O MST e a busca pela cidadania na sociedade globalizada

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O MST E A BUSCA PELA CIDADANIA NA SOCIEDADE GLOBALIZADA
Fabricio Teló, Graduando do 5º semestre do Curso de Ciências Sociais/UFSM, bolsista PROBIC/FAPERGS.
[email protected]
Cesar De David, Doutor em Geografia - Professor Adjunto do Departamento de Geociências/UFSM (Orientador)
[email protected]
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O MST e a busca pela cidadania na sociedade globalizada*
Resumo: A globalização é um processo complexo, que, através de vários mecanismos, quase
nunca percebidos, priva o indivíduo de uma compreensão adequada de sua situação no
contexto social em que está inserido, afasta-o dos centros de tomadas de decisões, tira sua
autonomia e, por conseqüência, dificulta muito sua participação no meio político. Tendo
como base essa realidade, este trabalho analisa a atuação do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra do Brasil, o qual constitui uma tentativa de superação dessa realidade
imposta pela globalização, excludente e fragmentadora, e se propõe a lutar pela conquista da
cidadania. Nesse sentido, foram analisados os avanços e os obstáculos do MST nesse
processo que é fortemente marcado pela influência da cultura de consumo, a qual impõe e
determina desejos e comportamentos. As reflexões feitas para a realização deste trabalho
foram provocadas por um período de cinco dias de vivência em um acampamento e mais
cinco em um assentamento do MST no Estado do Rio Grande do Sul, através da observação
participante. Utilizarei como embasamento teórico para desenvolver tais reflexões os
conceitos de mapeamento cognitivo de Friedrich Jameson (1997), sociedade do espetáculo e
emancipação de Guy Debord (1997 e simulacro de Jean Baudrillard (1991). Concluiu-se que
os integrantes do movimento vivem um dilema entre agir conforme a ideologia dominante da
cultura do consumo, que aliena, ou agir com vistas à busca da cidadania e da participação
política.
Palavras-chave: MST – Globalização – Cidadania.
Introdução
A vivência com as comunidades do MST, fonte das reflexões feitas para a elaboração
deste artigo, se deu no período entre os dias 05 e 16 de fevereiro do presente ano, no 1º EIVRS (Estágio Interdisciplinar de Vivências em Organizações Camponesas do Rio Grande do
Sul), organizado por integrantes das Federações Nacionais dos Estudantes de Agronomia,
Engenharia Florestal e Educação Física, em parceria com movimentos sociais que compõem a
Via Campesina, dentre eles o MST e outras organizações.
Meu objetivo em participar desse estágio foi ter uma experiência de proximidade com
os movimentos sociais camponeses porque estudo os problemas sociais no campo e vejo que
os sujeitos que ali vivem, historicamente, são considerados por grande parte da sociedade
como atrasados, sem capacidade organizativa, menos inteligentes. Nesse sentido, os
movimentos sociais camponeses são uma prova de que o campesinato, enquanto classe, tem,
ao contrário do que muitos pensam, capacidade de se organizar politicamente e ter uma visão
*
Trabalho realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul.
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O MST E A BUSCA PELA CIDADANIA NA SOCIEDADE GLOBALIZADA
Fabricio Teló, Graduando do 5º semestre do Curso de Ciências Sociais/UFSM, bolsista PROBIC/FAPERGS.
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de mundo que lhe possibilite conquistar demandas e reivindicar direitos, por mais que seja
apenas uma parte dos camponeses que fazem parte desse movimento.
Assim, nessa vivência que fiz de 5 dias no acampamento e outros 5 dias no
assentamento 16 de Março (antiga Fazenda Annoni) do MST em Sarandi, pude conhecer o
modo como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra se organiza, quais as linhas
teóricas que norteiam suas ações e pude identificar os problemas e dificuldades que o
movimento enfrenta para se manter vivo no processo de luta pela Reforma Agrária. O
objetivo deste artigo, portanto, é fazer uma reflexão sociológica sobre esses dias de vivência
com o movimento, à luz de alguns dos teóricos da globalização e pós-modernidade, uma vez
que os integrantes do movimento, tal como todos os indivíduos da sociedade, em maior ou
menor intensidade, sofrem as influências desse processo.
