TERCEIRO SETOR: SEU PAPEL IDEOLÓGICO E DE REAFIRMAÇÃO DE POLÍTICAS NEOLIBERAIS Elem Lustosa1. RESUMO: Este artigo apresenta o terceiro setor como papel ideológico de reafirmação de políticas neoliberais e seu espaço na sociedade. O objetivo deste trabalho é discutir a articulação das organizações do terceiro setor, o seu posicionamento político e a sua participação na sociedade como uma forma de consolidar a hegemonia do capitalismo. O trabalho apresenta, ainda, as contradições referentes à perca da capacidade do Estado Brasileiro de cumprir as suas funções e, assim, o Estado passa a “terceirizar” suas atribuições através do terceiro setor, caracterizando-se como uma alternativa de afastamento de sua responsabilidade social. Palavras-chave: Terceiro Setor; Estado; Políticas Públicas. 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo discutir sobre o papel do terceiro setor, desvelando o seu papel ideológico e fortalecedor do modo de produção capitalista, e consequentemente, a divisão de classes. Este estudo apresenta uma visão crítica da maneira como o terceiro setor é tratado e para compreender esse papel a pesquisa trata de aspectos relevantes no contexto social, pois não é possível compreender a esfera pública e a privada, senão, a partir dos seus condicionamentos e interesses sociais. O terceiro setor é um setor da sociedade civil onde atuam organização, com atividades supostamente voltadas para o interesse público e, também, como uma dimensão da participação da contemporaneidade, ele vem de encontro com o tema sociedade civil e democracia. Hoje, no terceiro setor existe, ainda, uma dependência com relação ao Estado e ao mercado, reproduzindo a sociedade de classes e reforçando o modo de produção capitalista. Em tese, as organizações do terceiro setor deveriam ocupar um espaço na esfera pública entre o público e o privado, com a necessidade de articulação, uma vez que é um setor público não estatal, e não poderia atuar de forma isolada, mas sim interagindo com as 1 Especialista em Gestão de Pessoas pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Professora de Administração da Faculdade Guarapuava, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected], Endereço: Rua Novo Ateneu, 1015 - Vale do Jordão, CEP: 85015-080, Guarapuava – PR. Brasil. __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 necessidades da sociedade e do Estado, mas o que acontece é que ele não consegue obter autonomia, e acaba por ser conduzido por interesses públicos e privado. Os institutos e as fundações empresarias, organizações que atuam no terceiro setor, têm se tornado um campo de disputa dentro da sociedade civil, onde essas organizações elaboram projetos políticos voltados para a responsabilidade social. Mas até que ponto essas empresas estão preocupadas com a sociedade? Ou seria mais uma maneira de fazer sua “imagem” no mercado e promover o seu lucro? A sociedade civil não pode ser vista de forma fragmentada e sim articulada à políticas públicas do Estado. Para que haja políticas reais de acordo com as necessidades dos grupos sociais. Para Warren (2006) é através das formas de articulação do terceiro setor que se dá a interlocução e a parcerias mais institucionalizadas entre a sociedade civil e o Estado. Este terceiro setor está realmente preparado para fazer este papel? Ou existem somente interesses em disputa? A grande discussão da temática do terceiro setor gira em torno da sua real participação na sociedade, da sua capacidade de desenvolver sua razão de fundação, sua capacidade de formação da opinião pública, de atuar na sociedade civil com debates, de formar grupos de trabalho, participar em projetos, proporcionar intercâmbio de informações e outros espaços de que tornam as propostas comprometidas com a sociedade. No primeiro momento da pesquisa é feita uma análise do que vem a ser o conceito de terceiro setor, que hoje, recebe inúmeras designações, e ainda, conta com autores que o defendem sem análise crítica. Em seguida o trabalho procura desmistificar o terceiro setor, reconhecendo a sua situação, a flexibilização das relações de trabalho, a sua precarização (crescente informalidade e flexibilidade), o Estado como ineficiente para cumprir suas responsabilidades sociais e o contexto de capital e trabalho. Aparentemente, o