PROPOSTA DE PROGRAMA PARA A SOCIEDADE BRASILEIRA DE HEPATOLOGIA Edison Roberto Parise Como é do conhecimento de todos, houve uma solicitação da Diretoria da Sociedade Brasileira de Hepatologia para que os candidatos apresentassem suas propostas de trabalho para seu período de Presidência nessa entidade. Nessa ocasião foram colocadas algumas questões que passarei a responder nas linhas abaixo. Minha formação e minhas atuações como hepatologista, pesquisador e professor universitário podem ser averiguadas de forma isenta e padronizada através do acesso ao Curriculum Lattes, no CNPq. Prefiro aproveitar este espaço para expor minhas principais propostas de trabalho como candidato à Presidência da SBH. A Hepatologia nasceu em nosso meio graças a seus pioneiros, como FigueiredoMendes, Luiz Caetano, Jorge Toledo, Silvano Raia, Laurentys e Luiz Gayotto na região sudeste, Waldomiro Dantas e Pereira Lima no sul, Amaury Coutinho e Zilton de Andrade no nordeste e Gilberta Benzabath no norte. Coube à nossa geração disseminar, expandir e estabelecer a Hepatologia como uma realidade nesse país, às vezes com esforços pessoais hoje inimagináveis. Atualmente esta mesma Hepatologia está diante de desafios importantes na busca de seu crescimento como especialidade médica. A Hepatologia como Especialidade. Conceito, importância política e o mercado de trabalho Não queremos ser uma especialidade: JÁ SOMOS, só precisamos ser reconhecidos como tal. Para começar vamos exorcizar a idéia de que ser especialidade implica em romper com a Gastroenterologia. É incrível como o foco da discussão foi distorcido. Durante vários anos FOMOS especialidade e nem por isso rompemos nem nos afastamos da Gastroenterologia. Também se alega que estamos restringindo ou segmentando a atuação do médico ou o conhecimento. Certamente essa alegação, vem do passado onde a especialidade representava o esquartejamento do ser humano. Ao contrário, a Hepatologia amplia em muito os conhecimentos e a integração holística. Hoje precisamos ter conhecimentos de áreas da Clínica Médica como a Endocrinologia, Nefrologia, Neurologia, Cardiologia, Pneumologia, Hematologia e também a Gastroenterologia, além de Infectologia, Virologia, Imunologia, Oncologia, Biologia Molecular e Transplante de Órgãos. Assim a residência em Gastroenterologia tornou-se insuficiente para todo este preparo. A verdade é que a Hepatologia transcendeu a Gastroenterologia e, ao invés de segmentar, amplia a integração do conhecimento médico. Uma conquista recente da atual Diretoria da SBH foi expandir a residência médica em Hepatologia para dois anos, que julgamos indispensável face à diversidade de conhecimentos necessários à completa formação do hepatologista. Porém, como solicitar, no mercado de trabalho atual, que um jovem médico faça dois anos de Clínica Médica, dois de Gastroenterologia, para finalmente fazer mais dois anos de Hepatologia? E tudo isso para o quê? Para ter um certificado de ÁREA DE ATUAÇÃO, igual ao profissional que faz Mamografia ou Eletrofisiologia!! Será que nem podemos comparar nossa situação com a que vivem a Mastologia, antes ligada à Ginecologia e Obstetrícia ou à Cirurgia da Mão, antes ligada à Ortopedia, ambas reconhecidas como ESPECIALIDADES!! Também não é válida a justificativa de que não existe mercado de trabalho para Hepatologistas. A atual Diretoria da SBH tem demonstrado em números e fatos a necessidade de termos Hepatologistas no Brasil e o impacto social que isso representa no tratamento do enfermo de nossa especialidade. Todos nós sabemos que na maior parte desse país o paciente diagnosticado como cirrótico está sendo mal cuidado, quando não precocemente condenado. Assim, vou me ater aos outros fatores. Como não somos uma especialidade, não são abertos concursos públicos para preenchimento de vagas nessa área. O atendimento dessa população fica a cargo de quem? Temos vários testemunhos e sabemos do nosso dia-a-dia que o clínico geral do SUS que recebe um paciente com hepatite crônica frequentemente encaminha o caso para o infectologista, os pacientes com carcinoma hepatocelular para o oncologista e, em breve, um paciente com esteatose irá para o endocrinologista. Como especialistas, sabemos que o hepatologista é o médico especificamente habilitado a cuidar desses casos. Como não somos uma especialidade não temos como reclamar para nossa área a realização de procedimentos. A cada dia, mais biópsias hepáticas, alcoolizações de tumores, paracenteses, elastografias