A Globalização e a cidadania
Em relação às conseqüências da globalização e sua influência sobre o exercício da
cidadania, há duas correntes opostas de entendimento sobre o assunto: uma delas, mais
conservadora, defende que a autonomia dos indivíduos é fortalecida através das novas
tecnologias que facilitam a comunicação entre as pessoas, pela aceleração dos processos
produtivos como um todo, melhoria da qualidade de vida e a valorização das liberdades
individuais, o que constituiria um incentivo para o exercício da cidadania.
De fato, essas são algumas das conseqüências da globalização. O desenvolvimento das
novas tecnologias melhorou a qualidade de vida de muitas pessoas. O problema é que o
acesso a essas positividades e benefícios é restrito apenas a alguns segmentos da sociedade
(CASTELLS, 1999). Por mais que o acesso à internet esteja hoje se expandindo a passos
largos, a maioria da população ainda não tem acesso a esse serviço em suas casas, devido ao
seu alto custo.
Assim, meu objetivo não é defender que a globalização só traz conseqüências
negativas. As positividades da globalização existem e nos são muito úteis, mas são acessadas
apenas para uma parcela dos indivíduos, a elite: em sua essência, o processo da globalização
é, de modo geral, excludente. Não me refiro aqui à exclusão do processo de globalização, pois
de uma maneira ou de outra, esta tem implicações planetárias e influencia a vida de cada
indivíduo. Estou me referindo à exclusão na globalização, pois o fato de existirem técnicas
novas que facilitam a relação do homem com seu meio é, em si, um fenômeno positivo.
Portanto, as novas formas de se fazer política identificadas por Siqueira (2001) como
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conseqüências da globalização são, no fundo, resistências a esse processo. O MST, nesse
caso, é um exemplo dessa resistência.
A escolha de Jameson (1997), Debord (1997) e Baudrillard (1991) como referencial
teórico se deu porque tais autores, com algumas diferenças entre si, entendem a globalização
como um grande processo de consumo impensado de imagens estetizadas e idealizadas pela
mídia, através do espetáculo, e identificam como conseqüência disso, uma profunda falta de
consciência sócio-histórico-espacial dos indivíduos, o que os priva de autonomia e prejudica o
exercício da cidadania.
Segundo Debord (1997), estamos vivendo na sociedade do espetáculo, em que tudo é
estetizado, sendo somente evidenciados aspectos positivos, agradáveis e prazerosos, ao passo
que problemas e elementos que perturbam a nossa vida são esquecidos. Percebe-se nas
entrelinhas da obra do autor, uma grande crítica à mídia como principal responsável por esse
processo, o qual é motivo da “conservação da inconsciência na mudança prática das
condições de existência”. (DEBORD, 1997: 21).
Entendendo o espetáculo como a principal produção da sociedade atual, o autor
percebe que há uma dominação da economia sobre a vida humana e tal fenômeno é dividido
em duas fases: a primeira se dá com a degradação do ser em função do ter e na segunda, a fase
na qual nos encontramos, o ter foi superado pelo parecer, ou seja, estamos numa sociedade de
aparências. Ora, para haver espetáculo, é necessário que haja espectadores, no nosso caso, os
indivíduos da sociedade. Então, nesse contexto, quanto mais o indivíduo contempla o
espetáculo menos ele vive e mais alienado ele se torna. O espetáculo se torna, assim, a
fabricação concreta da alienação. Esse fenômeno está estritamente ligado ao fato de que na
sociedade globalizada, a informação é controlada pela classe dominante. Então, apenas se
torna uma evidência histórica o que interessa a este grupo específico. “Aquilo que o
espetáculo deixa de falar durante três dias é como se não existisse. Ele fala, então, de outra
coisa, e é isso, a partir daí, afinal que existe”. (DEBORD, 1997: 182). O indivíduo, nesse
contexto, passa a pensar a partir do espetáculo, o qual busca a dissolução do pensamento
lógico, a fim de sustentar e legitimar essa nova ordem, que conduz ao irracional e fortalece o
capitalismo.