terceiro setor aparece como um espaço de participação e de harmonia na esfera pública, porém, sua verdadeira manifestação é de reproduzir a sociedade capitalista. Nossa sociedade estrutura-se como um sistema de relações de força material, onde o Estado e o capital reforçam a sua ação. Montaño (2007, p. 23) comenta sobre esta questão de reprodução da miopia da sociedade: Neste sentido, o objetivo de retirar o Estado (e o capital) da responsabilidade de intervenção na “questão social” e de transferi-los para a esfera de “terceiro setor” não ocorre por motivos de eficiência (como se as ONGs fossem naturalmente mais eficientes que o Estado), nem apenas por razões financeiras: reduzir os custos necessários para sustentar esta função estatal. O Motivo é fundamentalmente político-ideológico: retirar e esvaziar a dimensão do direito universal do cidadão quanto a políticas sociais (estatais) de qualidade. __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 Desta forma, o terceiro setor é colocado em um patamar com dever de assumir a responsabilidade das questões políticas do Estado, porém este setor passa a atender demandas em forma assistencialista e precarizada. Assim, a dominação econômica e material, exercida pela classe dominante continua a liderar com suas ideias e formação da opinião pública. Este artigo foi desenvolvido com base em referências bibliográficas de diversos autores, principalmente nas discussões de Carlos Montaño em seu livro “Terceiro Setor e a Questão Social”, cuja obra abrange uma forte argumentação crítica do olhar sobre o terceiro setor, possibilitando a reflexão dos condicionamentos sociais, apontando as suas implicações políticas e sociais, e ainda, os problemas e contradições existentes. Para compreender o termo terceiro setor é fundamental o entendimento de como ele se posiciona na esfera pública e o papel que assume a partir dos anos 80, onde o neoliberalismo emerge representando a reestruturação produtiva, o desenvolvimento da tecnologia, a flexibilização do trabalho e a reforma do Estado. De acordo com Nogueira (2004, p. 96) “[...] o processo de globalização é ao mesmo tempo, um movimento de potencialização da diferença e da exposição constante de cada cultura às outras, de minha identidade àquela do outro”. O que ocorre, nesse cenário capitalista, é um aumento da complexidade das relações sociais, da subordinação da classe dominada pela dominante e da tentativa de disfarçar para a sociedade que tudo está sob controle, quando na verdade, realmente está sob o controle sim, mas o controle da ideologia. 2 METODOLOGIA Para análise do trabalho utilizou-se de pesquisa bibliográfica sobre o tema terceiro setor e a questão social envolvida, as mudanças contextuais e a discussão hegemônica sobre o conceito. Este estudo foi desenvolvido sobre um recorte nas questões que envolvem o terceiro setor como: o uso do terceiro setor considerando as transformações ocorridas no capital, a promoção dos conceitos neoliberais e o terceiro setor ocupando o espaço dos movimentos sociais. A pesquisa bibliográfica propicia um diálogo entre os autores colocando sobre o discurso da ideologia dominante do terceiro setor, as suas contradições e suas formas de dissimulação. Para Gil (2007) As pesquisas sobre ideologias, bem como aquelas que se __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 propõem à análise das diversas posições acerca de um problema, também costumam ser desenvolvidas quase que exclusivamente mediante fontes bibliográficas. A trajetória desta pesquisa foi desenvolvida no sentido de reconhecer a importância dialética como forma de desvelar a cultura dominante que se tem reproduzido para a questão do terceiro setor, abordando um contexto epistemológico materialista, isto é, utilizando-se da realidade material para formar a história. Para compreender a realidade devem-se compreender os fenômenos, neste sentido Goldenberd (1999, p. 36) defende que “[...] a utilização do método bibliográfico em ciências sociais vem, necessariamente, acompanhada de uma discussão mais ampla sobre a questão da singularidade de um indivíduo versus o contexto social e histórico em está inserido”. Partindo desta visão para o terceiro setor, considera-se que a discussão sobre esse tema é muito mais ampla do que ela