a liberdade como misterioso evento salvífico da

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INSTITUTO SANTO INÁCIO
FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA
JUSSARA FILGUEIRAS DIAS SANTOS LINHARES
A LIBERDADE COMO
MISTERIOSO EVENTO SALVÍFICO DA AUTOCOMUNICAÇÃO
DE DEUS:
segundo a teologia de Karl Rahner
Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Ulpiano Vázquez Moro
BELO HORIZONTE”
2008
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Agradecimentos
Um dia, alguém, tentando explicar a novidade de meu duplo domicílio disse que eu não
moro em Belo Horizonte. Aqui, eu somente me demoro. Eu achei isso formidável. Tão formidável
que não posso deixar de obedecer ao meu coração e dar graças pela presença de tantos mineiros e de
outros não mineiros que têm adoçado esses anos de minha vida, pelo quê, lhes sou eternamente
grata.
Quando aqui cheguei, em 2006, morei no Carmelo vizinho até descobrir que o então
Instituto Santo Inácio é uma experiência radical. Não se “passa” por ele. Aqui a gente entra e se
demora mesmo. É pegar ou pegar. Ao concluir o mestrado, agora já na Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia – FAJE, eu me vejo como alguém que se apegou às demoras com um novo e
surpreendente “coração amineirado”.
Eu sou muito grata a todos os funcionários desta casa. Desde a portaria, onde fica a atenta
Eliane, passando por todo o corpo administrativo, destacadamente no final do corredor, Dulcinéia, o
verdadeiro anjo da guarda da Teologia desta Faculdade. Descendo as escadas, encontro a Carminha
e seus fiéis ajudantes, todos com um permanente sorriso no socorro aos alunos. A minha gratidão
segue seu caminho e alcança a “nossa” magnífica biblioteca, a que nos referimos com tanto
orgulho, a Biblioteca Pe. Vaz, onde encontrei sempre a competência da Wanda e da Zita que
contagiam toda a equipe que se torna cúmplice da qualidade dos trabalhos aqui desenvolvidos por
não poucos.
Não posso deixar de agradecer à prof. Elizabeth. Suas aulas de francês tornaram possível o
meu acesso à leitura de grandes textos, leituras que formam o estímulo intelectual de quem tem o
privilégio de passar estes anos dedicados à pesquisa teológica.
Devo um agradecimento pessoal e muito especial ao prof. Nilo Ribeiro, cujo carinho me
permitiu freqüentar um de seus cursos na graduação, sobre o filósofo E. Levinas, o que tanto fruto
me permitiu colher agora, na dissertação sobre Karl Rahner, em que lentamente pude tecer um
paralelo entre esses dois gigantes, que creio unidos pela autocomunicação de Deus.
Sou grata, também, ao grande prof. Konings, Coordenador da pós-graduação da FAJE e
suplente na banca examinadora de minha dissertação a quem peço que receba e transmita o meu
maior agradecimento a todos os demais professores, que me apontaram por seu conhecimento e
exemplo de vida que é possível percorrer essa caminhada em busca do Cristo.
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Faço um registro a quem eu “responsabilizo” no dia de hoje o fecho desta etapa de minha
vida: a irmã Carmelita, então coordenadora da pós-graduação, que me recebeu nesta casa sem nunca
haver me visto, e me “viu” numa folha de papel, que apenas apontava o meu desejo de encontrar a
Deus também por meio da ciência da teologia.
A ela devo o empenho na minha aceitação como aluna deste prestigiado Instituto que leva o
nome do santo que me inspira espiritualmente. Devo à irmã Carmelita o estímulo e confiança com
que ofereceu o espaço para que eu pudesse dispor minhas idéias na Revista Convergência. Mais que
tudo, agradeço à irmã Carmelita a escolha do orientador desta dissertação, o professor Ulpiano
Vázquez Moro, escolha esta que fez toda a diferença nestes anos de crescimento humano,
acadêmico e espiritual em minha vida.
Não posso evitar o desfile de rostos que avoluma diante de mim. A todos esses rostos que
me cercaram, desde os funcionários e professores, não citados aqui nominalmente, devo somar os
rostos e o sorriso de cada um e de todos os colegas, os companheiros, os amigos que este Campus
possibilitou unir e aprofundar relações. Muito devo a todos. Não somente aos que dividiram as
aulas na pós-graduação, mas também e com carinho todo especial aos leigos, jesuítas e a todos os
alunos que aproveitam esta bela iniciativa que é o Curso de Teologia Pastoral, o querido CTP do
ISI.
É importante para mim a oportunidade de deixar um registro pessoal sobre a banca
examinadora: estou convencida de esse grupo deve inspirar o sonho do aluno apaixonado pela
pesquisa. Isto porque o momento da defesa é a oportunidade que o dissertante tem de apresentar o
“mundo” pelo qual adentrou por alguns anos e que redundou na experiência que se resume nessas
páginas silenciosas. Por isso, é meu dever parabenizar a FAJE pelo equilíbrio na composição da
banca.
Parto da escolha do professor convidado.
A professora Maria Clara Bingemer, além de decana da PUC-Rio é a titular das matérias
relacionadas ao estudo da Trindade naquela Universidade, o que a meu ver trouxe harmonia para a
banca, como tal. Digo isto porque uma banca composta por meu orientador, o professor Ulpiano
Vázquez Moro, e presidida por meu modelo de teólogo, o prof. Juan Ruiz de Gopegui, recebeu, pela
presença de uma mulher, leiga e inaciana, como eu, um equilíbrio que se refletiu na desejável
segurança para a dissertante, para os demais presentes ao debate que se quer plural nesta Casa
obstinada pela excelência.
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Além disso, a presença da professora Maria Clara uniu a totalidade de minha experiência de
estudo na teologia. Na professora Maria Clara eu vi e me vi no 5º andar da PUC, no bar das freiras,
no Centro Loyola, no Auditório Anchieta. A sua presença fez presentes nesta solenidade os meus
amigos, os meus colegas e todos os professores da PUC-Rio, que nunca se ausentaram destes anos
de minha vida.
Passo ao professor que me honrou com sua presença na Presidência nesta banca. Pe.
Gopegui.
Pe. Gopegui é um teólogo de uma lucidez ímpar. “Conhecimento de Deus e evangelização”.
Este meu livro de cabeceira, pe. Gopegui, deveria ser reeditado com prioridade. Acho que o li mais
que o Curso fundamental da fé! Se não o li tanto, foi lá, certamente, que consegui a estrutura de
pensamento necessário para compreender o Grundkurs des Glaubens.
Por conta deste livro, que é a tese doutoral do pe. Gopegui, eu atirei o meu coração na
evangelização. Apaixonada. A minha experiência na Igreja da Imaculada, da Paróquia São
Francisco Xavier, já está no segundo ano e a cada nova semana eu sinto vontade de testemunhar aos
alunos do pe. Gopegui que ele não sonhou teologia. Ele a vive. E mesmo que ele assim tivesse
sonhado, coisa que a história da vida dele desmente, eu garanto: o sonho da evangelização
gopeguiana é possível. Eu o vejo acordada.
Para mim, o pe. Gopegui é um gigante da teologia por sua união de saberes dogmático e
bíblico. Inesquecível Marcos !!! Mas inesquecível, também, a visão de Igreja que ele semeou no
meu coração.
O pe. Gopegui é assim: vida e obra inseparáveis da fé. O seu modelo de vida e a sua postura
diante do mundo me dizem ser possível o cristianismo. Principalmente por sua noção aguçada do
agora. Tão aguçada que dói. A serenidade com que vive a alegria e os sofrimentos da miséria do
mundo são, no pe. Gopegui, o exemplo de atuação mais eficaz e silenciosa que já conheci.
Não posso imaginar honra maior para um estudante como eu do que ter seu trabalho lido e
examinado por alguém tão grande quanto o senhor. Que Deus o proteja.
Com imensa gratidão, agora me volto a um grande jesuíta: Ulpiano Vázquez Moro, o
professor orientador desta dissertação.
Devo dizer que com este professor, eu conheci uma teologia absolutamente original.
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Com o orientador, eu percebi que Ulpiano Vázquez Moro é motivo de larga e silenciosa
admiração, admiração não somente minha, mas de muitos alunos com que venho cruzando.
Ulpiano Vázquez Moro é um curioso escravo de sua agenda. Nunca vi igual domínio da
elasticidade do tempo, toda vez que se trata de atender uma alma angustiada, um aluno com uma
questão, uma dúvida teológica, sem dizer na grandeza que descobri do grande filósofo que mora
nele e que doma o tempo e a vida para deixar lugar privilegiado à oração e à escuta dos sinais que
nos cercam.
Houve um tempo em que eu me somei a um lamento sobre a “pena” de Ulpiano Vázquez
Moro pouco escrever. Mas chegar um pouco perto de Ulpiano Vázquez Moro me fez perceber que
antes de eu me lamentar era mais importante que eu o lesse.
Digo isso porque há textos. Digo isso porque cada parágrafo de seus textos - que podem
variar de uma conferência internacional, a uma apostila costurada por anos de experiência trinitária,
um editorial, ou uma rica meditação, enfim, uma variada gama de preciosos e inspirados textos
sobre a sua experiência e a espiritualidade inaciana, o que resulta num acervo de extrema valia para
quiser aprender a pensar.
Hoje, eu aguardo serena, junto de todos os seus leitores, cada nova linha a ser por ele escrita,
com a paciência que somente a releitura atenta de seus escritos me proporcionam, por serem textos
de inesgotável originalidade e complexidade.
São textos que a gente lê e sente profunda necessidade de reler e reler para deixar a palavra
do autor Ulpiano Vázquez Moro adentrar por completa na nossa mente, por certo não tão brilhante,
mas com a cumplicidade de quem percebe que a bondade que seu coração extravasa por toda a sua
vida, está para muito além das muitas letras, mas brotam de sua vida vivida e sorvida na Palavra de
seu Pai querido.
Aprendi a guardar além das letras escritas por Ulpiano Vázquez Moro. Guardo as palavras
de Ulpiano Vázquez Moro como guardaria a bondade de seu coração. Um tesouro no vaso de barro
da minha experiência de discípula ad-referendum dele.
Eu, que me propus estudar a liberdade, não posso deixar de dizer desse tema diante da
minha experiência com Ulpiano Vázquez Moro, que possui uma capacidade de escuta insuperável,
não só com os que têm o privilégio de o ter por pai espiritual, mas, também aos que fizeram a
experiência, como eu, de ser por dois anos acompanhada academicamente por ele.
Impressiona.
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Ulpiano Vázquez Moro impressiona porque nunca sabendo qual a dificuldade que eu lhe
traria, eu nunca vi tamanha paciência em ouvir, em permitir que um aluno desenvolva o seu
pensamento, mesmo que, como muitas vezes eu me sentia, tentando “tematizar” o impossível, ou
buscando uma compreensão de Rahner que a minha pobre teologia havia deixado escapar.