Um elemento fundamental na caracterização da sociedade globalizada, como
promotora de alienação, é a posição central que a mercadoria tomou na vida social das
pessoas. Não se consegue ver mais nada além dela. “O consumidor real tornou-se consumidor
de ilusões”. (DEBORD, 1997: 33) Ele já não compra simplesmente pelo ter, por seu valor de
uso, mas para sustentar uma determinada aparência, para mostrar a seus pares que ele está
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inserido na lógica da sociedade, a fim de ter legitimidade em suas ações, no meio em que
vive. É por isso que se vêem, constantemente, fortíssimas ondas de entusiasmo por
determinados produtos lançados pela mídia. No limite, esse consumismo é fortalecido por
pseudonecessidades que a sociedade produz, ocorrendo, dessa forma, uma falsificação da vida
social. O tempo espetacular é o tempo do consumo de imagens.
A intensificação desse processo, com o passar do tempo, originou o espetacular
integrado, concentrando e difundindo globalmente o espetáculo, que passa a ser caracterizado
pela incessante renovação tecnológica, pela fusão do econômico com o estatal e uma
consequente fragilização do Estado-nação, em benefício das grandes corporações, pela
incontestação passiva da mentira e por uma sensação de presente perpétuo: a perda da
consciência histórica. O espetáculo se tornou integrado porque se integrou de tal modo à
realidade, que se confundiu com ela. Não se sabe mais o que é realidade e o que é o
espetáculo. Aproximamo-nos aqui do conceito de simulacro de Baudrillard (1991), no qual
não existe mais diferença entre o verdadeiro e o falso.
Para esse autor, a imagem, de tão usada que é na sociedade atual, já não tem mais
relação com uma referência real, então ela se torna hiper-real: as coisas já não tem mais
sentido. Ocorreu a implosão dos sentidos e a aniquilação da identidade. Na lógica do
simulacro, não há possibilidade de contestação da realidade, porque não há mais realidade a
ser contestada, não há condições de haver democracia e cidadania, porque em si, elas são
hiper-realidade, ou seja, tudo o que está à nossa volta é uma hiper-realidade.
Ora, dizer que não há mais diferença alguma entre o verdadeiro e o falso já é um tanto
exagerado. Todavia, o interessante da obra de Baudrillard é a idéia de que na sociedade atual
do simulacro, o que predomina é a linguagem da propaganda, da sedução e do poder de
convencimento da mídia, o que promove o consumo impensado de imagens idealizadas,
chegando ao ponto de a publicidade tornar-se sua própria mercadoria, porque o que está no
centro não é mais a mercadoria material produzida pela indústria, mas a marca desta
mercadoria, ou seja, a imagem, a embalagem, o conceito agregado à marca. Para obter
aceitação social e legitimidade, as instituições e corporações precisam apresentar uma
imagem positiva frente à sociedade. Então, para conseguir isso, produzem uma marca e a
idealizam, deixam-na bela, agradável, atraente, de forma tal a provocar nas pessoas o desejo
de consumir e possuir tal imagem. Em outras palavras, consome-se pela imagem e não pela
mercadoria, por isso é que Baudrillard diz que a publicidade tornou-se sua própria
mercadoria.
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Vivemos, então, na sociedade da informação. A todo momento somos bombardeados
por informações de todo tipo. Para o autor, porém tais informações são neutralizadoras e
destruidoras de sentido e significado, porque há informação em excesso, tornando-a hiperreal:
onde pensamos que a informação produz sentido, é o oposto que se verifica. A
informação devora os seus próprios conteúdos. Devora a comunicação e o social.