representa ser para a visão comum, visão esta sem propriedade e argumentação sobre o que realmente influencia na sociedade. Para análise das mudanças na sociedade fez-se uma discussão fundamentada e crítica da totalidade. Por este motivo, buscou-se dividir o artigo em tópicos, fazendo considerações necessárias a cada nova questão abordada. Vale ressaltar que a pesquisa não buscou aprofundamento na discussão das leis sobre ONGs e instituições sem fins lucrativos, e sim no conceito do papel em que o terceiro setor está desempenhando para reforçar o pensamento ideológico do capitalismo, assim como a visão distorcida que se tem da suposta participação harmônica entre o terceiro setor com Estado e o Mercado. Assim sendo, é indispensável conhecer o contexto social do modo de produção capitalista e sua estruturação para compor uma discussão sobre o terceiro setor e as políticas públicas, na tentativa de explicações para a atuação deste setor na lógica do capital. __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 3 REFERENCIAL TEÓRICO 3.1 A IDEOLOGIA PRESENTE NO TERCEIRO SETOR O conceito de terceiro setor está presente hoje, como uma perspectiva diferenciada do que realmente ele representa para a atual conjuntura social. Para a lógica do terceiro setor deve-se analisar a realidade em sua totalidade, pois ela se apresenta de forma parcial como um fenômeno isolado, porém ela é muito mais do que realmente as pessoas vêm. A visão que se tem do terceiro setor é uma visão idealizada, ou seja, a ideia é que cria a realidade, e o capitalismo vive conforme essa ideia. Assim, o conteúdo efetivo do que a retórica dominante chama de “terceiro setor”, tomado por ela, tem existência real, e precisa ser desvendado por meio da análise crítica e ontológica, e não a partir de “construção de ideias” (MONTANO, 2007, p. 5). O Terceiro setor é produto de uma mudança histórica que vem acontecendo na sociedade, produto de uma reestruturação, do neoliberalismo e novas formas de organização do capital. Neste sentido deve-se, então, pensar esse tema como produto de uma realidade que se apresenta em movimento e de forma contraditória. Para fundamentar essa dicotomia sobre o que ele representa e o que ele realmente deveria ser, Montaño (2007, p. 52) destaca: Uma coisa é “conceito de hegemônico” de “terceiro setor” e outra, muito diferente, é o “fenômeno real” em questão, encoberto por essa denominação. O primeiro expressa uma construção ideológica, que manifesta a aparência, mas escamoteia e encobre a essência do fenômeno. Para entender o terceiro setor como forma hegemônica de fortalecimento da ideologia capitalista, deve-se fazer um breve resgate histórico da criação deste conceito, que surgiu com os interesses das classes burguesas e até hoje se houve o discurso de “falar bem” do setor. Para análise do nascimento do termo “terceiro setor” existe várias datas de diversos autores, não se tem um marco exato, mas o seu discurso tomou proporções maiores nos anos 80 como uma proposta para superar as diferenças do público e do privado. No Brasil o conceito veio emergir em 1996 com o III Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor (MONTAÑO, 2007). __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 Acotto; Manzur, (2004) apud Montaño (2007) relatam que em 1998, na Argentina, foi realizado o VI Encontro. Ali se definiram como organizações do “terceiro setor”, aquelas que são: privadas, não governamentais, sem fins lucrativos, autogovernadas, de associação voluntária. O termo “terceiro” veio, então, para superar a diferença entre público e privado, surgindo como uma forma de regulação entre o poder do Estado (primeiro setor) e dos capitalistas (segundo setor). Como o Estado não consegue cumprir seu papel social e as organizações privadas estão sumariamente preocupadas com o lucro, este terceiro elemento entra em cena para resolver, ou tentar resolver os problemas da sociedade. Porém essa visão é uma visão do senso comum, errônea e simplista do tema, pois ele não consegue resolver os problemas sociais como, também, atua em favor da consolidação da dominação de classes. O fato das organizações do terceiro setor ser de caráter de não lucratividade, também, é uma forma de disfarçar a realidade, pois muitas vezes existe apenas o interesses de