A beleza que gostaria de deixar do meu depoimento sobre Ulpiano Vázquez Moro é que
nunca saí de sua sala como entrei. Ele sempre me apontou um ensinamento, uma correção de rumo,
uma leitura, ou me deu uma aula que algumas vezes me deixava louca de alegria pelo conhecimento
vivo que emanava em nossas conversas e, junto disso, uma culpa horrível porque sabia que o tempo
“perdido” comigo estava espremendo a sua agenda sempre lotada.
Devo ao orientador Ulpiano Vázquez Moro o maior aprendizado desta tese: ouvir. Ouvir
sempre. O que quer que seja dito pelo outro. E com a seriedade de quem está sempre tentando
aproveitar alguma coisa ou alguma idéia – por mais estúpida que às vezes eu parecesse a mim
mesma – e tirar às vezes da própria estupidez do aluno um mote para ensiná-lo a sair da estupidez
para a luz.
A Ulpiano Vázquez Moro, o professor, o orientador, o vigário, só posso agradecer
oferecendo a ele a minha gratidão e a minha amizade pessoal, pelo respeito que tenho pelo exemplo
de jesuíta que nele vejo; pela sua profunda vida de oração que transborda em todas as suas
atividades; pelo gigante intelectual que esta experiência de mais dois anos me permitiu perceber e
silenciosamente admirar e mais que tudo: agradeço não a você, Ulpiano Vázquer Moro, mas
agradeço a Deus que lhe permitiu acolher a bondade do nosso querido Pai, agradeço a Deus por esta
sua vida vivida na fidelidade incondicional a nosso Senhor, entrego a Ele os seus cigarros e dedico
ao nosso Senhor Jesus Cristo o meu trabalho.
Quero, ainda, agradecer aos meus pais que me deram a vida, em especial a minha mãe que
vem suportando com muito carinho as minhas demoras, as minhas irmãs, ao meu cunhado e
sobrinhos, pela compreensão e apoio ao meu afastamento.
Finalmente, faço aqui a memória saudosa de meu marido, que deu em vida, a vida de nossos
filhos, que agora já se somam às vidas das minhas noras, eles que, juntos, me deram razões para que
eu acolhesse o oferecimento inesgotável do Amor de Deus.
Belo Horizonte, abril de 2008.
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Sinopse
A dissertação analisa a liberdade cristã, sob a ótica do teólogo alemão, o jesuíta Karl Rahner
(1904-1984). O trabalho acompanha a estrutura do Símbolo dos Apóstolos e se apóia no axioma
fundamental da teologia trinitária de Rahner, cujo pensamento soube fazer retornar à experiência
existencial a concepção do Deus cristão, que é Pai, Filho e Espírito Santo. Ao longo dos Capítulos,
vão se entrelaçando diversos temas da gigantesca teologia de Rahner, em especial o relativo à
teologia da criação por indissociável do tema da salvação, sem o quê desaba a coerente estrutura de
sua avançada teologia que propõe a existência cristã como a totalidade da nossa própria existência,
numa visão do homem como o evento da livre e indulgente autocomunicação de Deus.
Palavras-chave: Deus, liberdade, criação, autocomunicação, salvação.
Abstract
The dissertation focuses the Christian liberty, on Karl Rahner (1904-1984), a German Jesuit.
Divided in three main Parts, it follows the structure of the Apostle‟s Creed, grounded on Rahner‟s
fundamental axiom. This Trinity theology of him was willing and able to bring to our existential
experience the conception of the Christian God, who is Father, Son and Spirit. Through the
chapters, some of the various themes from Rahner‟s huge theology are mixed, specially the related
to the theology of creation that can‟t stay apart from the theme of Salvation, without ruining the
coherent structure of his theology that suggest the Christian existence as the totality of our own
existence, in a mind-set where man is the event of the free and indulgent self-communication of
God.
Key-words: God, liberty, creation, self-communication, salvation.
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SUMÁRIO
ABREVIATURAS .................................................................................................................................. 13
I - Obras Gerais ................................................................................................................................................ 13
II - Obras sobre Karl Rahner .......................................................................................................................... 13
III - Obras de Karl Rahner .............................................................................................................................. 13
IV - Artigos de Karl Rahner ............................................................................................................................ 13
I
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 14
1 – A liberdade cristã em Karl Rahner ............................................................................................................. 15
1.1 – A proposta que o estudo persegue .......................................................................................................... 15
1.2 – A estrutura metodológica que se utiliza ................................................................................................. 16
1.3 – A propósito da autocomunicação da Trindade divina .......................................................................... 18
2 - O incansável autor e seu agitado caminho .................................................................................................. 18
2.1 – Começos .................................................................................................................................................... 18
2.1.1 – a marca da espiritualidade de Inácio de Loyola ................................................................................. 19
2.1.2 – a marca de Rahner no mundo .............................................................................................................. 20
2.1.3 – a marca do mundo de Rahner .............................................................................................................. 22
2.2 – Caminhos .................................................................................................................................................. 24
2.2.1 – do professor que marca com a sua teologia ........................................................................................ 24
2.2.2 – do pastor marcado na guerra por sua teologia ................................................................................... 25
2.2.3 – do teólogo que marca o Concílio Vaticano II...................................................................................... 25
2.3 – Marcas da caminhada ............................................................................................................................. 27
3 - O espírito de Rahner na teologia e o Curso fundamental da fé ................................................................... 28
3.1 – O autor desafiante .................................................................................................................................... 28
3.2 – Um olhar desafiado .................................................................................................................................. 29
3.3 – Um método desafiador e o desafio da síntese......................................................................................... 30
II
O AMOR EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO:
CREDERE IN DEUM ............................................................................................................................. 34
PRIMEIRA PARTE:
A LIBERDADE QUE FUNDAMENTA A NOSSA RELAÇÃO COM DEUS PAI .............................................. 35
CAPÍTULO I - CONCEPÇÃO DE DEUS PAI........................................................................................... 38
1 - O significado do monoteísmo cristão do AT ao NT ................................................................................... 39
Introdução ......................................................................................................................................................... 39
1.1 – O novo conhecimento de Deus ................................................................................................................ 39
1.2 – A fórmula monoteísta do AT e do NT perpassa a idéia de typos da economia basiliana ................... 41
1.3 – A “volta do religioso” como idolatria que ameaça o monoteísmo cristão ........................................... 42
Conclusão .......................................................................................................................................................... 43
2 - o significado de um Deus pessoal que é Pai, Filho e Espírito Santo........................................................... 44
9
Introdução ......................................................................................................................................................... 44
2.1 – O homem que experiencia a pessoa de Deus Pai ................................................................................... 44
2.2 – O homem que nomeia Deus ..................................................................................................................... 45
2.3 – “Pessoa e personalidade” de Deus na teologia trinitária grega ............................................................ 46
Conclusão .......................................................................................................................................................... 49
3 - o significado de um Deus que “quer” agir .................................................................................................. 49
Introdução ......................................................................................................................................................... 49
3.1 – O Deus que quer ....................................................................................................................................... 50
3.2 – O Deus que quer um único milagre: autocomunicar-se ....................................................................... 51
3.3 – O Deus que é Pai é em si o Amor e quer amar criando ........................................................................ 51
Conclusão .......................................................................................................................................................... 52
CAPÍTULO II – CONCEPÇÃO DE HOMEM: UMA DOUTRINA DA CRIAÇÃO .......................................... 53
1 – O significado da relação de Deus com o homem ....................................................................................... 54
Introdução ......................................................................................................................................................... 54
1.1 – Vaticano I: a questão do Deus da razão natural e o Deus da Revelação ............................................. 54
1.2 – Vaticano II: a questão do ecumenismo no Deus da Revelação............................................................. 55
1.3 – A preocupação da dogmática é a realidade da criação ......................................................................... 56
Conclusão .......................................................................................................................................................... 59
2 - o significado de na radical dependência de Deus estar a genuína autonomia do homem ........................... 59
Introdução ......................................................................................................................................................... 59
2.1 – A ab-soluta distinção de Deus ................................................................................................................. 60
2.2 – A radical dependência é a genuína realidade do homem ..................................................................... 61
2.3 – A autonomia do homem e a dependência: uma proporção divina....................................................... 62
Conclusão .......................................................................................................................................................... 63
3 - o significado da afirmação de que o homem é o ser da transcendência ...................................................... 64
Introdução ......................................................................................................................................................... 64
3.1 – O homem é a pergunta para a qual não há resposta............................................................................. 65
3.2 – O homem é sujeito e pessoa ..................................................................................................................... 66
3.3 – O homem não pode tornar “possível o impossível” .............................................................................. 66
Conclusão .......................................................................................................................................................... 66
CAPÍTULO III - CRIADOR E CRIATURA: O ENCONTRO DE DUAS LIBERDADES .................................. 68
1 - O significado da liberdade absoluta do Criador .......................................................................................... 68
Introdução ......................................................................................................................................................... 68
1.1 – A natureza da liberdade é ser livre......................................................................................................... 69
1.2 – O mistério da liberdade que Deus nos doa............................................................................................. 69
1.3 – O mistério da liberdade transcendental como capacidade para algo total ......................................... 70
Conclusão .......................................................................................................................................................... 70
2 - O significado da liberdade profunda de Jesus de Nazaré ............................................................................ 70
Introdução ......................................................................................................................................................... 70
2.1 – A liberdade no Deus-homem ................................................................................................................... 71
2.2 – A liberdade como evento do eterno ........................................................................................................ 71
2.3 – A auto-realização da pessoa livre diante de Deus se chama Salvação ................................................. 72
Conclusão .......................................................................................................................................................... 72
3 - O significado da liberdade contingente do homem ..................................................................................... 72
10
Introdução ......................................................................................................................................................... 72
3.1 – A liberdade como a faculdade da subjetividade .................................................................................... 73
3.2 – A liberdade do sujeito constrói o que somos e o que nos tornamos ..................................................... 73
3.3 – A liberdade, a responsabilidade e a culpa .............................................................................................. 74
Conclusão .......................................................................................................................................................... 75
SEGUNDA PARTE:
A LIBERDADE ABSOLUTA QUE REVELA AO HOMEM O PAI,
POR SEU FILHO E NOSSO REDENTOR ................................................................................................. 77
CAPÍTULO I – CONCEPÇÃO DE REVELAÇÃO ..................................................................................... 80
1 – O caráter tanto transcendental quanto histórico da Revelação ................................................................... 81
Introdução ......................................................................................................................................................... 81
1.1 – O limite ao ilimitado questionar do homem: a ilimitada graça da autocomunicação de Deus ......... 81
1.2 – As historicidades da Revelação: graça de Deus e ação apostólica do homem..................................... 83
1.3 – A utopia intra-mundana e a escatologia cristã: unidade e diversidade ............................................... 84
Conclusão .......................................................................................................................................................... 86
2 – O caráter tanto essencial quanto existencial no conteúdo da Revelação .................................................... 86
