendo ser criminalizadas. Assim, a laicização
foi sendo instituída a partir da proclamação da República. (MIRANDA, 2010, p. 127-8)
“Deste modo, a liberdade religiosa no Brasil foi sendo constituída num cenário em que se
distinguiam quais religiões teriam direito à proteção legal e quais eram práticas consideradas antisociais, devendo ser perseguidas”(MIRANDA, 2010, p. 129).
A intolerância religiosa, que se estendeu até os anos 70 (MATA FILHO, 2009), nem sempre
fruto de questões teológicas, mas muito enraizada no racismo e no preconceito contra os praticantes
das religiões afro, é ainda hoje latente na sociedade brasileira e é frequentemente reiterada pelo
Judiciário. Em face de um paradigma mais plural do direito (e do estado) faz-se necessário uma
mudança na concepção do artigo 208 do CP com vistas a proteger, também, as religiões brasileiras.
Pugnando por uma interpretação adequada do crime de ultraje a culto (art. 208) duas vias
argumentativas serão tomadas. Em primeiro lugar, se abordará a questão do ponto de vista penalAlethes | 117
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 111-128, jan./jul.., 2015.
dogmático. Em seguida, sob uma atitude mais crítica, o problema passará pelas lentes da
principiologia constitucional, observando-o frente à liberdade religiosa. Tendo em mãos uma
interpretação mais polida do crime, se tentará responder, ainda que preliminarmente, algumas
questões abertas que também envolvem direito penal e religiões de matriz africana.
Tomando o primeiro caminho, devemos observar que a nova interpretação penal deve ligarse ao bem jurídico tutelado pelo artigo 208 qual seja, o sentimento religioso, como já dito. Esse
bem jurídico não está ligado à proteção de um Deus, ou uma religião e seu conjunto de práticas,
sequer à proteção de um aglomerado de religiões.
De forma muito mais sutil, a tutela penal se dirige ao sentimento religioso enquanto um
interesse ético-social (BITENCOURT, 2014, p. 459). Ele se liga ao sentimento de que há algo além
da existência humana, uma crença numa ordem superior (HUNGRIA, 1981, p. 52) presente desde o
primórdio das comunidades humanas, como noticiam os antropólogos (MORAIS, 2011, p.233-4).
No Ocidente, em especial, a religião tem acompanhado o Estado e o Direito há séculos, o que
explica a sua importância enquanto elemento integrador da cultura ocidental. É o interesse
penalmente orientado, de ver respeitada esta ordem superior que é tão caramente professada pela
sociedade.
Do ponto de vista do integrante deste sistema jurídico, há o interesse de opor o direito penal
contra quem aviltar a sua própria religião, bem como o interesse de ver respeitada a religião de
outrem, na medida em que sua conduta espelha o seu desejo, sob pena de o desrespeito a outra
religião se tornar um desrespeito a sua própria, ainda que em potencial. Em última análise, o
integrante assiste a uma desmoralização contra a liberdade religiosa, a mesma que lhe permite
professar seu credo.
Em poderosa lição, Nelson Hungria anota que:
o legislador de 40 entendeu que ao interesse individual da liberdade religiosa sobreleva o
interesse coletivo ou geral de preservar a religião como um elemento de cultura eticosocial. Embora mantida a liberdade de crença ou de não ter crença alguma, e
relevantemente útil a função cultural do Estado que os indivíduos sejam religiosos.
(HUNGRIA, 1981, p. 53)
Por conseguinte, o direito penal é positivado “para cumprir funções concretas dentro de e
para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira” (BATISTA, 2007,
p.19), qual seja: a sociedade brasileira que confere grande estima à religiosidade e ao sentimento
religioso, compondo aspecto de primeira relevância de sua cultura. Insta, assim, uma vigorosa
proteção jurídica a este elemento cultural.
Pelo exposto, uma agressão às religiões afro-brasileiras e seus cultos e terreiros também
agride o sentimento religioso. Porque o bem jurídico visa proteger não uma religião professada pela
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FRANCO, G. E J.; SANTOS, L. A. B. As Religiões Afro-Brasileiras
maioria, mas é orientado a proteger a religiosidade enquanto parte da cultura. Cultura brasileira essa
marcadamente entranhada pelo Candomblé e pela Umbanda, sendo esta sido gestada no próprio
território brasileiro e fruto do sincretismo com a religião católica.
O sentimento religioso é igualmente lesado quando o ataque parte contra a religião cristã,
mulçumana, umbandista ou candomblecista. Não há motivo razoável que enseje na diferenciação
entre a perturbação de um casamento na Igreja e na Umbanda; ou entre o Salate uma sessão de
passe. Mais ainda, não há porquê se dizer que o escárnio contra padre ou rabino é mais aviltante ao
sentimento religioso do que a zombaria contra um pai-de-santo. Não há arrepio maior ao apreço
religioso do que se perturbar ou impedir aquele culto afro brasileiro em que se consideram presentes
as próprias divindades professadas, incorporadas nos médiuns.
Na terceira modalidade do crime, qualquer diferenciação interpretativa que vise a não tutelar
as religiões de matriz africana beira ao extremo do injustificável. A Umbanda, rebento do
sincretismo com o catolicismo, utiliza imagens de santos católicos para se referir a seus orixás
(ECKSCHMIEDT 2013, p. 53-4). Jesus Cristo é sincretizado com Oxalá, São Jorge com Ogum,
São Judas Tadeu com Xangô, Nossa Senhora com Yemanjá e assim segue. Ora, um indivíduo
adentra uma igreja católica e destrói a pontapés a imagem de Jesus. Momentos após, a mesma
pessoa penetra em um terreiro de umbanda e vilipendia a imagem de Oxalá, partindo-a em pedaços.
No primeiro caso, crime contra o sentimento religioso e, no segundo? A resposta negativa a esta
pergunta indica uma interpretação enviesada pelo preconceito e que não pode prosperar.
Acontece que a substancia desta interpretação preconceituosa está entre os juristas sem
embargos. Bitencourt, cujas lições são muito pertinentes em matéria penal, aduz em seu Tratado de
Direito Penal: “Convém destacar, ademais, que o culto ou cerimônia religiosa protegidos pela lei
não podem atentar contra a moral e os bons costumes, como a magia negra, macumba etc.”