diminuição dos impostos e melhoria da imagem das parceiras destas organizações sem fim lucrativo. Raichelis (1998) apud Bresser Pereira (1996a) em um artigo publicado à folha de São Paulo define a entidade sem fins lucrativos como “uma terceira forma de propriedade estratégica no capitalismo contemporâneo: a pública não estatal”, ao lado da propriedade privada e da estatal. Outro conceito é o de não governamental, onde as Organizações não governamentais (ONGs) são ligadas às entidades do Estado, e quando deveriam ter autonomia, continuam a fazer as honras do Estado, terceirizam o seu trabalho e não conseguem realmente praticar o seu caráter não governamental. Neste sentido Montaño (2007, p. 57) afirma: Efetivamente, o Estado, ao estabelecer “parceria” com determinada ONG e não com outro, está certamente desenvolvendo uma tarefa seletiva, dentro à partir da política governamental, o que leva tendencialmente à presença e permanência de certas ONGs e não outras e determinados projetos e não outros – aquele selecionados pelo(s) governo(s). Nas últimas décadas têm ocorrido uma significativa mudança na estruturação das relações econômicas, políticas e sociais, o que gera uma nova forma de interação entre o mercado, o Estado e a Sociedade civil (terceiro setor). No Brasil a sociedade civil tem o papel de luta pela democracia, definindo a arena política e incentivando a participação e processos de ações, que se desenvolve como uma esfera de convivência entre o Estado e o mercado. __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 Diante do papel da sociedade civil como terceiro setor, de luta pela democracia, não seria uma incoerência falar que este favorece a divisão de classes? É justamente essa abordagem que o trabalho propõe desvelando a ideologia que envolve a sociedade civil e o terceiro setor. Para o Grupo de Estudos sobre construção democrática (1998/1999, p. 14) “A sociedade civil configura-se como um amplo e diverso conjunto de experimentações de organização política, que abriga diferentes objetivos e projetos”. Dentro desta perspectiva podemos dizer que a sociedade civil abrange diversos projetos, porém o terceiro setor, como um deles, não possui um consenso sobre as suas características, acabando por ser caracterizado como um setor que envolve indivíduos com diversos interesses, muitas vezes contraditórios. O espaço de atuação do Terceiro Setor é tomado por um debate onde cada indivíduo faz análises diferentes da realidade social, diversos autores, de diversas esferas fazendo com que haja um difícil consenso entre as afirmações sobre o setor. Esta contradição presente nesse campo o torna rico para inúmeras pesquisas, com diversas de questões e problemas decorrentes do debate sobre a posição que realmente o terceiro setor ocupa. 3.2 O DIFÍCIL CONSENSO SOBRE O DEBATE TERCEIRO SETOR No processo de consolidação do terceiro setor, como já relatado, existe hoje, uma grande dificuldade em realmente posicioná-lo nas esferas sociais. Na tentativa de adotar esse novo tema diversos autores analisam o setor com diversas linhas teóricas. No pensamento de Montaño (2007) em linhas gerais, podemos observar pelo menos duas grandes tendências teórico-políticas neste debate. De um lado uma tendência regressista, por outro, uma tendência de (suposta) intenção progressista. Essas tendências recorrem a autores diversos, em geral unidos pelos temas: relações entre Estado/sociedade, justiça social/igualdade/liberdade, política/economia, público/privado. Neste contexto a tendência regressista caminha com o pensamento neoliberal, onde a função do Estado fica reduzida e dá liberdade para o mercado, e a tendência progressista que defende um Estado menor e mais participação da Sociedade Civil, legitimando e sendo funcional ao neoliberalismo. Em suma, não existem novas contradições capital/trabalho, e sim, as mesmas que sempre existiram, porém agora com uma nova “roupagem”, ou seja, um novo discurso de que __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 existe uma preocupação social, criando uma espécie de dissimulação, onde o Estado e o mercado fingem quem estão preocupados e a sociedade, por falta de criticidade e informação acredita e fortalece a hegemonia capitalista, por sua capacidade (suposta) de resolver as necessidades. A sociedade