Introdução ......................................................................................................................................................... 86
2.1 – O conhecimento originário de Deus ....................................................................................................... 87
2.2 – Os nomes do inominável: o Aonde e o Donde que porta a transcendência ......................................... 89
2.3 – O mistério evidente .................................................................................................................................. 90
Conclusão .......................................................................................................................................................... 92
3 – Deus se expressa em Jesus, portador da última e insuperável palavra ....................................................... 92
Introdução ......................................................................................................................................................... 92
3.1 – A pobre tematização do saber originário do homem ............................................................................ 93
3.2 – O ouvinte de Deus: uma antropologia teológica .................................................................................... 94
3.3 – O ouvinte é Deus: a unidade da antropologia e da teologia na cristologia .......................................... 95
Conclusão .......................................................................................................................................................... 96
CAPÍTULO II – CONCEPÇÃO DE REDENÇÃO ..................................................................................... 97
1 – A unidade entre Redenção e Criação ......................................................................................................... 98
Introdução ......................................................................................................................................................... 98
1.1 – Os pares de realidades: a unidade no mundo ........................................................................................ 98
1.2 – A unidade da realidade é plural e hierárquica ...................................................................................... 99
1.3 – O homem e o êxito do Deus-homem ..................................................................................................... 101
Conclusão ........................................................................................................................................................ 103
2 – O locus cristão, numa visão evolutiva do mundo ..................................................................................... 103
Introdução ....................................................................................................................................................... 103
2.1 – A graça e a glória: meta da autocomunicação de Deus ...................................................................... 104
2.2 – A graça pressupõe a natureza: uma ontologia teológica .................................................................... 105
2.3 – A graça e a natureza: uma unidade histórica inacabada, periclitante e oculta ................................ 107
Conclusão ........................................................................................................................................................ 109
3 - Graça e liberdade: a tensão de uma doutrina ............................................................................................ 109
11
Introdução ....................................................................................................................................................... 109
3.1 – A graça sem a liberdade: uma heresia ................................................................................................. 111
3.2 – A graça e a liberdade: a causalidade salvífica ..................................................................................... 113
3.3 – A graça da liberdade libertada: a Redenção e a justificação ............................................................. 114
Conclusão ........................................................................................................................................................ 115
CAPÍTULO III – CONCEPÇÃO DE SALVAÇÃO .................................................................................. 117
1 – A Tua fé nos Salvou ................................................................................................................................. 118
Introdução ....................................................................................................................................................... 118
1.1 – A unidade da experiência apostólica da ressurreição e a nossa própria ressurreição ..................... 119
1.2 – Relação de fé existente de fato .............................................................................................................. 121
1.3 – Relação com Jesus como absoluto portador da salvação.................................................................... 121
Conclusão ........................................................................................................................................................ 123
2 – Cristologia transcendental ........................................................................................................................ 123
Introdução ....................................................................................................................................................... 123
2.1 – O que significa ser Filho Eterno de Deus ............................................................................................. 125
2.2 - O que significa Deus se fez homem ....................................................................................................... 126
2.3 – O que significa ressurreição .................................................................................................................. 127
Conclusão ........................................................................................................................................................ 128
3 – Cristologia existencial .............................................................................................................................. 131
Introdução ....................................................................................................................................................... 131
3.1 – A necessidade de uma cristologia “existencial” ................................................................................... 132
3.2 – A reflexão teológica descendente e a ascendente ................................................................................. 133
3.3 – A unidade entre o amor concreto ao próximo e o amor a Jesus ........................................................ 134
Conclusão ........................................................................................................................................................ 135
TERCEIRA PARTE:
A LIBERDADE NA UNIDADE DO ESPÍRITO SANTO ........................................................................... 137
CAPÍTULO I – CONCEPÇÃO TRINITÁRIA DE ESPÍRITO DE DEUS ..................................................... 141
1 – O significado de causa santificadora do Espírito numa doutrina sistemática da Trindade ...................... 142
Introdução ....................................................................................................................................................... 142
1.1 – Ouvir a Escritura ............................................................................................................................... 143
1.2 – Páscoa e Pentecostes ........................................................................................................................... 144
1.3 – O batismo no Espírito e a Santa Eucaristia ..................................................................................... 146
Conclusão ........................................................................................................................................................ 147
2 – O significado de causa perfectiva do Espírito em dois milênios de evolução do dogma ......................... 147
Introdução ....................................................................................................................................................... 147
2.1 – A verdade e o erro: a tradição e os dogmas ......................................................................................... 148
2.2 – A tradição e a evolução do dogma ........................................................................................................ 149
2.3 – A evolução do dogma e a realidade da palavra ................................................................................... 151
Conclusão ........................................................................................................................................................ 152
3 – O significado de causa universalizadora do Espírito na autocomunicação divina ................................... 155
12
Introdução ....................................................................................................................................................... 155
1.4 – O ponto de partida: conceito sistemático de Trindade econômica ................................................. 156
3.2 – A expressão trinitária da Igreja ............................................................................................................ 157
3.3 – A suspeita do mito .................................................................................................................................. 158
Conclusão ........................................................................................................................................................ 159
CAPÍTULO II – CONCEPÇÃO TRINITÁRIA DE AUTOCOMUNICAÇÃO E A FÉ .................................... 162
1 – O significado de autocomunicação “de Deus” ......................................................................................... 162
Introdução ....................................................................................................................................................... 162
1.1 – O relacionamento interno - τάξις - entre as maneiras de autocomunicação de Deus ...................... 164
1.2 – Os duplos aspectos da autocomunicação de Deus ............................................................................ 165
1.3 – A natureza do destinatário e a unidade interna da autocomunicação .............................................. 167
Conclusão ........................................................................................................................................................ 168
2 – O significado das breves fórmulas ........................................................................................................... 169
Introdução ....................................................................................................................................................... 169
2.1 – Uma breve fórmula teológica ................................................................................................................ 171
2.2 – Uma breve fórmula antropológica........................................................................................................ 172
2.3 – Uma breve fórmula futurológica .......................................................................................................... 174
Conclusão ........................................................................................................................................................ 174
III
CONCLUSÃO ..................................................................................................................................... 176
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................. 183
I - Obras Gerais .............................................................................................................................................. 183
II - Obras sobre K. Rahner ............................................................................................................................ 184
III - Obras de K. Rahner ................................................................................................................................ 185
IV - Artigos de K. Rahner .............................................................................................................................. 187
ANEXO .............................................................................................................................................. 189
13
ABREVIATURAS
I - Obras Gerais
ATS
DH
EE
MAN
MYS
SAC
TES
A teologia do século XX (R. Gibellini).
Denzinger-Hünermann: compêndio dos símbolos, definições e declarações da fé e da moral.
Ejercicios Espirituales. Ignacio de Loyola (introdução C. Dalmases).
Manresa.
Mysterium Salutis.
Sacramentum Mundi.
Tratado sobre o Espírito Santo (Basílio de Cesaréia).
II - Obras sobre Karl Rahner
ATI
EDV
ITT
TCF
Abstracts of Karl Rahner‟s Theological investigations 1-23 (D. Pekarske).
Karl Rahner: experiencia de Dios en su vida y en su pensamiento (H. Vorgrimler).
Karl Rahner: itinerário teológico (B. Sesboüe).
Karl Rahner: the content of faith. The best of K.R‟s theological writings (K. Lehmann).
III - Obras de Karl Rahner
CFF
CSM
DTH
MEG
ODR
SZT
TLJ
THI
Curso Fundamental da Fé.
Encyclopedia of Theology: the concise Sacramentum Mundi.
Dictionary of Theology (H. Vorgrimler; K. Rahner).
Missão e Graça.
O dogma repensado.
Schriften zur Theologie.
The Love of Jesus and the Love of neighbor.
Theological investigation.
IV - Artigos de Karl Rahner
CDM
EHS
ODT
RMC
TDL
TDT
TED
TNT
Conceito de mistério, in ODR.
Experience of the Holy Spirit, in THI, XVIII.
O Deus trino, fundamento transcendente da história da salvação, in MYS.
A realidade da redenção no mundo criado, in MEG I.
Teologia da liberdade, in Teologia da liberdade.
Observações sobre o Tratado “De Trinitate”, in ODR.
Tentativa de esboço para uma dogmática, in ODR.
Theos in the New Testament, in THI, I.
14
I
Introdução
15
1 – A liberdade cristã em Karl Rahner
Este trabalho quer tratar a liberdade cristã na ótica de Karl Rahner, o que implica o desafio
de “libertar” o conceito de liberdade das reduções em que a palavra se encontra hoje aprisionada.
Nesse sentido, “libertar” a liberdade significa retirar-lhe o peso do efêmero, que talvez seja a marca
do homem da chamada pós-modernidade e que, no extremo, é o que escraviza impeditivamente o
entendimento da liberdade cristã como “evento do eterno”1.
Mas não é só. Cuidar da liberdade que é cristã implica perceber a liberdade como uma
misteriosa experiência, por seu caráter indissociável da relação do ser humano com Deus. Por isso,
a liberdade que pretendemos “des-cobrir” nessas linhas tem sua origem encoberta no “mistério
absoluto a que chamamos Deus”2.
Tal relação somente será entendida no contexto hodierno se perseguir o exato sentido que
ora a presente página assim delimita:
a tarefa de pensar o cristianismo através da sua configuração na cultura plural
parece-me fadada à superficialidade meramente morfológica do fenôneno cristão
[...] se nós não nos perguntássemos pela idéia, ou pela essência, ou pelo ato que
produz a forma ou a figura cristãs como absolutas. Ab-solutas, no sentido rigoroso
do termo, isto é, livres da relação, livres na relação; livres, assim, para a livre
relação3.
1.1 – A proposta que o estudo persegue
Assim é que esse estudo encontra a liberdade como a realidade da experiência
transcendental. É quando o sujeito experimenta a sua própria ação não como um evento objetivo,
mas como um evento subjetivo, que o homem experiencia um acontecer salvífico, na medida em
que o exercício da liberdade não se reduz a uma escolha efêmera, mas implica o evento, cujo objeto
valorado é o próprio homem. Nas palavras de Rahner,
quando se entende realmente a liberdade, compreende-se que ela não é a faculdade
de fazer isto ou aquilo, mas a faculdade de decidir sobre si mesmo e construir-se a
si mesmo4.
1
KARL RAHNER. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo, 2ª ed. SP: Paulus, 1989, 121. As
próximas referências ao autor se farão como RAHNER e a esta obra pela abreviatura CFF.
2
CFF 23.
3
U. VÁZQUEZ MORO. A configuração do cristianismo numa cultura plural, Perspectiva Teológica, Belo Horizonte,
no 70, 363-364, set./dez. 2003.
4
CFF 54.
16
É esta a perspectiva que faz do exercício da liberdade um evento salvífico e que, por isso
mesmo, implica trazer a concepção de salvação para a concepção de criação. Em sua sabedoria,
Rahner defende que o homem, quando se aceita real e serenamente como criatura, se aceita como
ser da liberdade e da responsabilidade, como o ser da diferença entre o que ele é e o que deve ser.