(BITENCOURT, 2014, p.461). A expressão “moral e bons costumes” é demasiadamente rejeitada
na crítica doutrina penal por ser vazia de conteúdo e aberta para ser utilizada em favor das
regressões e conservadorismos de toda sorte. Cabe a pergunta: o que é uma religião contra os bons
costumes?
A linha da argumentação leva ao segundo caminho que se anunciou: a principiologia
constitucional. O argumento central, neste momento, é que a diferenciação entre religiões aptas a
serem tutelas pelo art. 208 e as inaptas leva ao prejuízo do direito constitucional à liberdade
religiosa, cravada no artigo 5°, VI da Constituição da República.
O direito penal e o constitucional comungam na proteção da liberdade de crença, enquanto
parte integrante do Estado Democrático de Direito e, nesse sentido, merecedora da mais
significativa tutela jurídica por meio da sanção penal. O Estado, num apanhado global, se ocupa da
matéria em razão da tendência de o fenômeno religioso descambar em coerção e discriminação
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 111-128, jan./jul.., 2015.
quando institucionalizado. Visa a garantir, assim, a coexistência das religiões de forma pacífica, por
meio do reconhecimento da liberdade religiosa de todos. (NETO, 2013, p. 267)
A dimensão espiritual dessa liberdade compõe a dignidade da pessoa humana em duas
facetas. Na primeira, mais íntima, é expressão da autodeterminação individual de professar ou não
uma divindade e de não ser descriminado devido a esta escolha pessoal. Também, em um olhar
mais comunitário, a liberdade religiosa é importante na construção da identidade do indivíduo
dentro de uma comunidade, gerando para ele o sentimento de pertença tão relevante na busca da
felicidade individual.
Assim sendo:
Diante desse programa normativo, deve-se operar com um conceito amplo de liberdade
religiosa e de religião (um âmbito normativo alargado), que aposte no maior grau de
inclusividade (abertura para religiões minoritárias e inconvencionais) compatível com a
igual liberdade e dignidade dos cidadãos. (NETO, 2013, pg. 267)
O Estado Democrático de Direito deve ter como centro axiológico a fraternidade (HORTA,
2014) para que veja no indivíduo um sujeito de direitos que deve ser incluído na comunidade
independentemente de sua religião. O projeto do paradigma democrático tem uma “inexorável
vertente que é a liberdade exposta em um de seus aspectos mais importantes, pela defesa das
liberdades individuais (em sentido negativo) e pela cláusula do pluralismo”(BIELSCHOWSKY,
2013, p. 136).
Nesse sentido, a restrição à liberdade de crença e qualquer diferenciação entre religiões
merecedoras de importância jurídica e as não merecedoras é, portanto, aviltamento da própria
dignidade humana, uma vez que nega uma liberdade individual e nega o reconhecimento de outro
como cidadão.
Os tribunais pátrios não podem aderir, em qualquer seara, à interpretação de que as religiões
afro-brasileiras não são dignas da tutela estatal, sob pena de ameaçarem a liberdade de crença.
Ainda assim, foi o que aconteceu com uma Ação Civil Pública no TRF da 2ª Região3, proposta pelo
Ministério Público Federal em face do Google Brasil Internet LTDA, na qual pedida a retirada de
vídeos online e a identificação de seus autores porque divulgam a intolerância e a discriminação
religiosa.
Examinando o pedido de antecipação de tutela, negou-a o magistrado entendendo que
ocorria ali a concorrência, e não colidência de direitos. Argumentou o juiz que as crenças afrobrasileiras não se tratavam de religiões, porque não tinham um texto-base (como a bíblia e o corão),
não tinham estrutura hierárquica e, sequer, veneravam a um Deus. Ademais, disse que o
3
Ação Civil Pública de autos n° 201451010047472.
Alethes | 120
FRANCO, G. E J.; SANTOS, L. A. B. As Religiões Afro-Brasileiras
conteúdo dos vídeos (ora feitos pela Igreja Universal) também não representavam um sistema de fé.
Eram, por certo, de mau gosto, embora significassem o regular exercício da liberdade de expressão.
Um magistrado quando impõe requisitos para as religiões está nada menos do que
determinando quais devem ser as crenças dos sujeitos de direito. É uma imposição heterônoma que
fere a dignidade humana porque tenta regular matéria de foro íntimo. Em pleno paradigma
democrático, a tutela jurisdicional não pode exigir um padrão sobre o que é religião, sob pena de
ferir o pluralismo.
Também não é frutífera a busca por um conceito jurídico de religião. A busca por um
conceito estático, baseado em definições objetivas e materiais foi percorrida pela Suprema Corte
americana nos Mormon Cases que definiu a religião em três conceitos: divindade, moralidade e
crença4. Contudo, a definição soa arbitrária por versar sobre questão individual. Também, não se
coaduna com a inclusão e proteção de religiões minoritárias e não tradicionais. Igualmente ingrata é
a classificação como seita que se demonstra pejorativa e discriminatória (NETO, 2013, p. 268).
Nessa sintonia, e arrematando as conclusões do estudo até então, a melhor interpretação do
artigo 208 do CP é aquela que inclui as religiões minoritárias na tutela penal, à luz do que se expôs
tendo em vista as religiões afro-brasileiras. Do ponto de vista dogmático, fica evidente que há
ofensa ao bem jurídico do sentimento religioso,enquanto interesse ético-social, quando se atinge
uma religião de matriz africana; e uma interpretação diferente levaria a incongruências, como
asseverado. Sob o matiz principiológico constitucional, a interpretação do magistrado que não
ofereça proteção a essas religiões lesa o direito fundamental a liberdade de crença e a própria
dignidade da pessoa humana, visto que nega o reconhecimento daquela religião e da capacidade de
autodeterminação do indivíduo, acabando por interferir em questão de foro íntimo.
III.1. Breves reflexões sobre a liberdade religiosa e o discurso de ódio
O famoso episódio do “chute na santa”, de 1995, no qual um bispo da Igreja Universal do
Reino de Deus (IURD), Sérgio Von Helder, aparece em vídeo dando chutes em uma estátua de
Nossa Senhora Aparecida5 abre caminho para o debate entre a liberdade religiosa, a intolerância e o
discurso de ódio, tendo com personagens de destaque as igrejas neopentecostais, em especial a
IURD, e as religiões afro.