agora é instância de dependência entre homens. Ela vai se constituindo contraposta ao Estado e delimitada a um âmbito privado claramente distinto do poder público estatal. Acontecendo a privatização da sociedade burguesa (RAICHELIS, 1998). Frequentemente o terceiro setor é alvo de vários debates diferentes por autores com segmentos políticos e ideológicos diferenciados. Essa dicotomia leva a um difícil consenso sobre este debate. São inúmeros os estudos, porém é a sociedade que vai moldando o Estado e se, temos uma sociedade capitalista, o Estado tende a reproduzir as relações. Sobre isso Duriguetto; Montaño (2010, p. 36-37) elaboram uma significativa consideração: O Estado é a instância que diz representar o interesse universal, mas representa o de uma classe. Ele cumpre a universalidade reproduzindo o interesse da classe dominante. Assim, o Estado tem a aparência da universalidade, mas a sua realidade efetiva é particular, na medida em que ele garante a organização das condições gerais de um sistema social (ou organização de produção) no qual e pelo qual a burguesia existe como classe dominante. Duriguetto; Montaño (2007) apud Marx e Engels (1975) consideram “[...] as condições materiais existentes em uma sociedade – o modo como as coisas são produzidas, distribuídas e consumidas, e as relações sociais para tanto estabelecidas – como base de suas estruturas sociais e da consequência humana”. Para os liberais há uma clara separação entre o Estado (primeiro setor) como esfera pública e tudo o que não for estatal como o mercado e a sociedade civil (segundo setor) como esfera privado e para resolver esta separação surge um novo “setor”, o “terceiro”. No entanto, falar de “primeiro”, “segundo” e “terceiro” setores tem o efeito político ideológico de segmentar a totalidade social (desmontando as articulações realmente existentes entre Estado, sociedade civil e mercado, mutuamente ligados) (MONTAÑO, 2007). Existe, ainda, para os autores do terceiro setor, uma confusão entre os termos Estado e Governo, isto é, quando ocorre uma mudança governamental ela é vista como uma mudança no Estado. De acordo com Montaño (2007, p. 137): A “confusão” entre Estado e Governo na bibliografia dominante do “terceiro setor” não é gratuita: é que, na verdade, as organizações do chamado “terceiro setor” não __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 são estatais, porém, seu caráter não governamental é questionado, porquanto seguem, direta ou indiretamente, a lógica da política do governo. Diferenciar Estado de Governo é fundamental para a compreensão da articulação do terceiro setor com o Estado onde, Estado seria a estrutura permanente, e o governo a temporária. Com a reestruturação produtiva, o Estado e o mercado são obrigados a caminhar de acordo com as ideias liberais, ou seja, o primeiro e o segundo setor, são obrigados a acelerar a mobilidade e flexibilidade do trabalhador, e com isto o terceiro setor passa a emergir como uma forma de adaptação à conjuntura social. Neste sentido, não foi o neoliberalismo que concebeu e criou a reestruturação produtiva; foi à necessidade de recuperação do lucro nos patamares exigidos pelo capital (DURIGUETTO; MONTAÑO, 2010, p. 199). Neste sentido, o capital vai exigindo modificações, e a sociedade civil e o Estado vão se ajustando aos seus moldes. A terceirização dos trabalhos juntamente com o terceiro setor tem limites claros. Outra grande questão é o público e o privado, com o Estado autônomo como esfera pública e o mercado, também autônomo, como esfera privada. No debate dos autores do terceiro setor, somente Ele poderia articular o público e o privado: Na verdade, a discussão operado no debate do terceiro setor é organizações deste “setor” como tendo origem privada e finalidade pública. Se uma fundação ou uma empresa tem origem privada, contrariamente uma associação de vizinhos ou uma creche comunitária tem origem pública. Se uma ONG e um movimento social podem ter finalidade pública, no entanto uma fundação ou a intervenção de um candidato a vereador certamente tem finalidade privada. Nesta homogeneização perde-se a diferenciação (mais uma vez entre as entidades do chamado “terceiro setor” e não se consegue distinguir entre o caráter público ou privado da origem, da atividade ou da