Essa diferença pede ao cristão uma superação e, portanto, “um „não‟ a alguma coisa e um „sim‟ a
outra coisa, a uma coisa melhor”5.
Desse modo é no exercício da sua misteriosa liberdade que o homem, num tempo único que
lhe é dado pelo Criador, vai-se construindo, na história, na superação da diferença entre um “não” e
um “sim”, ou seja, “entre a preguiça do seu espírito e o seu egoísmo, por um lado, e a luz da
verdade, do amor, da fidelidade e do desinteresse, por outro”6. É diante disso que o tema da
liberdade e o tema da criação se entrelaçam de tal maneira no cristianismo que se tornam
indissociáveis na compreensão que se pretenda alcançar do que seja o homem.
1.2 – A estrutura metodológica que se utiliza
Neste ponto impõe-se esclarecer a estrutura deste trabalho, que é marcada pelo
entrelaçamento e pela complexidade de suas questões, porque assim nos impõe a realidade do
cristianismo, tal como o percebeu o autor sob estudo. Por isso, não perseguir esta complexa trama
incorreria cair numa “temível simplificação”, conforme a advertência de Rahner:
Quem leva em consideração apenas uma parte dentro de um estado de coisas
complexo, pode falar de um modo “claro”. Sua clareza, contudo, é tão-só a de um
temível simplificateur (simplificador). Quando o objeto não permite que a sua
realidade seja simplificada, é inevitável certa complicação na linguagem7.
Rahner recomenda ao leitor que vá penetrando na trama das reflexões que ele reconhece,
também lhe foram difíceis. A ressalva é pertinente porque se observarmos os capítulos que se
apresentam, poderia parecer que seus títulos, por si, apontam uma impermeabilidade, apontam uma
seqüência estanque em que o primeiro traria a liberdade como mistério do Pai; o segundo trataria a
liberdade como um evento salvífico e, portanto, discorreria sobre o Filho; e o terceiro encerraria a
segunda parte, apresentando a missão do Espírito Santo, na autocomunicação de Deus ao ser
humano.
5
CFF 472.
CFF 473.
7
RAHNER. In Publik-Forum, 23 de fevereiro de 1979, nº 4, 13. Apud H. VORGRIMLER. K. Rahner: experiencia de
Dios em su vida y en su pensamiento. Santander: Sal Terrae, 2004, 23. Tradução brasileira: Karl Rahner: experiência de
Deus em sua vida e em seu pensamento. SP: Paulinas, 2006, 25-6. As próximas referências a esta obra se farão pela
abreviatura EDV, segundo a edição em Espanhol.
6
17
Tal não corresponde ao que se pretende porque como nos diz a clareza de Rahner, “assim
não pode ser”8. E não pode mesmo, pois quando “o Pai se nos dá a si próprio em absoluta
autocomunicação mediante o Filho no Espírito Santo”, aí, está dada a experiência da “Trindade da
história da salvação e revelação, e na qual fazemos a experiência da Trindade imanente”, ou seja, de
como a Trindade é em seu ser mais íntimo, donde este trabalho pressupõe a ação da Trindade desde
aqui e por todas as linhas até a conclusão, que melhor exporá a premissa trinitária que desde já se
expôs.
Dito isso, é a partir da afirmação de que a liberdade não se pode dissociar do tema da
criação, que esta Primeira Parte luta por dar significado a uma teologia da criação que responda
alguns problemas cruciais que desafiam a fé cristã – individual ou coletivamente –, no que tange à
concepção de Deus, de ser humano e o papel desempenhado pela liberdade diante de ambos.
Nesse sentido, será impossível reter a Primeira Parte apenas na análise da Primeira pessoa
trinitária, ou seja, o Pai, uma vez que o cristianismo se funda na Revelação do Filho, que nos deixa
seu Espírito, para que possamos atualizar a mensagem cristã de modo a que ela alcance os “confins
do mundo”, sob a inspiração do Espírito de Jesus Cristo. Nesta Parte, desponta a liberdade como o
mistério fundamental da relação entre Deus Pai e o ser humano, com o quê se espera tirar
conseqüências do pensamento rahneriano para a experiência e a vivência cristã nos dias que correm.
Na mesma linha, se o título pode sugerir que a Segunda Parte se exaure no exame da
Segunda pessoa, ou seja, no Filho, o estudo mostrou-nos, de novo, o papel da liberdade de Deus Pai
que quer revelar-Se por seu Filho, e nisso revela-Se por nosso Redentor. As implicações dessa
revelação redentora, para a teologia da criação de nosso autor, desembocam no caminho de questões
tais como o conhecimento de Deus, o encontro com o Deus homem e o significado a se atribuir ao
mundo, à história e ao tempo, diante do misterioso evento salvífico que se dá na liberdade absoluta
da autocomunicação de Deus pelo Logos.
Finalmente, a Terceira Parte aborda a autocomunicação existencial pelo Espírito Santo
mantendo o tema da autocomunicação. Portanto, carregando a missão do Filho e do Espírito Santo
numa volta à liberdade transcendental, que deve ser entendida não como um conceito, mas como a
experiência que permite ao homem, numa abrupta ruptura de si, a busca do caminho de Deus que se
confunde com o bem que se expressa no amor ao próximo.
8
RAHNER. O Deus Trino, fundamento transcendente da história da salvação. Mysterium Salutis II/1,
Petrópolis:Vozes, Cap. 5, seção I, 290. As próximas referências a este artigo se farão pela abreviatura ODT.
18
1.3 – A propósito da autocomunicação da Trindade divina
A partir dos próximos pontos adentramos lentamente na compreensão trinitária de Rahner.
Vamos caminhar por parágrafos em que nos perceberemos efetivamente filhos da fé cristã, eis que
somos criados por Deus Pai, redimidos por seu Filho eterno e santificados pelo dom do Espírito
Santo.
Com isso, as três partes sob análise vão apontar em nossas vidas que é da liberdade
transcendental que resulta o mistério da autocomunicação do Deus trino com o ser humano. Essa
liberdade, que o cristão recebe por absoluta Graça, é exercida no confronto com “um mundo do qual
o cristão se distingue por pensamentos e ações”, num tal exercício que perdure a totalidade de sua
existência assim vivida em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
2 - O incansável autor e seu agitado caminho
As idéias aqui desenvolvidas surgiram do pensamento de Karl Rahner, um alemão da
Floresta Negra, que assim falou reticentemente de si e de sua biografia:
Se eu disser que nasci a 5 de março de 1904 em Friburgo, filho de um professor
primário, e que cresci numa família cristã, católica convicta, à qual uma mãe de
sete filhos imprimiu caráter, que fiz os estudos normais até acabar os estudos
secundários em 1922, com bons resultados, absolutamente normais... que sei eu
dos meus começos? Pouco, e este pouco desaparece cada vez mais num passado
silencioso coberto pelo esforço quotidiano. Em 1922 entrei na ordem dos jesuítas.
Passados 44 anos, acerca deste começo sabe-se que foi bom, que me foi fiel e que
também lhe posso ser fiel. E pouco mais9.
2.1 – Começos
Nada na vida do jovem Karl indicaria a sua futura fama10. Era um jovem que gostava de
escalar as montanhas de sua terra e, na escola, foi um aluno médio, que achava as aulas chatas. Seu
professor de religião, ao saber da decisão de se tornar um jesuíta disse: “isto não vai durar; isto não
é para Karl”. Hoje, a opinião do teólogo norte-americano Modras é de que os historiadores ainda
9
www.triplov.com/espirito/frei_bento/dogmas.htm, acesso em 17.01.2006.
Rahner foi jesuíta por 62 anos, sacerdote por 52 anos e levou uma “vida teológica” por quase 45 anos. Recebeu 14
títulos de doutor honoris causa, sendo chamado por seus discípulos de “o silencioso movimentador da Igreja Católica
Romana” e de “o Pai da Igreja no século XX”. Cf. K. LEHMANN; A. RAFFELT (ed.), Karl Rahner: the content of
faith. The best of Karl Rahner‟s theological writings, NY: Crossroad, 2000, xi. As próximas referências a esta obra se
farão pela abreviatura TCF.
10
19
elencarão Karl Rahner ao lado de gigantes da teologia como Orígenes, Agostinho e Tomás de
Aquino11.
Karl viveu uma Europa em busca de sua própria identidade. Aos 10 anos sofreu a Primeira
grande guerra mundial. Aos 14 anos, viu os tratados de paz modificar a geografia política do
mundo. Aos 18 anos, em 1922, na mesma Áustria em que o judeu Sigmund Freud lançava os
escritos maduros de sua elaboração da psicanálise, Rahner iniciou a formação de jesuíta:
espiritualidade de Inácio de Loyola e filosofia.
2.1.1 – a marca da espiritualidade de Inácio de Loyola
Sabemos que o grande tema do mundo teológico de Rahner nasce da sua obstinação em
pensar a fé e a experiência de Deus - que ele mesmo fez ao deixar-se conduzir pela espiritualidade
do mestre Inácio de Loyola – e que ele busca justificar com honradez intelectual12 ao longo da
batalha de sua vida de grande teólogo e místico do século XX.
Foi quando o jovem jesuíta fez os Exercícios Espirituais de santo Inácio13 pela primeira vez,
depois de dois anos no noviciado, e antes de dar início a seus estudos formais de filosofia, que
Rahner assina seu primeiro artigo, publicado com o título: Porque rezar é indispensável14 e, ao
contrário do que se poderia esperar do então inexperiente autor, lá está o tema da autocomunicação
de Deus, a constante que sua teologia nunca deixará de perseguir, e que se alimenta de sua própria
experiência espiritual com os EE. No artigo, encontram-se referências aos EE, em especial à
anotação no 1515, em que Inácio afirma ser
[...] mais conveniente e muito melhor que, buscando a divina vontade, o mesmo
Criador e Senhor se comunique à sua alma devota, abrasando-a em seu amor e
louvor e dispondo-a pela via que melhor poderá servir-lhe adiante. De modo que o
que dá (os exercícios) [...] deixe obrar imediatamente o Criador com a criatura e a
criatura com o seu Criador e Senhor.
Durante a formação, o jesuíta estudou os manuais neo-escolásticos, mas, como herdara do
pai um grande amor pela história e, igualmente influenciado por Hugo, seu irmão também jesuíta,
11
RONALD MODRAS. Ignatian Humanism: a dynamic spirituality for the 21st Century, Chicago: Loyolapress, 2004,
204.
12
CFF 23.
13
IGNACIO DE LOYOLA, Ejercicios Espirituales: introducción, texto, notas y vocabulário por Cándido de
Dalmases, Santander: Sal Terrae, 1987. Os Exercícios Espirituais de santo Inácio de Loyola serão mencionados
doravante pela abreviatura EE e os textos a ele referidos são tradução livre desta edição em Espanhol.
14
RAHNER. Warum uns das Beten nottut: [S.l.: s.n], republicado in Herbert Vorgrimler, ed., Karl Rahner, Sehnsucht
nach dem Geheimnisvollen Gott, Freiburg: Herder, 1990, 77-80, apud R. MODRAS, op. cit., 204-328.
