artigo - Metodista

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ATUALIDADE
O jogo dos
PORQUÊS
nos ensina a pensar
P
Crianças devem ser apresentadas desde pequenas
ao universo da filosofia, já que a ideia de
questionar e buscar respostas é inerente ao seu
processo de crescimento
or volta dos três ou quatro anos de idade
as crianças começam a elaborar livremente questões muitas vezes radicais; despertam para a curiosidade e buscam entender
como as coisas acontecem. Nessa fase de
descobertas, seus questionamentos espontaneamente
contemplam as três grandes áreas do discurso filosófico, a saber, a lógica, a física e a ética.
Por que não existem mais dinossauros? Por que há
tantas línguas no mundo? Por que algumas pessoas
moram na rua? Quem inventou os computadores?
Por que as pessoas ficam doentes? Por que às vezes os
adultos choram quando estão felizes? Por que outras
crianças têm mais brinquedos do que nós? Como o
universo pode ser infinito? Por que o sol é tão grande e
não há humanos vivendo ali? Por que o Sol brilha? Por
que a Lua não cai? Por que o céu é azul? Que é isso?
Que é aquilo?
A chamada idade dos porquês é um período comum
e decisivo no desenvolvimento das crianças. Diante de
tais perguntas, o adulto não deve ter a pretensão de
possuir todas as respostas. No entanto, deve procurar fornecer um conjunto de artifícios de modo que o
interesse da criança seja constantemente estimulado,
diferentemente do que muitas vezes possa ocorrer em
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várias escolas onde as dinâmicas do ensinamento que
lhes apresentam oferecem um saber estruturado que
eventualmente pode se sobrepor às dúvidas e prejudicar a construção da sua própria identidade.
Em tempos de trepidações políticas, proibições e
reformas na educação de caráter no mínimo discutível, minha sugestão é dupla: a Filosofia deve ser apresentada para crianças o mais cedo possível; ótimo
seria se lhes apresentassem Platão.
A característica fundamental do texto desse filósofo grego é o diálogo. Platão diz que somente a capacidade de dialogar – ele vai chamar essa expressão
de dialégesthai dýnamis – pode revelar o que há de
mais importante nas coisas, deixando de lado simples
imagens derivadas de meras opiniões. Quando as
pessoas aprendem a dialogar encontram condições
adequadas para apreender cada coisa como ela é na
sua essência, ao contrário de outras dinâmicas que
não conseguem ir além de manifestações de desejos
e opiniões.
ASPECTOS
O diálogo, portanto, é um exercício modelador
e sobre esta essência do texto de Platão dois pontos
merecem ser destacados. O primeiro ponto diz respei-
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to ao aspecto do acordo – que no interior
do pensamento de Platão é chamado de
homologia –, pelo qual não há possibilidade de diálogo sem que as partes estabeleçam um acordo a respeito do objeto
que vão discutir. O segundo aspecto é
que todo diálogo tem início a partir de
uma pergunta fundamental, a saber, “que
é?” – que no interior do pensamento de
Platão é chamado de ti estí;.
O acordo e a pergunta fazem com que
o diálogo se constitua de tal modo; logo,
o jogo dos porquês pode nos ensinar a
pensar. A curiosidade infantil e a Filosofia dividem o mesmo interesse. Ambas
são amigas da pergunta, ambas gostam
do diálogo.
A Filosofia ajuda a reconhecermos
uma ideia. Como já dissemos, a Filosofia nos ajuda a fundamentar nossas
opiniões, a construir uma imagem
própria das coisas e a passar ao largo
daquelas respostas de caráter geral,
consequências de uma mera reprodução
ou de algum automatismo intelectual.
No entanto, parafraseando uma
célebre passagem da Apologia de Sócrates, alguém poderia talvez dizer: “Mas a
Filosofia é uma perda de tempo e, além
do mais, é uma atividade que gera na
mente de quem a pratica confusões e
ideias estranhas”. É razoável pensarmos que estas pessoas desconheçam que
tais confusões são benéficas e que tais
“ideias supostamente estranhas” não
são nada mais do que opiniões que desafiam aquelas mais recorrentes.