finalidade. (MONTAÑO, 2007, p. 136). Diante dos relatos, fica difícil um consenso entre as teorias para fundamentação sobre o tema terceiro setor, o que torna cada vez mais, idealizadora a ideia, de um setor autônomo e independente para suprir as necessidades sociais, e ainda, acaba por trabalhar de acordo com a lógica do capital. __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 3.3 ONG’S E MOVIMENTOS SOCIAIS Os movimentos sociais no Brasil emergem na década de 70, com lutas por diferentes interesses, porém todos reivindicando as contradições da sociedade, sendo eles, movimentos urbanos e rurais. A partir dos anos 80, novos grupos surgiram reivindicando novas necessidades, novas mudanças no Estado, uma nova configuração do contexto social. Neste contexto Gohn (2003, p. 203) destaca na história dos movimentos sociais: Nos anos 70 e 80 no Brasil os movimentos sociais, populares ou não, expressaram a construção de um novo paradigma de ação social, fundado no desejo de se ter uma sociedade diferente, sem discriminações, exclusões ou segmentações. Outro aspecto importante trata-se da articulação entre o terreno de valores morais ao terreno das carências econômicas, com o desejo da mudança política. Com essas mudanças, criam-se organizações sindicais com luta de trabalhadores e essa organização sindical marcou fortemente a mudanças nas políticas do país. A sociedade civil ganhou corpo no capitalismo graças a uma modernidade que afirmou uma multidão de interesses particulares. O conjunto dessas mudanças afetou comportamento e expectativas políticas, forçando a abertura de espaços para a valorização de novos interesses. Tal fato trouxe enormes desafios ao Estado, problematizando especialmente o desempenho governamental e a eficácia da administração pública (NOGUEIRA, 2004). Conforme Duriguetto; Montaño (2010, p. 263) duas distinções precisam ser esclarecidas para compreender movimentos sociais: Movimento e mobilização social. [...] “um movimento social” caracteriza uma organização, com relativo grau de formalidade e de estabilidade, que não se reduz a uma dada atividade ou mobilização. Uma “mobilização social” remete a atividade, que se esgota em si mesma quando concluída; Movimento Social e ONG. [...] são tratadas ora como organizações da mesma natureza, ora como entidades que se sucedem no tempo. Porém, ambas constituem organizações de natureza bem diversas. Por um lado o movimento social, dentre outras determinações, é conformado pelos próprios sujeitos portadores de certa identidade/ necessidade/ reivindicação/ pertencimento de classe, que se mobilizam por resposta ou pra enfrentar tais questões [...] Por seu turno, a ONG é constituída por agentes remunerados ou voluntários, que se mobilizam na resposta a necessidades, interesses ou reivindicações em geral alheios, não próprios. Nos anos 70 e 80 esses movimentos sociais desenvolveram atividades para ou contra o Estado, apoiados em organizações que se expandiam e transformavam-se em ONGs. __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 Efetivamente, as chamadas organizações não governamentais surgem fortemente vinculadas aos movimentos sociais desses anos, procurando sua melhor organização, participação, articulação nas suas demandas, reivindicações e lutas (MONTAÑO, 2007). Com a democracia, após a Constituição de 1988, os movimentos sociais começam a entrar em crise. A sociedade civil passou a desacreditar da política e das ações do Estado em geral, e passaram a acreditar cada vez mais na sua capacidade de atuação independente, a fazer suas próprias políticas. Movimentos sociais e ações sindicais com recortes políticopartidários explícitos passaram a perder credibilidade (GOHN, 2003). Porém a luta social não acaba, ou seja, ela vai se modificando conforme destaca Montaño (2007, p. 139) apud Gohn (1998): “[...] com isto, o passo seguinte é conceber s substituição do velho militante do movimento social (dos anos 70-80) pelo novo militante da ONG”. Porém hoje as ONGs não têm a mesma essência dos movimentos sociais, na maioria das vezes são “pequenas empresas” que têm como objetivo obter recursos para se manterem atuando na sociedade civil. Diferentemente do movimento social que atua na busca por defender a sua participação na sociedade. Desta forma Montaño (2007, p. 