(...) os mídia são produtores não de socialização, mas do seu contrário, da
implosão social das massas. (BAUDRILLARD, 1991: 104-6).
A mídia, portanto, é uma dos principais fatores que criam obstáculos para que os
indivíduos sejam autônomos, decidam por si próprios seus destinos, se tornem independentes,
e tenham condições de reivindicar seus direitos, através da participação política, porque ela
tem como estratégia principal o uso das imagens idealizadas, as quais são destruidoras do
sentido original das coisas, a referência a partir da qual a imagem faz a representação de algo.
Já, Jameson (1997) tende para uma compreensão do simulacro um tanto mais
tradicional, pois ainda parte da diferença entre verdadeiro e falso. O simulacro para Jameson é
uma desrealização do mundo, ou seja, uma representação falsa da realidade. Para Jameson a
realidade, entendida no seu sentido tradicional ainda existe. É semelhante ao conceito de
sociedade do espetáculo no seu estágio inicial de Debord (1997), que entende o espetáculo
também como uma representação falsa do real, visto que é só quando o espetáculo se torna
integrado que ele se confunde com a realidade, aproximando-se então do conceito
baudrillardiano de simulacro.
Para Jameson (1997), o fato de a globalização possibilitar aos indivíduos estarem em
todos os lugares ao mesmo tempo, através das novas tecnologias informacionais e de
comunicação, torna-os incapazes de se localizar no mundo e ter noção de onde estão e qual é
o espaço que os circunda, ou seja, fica impossibilitado de mapear cognitivamente a realidade
ao seu redor. Desse modo, como pretender que as pessoas exerçam sua cidadania, se não têm
consciência do que as cerca?
A produção cultural do sujeito na sociedade globalizada, para o autor, é um
amontoado de fragmentos, por causa da perda da consciência histórica, em que os indivíduos
pensam estar vivendo em um presente perpétuo e não compreendem os fatos de hoje como
conseqüências do passado, e, portanto, não percebem também que o que acontece hoje,
provocará conseqüências para o futuro. Ocorre um achatamento, um processo de alienação e
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um predomínio da superficialidade, tendo como causa o simulacro, que reforça e intensifica a
lógica cultural capitalista, a principal causa da exclusão e desigualdades sociais no mundo.
Diante dessa realidade, portanto, como buscar um exercício efetivo de cidadania, que
possibilite aos indivíduos o gozo de seus direitos básicos? O pessimismo de Baudrillard
(1991) nos deixa sem esperanças de qualquer possibilidade de transformação. Já Jameson
(1997) e Debord (1997) acreditam que existem maneiras de o indivíduo mudar sua realidade.
O primeiro propõe que, para conseguir tal objetivo, o indivíduo tem que realizar um
mapeamento cognitivo, ou seja, tornar-se capaz de situar-se em seu meio e saber o que está
acontecendo ao seu redor e identificar o que isso tem relação com sua vida. Este mapeamento
é a representação imaginária da relação do sujeito com sua condição real de existência, é
“uma cultura política e pedagógica que busca dotar o sujeito individual de um sentido mais
aguçado de seu lugar no sistema global”. (JAMESON, 1997: 79).
Ainda relacionado a esse processo de desalienação, Debord propõe praticamente a
mesma idéia de Jameson, porém usando o termo emancipação, para designar a superação da
espetacularização. “Para destruir a sociedade do espetáculo é necessário que os homens
ponham em ação uma força prática” (DEBORD, 1997: 132). Ele afirma ainda que é
necessário fazer a Revolução do proletariado, bem aos moldes da proposta marxiana da luta
de classes:
A consciência do desejo e o desejo da consciência são o mesmo projeto que, sob
forma negativa, quer a abolição das classes, isto é, que os trabalhadores tenham a
posse direta de todos os momentos de sua atividade. Seu contrário é a sociedade
do espetáculo, na qual a mercadoria contempla a si mesma no mundo que ela
criou. (DEBORD, 1997: 35).