hepáticas, são realizados por profissionais de outras áreas de especialidade. Também por essa razão, não podemos ter o transplante hepático incorporado definitivamente à Hepatologia, o que traria, sem dúvida, maior integração entre cirurgiões e clínicos e ampliaria o campo de trabalho. Não tivemos hepatologistas no país em número suficiente para dar tratamento e cuidar de 1,5% da população infectada pelo vírus C. E agora poderemos atender os 20% a 30% da população adulta do país com doença hepática gordurosa não alcoólica ? Não acredito que, na forma como está, a formação do Hepatologista, possa atrair o gastroenterologista em número tal que possamos popularizar nossa especialidade como precisamos. Quando na presidência da Associação Paulista para o Estudo do Fígado (APEF), realizamos um curso de hepatologia para gastroenterologistas e gastrocirurgiões, levando três ou quatro colegas de São Paulo para as mais importantes cidades do interior de São Paulo. A despeito de tentarmos inúmeras modificações no formato do curso, o interesse foi tão baixo que tivemos de cancelar o último evento que estava programado para Ribeirão Prêto. Além disso, todos nós que trabalhamos em serviços de Gastroenterologia sabemos que a Endoscopia é o destino da imensa maioria dos nossos alunos. Ser especialidade é fundamental para reverter toda essa situação e que não pode ser minimizada com o argumento de que a EASL e a AASLD ainda permanecem ligadas à Gastroenterologia. Não precisamos nem dizer que essa discussão está longe de ter sido encerrada nessas associações. Mas será que podemos comparar essas realidades com a da SBH? Afinal queremos ser especialidade para ter a mesma força que elas têm. A AASLD e EASL são entidades política, econômica e científicamente muito fortes, a ponto de ditar as normas para o tratamento das hepatites virais, o câncer de fígado e o transplante hepático para o mundo todo e para todas especialidades. O papel do hepatologista nesses centros está bem determinado e são eles que detêm o controle dos pacientes institucionais e privados; numa situação bem diferente da nossa, que necessita se firmar e crescer, ou, mais do que isso, buscar o lugar que já foi seu. A importância política pode ser medida por acontecimentos recentes. Alguém imagina que os organizadores do DDW solicitariam que a AASLD cancelasse seu congresso anual e só o fizesse no DDW? E se não fosse atendido o pedido, a AASLD seria excluída do DDW?!! A Gastroenterologia continuará sendo importante provedora de hepatologistas, pois vários colegas, atuando em centros menores fazem muito bem as duas especialidades. Não é necessário renunciar à Gastroenterologia para ser Hepatologista. Nesse projeto de extensão, queremos inclusão de novos profissionais, também procedentes de outras áreas, porém com formação adequada e completa – através de residência médica – fazendo igualmente duas especialidades, como clínica médica e hepatologia ou infectologia e hepatologia. Esta prerrogativa está perfeitamente prevista e aceita pela Associação Médica Brasileira. Sabemos que não são muitos os colegas que se dedicam com exclusividade à Hepatologia e este cenário não vai ser modificado em curto prazo. Outro efeito colateral dessa situação é a importante heterogeneidade que enfrentamos na formação do Hepatologista, cada serviço formando o profissional de acordo com sua cabeça, sem que haja um programa mínimo de acompanhamento. Neste sentido a SBH deve somar esforços aos projetos do Ministério da Saúde de aumentar o número de bolsas para residentes em todo o país, com abertura de 1.000 novas bolsas por ano, nos próximos quatro anos, privilegiando locais menos assistidos, com finalidade de fixar médicos nessas regiões, onde faltam esses profissionais. Nossa tarefa é demonstrar a carência de hepatologistas e o grande número de pacientes com problemas hepáticos, ligados principalmente ao alcoolismo e às doenças virais e metabólicas. No sentido de aumentar ainda mais o campo de atuação é preciso que a especialidade seja conhecida. Sempre disse que não devíamos nos chamar Sociedade de Hepatologia e sim Sociedade Brasileira das Doenças do Fígado. Quem de nós já não foi chamado de Hematologista ou Infectologista?! Quem de nós já não teve que explicar o que é hepatologia ou que existe médico que cuida do fígado(!!) para leigos e, o que é pior, até para colegas de profissão!! Da relação com a comunidade Esse país que vivemos tem a síndrome de sofrer do fígado