4
“First, as noted earlier, there must be a belief in Godor some parallel belief that occupies a central place in the
believer’s life. Second, there ligion must involve a moral code that transcends individual belief—it cannot be purely
subjective. Third, some associational ties must be involved. That is, there must be some community of people united by
common beliefs. Fourth, there must be a demonstrable sincerity of belief.”STEPHENS, Otis H. Jr., SCHEB, John M. II.
American Constitutional Law Volume II: Civil rights and liberties. P. 212.
5
O vídeo pode ser acessado em:https://www.youtube.com/watch?v=VpPwWEsk0OY. Acesso em 05/04/2015.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 111-128, jan./jul.., 2015.
Edir Macedo, líder fundador da Universal, dá linhas substanciais para esta disputa em seu
livro “Orixás, Caboclos & Guias: Deuses ou Demônios”, no qual “admite que sua igreja foi fundada
para o trabalho especial da libertação das pessoas endemoninhadas, tendo nascido para vencer essa
‘guerra espiritual’” (ORO apud SANTOS, 2011, p. 2). Confira-se um trecho introdutório do livro:
Através dos veículos de comunicação e das igrejas que tem estabelecido pelos rincões de
nossa pátria e no exterior, o bispo Macedo tem desencadeado uma verdadeira guerra santa
contra toda obra do Diabo. Neste livro, denuncia as manobras satânicas através do
kardecismo, da Umbanda, do candomblé... coloca a descoberto as verdadeiras
intenções dos demônios que se fazem passar por orixás, exus, erês, e ensina a fórmula
para que a pessoa se liberte do demônio que a domina. (MACEDO apud VERÍSSIMO,
2005, p. 76. Grifos nossos).
Essa “guerra santa” parece constituir a doutrina própria da Universal, que se posta contra as
religiões afro-brasileiras, denegrindo-as como “satânicas” dentro do dualismo cristão de céu e
inferno.
Muito recentemente, a mesma Igreja criou o grupo “Gladiadores do Altar”, cujo significado
tem lembrado a estrutura dos exércitos: jovens fardados, gritos de ordem, continência, marchas.6
Analisam alguns sociólogos que o projeto serve exclusivamente para a obtenção mais fiéis,
principalmente jovens da periferia.
Contudo, representantes das religiões afro-brasileiras tem se manifestado apreensivos pelo
grupo. Temem que aumentem os casos de discriminação e intolerância religiosa, como episódios de
invasão de terreiros de Candomblé em Olinda e protestos contra seus praticantes. A intolerância
poderia ser agravada pela ideologia deste grupo somada com o “espírito de guerra” gerado. Nesse
sentido, os representantes protocolaram pedidos de aberturas de Inquéritos Civis no Ministério
Público Federal em 26 Estados. (Carta Capital, 2015)
Não sem razão é o temor dos praticantes dessas religiões. Como nos dá notícia Valter da
Mata Filho, os conflitos que envolvem as duas religiões ensejam litígios judiciais:
Na mais relevante disputa judicial, a IURD foi condenada a pagar uma indenização de R$
1.372.000,00 aos familiares da IalorixáGildásia dos Santos. O juiz Clésio Rômulo Carrilho
Rosa, da 17ª Vara Cível de Salvador, condenou a Igreja Universal do Reino de Deus por
danos morais. O motivo da indenização foi que em outubro de 1999, o jornal "Folha
Universal" - que pertence à igreja - publicou uma foto da ialorixá para ilustrar a reportagem
"Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes". Mãe Gilda, que sofria do
coração, morreu em 2000, 15 dias após seu terreiro ter sido invadido por Eliane Araújo e
André Moura, da Assembléia de Deus, que depredaram o local. (MATA FILHO, 2009, p.
36)
6
Dois
vídeos
mostram
o
grupo:
https://www.youtube.com/watch?v=6MvADsjEnO4
https://www.youtube.com/watch?v=083thk-RPPw. Acesso em 05/04/2015.
e
Alethes | 122
FRANCO, G. E J.; SANTOS, L. A. B. As Religiões Afro-Brasileiras
Inicialmente, são nestes termos que estão colocadas as disputas entre essas religiões. Do
ponto de vista político-jurídico, resta tentar delinear o problema para saber como se coloca frente
aos direitos constitucionais e seus limites.
O proselitismo, que é atividade imanente a religião para buscar e convencer novos adeptos, é
assegurado constitucionalmente enquanto extensão da liberdade religiosa (SANTOS, 2011, p. 4).
Soma-se também a proteção da liberdade de expressão, já que significa a divulgação de mensagens
e manifestação de pensamento e, portanto, elementos e alta importância democrática e
constitucional.
A liberdade de expressão, porém, não é um direito absoluto no sistema constitucional. É
conhecido o exemplo criado pelo juiz americano Oliver Wendell Holmes que assevera ser essa
liberdade limitada e não proteger aquele que grita “fogo! fogo!” em um teatro lotado. São variadas
as hipóteses em que a liberdade encontra restrições frente a outros direitos fundamentais e bens
jurídicos (SARMENTO, 2013, p. 257) .
Essa liberdade não pode acobertar o discurso de ódio que se voltam contra a igualdade e a
dignidade de membros da sociedade, especialmente por questões raciais, sexuais, políticas e
religiosas (SARMENTO, 2013). Esse tipo de manifestação é perceptível, pois coloca seus atingidos
em um patamar inferior, como se fossem um classe de sub-cidadãos, ao passo que querem subtrairlhes os direitos.
É no sentido de limitar a liberdade de expressão o posicionamento de quase todas as
sociedades democráticas atuais, excluindo os Estado Unidos (SANTOS, 2011, p.9). O Supremo
Tribunal Federal diverge da jurisprudência estadunidense para seguir a tendência alemã e
internacional. O leading case sobre discurso de ódio no Brasil é o HC 82.424, apelidado de Caso
Ellwanger. Veja-se o acórdão:
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO.
CRIME
IMPRESCRITÍVEL.
CONCEITUAÇÃO.
ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM
DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias
preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20,
na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de
inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). [...]13. Liberdade de
expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e
jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações
de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são
incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites
definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito
fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo",
dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas,
como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da
pessoa humana e da igualdade jurídica. [...]Ordem denegada. (STF - HC: 82424 RS
,Relator: Min. MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 17/09/2003, Tribunal Pleno, Data
de Publicação: DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524)
Alethes | 123
Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 111-128, jan./jul.., 2015.