A ideologia do MST, portanto, como veremos adiante, se encaixa muito bem nessa
tentativa de, através do mapeamento cognitivo de seus integrantes e de sua emancipação,
chegar a um exercício efetivo da cidadania e transformar a realidade de globalização em que
nos encontramos e que nos afeta diretamente em nosso cotidiano, em qualquer atividade que
realizamos. Através do movimento social, os indivíduos da sociedade globalizada têm a
oportunidade de se tornarem sujeitos políticos e de serem ouvidos.
A Globalização e seus efeitos na agricultura brasileira
Segundo Teubal (2008), uma das principais manifestações da globalização é o sistema
de produção agrícola denominado agronegócio, que se caracteriza pelo predomínio do capital
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financeiro, produção voltada majoritariamente às exportações, especialização crescente,
através das monoculturas, e tendência à concentração em grandes unidades de produção, o
que gera graves problemas à sociedade, tais como aumento da pobreza, desigualdade, êxodo
rural e consequente inchaço urbano e, o mais prejudicial, enfraquecimento da autonomia do
camponês.
No Brasil, os fatores que levaram ao fortalecimento desse sistema foram as várias
atitudes tomadas pelo governo no pós-década de 1970, baseadas na ideologia neoliberal, tais
como as privatizações de empresas estatais, a abertura à economia mundial, o endividamento
externo e a primazia dos interesses do capital financeiro, o que implicou na efetivação da
Revolução Verde, ou seja, na importação de um pacote tecnológico que modernizava a
agricultura brasileira, trazendo a falsa promessa de acabar com a fome no mundo, através do
aumento da produtividade, o que não se concretizou, porque, conforme provaram Paulino
(2006) e Martine (1987), o agronegócio, em termos de produtividade por área plantada, perde
para a agricultura familiar camponesa, pelo fato de que esta investe vasta mão-de-obra nas
atividades, e a produção (de alimentos e não de commodities) permanece no Brasil e não é
exportada.
O agronegócio é uma “agricultura sem agricultores” (TEUBAL, 2008), uma
agricultura empresarial baseada apenas na produção de matérias-primas para exportação, e
não é um meio de vida com o qual os produtores possam se sustentar, educar seus filhos e
exercer sua cidadania. É um novo tipo de latifúndio, ainda mais amplo, porque além de
dominar a terra, tem também o controle da tecnologia de produção e das políticas de
desenvolvimento, através das afinidades com os políticos representantes da classe dominante
(FERNANDES, 2008). Nesse sentido,
ao reconstituir a recente transformação do campo no Brasil, pode-se constatar
que o modelo agrícola imposto ao campo foi, de certa forma, concebido nas
cidades, atendendo aos interesses de determinados setores da sociedade urbana,
nacional e transnacional. (MARTINE, 1987:11).
Na lógica do agronegócio, quem determina o que, como e com que produzir, não é
mais o produtor, mas as grandes empresas que detém o monopólio das sementes, fertilizantes
e todo o aparato tecnológico trazido pela Revolução Verde, ferindo gravemente o princípio
camponês de autonomia. Tudo isso foi fundamentalmente fortalecido pelo processo de
globalização, que estimula o comércio e as trocas a nível mundial. Além disso, com esse
processo, as empresas podem orientar seus capitais para qualquer lugar do mundo de acordo
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com seus interesses, sem obrigação com qualquer tipo de regulamentação estatal. Então
muitas compram e vendem terras em vários lugares conforme suas necessidades, o que é
contrário às necessidades do campesinato, a classe mais prejudicada do processo.
O MST e a Globalização
Há uma diferença fundamental entre os movimentos de luta pela terra do início do
século XX e os contemporâneos, que já se adaptaram à nova realidade da globalização, tais
como o MST. Os primeiros lutavam contra as oligarquias latifundiárias que controlavam o
Estado-nacional e o regime agrário controlados por esse Estado. Hoje a luta se ampliou contra
o capital financeiro e as multinacionais que lideram o processo de globalização. O fato de o
movimento ter feito a leitura adequada dessa nova realidade foi muito importante para a
conservação do mesmo, caso contrário já teria esmaecido. (TEUBAL, 2008).