e nós não conseguimos ainda encontrar um meio de atrair a sociedade brasileira para educá-la e dela cuidar. Só teremos convênios médicos e serviços públicos com Hepatologistas se o público leigo pedir por eles. Acredito que precisamos nos afastar um pouco da atitude distante da Academia e nos aproximarmos mais do público leigo. Nesse ponto acredito que uma das formas de alcançar essa divulgação seja apoiando as ONGs. Nenhum de nós pode menosprezar a força que elas têm tido na luta contra a Hepatite C. Também não podemos deixar de lembrar que vivemos sob um regime de governo onde a pressão popular é significativa. Existe inúmeras ONGs que se soubermos ser parceiros (sempre com o distanciamento preciso para se evitar contaminações desnecessárias) podem nos auxiliar a divulgar a especialidade e nos ajudar a entrar em contacto com a sociedade civil para orientar a saúde dos nossos pacientes. Na presidência da Associação Paulista para o Estudo do Figado (APEF), patrocinamos vários encontros com a comunidade com o apoio das ONGs e foram experiências muito bem sucedidas e gratificantes para os profissionais de saúde e para os membros da comunidade. Lógico que a utilização da mídia é também fundamental nesse objetivo e temos que promover situações que provoquem notícia nos meios de divulgação. Desde o ano passado estamos trabalhando numa proposta de um mutirão da esteatose que levaríamos adiante no estado de São Paulo e que, a pedido do Prof. Paraná, começamos a expandir o projeto para o Brasil todo. Entretanto, a dificuldade de patrocínio, fez com que não conseguíssemos concluir a idéia ainda nessa gestão, mas o projeto continua e poderemos levá-lo adiante nos próximos anos. A utilização do site da SBH é outra arma para ampliarmos o contacto com a comunidade, assim como participar das lutas sociais em prol de nossos pacientes. Quem de nós não fica indignado de ver que pacientes do sistema privado buscam medicação de alto custo no SUS, que deveria atender ao sistema público, e os convênios médicos não se responsabilizam por nenhum centavo desse tratamento!! Da representatividade da Sociedade Brasileira de Hepatologia. A SBH tem o dever de sempre procurar a maior participação de todos os estados e de todos os hepatologistas em suas decisões e acredito que o caminho mais fácil é incentivando a criação de Associações Estudais para o Estudo do Fígado (como as que já existem em vários estados), mas criando mecanismos para a participação dessas entidades nas decisões da SBH. Pode-se facilmente criar um Conselho Consultivo, onde todos os presidentes das Associações Estaduais tivessem assento garantido, como primeiro passo para que no futuro, quem sabe, tenhamos uma Federação. Todo importante passo ou decisão da Diretoria passaria por esse Conselho para opinar e divulgar entre seus associados. Esse sistema fortaleceria as Associações e criaria a participação mais ativa da coletividade. Do papel científico da SBH Com as diretrizes de conduta da SBH que temos realizado, estabelecemos um patamar básico e necessário para vôos mais ousados. É inegável a qualidade e maturidade de nossos centros de pesquisa e investigação clínica e, nesse caso não podemos negar o importante papel que a Indústria farmacêutica teve nesse aprendizado. Mas a pesquisa hoje é ditada pela Indústria, em critérios algumas vezes questionáveis na escolha dos assuntos e dos pesquisadores. Ninguém é ingênuo em pensar que isso pode mudar radicalmente, mas acredito que seja hora de tentarmos algo que fortaleça a Instituição SBH e não apenas o indivíduo. Qual o sistema que existe para que, a partir da SBH, seja possível tomar conhecimento dos centros de pesquisa no Brasil e de suas competências? O que realmente sabemos deles? Que interação existe? Precisamos catalogar os Centros, divulgá-los junto aos Centros de Financiamento e da Indústria Farmacêutica e criar intercâmbios dentro e fora do país, além de estimular a realização de estudos multicêntricos entre nós. Será que a hepatologia se restringe às hepatites virais? Pois só nela conseguimos até hoje fazer estudos cooperativos. Precisamos estimular estudos em complicações da hipertensão portal, por exemplo, pois só a instituição é capaz de desenvolver esses temas de interesse da comunidade. O intercâmbio entre as instituições nacionais deve ser uma prioridade da SBH. A Hepatologia conta hoje com centros de qualidade em várias regiões do país, fora do eixo das grandes capitais do Sul e Sudeste e de