Na abrangência do paradigma democrático, o Estado não pode mais se pretender agente
“neutro” perante a sociedade. As relações sociais têm se modificado num grau espantoso, gerando
um pluralismo ético, social, político e religioso que demanda relevante atenção do Estado para que
aja abraçando a pluralidade e garanta a autonomia e dignidade de seus cidadãos (SANTOS, 2011).
Tendo em vista as manifestações religiosas aqui comentadas, resta saber se compõe a
liberdade de crença e expressão ou se são discursos de ódio. Em primeiro lugar, a reflexão deve ser
orientada para questionar se essas manifestações fazem parte do núcleo essencial daquela religião,
de forma que se fizerem, cria-se um embaraço na intervenção estatal porque estaria, de toda sorte,
regulando atividade de foro íntimo, dizendo o que a religião pode ou não falar. Porém, cremos que o
Estado não pode se furtar à sanção do discurso de ódio, na medida em que ele atropela a liberdade
de expressão indo de encontro a direitos também de grande importância no ordenamento jurídico.
Se se concluir que é necessária uma legislação para coibir esse tipo de prática, há de se
perquirir como deverá ser o impedimento destes discursos de ódio. Deve-se lembrar da teoria dos
limites dos limites que restringe o legislador na regulamentação dos direitos fundamentais,
objetivando proteger seu núcleo duro (MENDES, 2009, p. 348).
Por fim, anote-se que existem também alguns avanços legislativos que visam proteger as
religiões de matriz afro-brasileira. É o caso da lei 12.288 de 2010, chamada Estatuto da Igualdade
Racial. O artigo 26 dispõe que poder público atuará no combate à intolerância contra essas religiões
e a discriminação de seus seguidores, coibindo “a utilização dos meios de comunicação social para
a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao
desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas”, nas letras do inciso
primeiro.
IV.Conclusão
A interpretação doutrinária e jurisprudencial que não inclui as religiões de matriz africana
como dignas da tutela penal não pode prosperar. No eixo do que foi tratado, ela representa mais
uma face dos preconceitos instalados no Brasil desde sempre, e que restam até hoje cristalizados
como entendimento jurídico, pretensamente científico, mas eivado de uma cultura marcada pela
marginalização do negro e de suas manifestações culturais:
a inexistência de um princípio universalista e de tratamento igual e uniforme que
abrangesse todos os sistemas religiosos inviabilizou o pleno reconhecimento dos direitos de
certas matrizes religiosas, promovendo o acesso particularizado e desigual de determinadas
religiões ao espaço público brasileiro, como se um sistema religioso fosse mais legítimo
que o outro, por esta razão seus símbolos podendo ser apresentados e ostentados no mundo
público. (MIRANDA, 2010, p. 130)
A aplicação desta interpretação afronta, ao mínimo, a liberdade religiosa, haja vista que o
magistrado diferencia religiões próprias de tutela penal e outras menos respeitáveis, cuja lesão não
Alethes | 124
FRANCO, G. E J.; SANTOS, L. A. B. As Religiões Afro-Brasileiras
importa ao ordenamento jurídico e não fere a liberdade religiosa tutelada. Na verdade, a ofensa a
religião de matriz africana lesa bem jurídico penal -o sentimento religioso -, da mesma maneira que
a ofensa ao judaísmo ou às religiões cristãs, como é majoritariamente aceito.
A liberdade de crença é intimamente relacionada com o Estado de Direito, desde o seu
início, e adquire novas roupagens dentro do Estado Democrático de Direito. O alvorecer das
Revoluções Liberais, que estabeleceram o Estado de Direito, afirmou a posição central do indivíduo
na sociedade e no Estado, de sorte que o poder político deveria abrir espaço para a persecução
individual dos próprios objetivos. Assim, no que toca a liberdade religiosa, o Estado só poderia ser
laico, expurgado de qualquer instituição confessional que pudesse adstringir a esfera privada,
permitindo, então, a autonomia individual em matéria religiosa.
Contudo, o Estado Democrático de Direito tem outras missões ao lado da garantia e
efetivação da liberdade individual, quais sejam, a garantia da igualdade e da diferença. Ainda que
soe contraditório, na verdade é uma sofisticação filosófica sem igual. O Estado, nesse paradigma,
deve garantir a liberdade religiosa pela laicidade, como era anteriormente, mas também deve
permitir a igual fruição desta liberdade para a toda sorte de religião, em respeito à diferença.
Como assevera MORAIS (2011, p. 241):
[...]o principio da liberdade religiosa é um dos sustentáculos do Estado Democrático de
Direito, tendo em vista tutelar a consciência religiosa, ter ou não ter uma crença,
protegendo aqueles indivíduos que praticam uma religião minoritária, como também
aqueles que são fiéis aos mandamentos de credos religiosos majoritários, e, inclusive,
aqueles que não possuem uma religião, sejam ateus ou agnósticos.
Portanto, o Estado Democrático de Direito deve estar aliado à liberdade religiosa e ao direito
a diferença. A interpretação penal adequada aos princípios e valores constitucionais não pode negar
proteção, pelo artigo 208/CP, àquelas religiões afro-brasileiras, impugnando-lhes o caráter religioso
em uma feição preconceituosa, que deve ser afastada. A diferença influi para que se reconheça
como dignas de proteção as religiões minoritárias que recusam o padrão monoteísta ou ainda que se
antagonizem com as religiões cristãs predominantes na sociedade brasileira.
Em outra via, faz-se necessário que o Estado atue para dirimir conflitos entre as religiões,
criando um ambiente social pacífico em que cada uma exerce sua liberdade em conformidade com o
exercício alheio. Não poderia ser de forma diferente porque a completa abstenção estatal geraria,
em último caso, a não fruição de liberdade religiosa alguma, devido aos constantes ataques. É
mister que na conciliação destas liberdades o Estado impeça e, inclusive, sancione o discurso de
ódio, que não pode se esconder atrás do véu da liberdade de expressão para ferir qualquer outro
direito.
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Alethes: Per. Cien. Grad. Dir. UFJF, v. 05, n. 08, pp. 111-128, jan./jul.., 2015.
A busca pelo direito a diferença também importa no reconhecimento daquele grupo social
como legítimo integrante da sociedade, considerados iguais nos mesmos direitos que todos outros
integrantes. A igualdade, nesse sentido, não sufoca a diferença, mas permite a inclusão justamente
pelo reconhecimento da diferença e que ela não os desqualifica como partes daquela comunidade.