Como professor de Filosofia, suponho que seja mais adequado para crianças, jovens ou adultos estimularem o
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Rineu Quinalia
Fh. é Professor do
curso de Filosofia
da Escola de
Comunicação,
Educação e
Humanidades
da Universidade
Metodista de São
Paulo (UMESP) e
doutorando em
Filosofia pela
Universidade
Federal de São
Carlos (UFSCar).
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ATUALIDADE
IMAGEM:
A FILOSOFIA
NÃO PODE SER
CONFUNDIDA
COMO UMA
ESPECIE DE
RELIGIÃO
PORQUE,
DIFERENTEMENTE
DAQUELA, NÃO E
ORIGINALMENTE
DOGMÁTICA
nisso, a única vergonha reside em
fingir que temos todas as repostas.
Talvez por isso seja muito mais
adequado e produtivo, em meio à
rica experiência estética da sala de
aula, configurar a prática de ensino como um diálogo compreendido na forma de um grande
mosaico (o qual, em grego, quer
dizer “obra das musas”) composto
de acordos, perguntas, artifícios
e eventuais respostas que possam
enriquecer e qualificar a dúvida.
Diante das perguntas radicais, sobretudo das crianças,
saibamos usar o próprio instinto
indagativo do pequeno perguntador para estimular a reflexão
– tanto neles quanto também em
nós – muito mais do que tentar
liquidá-las com frases do tipo:
“... deixa pra lá”, “... você é muito
pequeno pra isso”, “... isso é assunto de gente grande”, “... agora não
tenho tempo”, “...você ainda é
muito imaturo”, ou algo ainda pior,
SHUTTERSTOCK, .INC
debate, bem como apontar que o
“exercício modelador” representado pelo diálogo é um itinerário
do pensamento, cujo caminho é
traçado por um acordo constantemente mantido entre aquele que
interroga e aquele que responde e
que é mais saudável praticar esse
exercício e aceitar eventuais incertezas do que promover a transmissão de um conteúdo estruturado,
pleno de desejo de segurança.
Assim, o diálogo entendido como
um “exercício modelador”, voltado a dar e a receber razões, pode
então se tornar uma atividade
científica.
A Ciência, no interior do
pensamento clássico, é chamada
de epistemē, sendo sinônimo de
Filosofia. Logo, convém lembrar
que o próprio Platão nos aponta
que a ciência trabalha na fronteira
entre a inteligência e a ignorância.
Não devemos temer admitir o que
não sabemos. Não há vergonha
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ou seja, deixar que a pergunta se
dissolva num silêncio absoluto.
A experiência do estudo da
história da Filosofia em sala de
aula é bela porque é rica e é boa
porque é doce. Logo, faz com que
todos nós possamos saborear tal
docilidade e propor aos alunos os
mais diversos gostos. Este estudo
faz com que adquiramos um algo
mais e não tombemos diante dos
mais diversos questionamentos
que surgem e ressurgem em nossas
vidas. A Filosofia, entendida como
um exercício, faz com que possamos: (i) compreender questões e
qualificar opiniões; (ii) aprender a
dialogar e saber tomar como ponto
de partida a posição do outro e (iii)
ter consciência de que a palavra
tem poder terapêutico.
Talvez de modo imediato, a
Filosofia não seja útil do ponto
de vista corporativo ou pragmático. Por exemplo, em uma
entrevista de trabalho. Certamente, você não será contratado
por saber “filosofar”, mas nem
por isso deixa absolutamente
de ser uma atividade valorosa,
uma ferramenta adequada, para
quando estivermos diante seja
de uma sala de aula, de colegas de escritório numa reunião
de trabalho, em meio a debates
familiares, em discussões com
amigos ou até mesmo com crianças que exigem respostas para
perguntas radicais.
DIFERENÇAS
A Filosofia não pode ser confundida como uma espécie de religião
porque, diferentemente daquela,
não é originalmente dogmática.