parte do Nordeste. Temos centros de qualidade se estabelecendo no interior dos estados e nas regiões Norte-Nordeste mais distantes, que poderiam contar com a SBH para seu crescimento. Muitos desses serviços enviam seus residentes ou pós-graduandos para estágios de curta duração nos grandes centros, mas são iniciativas isoladas que muitas vezes dependem da boa vontade do serviço que recebe o médico e da capacidade do visitante em se manter economicamente, o que limita esse acesso. Não estamos com isso propondo que esse estágio seja para formar o hepatologista, mas sim para complementar sua formação. Por exemplo, nem todos os centros poderão ter acesso a um serviço de transplante no Brasil, ou desenvolver metodologia mais avançada de pesquisa clínica ou ter acesso a novas modalidades terapêuticas. Se a necessidade é pontual, porque afastar por vários meses um colega de sua cidade, de suas obrigações familiares, de seu emprego. Períodos de estágios práticos de curta duração podem auxiliar em muito o desenvolvimento desses centros, além de criar um intercâmbio interessante entre os Serviços. No outro extremo temos a experiência internacional. Como crescer e manter a qualidade?! Certamente devemos manter os entendimentos iniciados pela atual Diretoria da SBH com a EASL, e tentar também o relacionamento com a AASLD, pelos contactos que vários de nós temos com membros da Associação Americana, buscando patrocinar esse intercâmbio entre pesquisadores nacionais e de fora do país. Esses intercâmbios nacionais e internacionais já ocorreram em nosso meio, ora com o apoio de agencias governamentais, ora com o apoio da Indústria Farmacêutica, deixando claro que com um bom projeto teremos apoio para buscar essas metas. Relação com a Indústria Farmacêutica e a FBG Outro item levantado para a discussão foi sobre a relação da SBH com a Indústria Farmacêutica. Acredito que o relacionamento institucional (e não o individual) e a transparência no relacionamento seja o melhor antídoto a qualquer conotação aética. Esse relacionamento pode nos auxiliar a crescer sem fobias e ranços do passado, mas sem açodamentos e preferências que podem minar esse relacionamento. Até hoje foi assim o relacionamento de todas Diretorias da Sociedade Brasileira de Hepatologia e não vemos nenhum motivo para mudar. Por fim, neste ano, através de uma decisão praticamente unânime da ASSEMBLÉIA GERAL DA SBH, rejeitamos a idéia da suspensão de nosso Congresso bianual, nos incorporando à SBAD. Em decorrência desse fato, a SBH não foi convidada para participar da organização do evento. Muitos colegas propuseram que não participássemos do evento. Minha posição nesse caso foi expressa em correspondência encaminhada ao atual Presidente da SBH onde ponderei que o boicote ao Congresso só serviria para agravar uma situação que vejo como momentânea e pontual e que de nada serviria aos nossos esforços em buscar nossa efetivação como Especialidade. Por outro lado, submeti minha participação no SBAD à aprovação da Diretoria como forma de reforçar a autoridade da Diretoria que agiu não em seu nome, mas em nome de todos Hepatologistas presentes na assembléia geral da SBH. Dessa forma meu programa de trabalho está baseado na continuação da luta pela Hepatologia como especialidade, porque sempre fui fiel às minhas convicções e não as modifiquei em todos esses anos e nem as modificarei agora como candidato à presidência da SBH. Proponho aumentar a participação dos colegas de todos os estados brasileiros nas decisões da SBH, estimulando a criação de Associações Estaduais que possam ter assento a um Conselho Consultor, efetivo, não decorativo. Buscar o crescimento da especialidade difundindo o programa de residência médica que já existe e que, sem dúvida será a grande ferramenta para formação do hepatologista que venha de outras áreas do conhecimento. Propor estudos multricêntricos nacionais, estimular o intercâmbio nacional e internacional e, mapear os centros de pesquisa para promovê-los junto às agencias de financiamento. Buscar a popularização da Especialidade, se aproximando mais da comunidade, promovendo encontros com o publico leigo, propondo ações de saúde que possam destacar nossa especialidade e, mais do que isso, contribuir para o bem estar e saúde da coletividade. Para isso conto com o apoio dos colegas em seus estados, para que possamos continuar o trabalho de todos os Presidentes da SBH que nos antecederam e que nos fizeram ter orgulho de ser Hepatologista.