O direito à diferença se coaduna com a tolerância de toda sociedade com grupos
minoritários. Isso numa “política de identidade que afirma publicamente identidades coletivas de
grupos excluídos, assegurando-lhes apoio e proteção” (MENDONÇA, 2013, p. 121), de forma que
os grupos minoritários possam construir sua identidade dentro de uma sociedade que os inclui e
tolera.
A construção de identidade dos grupos sociais se dá por meio de relações intersubjetivas,
construídas dentro de uma sociedade plural que reconhece o pluralismo. Nessa sintonia, o
paradigma democrático, que toma como basilar o direito a diferença, não pode ele mesmo negar o
reconhecimento que visa proteger. Ele deve amparar os diferentes grupos sociais para que cada um
se autorrealize dentro da sociedade, sancionando práticas estigmatizadoras e humilhantes
(MENDONÇA, 2013).
Por tudo isso em vista, a interpretação que se oferece ao artigo 208 não pode ser outra, senão
aquela que reconhece a diferença e trata todas as religiões com a mesma mão.
Este estudo, para além de colaboração para o aprimoramento da doutrina penal, também é
um voto de esperança na persecução de uma sociedade mais justa, livre, fraterna e igualitária, que
consiga sobrepor os erros do passado de forma ética e democrática. O Direito não pode ser somente
um conjunto de regras mínimas de convivência social, mas um instrumento na verdadeira efetivação
da Liberdade, em todos os seus adjetivos.
5. Bibliografia
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FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
Alethes | 129
FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
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FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
Entrevista
Marcos Vinícius Chein Feres é graduado em direito pela UFJF (1994), mestre
(1999) e doutor (2003) pela UFJF, na área de direito econômico. Trabalha com
propriedade intelectual a partir da ideia de direito como identidade, usando autores
como Zenon Bankowski, Charles Taylor e outros, concentrando suas análises no
conhecimento tradicional, biopirataria e doenças negligenciadas, procurando encontrar
os limites e fraturas dos conceitos jurídicos ocidentais modernos no tratamento dessas
temáticas. Além disso, foi diretor da faculdade de direito da UFJF entre 2006 e 2014, e
desde o ano passado é vice-reitor da nossa universidade. Também é bolsista de
produtividade de nível 2 do CNPq. No dia três de agosto de 2015, recebeu no edifício
da reitoria da UFJF o nosso editor João Vítor de Freitas Moreira, que também pesquisa
os saberes tradicionais, para discutir conhecimento, a temática do nosso dossiê,
explorando as bases do saber ocidental.
JV: Em que medida a comunicação
conhecimento
científica e o intecâmbio da academia
universidade é de fato efetiva aí é uma
com o público externo, seja por vias de
outra história, pois se essa propagação
revistas, entrevistas, cartilhas e outros,
atinge a todos da comunidade já não se
tem sido efetivo e permitido uma
tem certeza.
propagação do conhecimento produzido
conhecimento que chega a um leigo eu
na universidade?
acredito que aí é muito pouco, porque o
MC: Do ponto de vista formal, ou seja,
conhecimento
do
do
somente no meio acadêmico, circula
conhecimento cientifico produzido na
muito entre os pares. Por exemplo, hoje
universidade hoje podemos dizer que
você tem contato com publicações
ele só aumentou durante os anos.
internacionais que a 20 anos atrás era
Aumentaram o número de revistas,
muito
periódicos e de meios de propagação.
representou um ganho muito grande
Quantitativamente nós podemos dizer
para o meio acadêmico, promovendo
que hoje temos muito mais cesso ao
um acesso mais eficiente a dados na
conhecimento do que a 10 ou 20 anos
internet. Isso gera um reorno, digamos,
atrás. Agora se essa propagação do
positivo para coleta de dados, acesso a
processo
de
publicização
mais
produzido
na
Se considerarmos o
ainda
difícil.
circula
A
muito
internet
Alethes | 131
FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
informação, mas primeiramente entre ao
haja algum tipo de motivação para
pares, entre aqueles que estão no meio
conhecer, não basta ele estar pública. As
acadêmico. Agora se de fato o comum,
pessoas devem ter vontade de saber, e é
o sujeito tem acesso a esses tipos de
essa questão a grande incógnita dentro
publicações é muito pequena.
do
JV: Mas será que até mesmo dentro da
conhecimento hoje. Será que de fato nós
academia não de pode falar em aqueles
estamos produzindo um conhecimento
que
um
que gere vontade de saber na outras
conhecimento, enquanto outros ficam
pessoas? O que move a produção do
sujeitos a mais a simples recepção?
conhecimento? O interesse egoísta,
têm
de
fato
acesso
a
processo
de
produção
do
está
específico? Você não para pra pensar
acessível. A pergunta é se há acesso, ou
em seu entorno, no reflexo da que a sua
seja, se ele está disponível. Agora a
pesquisa vai ter para outras pessoas?
MC: Então,
segunda,
como
o
conhecimento
Essas
é
estava
respondendo, é
se de fato ele é
efetivo. Mas a
grande questão
que
nós
devemos
nos
Porque não adianta falar que
está aí na internet disponível
uma grande publicação etc.
Mas e daí? Isso ressoa na
alma das outras pessoas?
que
deveriam
ter
efetivamente
acesso e interesse
sobre
eles.
Porque a questão
não
é
estar
produzindo
um
conhecimento
fazer é se as
pessoas têm interesse nessa informação?
que as pessoas vão ter acesso. Quando
Como motivar as pessoas para elas
eu falo acesso não é a informação por si
terem interesse naquilo que está a sua
e em si, mas acesso no sentido de que
volta? Porque não adiante falar que está
esse conhecimento se torna parte da
aí na internet disponível uma grande
minha vida e de alguma forma me ajuda
publicação etc. Mas e daí? Isso ressoa
a viver melhor. Acredito que isso é o
na alma das outras pessoas? Porque isso
que devemos pensar, o que estamos
é o problema do conhecimento: ele não
produzindo na universidade para que as
se
pessoas tenham uma vida melhor? O
divulga
por
si
e
em
si.
O
conhecimento para que ele chegue a
que
estamos
produzindo
na
algum lugar, a determinadas pessoas ou
universidade para que o ambiente no
a uma coletividade, é necessário que
qual a gente vive progrida?