Segundo Fabrini (2008), uma das principais estratégias do movimento para garantir
sua autonomia, pelo menos parcialmente, é evitando a institucionalização: não há vínculos de
tutelação com nenhuma instituição pública ou muito menos privada, o que lhes permite
decidir os rumos de sua própria ação, sem depender da vontade de outrem. Essa estratégia é
de fundamental importância para o movimento se defender dos ataques da classe dominante,
que detém todo o aparato burocrático-estatal em suas mãos.
No período de vivência com as comunidades, pude perceber como se dá a relação
entre os militantes e a visão do movimento, que nem sempre se dá de maneira harmônica,
visto que, de um lado há a ideologia dominante que induz ao consumo impensado de ilusões,
e de outro, a ideologia do movimento que propõe a superação dessa lógica. Em seu Terceiro
Congresso Nacional, o Movimento elaborou uma síntese de seus principais objetivos:
Construir uma sociedade sem exploradores e onde o trabalho tem supremacia
sobre o capital; A terra é um bem de todos. E deve estar a serviço de toda a
sociedade; Garantir trabalho a todos, com justa distribuição da terra, da renda e
das riquezas; Buscar permanentemente a justiça social e a igualdade de direitos
econômicos, políticos, sociais e culturais; Difundir os valores humanistas e
socialistas nas relações sociais; Combater todas as formas de discriminação
social e buscar a participação igualitária da mulher. (MST, apud FERNANDES,
1996: 81).
O MST, portanto, não luta apenas por terra através da Reforma Agrária. Luta também
por um modelo de desenvolvimento ecologicamente sustentável e que leve em conta as
necessidades concretas e imateriais das pessoas. É uma ideologia da solidariedade, que quer o
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bem de todos e se preocupa com o sofrimento dos que foram impossibilitados de acessar as
positividades que as novas tecnologias da globalização trouxeram.
O primeiro local de vivência foi o acampamento em Sarandi. Segundo Marques
(2004), uma ocupação de terras é uma afronta à estrutura de poder e à lei da propriedade
privada, o que coloca em cheque o status quo dos detentores das terras. “Ocupar, porém, não
representa, nesse contexto, simplesmente uma transgressão; o objetivo principal dessa ação é
criar um fato político para, a partir dele, inaugurar um processo de negociação com o Estado”.
(MARQUES, 2004: 147).
Nesse acampamento, localizado às margens da BR 386, estão reunidas famílias
despejadas de várias ocupações, que foram levadas até o local pela Brigada Militar. Essas
famílias estão, em média, há 2 ou 3 anos no acampamento. Algumas chegam a 5 ou até
mesmo 6 anos. A maioria delas já foram sorteadas para um lote de terra, porém decidiram
ficar mais tempo acampadas esperando outro sorteio, porque as terras que lhes foram
destinadas não lhe eram do agrado, visto que quase todas as famílias desse acampamento são
provindas de municípios da região norte do Estado, onde a terra tem uma composição físicoquímica específica, é o local onde essas pessoas cresceram, onde estão instalados seus
familiares e onde pretendem fazer a vida.
Eles acreditam que vale a pena sofrer um pouco mais agora no acampamento e
conquistar uma terra de melhor qualidade e mais próxima dos familiares do que ser assentado
logo, mas ter uma vida mais sofrida, distante dos familiares, tendo que se adaptar a outro tipo
de terra, outra cultura, outro modo de plantar, outro calendário agrícola. Um fator que
influencia fortemente esse tipo de decisão é o exemplo de outros camponeses do norte do
estado assentados em terras do sul, que não se acostumaram com a região e acabaram, por um
conjunto de fatores, desistindo do projeto de trabalhar a terra, vendendo-a, ou arrendando-a.