139) defende que as ONGs: São vistas como menos politizadas, mais empresariais, voltadas para o autofinanciamento ou para a procura de parcerias, no sentido de obter fundos, o que lhes exige maio eficiência. Diferenças que, não obstante, confirmariam a tendência de mudança de um tipo de organização (o movimento social) para outra (a ONG), de um tipo de militante para outro. Com este contexto, é muito fácil confundir movimento social e ONG, o que deve acontecer é uma generalização. É inegável que em determinado momento eles se encontrem, porém temos vários aspectos para diferenciá-los. Nos anos 90, os movimentos voltam-se para o campo estatal. Também, nos anos 90, Duriguetto; Montaño (2010, p. 305) falam sobre outra tendência, apontado por eles como o projeto do terceiro setor: Uma outra tendência que se consolida nos anos 1990 e que tem relação direta com a temática dos movimentos sociais é o crescimento das ONGs e das políticas de parcerias implementadas pelo poder público. Funda-se e expande-se o que podemos chamar de projeto do terceiro setor. Com o projeto do terceiro setor são organizadas várias ações, porém dentro da hegemonia neoliberal, ações que desenvolvem a ideologia capitalista num setor totalmente __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 despolitizado, resultando em atividades segmentadas desenvolvidas voluntariamente e individualizada, priorizando interesses da minoria. Assim, o que os autores chamam de “terceiro setor”, nem é terceiro, nem é setor. Na verdade deve ser interpretado como ações que expressam funções e partir de valores. Ou seja, as ações desenvolvidas por organizações da sociedade civil, que assumem as funções de resposta às demandas sociais (antes de responsabilidade fundamentalmente do Estado), a partir dos valores de solidariedade locar, voluntariado, autoresponsabilização e individualização. (DURIGUETTO; MONTAÑO, 2010, p. 305). A grande questão seria o “terceiro setor”, discute-se isoladamente a questão social, deixando de lado a real função social para dar bases às demandas sociais existentes, sustentando a ideia de que existe uma harmonia e pareceria entre as classes, quando na verdade, existe um distanciamento da função do Estado, atribuindo a questão social para os cidadãos. Desta maneira, o debate do terceiro setor usando um setor em vez de função pode ser identificado em Duriguetto; Montaño (2010, p. 307) apud Montaño (2002, p. 232) como a funcionalidade do “terceiro setor” da seguinte forma: a) Justificar e legitimar o processo de desestruturação da Seguridade social e desresponsabilização do Estado na intervenção social; b) Desonerar o capital da responsabilidade de confinanciar as respostas às refrações da “questão social” mediante políticas sociais estatais; c) Despolitizar os conflitos sociais dissipando-os e pulverizando-os, e transformar as “lutas contra reforma do Estado” em “parceria com o Estado”; d) Criar a cultura ideológica do possibilismo; e) Reduzir os impactos (negativos ao sistema) do aumento do desemprego, produto da reestruturação produtiva; e f) A localização trivialização da “questão social” e a autoresponsabilização pelas respostas à suas sequelas. Portanto, hoje existem diversos projetos que se encaixam como projetos ideológicos do terceiro setor. A sociedade civil organizada e sua democratização, o voluntaria, o empoderamento, o projeto de inclusão social e ação voluntária, a economia solidária e a responsabilidade social empresarial são exemplos de como o Estado delega a sua responsabilidade e se fortalece a proposta da ideologia do capital. __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os atuais cenários: social e político têm mudado radicalmente nos últimos anos. Vive-se em meio a uma reestruturação dos papéis que envolvem o Estado, o Mercado e a Sociedade Civil, fazendo com que esses atores se movimentem para novas articulações. Neste contexto, as organizações do terceiro setor assumem papel de instrumentadoras das estratégias neoliberais, no sentido de tornar a realidade sociedade civil distorcida, colaborando para o conceito ideológico do terceiro setor. O terceiro setor mostra uma extensa dicotomia de conceitos, onde várias teorias apontam teorias totalmente diferenciadas e sem análise crítica. É importante ressaltar que o