Porque
Alethes | 130
FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
pouco adiante dizer que fulano teve uma
isso eu consigo publicar em revista tal,
publicação na Nature. Ótimo! Mas qual
ou se aquilo me dá uma projeção, além
o impacto disso para a sociedade
de que eu preciso publicar em um
brasileira da qual se vive, que banca a
número tal de revista que tem que ser lá
universidade pública. Minha pergunta é:
de uma repercussão A1, A2, B1, mas
será que quem banca a universidade
abaixo disso não dá etc. É lógico que
esses critério são
pública é de fato o
destinatário dessa
produção
de
conhecimento
na
academia? Ou será
que essa produção
científica continua
sendo
formulado
para
uma
determinada elite?
A experiência do jurídico
não se revele, como as
pessoas costumam a
acreditar, no balcão do
fórum, no gabinete (...) A
experiência do jurídico
acontece em nossas vidas
importantes
de alguma forma
qualificar,
será
mas
que
vamos
continuar
a
construir
esses
critérios de forma
conservadora?
Será
quen
podemos
Qual o propósito
para
não
buscar
de tudo isso? É muito fácil dizer que eu
novas formas de categorização, ou seja,
quero aprimorar um ponto de vista de
como
um conhecimento X e que eu quero
concervadora? Como podemos perceber
compreender uma partícula Y, mas qual
que talvez existe no mundo outros
é a interferência disso na minha
saberes no mundo para além dos saberes
comunidade?
científico convencional e ocidental.
romper
com
a
relação
Conhecimento para mim envolve mais
do que cognição. Eu acho que hoje a
JV:
maior parte do conhecimento produzido
na universidade está atrelada a um
“
racionalismo, um cognitivismo puro, ao
experiência,
passo que nós deveríamos pensar um
universal ignorando o particular
conhecimento que não venha somente
nele
da cognição, mas de uma noção de
muitas vezes no tratamento,
afeto, de emoções e da própria intuição.
porque o objeto de cura é, de
O pesquisador hoje destina maior parte
preferência,
de seu tempo a preocupações como se
entanto , nós julgamos que há
Portanto,quem
e
contido,
o
possua
a
conheça
o
enganar-se-á
singular.
No
Alethes | 131
FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
mais saber e conhecimento na
MC: Acho que a melhor forma de nós
arte do que na experiência, e
produzirmos
consideramos os homens de arte
científico no direito é primeiro não
mais sábios que os empíricos,
trabalhara com essa compartimentação,
visto a sabedoria acompanhar
nós não podemos compartimentar o
em todos, de preferência, o
saber , nem o empírico, nem o saber
saber. Isto porque uns conhecem
artístico.
a causa, e outros não. Com
Aristóteles se revelariam hoje como a
efeitos, os empíricos sabem o
relação entre ao universal (arte) e o
“que”, mas não porque; ao passo
concreto (empírico). Acredito que a
que os outros sabem o “porquê”
grande transformação da produção do
e a causa.”
conhecimento
um
A
acontecer
arte
conhecimento
a
empiria
jurídico
quando
ela
há
aqueles
em
de
que
Com relação a esse trecho inicial do
trabalham, isto é, não somente os que
livro I da Metafísica de Aristóteles, é
operam, mas também aqueles que
perceptível que a arte e a experiência,
produzem o direito como Ciência ,
como ele coloca, são representações
perceberem
icônicas de uma
relação
própria
do moderno, qual
seja: do universal
e do particular.
Com efeito, esses
dois âmbitos são
postos de forma
complementar,
sendo
a
arte
necessária
à
a
necessidade
experiência
A grande transformação
há de acontecer quando
percebermos que a
relação processual, os
autos são
representações artísticas
(...) do complexo.
da
do
jurídico
e
sua
importância
na
construção
do
abstrato, do universal.
E a experiência do
jurídico não se revele,
como
as
pessoas
costumam a acreditar,
no balcão do fórum,
no gabinete do juiz,
experiência, assim como a experiência
do
defensor,
promotor
etc.
A
necessária à arte. Então, a pergunta que
experiência do jurídico acontece em
faço é: como se pode contribuir para um
nossas vidas, e essa é a grande
conhecimento na Ciência do Direito
dificuldade das pessoas que acham que
tendo em vista essa relação?
o jurídico está nos autos processuais.
Todos os dias nós experimentamos o
Alethes | 132
FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
direito. Há a todo momento um
a complexidade do particular significa ir
conjunto de regras restringindo alguns
fundo no empírico e daí trazer nessa
de seus passos, mas ao mesmo tempo
relação
possibilitando que você caminhe. Eu
complexidade
percebo hoje que essas relações estão
abstração do universal
separadas, pois se você é um teórico
almejar uma ciência melhor. Mas a
você
grandes
ciência acaba ficando refém ora do
sistemas abstratos, enquanto a empiria
empírico (reducionista), ora do artístico
foi reduzida a uma prática jurídica
(abstrato)
muito
JV:
deve
pensar
limitada.
sobre
Então
a
grande
dialética
Você
do
encontro
particular
da
com
a
que podemos
atualmente
desenvolve
transformação há de acontecer quanto
projetos de pesquisa que trabalham com
percebermos que a relação processual,
alguns temas delicados, especialmente
os autos são representações artísticas,
as
nos
conhecimento tradicional.
termos
aqui
colocados,
do
complexo. Você não vai viver o direito
ali,
mas
verdade
doenças
negligenciadas
experimenta
o
Direito a partir de
todo um conjunto
de relação para
o
Qual é a
relação de conhecimento, em sentido
na
você
e
amplo,
A abstração do universal
das leis de patente não dá
conta da complexidade do
particular
além disso. E essa
que
pode
se
extrair
desses projetos até
o momento?