Esse é um ato ilegal e decepcionante para o movimento, enquanto entidade na luta por
Reforma Agrária, visto que deslegitima a luta dos acampados.
Esse tipo de comportamento é um exemplo claro do momento em que o indivíduo não
consegue resistir à ideologia dominante do consumismo impensado e toma atitudes
determinadas por ela. É o momento em que ocorre a perda da autonomia e o deixar-se levar
pela correnteza. Resistir e lutar contra o que a cultura do consumo determina é uma escolha
que exige muita persistência e força de vontade, porque a todo momento recebemos estímulos
para comprar coisas novas, criando a idéia de que as coisas que temos não servem mais e que,
se não nos atualizarmos, seremos considerados atrasados e fora da realidade.
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Talvez aqui esteja uma explicação para o fato de os camponeses serem historicamente
considerados pela sociedade como pessoas rudes e de mentalidade estreita: porque resistem à
lógica da classe dominante e vivem de acordo com seus próprios valores. A questão é que a
ideologia do capitalismo na sua fase globalizada penetra no território do campesinato e o
desafio dos camponeses e dos Sem-Terra é resistir, através da auto-valorização de seus
próprios princípios, que são consumir a própria produção, usar a mão-de-obra familiar, usar
os próprios meios de produção e ajudar-se mutuamente.
Uma questão importante a ser pensada é o fato de que, nesse processo de espera por
um lote de terra, as crianças e os jovens são obrigados a viver em condições difíceis,
comprometendo direitos básicos como saúde, saneamento básico, e educação. Por falta de
energia elétrica, não têm condições para estudar à noite e muitos durante o dia, são obrigados
a ajudar nos afazeres domésticos, não restando, assim, muito tempo para as atividades
escolares. Isso não acontece em todas as famílias de forma extrema, mas indiretamente, a falta
de estrutura compromete seriamente direitos básicos das crianças e jovens, que não optaram
por estar acampadas: simplesmente estão crescendo nesse ambiente que lhes priva de direitos
que são fundamentais para um bom desenvolvimento intelectual, pessoal, físico.
Em relação ao método usado pelo movimento para pressionar as autoridades e
reivindicar direitos, podemos perceber que o MST está passando por um período de transição.
Originalmente, a metodologia era organizar grandes acampamentos, com mais de mil
famílias, o que garantia a unidade e fortalecia o movimento, porém trazia e traz ainda
problemas tais como os citados acima. Percebe-se um declínio no número de famílias
acampadas. Muitas permanecem acampadas por um tempo e acabam desistindo. Assim, as
lideranças dos movimentos estão numa fase de reflexão e discernimento para pensar novos
métodos que sejam mais eficientes e mais coerentes com a realidade atual. De fato, o contexto
histórico de hoje já é diferente dos anos 80, em que os movimentos sociais ganhavam força,
em vista do processo de abertura política da ditadura militar, entre outros fatores.
Hoje a situação é mais complexa. A criminalização desses movimentos pela mídia,
patrocinada pela elite, que se sente ameaçada pelas idéias defendidas pelos movimentos, é um
fator que afasta as pessoas dos mesmos, uma vez que se cria a idéia de que quem integra o
MST é marginal, preguiçoso, vagabundo e violento.
É por isso que Costa (1997) propõe como alternativa aos movimentos buscar
mecanismos que também lhes possibilitem o acesso a esta mídia, através da publicidade do
próprio movimento, por exemplo, oferecendo informações especializadas, próprias do
movimento, que não venham a lhes prejudicar futuramente, ou produzindo eventos a fim de
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chamar atenção da mídia tradicional, oportunidade esta que apenas surgiu por causa da
redemocratização nos anos 80.
Dependendo do contexto, pode haver diferentes maneiras de os movimentos pensarem
estratégias para se utilizar dos espaços midiáticos para se fortalecer enquanto entidade de luta
por direitos, na construção, de acordo com o autor, de uma esfera pública local, tendo sempre
em mente que esta não é uma tarefa fácil, em função da imagem já desgastada pela mídia
tradicional, em relação aos movimentos sociais, especialmente o MST.