15
EE [15] 48.
20
Rahner dedica muito do seu tempo ao estudo da Patrística. Sabe-se que ele leu todos os pais da
Igreja do segundo século, em busca do que cada um tinha a dizer sobre a experiência mística e
sobre como cada um experimentou Deus. Nesta época, nosso autor publica, em francês, dois artigos
de espiritualidade, em que estuda Orígenes16 e Boaventura17, respectivamente. Ao mesmo tempo,
Rahner reconhecia que os Pais da Igreja não haviam encontrado os desafios do “agora e que cada
época tem suas próprias questões. Não podemos esperar que os nossos Pais resolvam as nossas
novas questões para nós”18.
2.1.2 – a marca de Rahner no mundo
Rahner, defensor de que a revelação de Deus se expressa para além da teologia científica,
foi sentindo “as novas questões” na história da cultura de seu tempo em que explodiram uma série
de movimentos de ruptura, que refletiam as guerras nos limites humanos:
[...] Finalmente, acresce a variada manifestação não-científica da vida do espírito
na arte, na poesia e na sociedade, multiplicidade tão vasta que nem tudo que aí
aparece é mediado quer pelas filosofias quer pelas próprias ciências pluralistas e,
contudo, representa uma forma do espírito e da autocompreensão humana com que
a teologia tem que ver de alguma forma19.
Neste mundo, então o centro das inovações, surge uma vanguarda que escandaliza, que
prega a renovação da sociedade por meio da guerra e a convivência com o contraditório. Não é que
o mundo que Rahner viu parecesse louco: o que Rahner viu, foi a reação que fez surgir o
antimoderno e que obrigou o “esforço quotidiano” de suas idéias fazer dialogar o cristianismo com
os expoentes da filosofia, da política, das ciências e da cultura de então, a partir do belo arrazoado
que ele mesmo dá:
Eu não sou apenas uma idéia; eu não posso abandonar a história nas mãos das
minhas idéias. Por isso, eu sei que a história de Jesus não pode derrotar-me e
deixar-me abandonado, ainda que, naturalmente, ela se encontre carregada de todo
16
RAHNER. Le début d‟une doctrine des cinq sens spirituals chez Origène, Revue d‟Ascetique et de Mystique 13
(1932), 113-145. O artigo foi republicado como Die “geistlichen Sinne” nach Orígenes. Schriften zur Theologie, XII,
Einsiedeln: Benziger, 1975. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura SZT, seguida do número do
volume, e como The“Spiritual Senses” according to Origen, Theological Investigations, XVI, NY: Seabury, 1979, 81103. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura THI, seguida do número do volume.
17
RAHNER. La doctrine des „sens spirituels‟ au Moyen-Age en particulier chez St. Bonaventure, Revue d‟Ascetique et
de Mystique 14 (1933), 263-299. O artigo foi republicado como Die Lehre von den “geistlichen Sinne” im Mittelalter:
der Beitrag Bonaventuras, SZT, XII, e como The Doctrine of the “Spiritual Senses” in the Middle Ages, THI, XVI,
104-134.
18
R. MODRAS, op. cit., 209.
19
CFF 19.
21
o relativismo do histórico e com todas as obscuridades do conhecimento dos fatos
consumados20.
Assim, atento, Rahner manteve em sua vida pessoal amizade com escritores, como a
novelista Luise Rinser21, ensaístas e poetas católicos, que lhe renderam demonstrações desse seu
cuidado na observação do mundo que o cercava, o que foi perenizado na edição de livros
comemorativos de várias datas natalícias suas. Na passagem de seus 60 anos22, a edição conta com
textos de Heinrich Böll23 e de Gertrud von Le Fort24, além do filósofo M. Heidegger, dos teólogos
protestantes ecumênicos, K. Barth, R. Bultmann e G. Ebeling25, dentre centenas de outros nomes.
Esta marca de sua teologia e de sua própria personalidade é fruto de toda a sua formação.
Graças a um professor de seu escolasticado, Rahner conheceu mais do que o tomismo medieval.
Estudou filosofia em Feldkirch e depois em Pullach, de 1924 a 1927. Leu I. Kant e descobriu o
pensamento de seu colega jesuíta belga, Joseph Maréchal, que tentara correlacionar a teoria do
conhecimento em santo Tomás com o método transcendental de Kant. Maréchal desenvolveu o que
se chamou de tomismo transcendental, que atraiu o pensamento de Rahner.
Em 26 de julho de 1932, ordena-se, na Igreja São Miguel de Munique, o padre Rahner que,
sobre sua vocação, declarou:
20
RAHNER. SZT, vol. XIV (1980), 17-18. Citado in EDV 16.
Luise Rinser (1911-2002) uma das maiores novelistas e contistas do século passado, vendeu mais de cinco milhões de
livros em alemão, fora as traduções em vinte outros idiomas. Alemã, nascida na Bavária, católica, teve a vida marcada
por desafios: feminista, pacifista, lutou contra armas nucleares e protestou contra as guerras. Fez campanha por Willy
Brandt e em 1984 concorreu à presidência do então jovem Partido Verde. Casou-se com o músico Günther Schnell e
com ele teve duas filhas. Com a ascensão do Nazismo e a recusa do casal em colaborar com o regime, teve seu marido
morto em 1943 e ela, sob igual condenação foi presa e escapou da morte com o fim da Guerra. Em 1954, casou-se com
o já então famoso compositor de Carmina Burana (1927), Karl Orff, de quem se divorciou em 1959. Rinser, amiga
pessoal de Rahner, trocou com ele uma imensa correspondência epistolar. Dividiu sua vida entre Roma e Munique,
onde morreu aos 90 anos, deixando uma polêmica entorno à publicação de sua correspondência pessoal com Rahner,
que com ela se relacionou até o final de seus dias. Nesse período, ambos discutiram sobre a oportunidade de
publicarem-se essas cartas, o que, ao final, Rahner decidiu-se contra e, num gesto de confiança, devolveu-lhe as cartas
que ela lhe havia endereçado. Aos 82 anos de idade, Luise muda de opinião e publica a volumosa correspondência num
livro que para ela seria o “diário íntimo de Rahner”, contra o que se voltaram não somente seus herdeiros, como
também seus mais próximos seguidores, para quem “a publicação das cartas mais pareceu uma manobra com a inútil
intenção de iluminar o monumento de Rahner com uma lanterna de bolso para que ela mesma pudesse assim brilhar
com a luz dele refletida”. In EDV. p. 114-116.
22
Ao completar 60 anos, Rahner recebeu esta homenagem em dois volumes de 667 e 964 páginas, respectivamente. O
título, Deus no mundo. A “Tábula gratulatória” incluía 14 cardeais, 2 patriarcas, 24 arcebispos, 150 bispos, numerosos
teólogos protestantes, além de 564 pessoas de todos os âmbitos imagináveis. Rahner considerou esta impressionante
lista de nomes como um tipo de escudo protetor. In EDV 121.
23
Heinrich Böll (1917-1985), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1972, deixou uma vasta obra cuja tônica é a
luta contra a omissão, a injustiça e a opressão. Defensor implacável dos direitos humanos, antimilitarista convicto e um
dos primeiros ativistas em defesa do meio ambiente, pela sua postura inabalável, pelo seu papel na divulgação dos
ideais democráticos e o seu ativo engajamento nas causas pacifistas, Böll foi eleito o símbolo da integridade humana.
24
Gertrud von Le Fort (1876-1971), protestante convertida ao catolicismo, a poetiza alemã é autora de vários livros,
tendo alguns deles sido reescritos para o teatro e o cinema.
25
EDV 121.
21
22
Sempre quis ser padre, sempre quis tornar-me religioso – por quê? Não saberia
dizer ao certo. [...] É evidente que devem ter existido motivos pensados;
certamente foram motivos religiosos, ligados à problemática de uma certa filosofia
à qual se deseja pertencer. Mas as razões de um jovem se apagam e não são mais
balizáveis na seqüência da existência. Isso, aliás, não é necessário. Se me
perguntarem se desejaria novamente ser jesuíta, responderia: se eu fosse o que eu
era então, evidentemente, e não lamento nenhuma das conseqüências que isso
teve26.
2.1.3 – a marca do mundo de Rahner
No centro da luta pela hegemonia, Rahner viu o mundo na Primeira Guerra Mundial apagar
10 milhões de vidas (quase 2 milhões de alemães) e pagar com 20 milhões de feridos o preço do
duelo entre Reino Unido e Alemanha. Em 1933, Adolf Hitler torna-se chanceler de sua pátria. Com
o nazismo, os jesuítas passaram a viver sob severa vigilância. Alguns jesuítas alemães foram
sentenciados a campos de concentração e outros condenados à morte. Dentre eles destaca-se Alfred
Delp27, aluno de Rahner de 1927 a 1929, período em que lecionou latim a seus confrades no
juniorado de Feldkirch28. Delp e o teólogo Luterano Dietrich Bonhoeffer, que participaram da
resistência contra Hitler, foram enforcados em Berlim, em 1945.
De 1933 a 1934, Rahner encerra seu percurso de formação, completando sua terceira
provação em Kärnten, na Áustria, sendo destinado a um doutorado em filosofia em sua cidade natal.
“Ali acompanha durante dois anos, com seu companheiro jesuíta Johannes B. Lotz (1903-1992), as
aulas de Martin Heidegger (1889-1976). Por várias vezes, Rahner se expressou sobre sua relação
com Heidegger”29, como a seguir:
Gostaria [...] de dizer que Heidegger, o filósofo propriamente dito de 1934-1936,
era bem diferente do Heidegger mais tardio. O Heidegger que freqüentei era o de
Sein und Zeit, o do apelo ao combate, talvez até mesmo o da metafísica. Era um
Heidegger com o qual aprendi um pouco a pensar, e sou-lhe muito grato por isso.
Em minha teologia, na medida em que ela é filosófica, certamente não poderia
falar de uma influência sistemática de sua parte que chegue até o conteúdo, mas
sim de uma vontade e de uma capacidade de pensar que Heidegger realmente nos
26
J. B. METZ. K. Rahner, Le courage du théologien, Paris: Ed. du Cerf. 1985, 170, apud B. SESBOÜE, K. Rahner:
itinerário teológico, São Paulo: Loyola, 2004, 10. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura ITT.
27
O pólo da dissidência civil do nazismo estava constituído em Berlim pelos adeptos do chamado Círculo de Kreisau,
que se reuniam em torno de algumas figuras de alto calibre moral e religioso. Faziam parte intelectuais, socialistas,
teólogos e membros da Igreja Luterana, e alguns jesuítas, como o padre Alfred Delp, redator da revista Stimmen der
Zeit, o padre Augustinus Rösch, provincial da Baviera, com seu secretário, padre Lothar König, além de ex-sindicalistas
e ex-expoentes do Zentrum, o velho partido de centro de inspiração cristã. Com a tentativa de golpe de Estado de 20 de
julho de 1944, quase todos os membros do Círculo e seus simpatizantes foram detidos, torturados e punidos. O primeiro
foi o conde Peter Yorck, pendurado em ganchos de açougue em 8 de agosto de 1944. O mesmo coube ao teólogo
luterano Dietrich Bonhoeffer em 9 de abril de 1945. Padre Alfred Delp subiu ao patíbulo em 23 de janeiro daquele ano,
ao lado do conde Von Moltke. Cf. em http://www.30giorni.it/br/articolo.asp?id=7981. Acesso em 23.01.2008.