MV:
Bem,
eu
procuro sempre ter
uma
certa
dificuldade de perceber isso que gera
coerência com as escolhar que realizer
um
que
na minha vida de docente e pesquisador,
presenciamos todos os dias, talvez essa
ou seja, da minha percepção ideológica
percepção
de mundo. E daí como se dá essa
monte
de
do
injustiças
direito
como
é
dissimulada nas faculdade de direito ela
escolha,
gera
negligencidas,
profissionais
debilitados,
isto
é,
porque
proque
doenças
conhecimento
profissionais que não conseguem lidar
tradicional... primeiro é a questão da
com a complexidade do fato, querendo
escolha: é uma relação na verdada da
enquadrar o fato antes mesmo dele
experiência que tratávamos na questão
existitr,
as
anterior, a percepção da falibilidade do
sua
jurídico de lidar com dois temas muitos
profundidade.Isso proque compreender
sensíveis, primeiro o patenteamento de
relações
deixando
da
de
conhecer
experiência
na
Alethes | 133
FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
drogas de doenças negligencias, daí
aqui se tem na verdade uma própria
alguns
análise
transcrição para parâmetros ocidentais
econômica do direito: olha o numero
daquele selvagem, portanto podendo ser
aqui de mortes de malária não é
usada pelos civilizados. E porque eles
efetivamente significante, sendo uma
se tornam pra mim importantes é devido
relação tópica na região norte do Brasil.
a vivências que temos com o direito na
Mas a questão da escolha é que nesse
complexidade do real, saindo do teórico
ponto específico que a abstração do
para perceber a prática, mas não é uma
universal das leis de patente não dá
lógica
conta da complexidade do particular.
judicial. Na verdade, se coloca em
Daí o momento que se edita uma
questão de como a complexidade do
legislação que busca o desenvolvimento
particular
tecnológico, a ciência tendo em vista o
transformação da legislação. Eu gosto
interesse social, você tem em mente que
muito daquilo que costumo falar da
aquilo ali vai dar conta de diversas
construção crítica do Habermas, é o ir e
relações do particular, mas a partir do
vir entre o empírico e o abstrato, sendo
momento que no Brasil tem regiões
que a todo momento você deve tentar
endêmicas de malária, leishmaniose e
observar em que medida o empírico
não se tem a produção do mercado de
ajuda a construir o abstrato e em que
medicamentos de baixo custo para
medida o contrário se faz válido, mas se
pessoas carentes se tem aí uma relação
você
problemática
da
detrimento do outro você terá na
legislação. É a partir daí que passamos a
verdade um conhecimento estéril que
pensar a falibilidade do jurídico, sendo
não é capaz de produzir transformações
que
e muito menos revoluções na ciência.
o
começam
da
mesmo
a
fazer
efetividade
acontece
com
o
legislativa
pode
ou
uma
técnica
promover
superdimensiona
uma
um
em
Conhecimento Tradicional: Por que o
JV: Para concluir, você consideraria
Conhecimento Tradicional é tratado
que
como algo distinto e inferior ao
especialmente os professores, deveriam
conhecimento científico convencional e
estar abertos a considerarem os pontos
ocidental? É uma relação própria de
fora do eixo cartesiano como também
redução ao selvagem, valendo aquele
possíveis formar de conhecimento? Por
que na verdade decodifica o DNA ou
exemplo, será que o conhecimento
uma formula química, mesmo que o
tradicional
efeito seja o mesmo do tradicional, mas
universidades?
a
universidade
poderia
ser
pública,
usado
e
nas
Alethes | 134
FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
MV: Claro! Hoje o grande debate na
novo? Ser capaz de transformar no
universidade
deve
formas
sentido revolucionário da palavra o
alternativas
de
do
mundo em que a gente vive e as formas
conhecimento. Nós temos de superar
de vida que temos hoje. Um cientista,
essa dimensão ocidental, reducionista e
docente e pesquisador que tem essa
tecnicista
vontade
do
ser
de
produção
conhecimento
na
de
transformação,
de
universidade, pois isso tudo distancia o
revolucionar o conhecimento científico,
conhecimento da realidade, dissocia o
ele deve ter um olhar atente e um
conhecimento da vivência. E quanto
escutar qualificado sobre a sociedade,
mais distante estou das experiências,
sobre o mundo, sobre as pessoas. Ele
das nossas histórias de vida, como diz lá
tem de ser, principalmente, um sujeito
o Richard Sennett, você se torna menos
capaz de produzir um conhecimento que
criativo.
se
está dentro de uma história de vida,
pauperizando aos longos dos tempos,
sendo que seu conhecimento produzido
porque você se torna reprodutor daquilo
deve ser capaz de transformar a sua
que já existe, daí você reproduz e
própria
alimenta um sistema com seu próprio
pesquisador não conseguir entender que
fruto. Então, esse sistema se torna uma
o que ele pesquisa não é distinto da sua
máquina,
orgânico,
vida, da sua biografia ele continuará
impedindo as possibilidades de que nós
sendo um autômato. Pesquisador tem de
irrigarmos esse sistemas com novas
ter um olhar crítico, não só sobre o
possibilidades de transformação. Elas
objeto de sua pesquisa, mas sobre o
acabam,
potência,
modo com o qual ele pesquisa e a forma
dormentes, nunca se tornando ato; a não
como estrutura sua pesquisa e o cerne:
ser que a gente comece a transformar
como ele escolhe o objeto e porque ele
nossa posição; o que meu método pode
escolhe o objeto. Caso contrário resta a
transformar? Será que ele não está na
ele ser crítico apenas na aparência, pois
verdade reproduzindo uma relação de
o crítico de verdade é aquele capaz de
conhecimento monológica? Até que
se reinventar e se angustiar com suas
ponto eu posso partir do método e
zonas de conforto.
Então
e
a
criação
não
ficando
algo
ali
em
vai
história.
Enquanto
o
perceber outras experiências em outras
vivencias do Direito, da Filosofia, da
Política, Economia etc. dentro da
universidade e a partir daí criar algo
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FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
Um cientista, docente e pesquisador que tem
essa vontade de transformação, de revolucionar
o conhecimento científico, ele deve ter um olhar
atento e um escutar qualificado sobre a
sociedade, sobre o mundo, sobre as pessoas. Ele
tem de ser, principalmente, um sujeito capaz de
produzir um conhecimento que está dentro de
uma história de vida, sendo que seu
conhecimento produzido deve ser capaz de
transformar a sua própria história. Enquanto o
pesquisador não conseguir entender que o que
ele pesquisa não é distinto da sua vida, da sua
biografia ele continuará sendo um autômato.
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FERES, M. V. C.; MOREIRA, J. V. F.
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Normas de Publicação
Normas de Publicação
1. Regras Gerais
1.1 Todo artigo deve ser de autoria exclusiva de graduandos, não havendo
restrições com relação a área de conhecimento abordada, desde que dialoguem com a
temática jurídica.
1.2 Para cada artigo submetido será aceito para avaliação apenas 1(um) trabalho
como primeiro autor e os demais como co-autor, não podendo ultrapassar o máximo de 3
(três) no total.