terceiro setor com sua influência implica em várias mudanças políticas na sociedade, enfrentando um cenário marcado por conflitos, em busca de autonomia e significância para a sociedade, um campo onde forças diversas influenciam. Neste sentido, o terceiro setor, mesmo gerando mudanças políticas, é considerado um setor despolitizado na visão dos autores considerados para a discussão durante a pesquisa, quando a ideologia das ONGs traz soluções para os pobres na forma de autoajuda, sem possibilitar a autonomia e emancipação para a classe dominada. O terceiro setor desenvolve promessas de uma vida melhor, seduzindo quando falam que as entidades sem fins lucrativos têm como objetivos o fortalecimento na sua capacidade de ação, elaboração de ações e projetos em conjunto com o Estado e o mercado. A preocupação central da pesquisa foi desmistificar a atuação do terceiro setor como um setor de harmonia e promessas. Assim, a discussão ganhou proporções em vários contextos, principalmente do Brasil. Numa sociedade contemporânea, é fundamental que este debate seja proposto, pois o terceiro setor assume uma postura dissimuladora da realidade, até mesmo sustentando a ideia de um setor democrático e autônomo da esfera pública. Porém, como foi descrito, é inevitável que este setor trilhe seus caminhos de acordo com a ideologia do capitalismo, uma vez que não consegue viver independente de tal sistema. A sociedade civil não é a extensão mecânica da cidadania política ou da vida democrática. Longe de ser um âmbito universal, é um território de interesses que se contrapõem e que só podem integrar-se mediante ações políticas deliberadas. Para que melhor se compreenda as esferas pública e privada, devem-se considerar os condicionamentos sociais e histórias da sociedade, muito além de apenas considerar o Estado como arena para lutas sociais, as ONGs, a sociedade civil, os cidadãos e grupos __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 independentes, é necessário forçar uma participação nas lutas sociais. Uma sociedade que não oferece articulação se torna alvo para a dominação da ideologia burguesa. Pensar numa sociedade civil desarticulada, apática, desmobilizada, é deixar este espaço para o controle hegemônico dos setores sociais que exercem a direção hegemônica na sociedade como um todo, desde o Estado, desde o Mercado. Diferentemente dos movimentos sociais o terceiro setor é uma nova forma de deslocamento de luta pelo seu espaço, e quando antes ficava ao lado dos movimentos sociais, hoje fica separado deles, como papel principal. Segundo Montaño (2007) os membros das ONGs não são considerados como “funcionários”, mas como próprios militantes. Outra questão de grande relevância é a reestruturação produtiva, a qual resultou numa grande mudança nas relações de trabalho, modificando a vida do trabalhador, forçando a mobilização e a flexibilização da mão-de-obra. Portanto, não se pode marginalizar o terceiro setor por seu caráter ideológico hegemônico. É fundamental na formulação de políticas públicas e prestação de serviço do interesse social e para seu fortalecimento, pois num sistema de participação ativa deve haver comunicação, gestão, democracia, sustentabilidade, parcerias e comprometimento social. Para a discussão do terceiro setor como ideologia hegemônica existe um grande desafio: despertar o olhar crítico para desvelar esta dominação. Assim, cabe aqui ressaltar que o propósito deste estudo é de esclarecer os conceitos acerca do terceiro setor e sua participação na sociedade como forma de consolidar a hegemonia do grande capital. Desta forma, percebe-se, no contexto brasileiro, a clara a necessidade de reformas e transformações, tanto no patamar de Estado quanto ao de sociedade civil, considerando-a em sua totalidade social, onde o quesito da democracia e da participação possa tornar-se essencial em qualquer esfera. __________________________________________________________________________________________ Diálogos Multidisciplinares (PR) v. 1 n. 2 p. 76 - 91 out./2012 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DURIGUETTO, M. L.; MONTAÑO, C. Estado Classe e Movimento Social. São Paulo: Cortez, 2010. GIL. A. C. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2007. 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