28
Cf. ITT 15.
29
ITT 16.
23
inspirava. Naquela época estudei até certo ponto o que é chamado de modo vago e
geral de filosofia existencial e a teologia existencial, o que, em sentido estrito, não
tem necessariamente relação com Heidegger – o que eu já havia feito devido à
minha origem marechaliana. Devo dizer que Martin Heidegger foi o único
professor pelo qual experimentei o respeito de um aluno diante do grande mestre30.
Era uma época em que seria impensável que um religioso fosse orientado num doutorado
por Heidegger. Rahner trabalhou, então, com o professor Martin Honecker (1988-1941)31. A
questão central de sua tese é a de saber quais são, segundo Tomás de Aquino, as condições a priori,
isto é, a estrutura fundamental do espírito humano. A tese foi recusada pela universidade de
Friburgo e, como afirmou o próprio Rahner, “a rejeição se deu porque, segundo Honecker, a
dissertação se inspirava demasiado em Heidegger”. Mas Rahner assim se justificará:
Talvez se diga: “Mas você oferece uma interpretação de Santo Tomás embebida na
filosofia moderna!”. Longe de considerar essa apreciação como uma crítica, o
autor a aceita como um elogio. Pois, afinal de contas, eu pergunto: Santo Tomás
pode me interessar se não for em função das questões que se agitam em meu
espírito e que agitam a filosofia de hoje?32
Em 1936, Rahner vai para Innsbruck onde publica esta tese de doutorado em filosofia com o
título: O espírito no mundo: a metafísica do conhecimento finito segundo Santo Tomás de Aquino,
reconhecidamente a sua primeira grande obra. Mais tarde, em 1957, no prefácio à segunda edição
organizada por seu discípulo J. B. Metz, o teólogo esclarece que o que “visava era principalmente
isto: deixar de lado em grande parte o que se chama „neo-escolástica‟ para voltar ao próprio Santo
Tomás, aproximando-me justamente dos problemas formulados à filosofia do nosso tempo”33. Em
1974, ao completar 70 anos, na oportunidade em que é conferido a Karl Rahner o título de Doutor
honoris causa pela Universidad Pontifícia Comillas, o professor Alvarez Bolado, que traduzira a
obra para a língua espanhola, assim dá seu testemunho:
Não se há de buscar a unidade da obra de Rahner em obras sistemáticas, mas
precisamente no desenvolvimento incessante desta intuição germinal, O espírito no
mundo, em cujo horizonte ele empreende a tarefa não interrompida [...] de
reinterpretar os dogmas cristãos. Esta interpretação contínua fez de Rahner um
teólogo incômodo, porque a sua vida e o seu pensamento têm sempre apelado à
Igreja para que ela não se enclaustre em si mesma, e nem forme uma imagem ideal
do que significa ser cristão. A menos que ajude aos homens aqui e agora, na
30
J. B. METZ, op. cit., 37 (apud ITT 17).
M. Honecker era um tradicional historiador da filosofia católica, identificado com Tomás de Aquino. Ele exercia,
então, o que se chamava Cátedra do Acordo, acordo esse feito entre o Vaticano para difusão da filosofia cristã na região
de Baden.
32
H. MULLER; H. VORGRIMLER, K. Rahner, Paris: Fleurus, 1965, p. 16.
33
RAHNER, Spirito nel mondo (2a ed. 1957), XXIII, apud R. GIBELLINI, A teologia do século XX. SP: Loyola, 2002,
224. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura ATS.
31
24
diáspora não sistematizável da realidade, a encontrar Deus que ama o mundo e o
transcende de dentro dele34.
Com a ida para Innsbruck vem nova tese de doutorado, em teologia, que leva o título: O
pensamento patrístico sobre o Coração traspassado do Salvador como fonte da Igreja35.
2.2 – Caminhos
2.2.1 – do professor que marca com a sua teologia
Rahner inicia, então, sua carreira acadêmica na Faculdade de teologia de Innsbruck, onde
leciona de 1937 a 1964, com exceção ao parêntese da guerra. Seu primeiro curso é sobre a graça. A
faculdade estava empenhada na elaboração de um projeto de teologia querigmática, que estivesse a
serviço da pregação e da pastoral, formalmente distinta da teologia científica. Rahner, então jovem
docente, não concorda com tal orientação e, mais tarde se encarrega da instância pastoral, inserindoa num projeto mais amplo de renovação da teologia católica, em que, quanto mais aderente ao seu
tema é a teologia, tanto mais é querigmática36, como ele sustenta no programático artigo: Tentativa
de esboço para uma Dogmática e seu conseqüente Esboço de uma Dogmática37:
O mal entendido prático mais importante da chamada “teologia da pregação” – ou
fomentado ao menos por ela – foi precisamente a opinião, nascida como suposto,
de que a teologia científica podia continuar como estava, e que a única coisa que
restava a fazer consistia em constituir “ao lado” uma teologia “querigmática”. Tal
teologia consistiria, essencialmente, em dizer “o mesmo” que a teologia científica
escolástica já tinha elaborado, porém de maneira um tanto distinta, “mais
querigmaticamente”, e em dispô-la de modo mais prático. Na realidade, a teologia
mais rigorosa, entregue de maneira apaixonada e única ao seu objeto, num
interrogar-se constante sempre novo, a teologia mais científica é a mais
querigmática38.
34
A. VARGAS-MACHUCA, Teologia y mundo contemporaneo: homenaje a K. Rahner em su 70 cumpleaños, Madrid:
Ed. Cristiandad, 1975, 32. Nessa oportunidade (p. 35), K. Rahner confirma o comentário: meu primeiro livro foi
dedicado à metafísica do conhecimento em Santo Tomás. [...] Os pontos de vista que ali defendo marcaram a orientação
e ainda dão frutos em todo o meu trabalho teológico posterior, ainda que eu mantenha a esperança de que a aventura
teológica de minha vida não se tenha encerrado com este primeiro livro.
35 Esta tese não foi publicada na época, somente vindo a público postumamente em RAHNER, Sämtliche Werke, III,
Friburgo: Herder, 1999, 3-84 (apud ITT 19, nota 22).
36
Cf. ATS 223-4.
37
K. RAHNER. Tentativa de esboço para uma dogmática, in O dogma repensado, SP: Paulinas, 1970, 106-152.
Publicado originalmente sob o título Ueber den Versuch eines Aufrisses einer Dogmatik, em SZT, I, 9-47 e no THI, I, 137. As próximas referências ao artigo se farão pela abreviatura TED e a O dogma repensado pela abreviatura ODR.
38
TED 113-114.
25
Como mestre, o nosso teólogo era tido por seus alunos como um professor carismático, que
lhes inspirava lealdade e afeto, e como um pensador altamente questionador que ia de uma questão
a outra, sempre procurando o sentido, a plenitude e o propósito da vida.
2.2.2 – do pastor marcado na guerra por sua teologia
Em 1938, a ocupação dos edifícios dos jesuítas pela Gestapo faz fechar a faculdade de
teologia de Innsbruck e leva Rahner a residir em Viena onde trabalha em um instituto pastoral. Aí
ele se interessa pela formação teológica dos leigos e lhes dá cursos.
Aos 37, em 1941, Rahner publica O ouvinte da palavra recolhendo, assim, as 15
conferências por ele realizadas nas Semanas universitárias de Salzburg no verão de 1937. Aí ele
retoma a sua intuição básica de Espírito no Mundo e aprofunda Maréchal, no que o parafraseia
numa nova terminologia, parcialmente tomada de Heidegger39. Ouvinte da palavra completa o
discurso iniciado por Espírito no mundo: o homem como espírito no mundo é o ouvinte de uma
possível revelação histórica de Deus.
Rahner deixa Viena e, em 1944, pela primeira vez em sua vida exerce um ministério
pastoral no meio rural, junto aos refugiados. Na época da capitulação alemã, vive o drama de seu
povo. De 1945 a 1948, permanece em Munique e ensina em Pullach, em meio a uma intensa
atividade pastoral. Com a reconstituição da faculdade de teologia em Innsbruck, em 1948 ele lá
retoma o ensino da teologia, oferecendo cursos sobre a criação, o pecado original, a graça e a
justificação, as virtudes teologais, os sacramentos da penitência, da ordem e da extrema-unção.
Entre 1954 e 1984, Rahner reúne os principais artigos e ensaios que havia escrito e dá início
à série de seus Escritos Teológicos que, mesmo em sua variedade e descontinuidade, representam
uma biblioteca teológica que alinhou dezesseis volumes com mais de 8.000 páginas40.
2.2.3 – do teólogo que marca o Concílio Vaticano II
Na vida de Rahner, um telefonema, no início da década de 60, vira história. Franz König,
então arcebispo de Viena, 30 anos depois recordava esse telefonema em que dizia que o Papa João
39
RAHNER. Hearer of the Word. Laying the Foundation for a Philosophy of Religion. Traduzido por Joseph Donceel,
da primeira edição, publicada em Munich, 1941, sob o título original de Zur Grundlegung einer Religiosphilosophie.
NY, 1994. Em 1963, o Ouvinte da Palavra, revisto por J. B. Metz é, com ele, reeditado. Nessa publicação, Rahner
desenvolve as linhas de uma filosofia da religião numa perspectiva teológica como antropologia teológica fundamental.
40
ATS 224-5.
26
XXIII anunciara sua intenção de convocar um novo Concílio. Surge o Vaticano II. Cada arcebispo
podia contar com um assessor e König convida Rahner, que responde com a seguinte frase:
Como você pode imaginar uma coisa dessas? Eu nunca fui a Roma na minha vida.
Lá, eles suspeitam do que eu ensino e do que escrevo. O que os romanos dirão se
eu, de repente, apareço como um teólogo conciliar?”41.
Rahner estava certo. Ele tinha críticos, mas também tinha admiradores. Quando em junho de
1962, o Geral da Companhia de Jesus foi informado de que Rahner teria que submeter seus escritos
futuros à censura prévia do chamado Santo Ofício, que era, depois do papa, a instância suprema da
fé e dos costumes, seus admiradores tanto na hierarquia da Igreja quanto na academia protestaram
diretamente ao papa pelo “insulto à ortodoxia de Rahner”42. O papa João interveio pessoalmente e
não houve, assim, censura prévia ao trabalho de Rahner pelo restante de sua vida.