A Filosofia não diz: “Eu possuo a
verdade e sou capaz de transmiti-
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A FILOSOFIA ESTIMULA A FORMAÇÃO DE UM
CARÁTER QUESTIONADOR, O QUAL NÃO SE
CANSA DE COLOCAR EM CRISE TODAS AQUELAS
RESPOSTAS E CERTEZAS QUE ESTÃO DIANTE DE
NOS E QUE SE PROPÕEM COMO INABALÁVEIS
-la”. A atividade filosófica consiste
em difundir que a verdade, antes
de tudo, é incompleta, imperfeita, e
além do mais encontra-se misturada com tantos outros enganos que
habitam cada ser humano.
O condutor dos estudos – o
professor –, portanto, não pode
ser aquele que ambiciona transmitir verdades ou responder a
todas as perguntas, mas aquele
que ajuda, colabora e trabalha
fundamentalmente com o discernimento de crianças e alunos,
para que possam crescer qualificados, livres para identificar e
fundamentar “verdades” em meio
à confusão das opiniões.
Quando perguntaram a Sócrates o que ensinava, ele respondeu
prontamente que “nada ensinava”,
pois ele próprio admitia que era
ignorante, logo, que era privado
de algum saber. Todavia, admitia
que possuía uma atividade, que
praticava um exercício: dizia que
ajudava a todos que ambicionavam saber alguma coisa a fundamentar (por meio justamente do
diálogo) suas opiniões e a transformá-las em argumentos mais
sólidos de forma que pudessem
se sustentar, se manterem firmes,
de modo autônomo, sem ampará-los com autoritarismos, mediante
crenças infundadas ou até mesmo
por impacto emocional sob o
domínio de afetos.
De fato, como dissemos anteriormente, chama-se epistemē
o saber filosófico, uma palavra
grega que traduzimos por ciência, mas que literalmente significa
“aquilo que está por cima – que
se sustenta”. Sócrates dizia não
conhecer nenhum tipo de verdade
para transmitir. Porém, comparava sua atividade com a de sua mãe,
que era doula; e como sua mãe, ele
ajudava quem vinha a ter com ele
a trazer à luz, não seres humanos,
mas a saberes que muitos deles
nem sabiam trazer dentro de si.
Esse procedimento dialógico
também foi denominado de “filo-sofia”, que pode significar “amor
pela sabedoria”. Nesse caso, o
amor não é posse; é busca, tensão,
investigação e desejo pela coisa
desejada (ou pela pessoa amada).
Sendo por isso que no texto de
Platão a genitora do amor não é a
deusa Afrodite, mas uma personagem bem mais modesta chamada Penia, que significa penúria,
pobreza.
Justamente por ter raízes na
pobreza, na penúria, o amor não
possui, mas busca – dinâmica
similar à atividade filosófica que,
como tentei dizer, não possui
nada, sobretudo, nenhuma verdade para transmitir.
Assim, tal qual aquelas crianças que mencionamos no início
desse texto e esse tipo de amor não
possessivo, a Filosofia é inquieta,
pois não detém nenhuma verdade,
somente busca. E para se efetivar
compõe perguntas e mais pergun-
tas e, a partir delas, cria artifícios
para a investigação.
O mundo adulto e também
de certo modo as ciências exatas
pensam saber como as coisas
estão e ignoram muitas vezes essas
perguntas que amiúde são evitadas
justamente porque, provavelmente, se levadas a sério poderiam colocar em crise muitas das
respostas que os próprios adultos
e também as ciências exatas estabelecem para levar adiante suas
próprias vidas.
ESTÍMULOS
Concluo propondo que a Filosofia não é necessariamente um
saber, ou uma fonte produtora
de verdades, e sim um “exercício de vida”. A Filosofia estimula
a formação de um caráter questionador, o qual não se cansa de
colocar em crise todas aquelas
respostas e certezas que estão
diante de nós e que se propõem
como inabaláveis, mas que, provavelmente, com um simples abalo
provocado por uma pergunta
de uma criança são suscetíveis a
tombarem e não se manterem –
como a ciência – de pé.
Chamemos de Filosofia, se
quisermos, a forma de pensamento que se interroga, por isso
sugiro que viver exercitando a
Filosofia pode ser boa maneira de
tentar construir, ao redor de si,
um mundo possível, que possa ir
muito além do mundo real.
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