1.3 Para a submissão de trabalhos, o autor deve enviar três arquivos em formato
Word (.doc ou .docx) para o e-mail do periódico ([email protected]): um
arquivo com o texto completo do artigo; um segundo arquivo com o mesmo texto, mas
sem a identificação do autor; e um terceiro arquivo apenas com os dados (nome completo,
filiação institucional e contatos) do(s) autor(es) e área do Direito que abordada
diretamente no trabalho.
1.4 Os trabalhos devem conter de 15 a 20 laudas e estar de acordo com a
formatação descrita nos itens abaixo e disponíveis no site do periódico:
http://periodicoalethes.com.br/.
1.5 O artigo submetido deverá ser inédito, e não estar sob avaliação de nenhuma
outra revista. Entretanto, obras publicadas em anais de congressos e outros eventos
acadêmicos podem ser republicados na revista, contanto que tenham ocorrido alterações
substanciais.
2. Critérios de avaliação e aceitação dos artigos.
2.1 Todo artigo será submetido à análise do Conselho Editorial, sendo enviados a
dois pareceristas anônimos para avaliação qualitativa de conteúdo, segundo o método da
avaliação duplo-cega por pares.
2.2 Os pareceristas serão definidos pelos editores de acordo com a área de
atuação/formação, a qual deverá ser, na máxima medida do possível, coincidente com a
temática do artigo a ser avaliado.
2.3 Os pareceristas deverão optar por uma das seguintes recomendações:
Aprovado; reprovado; aprovado com necessidade de alterações. Caso haja uma aprovação
e uma reprovação, o artigo será enviado a um novo pareceristas para decisão final.
2.4 Recebidos os pareceres pelo Editor, esse definirá a publicação ou não dos
artigos, enviando as justificativas e especificações necessárias ao autor, com o intuito que
ele possa adequar seu trabalho às sugestões feitas e reenviá-lo para nova avaliação.
2.5 Os pareceres poderão conter indicações de bibliografia, sugestões de
mudanças na estrutura dos textos, acréscimo ou subtração de informações, críticas,
elogios, sugestões e outras observações julgadas pelo pareceristas como pertinentes para
a melhoria do conteúdo do artigo e para a adequação deste aos critérios definidos pela
revista.
2.6 Feitas as alterações pelos autores, caso sejam aprovadas pelo conselho
editorial, o artigo será publicado. A ALETHES, no entanto, reserva-se o direito de colocar
as obras nos números seguintes, conforme for a conveniência.
2.7 O processo de análise dos artigos terá o prazo de 30 a 45 dias, que se iniciará
ao fim da chamada de artigos, definido neste edital.
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Normas de Publicação
2.8 Serão utilizados como critérios: a adequação à metodologia científica; a
relevância do tema e a originalidade da abordagem; o bom delineamento do objeto de
pesquisa; a qualidade na seleção e no manejo da bibliografia pertinente; a utilização da
norma culta da língua portuguesa; e outros que forem julgados pertinentes.
2.9 A decisão dos editores é final, e dela não cabe recurso.
3. Estrutura e Formatação dos artigos.
3.1 Os artigos devem ser apresentados digitados em folha A4 (210 x 297 mm).
3.2 Editor de texto Word for Windows 6.0 ou posteriores. Times New Roman,
tamanho 12.
3.3 Margens esquerda, direita, superior e inferior de 2 cm.
3.4 Espaçamento e Parágrafos: Espaçamento 1,5 entre linhas, com texto
justificado. Parágrafo recuado 1,25 da margem esquerda e sem espaço entre parágrafos.
3.5 Texto.
3.5.1 A primeira página deve conter título (português e inglês) com no
máximo 15 palavras, com alinhamento centralizado, fonte Times New Roman,
tamanho 14, destacado em negrito
3.5.2 O nome do(s) autor(es) deve vir logo abaixo do título, com duplo
espaço, fonte Times New Roman, tamanho 12 e alinhados à direita.
3.5.3 O nome do autor deve ser acompanhado pela primeira nota de
rodapé, contendo um breve currículo do autor, levando em consideração a
Instituição e o curso do graduando
3.5.4 A primeira página deve conter um resumo em português –
antecedidas pela expressão “Resumo:”, também em português e inglês - com no
máximo 300 palavras, fonte Times New Roman, tamanho 12.
3.5.5 As palavras-chave devem figurar logo abaixo do resumo, em um
número máximo de 5 palavras, com espaçamento simples, antecedidas da
expressão “Palavras-chave:”, em português e inglês; separadas entre si por ponto
e finalizadas também por ponto.
3.5.6 O texto, de forma geral, deve ser digitado, fonte Times New Roman,
tamanho 12, alinhamento justificado.
3.5.7 As notas devem ser postas no rodapé do texto, numeradas em
sequência, fonte Times New Roman, tamanho 10, alinhamento justificado.
3.5.8 As citações devem seguir a regra: se menores que três linhas, serem
inseridas diretamente no texto, entre aspas, com indicação da devida referência,
de acordo com as normas da ABNT. E, se maiores que três linhas, devem ser
destacadas com recuo à esquerda de 4 centímetros, fonte Times New Roman,
tamanho 10, com a indicação da devida referência, de acordo com as normas da
ABNT.
3.6 Referências Bibliográficas: As referências completas deverão ser
apresentadas, em ordem alfabética e no final do texto, de acordo com as normas da
ABNT.
4. Disposições Finais
4.1 As opiniões contidas nos artigos são de inteira responsabilidade dos seus
autores, de modo que a ALETHES não se responsabiliza pelo conteúdo dos textos que
publica.
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Normas de Publicação
4.2 A publicação dos artigos não terá por contrapartida qualquer tipo de
remuneração aos autores, especialmente financeira.
4.3 Os autores, ao concordarem com a publicação de seus artigos, estarão
concedendo do direito da primeira publicação à ALETHES. Ficam autorizados a
republicá-los futuramente, aceitando, contudo, citar o nome e edição da revista, fazendo
referência ao fato de a publicação original ter ocorrido na ALETHES.
4.4 A constatação de qualquer imoralidade, ilegalidade, fraude ou outra atitude
que coloque em dúvida a lisura da publicação, em especial a prática de plágio, importarão
imediato abortamento do processo de avaliação do artigo; caso este já tenha sido
publicado, ele será retirado da base da revista, sendo proibida sua posterior citação
vinculada ao nome da ALETHES, e, no número seguinte da revista, será publicado texto
divulgando e justificando o cancelamento da publicação.
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