Nesse meio tempo, o arcebispo König entregou a Rahner as primeiras pilhas de documentos,
ainda na fase preparatória ao Concílio. Entre janeiro e setembro de 1962 Rahner oferece um
informe contendo sete respostas ou tomadas de postura de sua teologia diante dos documentos
recebidos. Segundo Vorgrimler, estas respostas até hoje não foram publicadas na íntegra. Em seu
testemunho, revela que Rahner se viu
horrorizado ante o tom escolar e magisterial dos esquemas das comissões,
totalmente alijados da vida real, além de já condenar teólogos e filósofos assim
como de antemão já propunha novos dogmas. Diz que o primeiro conselho de
Rahner foi: “fazer todo o possível para evitar o pior”43.
Mas João XXIII abre o Vaticano II com um discurso que eletrizou os bispos, entrevendo um
concílio pastoral que substituísse a severidade e a condenação de erros do passado por uma
medicina de misericórdia. Rahner foi nomeado pelo Papa peritus do Concílio e membro da
influente Comissão Teológica. De suma importância foram as conferências que ele dava de tarde a
variado grupo de bispos sobre os diversos tópicos da agenda conciliar. Apesar de pouco aparecer
nas sessões gerais do concílio, Rahner foi considerado o mais poderoso homem no Concílio, mas
sua influência foi exercida por detrás das cortinas. No que respeita a sua participação, ele afirmou
que:
41
R. MODRAS. op. cit., 230.
Como nem o Geral dos jesuítas nem Rahner foram informados das razões para essa atitude, Rahner ameaçou nada
mais publicar dali em diante e numerosas personalidades, entre elas os então cardeais König, Döpfner e Frings
(Presidente da Conferência Episcopal Alemã à época), além de 250 figuras da ciência e da política, se dirigiram ao papa
e lhe solicitaram que retirasse essa medida. In EDV 109.
43
EDV 109.
42
27
Quando aqui e ali se afirmou – sem o meu consentimento – que eu teria sido um
dos teólogos mais influentes do Concílio Vaticano II, essas coisas são,
naturalmente, um mero exagero, que não encontra na realidade qualquer
fundamento real44.
Contudo, é inegável que no Concílio Vaticano II, Rahner deixou marcas na preparação das
Constituições Lumen gentium45, Dei Verbum e Gaudium et spes, afora os decretos sobre a vida
religiosa, sobre a formação dos presbíteros e sobre as missões. Decorrido algum tempo, Rahner
afirmou que via o Vaticano II apenas como “o começo de um começo”46, que marcou pela primeira
vez a Igreja católica como uma igreja para o mundo, por assumir a multiplicidade de culturas e,
conseqüentemente, de teologias.
2.3 – Marcas da caminhada
Em 1964, “a chamada para lecionar em Munique representava para Rahner uma passagem
da teologia dogmática à filosofia da religião, mas ele continuava a ser um teólogo, que a
heterogênea assistência daquela universidade considerava muito difícil, cansativo, pouco atual e
abstrato”47. Decorridos três anos, Rahner retoma a teologia dogmática na universidade de Münster,
onde encerra sua carreira acadêmica (1967-1971).
Os anos que se seguiram vieram com uma crescente frustração. Em 1969, o Sínodo de
Bispos Alemães foi particularmente desapontador para Rahner, quando apenas dois bispos apoiaram
sua sugestão de ordenar homens casados. Para ele, a Igreja oficial não estava colocando nem a letra
nem o espírito do Concílio na prática.
Em seus últimos anos, Rahner descreve a sua vida como inseparável do seu trabalho.
Recusando-se a escrever suas memórias, o máximo que ele concedia eram entrevistas nas quais
retomava um ou outro evento ou influência da sua vida pessoal e, desse contexto, extraía algum
aspecto para explicar a sua teologia. Nesse período, “Rahner se queixava dos jesuítas não refletirem
suficientemente sobre as implicações das intuições espirituais de santo Inácio, o que ele tomava
como uma falta que não tolerou em si e no seu trabalho”48. Sabedor de que Inácio dedica 85% do
tempo dos EE à contemplação dos mistérios da vida de Cristo, ele questionou:
44
EDV 110.
A influência de Rahner se refere à teologia do sacramento e da penitência, à colegialidade dos bispos e o significado
das igrejas locais, assim como na reinstauração do diaconato permanente e na incorporação do texto sobre Maria nesta
constituição, ao invés de criar um documento mariológico distinto. In EDV 112.
46
EDV 113.
47
H. VORGRIMLER. Comprendere K. Rahner (1985), 139 (apud ATS, 225).
48
R. MODRAS. op. cit, 208.
45
28
Onde existem trabalhos teológicos sobre os mistérios da vida de Cristo? Em
espanhol e em francês, existe grosso volume a respeito da ascensão do Senhor,
livro completamente cego para todo problema que não caiba dentro da crítica de
textos ou da apologética histórica do acontecimento. O próprio Dictionnaire de
Théologie Catholique, apesar de sua enorme amplitude, não tem um artigo sobre
este problema. E é maior ainda, na teologia atual, a falta de uma reflexão radical
acerca do ser e da significação dos mistérios da vida de Cristo, em geral.
Da vida de Cristo, os únicos acontecimentos que interessam à dogmática atual são
a encarnação, a fundação da Igreja, sua doutrina, a última ceia e morte. A
apologética trata ainda da ressurreição a partir do ponto de vista da teologia
fundamental. Tudo o mais sobre os mistérios da vida de Cristo não se encontra
mais na dogmática, e sim na literatura piedosa49.
Registre-se que, em sua caminhada, estiveram perto de Rahner, especialmente seu irmão
Hugo, o atual Cardeal K. Lehmann, H. Vorgrimler, J. B. Metz, K. H. Neufeld, A. Raffelt50, além
teólogos B. Sesboüe, I. Sanna.
3 - O espírito de Rahner na teologia e o Curso fundamental da fé
3.1 – O autor desafiante
Ler Karl Rahner é desafiar-se diante de um autor que, ao invés de colocar a questão de Deus
longínqua e abstratamente, traz Deus para tão próximo de nós que O coloca como mistério santo no
coração do próprio homem. Acredito que para o teólogo cristão, interessado no maior conhecimento
de sua fé, ainda é imprescindível o contato com o pensamento de Karl Rahner e penso que isto se dê
inicialmente pelo estudo do seu Curso fundamental da fé, contra o que ele mesmo desaconselhou
certa vez, advertindo que primeiro “proporia a leitura de alguns de seus escritos espirituais”51.
Diante disso, parece que aí estaria o mapa da mina do seu pensamento. Mas não basta
porque o seu pensamento se esparrama pelas questões que seu tempo e que seu mundo lhe
propuseram, em cuja inquieta busca de resposta encontramos os textos que constituem hoje os seus
Escritos Teológicos, lastimavelmente sem tradução para o português. Mas ainda mais. Esta marca
está também nos quatro volumes do manual de teologia pastoral, o Sacramentum mundi, no
49
TED 119-120.
O grupo organiza na Alemanha uma edição crítica das obras de Rahner, prevista em 32 volumes, a serem publicados
num período de dez a quinze anos (apud I. SANNA, in Teologia come esperienza di Dio. La prospecttiva cristológica di
Karl Rahner. Brescia: Queriniana, 1997, 5).
51
M. MAIER. La theólogie des Exercices de K. Rahner, RSR 74 (1991), 536 (apud ITT 31).
50
29
Dicionário de teologia querigmática52, na colaboração para a publicação do Mysterium Salutis:
dogmática da história da salvação53, além das bases da revista Concilium54.
Além de conferencista, este incansável escritor se desloca por toda Europa participando das
primeiras reuniões entre católicos e protestantes, dá retiros espirituais, participa de programas de
rádio e da ainda incipiente televisão. Cuidou do diálogo entre teólogos e cientistas, da relação do
cristianismo com as religiões não-cristãs55, sem deixar de dialogar também com o marxismo.
Com o testemunho de B. Sesboüe, sabemos que Rahner, além da atividade intelectual,
era uma força da natureza, com uma vitalidade inacreditável. Seu pensamento
estava sempre em movimento, como seu corpo, aliás. [...] Era um incansável
lançador de idéias, mas também um guia incômodo. Ao visitar o escolasticado de
Pullach disse: “Vim aqui para lançar pedras nas águas estagnadas e provocar ondas
nessa lagoa tranqüila demais!”56.
3.2 – Um olhar desafiado
Esse gigante do pensamento teológico do século passado, por volta dos anos 50, na
maturidade de sua reflexão, diagnostica três elementos característicos da situação cultural e
teológica de então. Este diagnóstico é síntese de dezenas de artigos que seriam publicados em seus
Escritos Teológicos, além de estarem esparçamente tratados por todo o CFF.
a) vivemos numa sociedade secular e pluralista, na qual os enunciados de fé perderam sua
obviedade, e na qual, no pluralismo das convicções e das mundividências, próprio de uma
sociedade aberta, torna-se mais difícil transmitir a verdade cristã;
b) relacionado com o pluralismo, é preciso registrar um aumento dos conhecimentos em
todos os campos do saber, que torna difícil fazer sínteses, embora o teólogo sistemático deva tentar
a síntese a propósito das questões últimas e fundamentais de toda a teologia; e
c) a essas dificuldades do anúncio cristão e do fazer teologia deve-se acrescentar, por outro
lado, uma espécie de endurecimento e de incrustação dos conceitos teológicos, que, permanecendo
52
Elaborado em colaboração com J. Daniélou, J. Alfaro e C. Colombo, o, então, teólogo do papa (apud ITT 25).
Publicado por J. Freiner e M. Löhrer, edição em 4 tomos e 6 volumes, Einsiedeln: Benziger Verlag, 1965.
54
Rahner lança as bases da revista com E. Schillebeeckx, tendo Y. Congar, H. Küng e C. Colombo como integrantes do
comitê diretor inicial (apud ITT 25).
55
Cf. ITT 22.
56
ITT 29.
53
30
imutáveis ao longo dos séculos, não correspondem mais à situação completamente mudada da vida
e da cultura do homem moderno57.
3.3 – Um método desafiador e o desafio da síntese
Diante desse quadro, Rahner admite como insuficiente o tradicional método escolástico
praticado na teologia-de-escola – que procede do alto das formulações e opera por doutrinação – e
propõe o método antropológico – que procede de baixo e possibilita uma correspondência entre vida
e verdade, entre experiência e conceito. Como defende R. Gibellini58, o teólogo alemão propõe que
se pratique em teologia uma “abordagem antropológica”, que parta da experiência pessoal do
homem, tratando-se de um “processo metodológico” que não subordina a fé à experiência e não
comporta uma redução subjetivista da fé, mas que se torna necessário para superar o fosso entre a
revelação e experiência humana.
No método antropológico-transcendental, Rahner propugna que o dado da fé não seja
simplesmente transmitido em seus conteúdos, mas seja posto em correspondência com a
experiência que o homem tem de si. Isto é mais do que saber sobre a fé, implica compreender a vida
a partir da história do homem considerado como um sujeito espiritual, que se auto-explica na
experiência transcendental, numa experiência que é humana e que, portanto, não ocorre à margem
dos acontecimentos, mas no seio da vida histórica. Essa auto-explicação categorial do que o
homem é acontece não só nos enunciados antropológicos, mas em toda a história do homem, no agir
e sofrer da vida individual, no que chamamos de história da cultura, da socialização, do Estado, da
arte, da religião, do domínio técnico e econômico da natureza59.