No assentamento, a necessidade de optar pelo comportamento emancipatório ou da
lógica dos agrobusiness se dá de forma mais contundente ainda:
Durante a fase de assentamento, o interesse particular de cada família tende a
ganhar mais importância em relação à comunidade do que no período de luta
pela terra. Enquanto as identidades de sem-terra e acampado se reportam a uma
comunidade de iguais, a identidade de assentado comporta a diferenciação social
interna, de acordo com os atributos apresentados por cada produtor juntamente
com a sua família. (MARQUES, 2004: 149).
Esse embate se evidenciou nas discussões entre os assentados sobre a produção de soja
transgênica, típica do modelo de desenvolvimento da Revolução Verde trazido pela
globalização. O MST, enquanto entidade ideológica vai contra esse tipo de produção, porque
esse tipo de produto tem uma conotação inclusive simbólica da expansão da lógica da
agricultura empresarial sobre a camponesa.
O problema é que as políticas públicas de financiamento da produção só são possíveis
para os produtores que aderem a esse pacote. O INCRA, nesse processo exerce influência
muito significativa ao incentivar o assentado a incorporar a lógica da racionalidade técnica e
os valores da ideologia moderna. Então, o assentado vê, por um lado, a necessidade de
emancipar-se através de uma produção agroecológica, autônoma e cidadã, pautada pela ética
camponesa, e por outro, a inviabilidade e a falta de incentivos estatais para tal. Assim,
influenciados pela ideologia dominante, propagada pela mídia, muitos assentados, não
conseguem resistir e se deixam levar pela onda da modernização biotecnológica.
Considerações Finais
No atual contexto de globalização em que nos encontramos, a tentativa de buscar
caminhos que levem à cidadania é uma tarefa difícil. Por isso o MST, com todas as suas
limitações, deve ser valorizado enquanto uma organização social de camponeses que têm seus
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O MST E A BUSCA PELA CIDADANIA NA SOCIEDADE GLOBALIZADA
Fabricio Teló, Graduando do 5º semestre do Curso de Ciências Sociais/UFSM, bolsista PROBIC/FAPERGS.
[email protected]
Cesar De David, Doutor em Geografia - Professor Adjunto do Departamento de Geociências/UFSM (Orientador)
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direitos negados por esse modelo de desenvolvimento, mas que tomaram consciência dessa
realidade e passaram a lutar pela sua transformação.
O camponês que se torna integrante do movimento passa por um processo educativo
emancipatório, um “mapeamento cognitivo”, através da elaboração de uma nova visão de
mundo, que lhes possibilitará ter as condições necessárias para o exercício da cidadania. O
MST, portanto, não luta apenas por terra, mas por um novo modelo de desenvolvimento que
leve em conta a qualidade de vida dos trabalhadores, a preservação do meio ambiente e a
desconcentração das riquezas.
Os integrantes do movimento, dessa forma, têm o desafio de manter e fortalecer essa
lógica de resistência contra-hegemônica em sua prática cotidiana. É isso que trará
legitimidade à sua luta e garantirá, de certo modo, uma cidadania de fato, uma vez que esta
não está relacionada apenas aos direitos do indivíduo em relação ao Estado, mas também aos
seus deveres.
O período de vivências com as comunidades mostrou os dilemas que os acampados e
assentados vivem em seu dia-a-dia. A todo momento eles são levados, pela influência da
mídia e da cultura do consumo, a pensar acriticamente, passivamente, e ao mesmo tempo, são
educados pela ideologia do movimento a pensar de outra maneira, esta por sua vez,
considerada pela sociedade globalizada como irracional, atrasada e inviável. Nesse contexto,
pode-se afirmar que o MST exerce um papel muito importante na sociedade civil brasileira,
no sentido de motivar os indivíduos ao desenvolvimento das condições necessárias para o
exercício da cidadania, da participação política e da democracia.
Referências
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