Resume Gibellini que Rahner passa a praticar o “método antropológico-transcendental”, que
parte de que na experiência do homem é preciso distinguir entre um a priori e um a posteriori. Esse
mundo da experiência humana é a posteriori, é adquirido e categorial, ou seja, é refletido,
tematizado e passível de diferentes classificações; mas esse mesmo mundo da experiência humana
se mostra subentendido por um a priori, não adquirido, mas sempre dado com a existência humana,
e transcendental, ou seja, dado de maneira irrefletida e atemática, e é o que torna possível a
realidade categorial, isto é, o conhecimento, a liberdade, a ação e demais experiências humanas.
O transcendental diz respeito justamente “à condição de possibilidade” do
conhecimento, da ação e das outras experiências humanas, ou seja, à condição da
57
RAHNER. La Grazia come centro dell‟esistenza umana. Intervista (1974), 24 (apud ATS 226).
Cf. ATS 226.
59
Cf. ATS 226-227.
58
31
possibilidade da experiência categorial. O conteúdo da experiência humana é a
posteriori e categorial; a condição da possibilidade de tais experiências é a
dimensão a priori e transcendental e é constituída pela estrutura do espírito finito
no mundo60.
Daí decorre que a dimensão transcendental da experiência humana – no exercício do
conhecimento e da liberdade – é a abertura do espírito finito ao infinito. Para Rahner a experiência
humana não é apenas experiência disto ou daquilo, mas é, ao mesmo tempo, experiência da finitude,
que remete a um horizonte infinito; experiência da absolutidade da verdade e da responsabilidade,
que remete ao absoluto; experiência da radicalidade do amor e da fidelidade, que remete ao
incondicionado. Desse modo, em suas insubstituíveis palavras,
Para a pessoa que tomou consciência de suas profundidades, o que temática ou
atematicamente pode ser mais familiar e evidente do que o perguntar silencioso
pelo mais além do já conquistado e dominado, do que a sobrecarga de perguntas a
que não foram dadas respostas, aceitas com humildade e amor, que aliás é a única
coisa que torna sábio? Nas profundidades últimas do seu ser que nada sabe, o
homem com mais exatidão do que o seu saber, [...] não passa de pequenina ilha no
vasto mar ainda não percorrido, ilha flutuante, que pode ser para nós mais familiar
do que o oceano, mas que em último termo é carregada e somente assim nos
carrega por sua vez. E, em conseqüência, a pergunta existencial àquele que
conhece é se ele ama mais a pequena ilha do seu assim chamado saber ou o mar do
mistério infinito; se a pequenina luz, chamada ciência, com que ele ilumina essa
ilha, há de ser para ele uma luz eterna, que para ele brilhe eternamente61.
Todo esse pano de fundo espelha os porquês de o nosso autor ter uma obra que
alcança quatro mil trabalhos escritos62, sem que se tenha podido deter numa só obra a síntese de seu
pensamento que voou para onde as questões despontavam em seu mundo e a que o seu incansável
espírito buscou responder com o rigor de sua fé qualificada, mesmo sabedor de que “o homem de
hoje sente-se desconfortável perante toda e qualquer afirmação metafísica e religiosa em geral” 63.
Em 1964, em seu primeiro curso sucedendo Romano Guardini na cátedra de Filosofia da
religião, em Munique, Rahner tem a oportunidade de tentar uma síntese de seu itinerário teológico,
cujo primeiro esboço desenvolveu numa Introdução ao conceito de cristianismo que, depois de
inúmeros retoques sai publicado com o título de Curso fundamental sobre a fé (1976). Segundo R.
Gibellini, “a obra continua sendo um dos textos mais significativos da teologia católica de nosso
60
ATS 227.
CFF 35.
62
TCF xi.
63
CFF 217.
61
32
século”64. Na mesma linha, o teólogo Sesboüe testemunha a experiência que a teologia de Karl
Rahner faz viver quando ministrou seminários consagrados à leitura do CFF e afirma:
Este difícil livro, sem dúvida, estimulava vigorosamente os estudantes a
estruturarem teologicamente a sua própria reflexão. Porém, mais que toda técnica
teológica, a obra lhes colocava a questão de seu compromisso concreto com os
paradoxos da fé cristã, às vezes os chacoalhava ao atrair sua atenção para um
determinado dado que não haviam “percebido” nem integrado à sua própria
experiência. Na verdade, ela os ajudava a crer não apenas dando-lhes razões para
crer, mas também produzindo neles uma experiência de fé65.
O próprio autor reconhece que, “em livro tão breve, de apenas quinhentas páginas,
aproximadamente”66, o CFF não contém uma espécie de resumo de sua teologia, e vai dar a seu
livro da maturidade várias definições:
diz que é para leitores com certa cultura e que não têm medo de debater conceitos
(p. 5); que constitui tentativa de apresentar uma primeira introdução a um tema
vasto como a totalidade do conceito de cristianismo (p. 8/11); afirma que é
introdução no quadro da reflexão intelectual (p. 11); que pressupõe a fé (p. 11); e
tem o propósito de oferecer uma primeira reflexão sobre a existência pessoal cristã
e sua justificação (p. 21); que pretende refletir primeiramente sobre o homem
como a questão universal que ele é para si mesmo (p. 22); e criar condições para
que, a partir dos próprios conteúdos do dogma, as pessoas tenham confiança de
que podem crer com honradez intelectual (p. 23); ressalva que o curso fundamental
não é uma introdução à Sagrada Escritura (p. 25) e que não quer fazer iniciação
mistagógica, mas insiste no conceito e não de imediato a coisa mesma (p. 26).
Este livro é a base deste estudo67. A fim de não suscitar dúvida sobre o porquê de uma opção
aparentemente empobrecedora, registra-se que o estudo o apontou como um livro atípico, que não
se enquadra na formatação dos manuais de dogmática, mas que se define a partir do “interesse e da
paixão de seu autor pela realidade”. Por tocar assim a realidade, o livro trata os problemas de seu
tempo e alcança, também, os nossos, ou seja, encara os problemas da fé, com toda a coerência
exigida pela teologia e, com isso, Rahner consegue superar a sua própria crítica do que hoje
encontramos tão raramente: “trabalhos [...] especiais com coragem de colocar problemas nos
64
ATS 223/225.
ITT 10.
66
CFF 8.
67
Ressalte-se que ao afirmar o CFF como livro base desta dissertação, não se está aprisionando o trabalho a seu
conteúdo, por duas razões básicas: a primeira se refere ao gigantismo da obra de Rahner que em muitos artigos tratou de
um mesmo tema, conforme um ou outro enfoque específico e, por essa característica, inúmeras vezes optou-se por
segui-lo em um ou outro artigo ao invés de caminhar com o texto do CFF, principalmente quando o tema está lá muito
sinteticamente abordado. A segunda razão diz respeito ao próprio tema da dissertação e, por isso, surgirão alguns
escritos em que Rahner o aborda especificamente.
65
33
múltiplos aspectos da dogmática, nos quais atualmente reina – em maior ou em menor grau – a
calma de uma construção abandonada pela metade”68.
68
TEC 122-123.
34
II
O amor em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo:
Credere in Deum
35
Primeira parte
A liberdade que fundamenta a nossa relação com Deus Pai
36
O núcleo deste trabalho é composto por três Partes. A Primeira Parte tem por meta dar
significado em meio ao mundo teológico de Rahner à essência de sua Teologia da Criação. Este
aparente isolamento de um aspecto, do todo coerente de sua teologia, incorreria num desrespeito
reducionista ao autor, a menos que tal parte de sua obra seja de valia ao homem de hoje, em sua
existência, ou seja, agora, como é nossa pretensão apontar.
Nesse sentido, a proposta da Primeira Parte é maior do que recolher da teologia de Rahner
um remendo de alívio como uma “palavrinha solta” diante de uma dificuldade momentânea. O
desafio que nos move é “despertar” do pensar rahneriano respostas que, decorridos 23 anos de seu
falecimento, para nossa admiração, já haviam sido apontadas por seu gênio incessantemente
perscrutador que logrou perceber a beleza da realidade do cristianismo diante da totalidade da
existência humana.
Para o cristão, a existência cristã é em última análise a totalidade de sua existência.
E essa totalidade abre-se para os obscuros abismos do deserto daquele que
chamamos Deus. A pessoa, quando empreende algo dessa natureza, coloca-se
perante os grandes pensadores, os santos, e finalmente Jesus Cristo. Os abismos da
existência se abrem à sua frente. E vem a saber que não pensou o bastante, que não
amou o bastante, que não sofreu o bastante69.
Se observarmos o título da Primeira Parte, vemos que ele se inicia com a palavra liberdade,
que é o centro catalisador que dinamiza toda a relação do homem com Deus Pai, ou seja, da relação
do homem com o Criador e da conseqüente relação do homem com o restante da realidade criada.
Desde aqui, o título já antecipa a liberdade como fundamental, porque é ela o próprio fundamento
da nossa relação com Deus Pai.
Saltamos, então, à última palavra do título – Pai. Isto porque a palavra Pai se agiganta em
significação para a totalidade da vida cristã. Se partíssemos de outro caminho, correríamos o risco
de o significado de “Deus Pai” nos escapar desde o início, o que numa escalada poderia fazer,
adiante, escapar a percepção de Deus, do homem, de como e no quê se dá essa relação em que nos é
comunicada a real essência e vocação do homem ao Amor.
Assim, buscamos na palavra Pai o significado do que primeiro proclamamos de Deus nos
Símbolos da fé: “Deus é Pai”. Se ao proclamar que Deus é Pai já temos o Deus trino confessado,
retomamos o ponto de vista de Rahner, que percorre do Antigo até o Novo Testamento, para afirmar
o que significa a unidade do Deus cristão: um Deus pessoal – que é Pai, que se expressa como Filho
e como Espírito.
69
CFF 12.
37
Ao final, este caminho encontra no querer de Deus a manifestação da Sua liberdade que é
absoluta e que proclamamos na fé como o primeiro artigo do Credo Niceno-Constantinopolitano:
“um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”.
38
Capítulo I - Concepção de Deus Pai
Proclamar a fé cristã, afirmar que eu “Creio em Deus Pai” seria impossível sem o Novo
Testamento. Mas também seria impossível sem o Antigo Testamento. Isto porque diante do
Primeiro Testamento somente teríamos uma compreensão “obscura” dessa afirmação já que nos
faltaria do Segundo Testamento a clareza do Deus cristão que professamos como o Pai de Jesus
Cristo. Acompanhando uma sentença de Agostinho, Rahner defende a idéia de que "o Novo
Testamento está latente no Antigo e o Antigo está patente no Novo"70.
Esta sentença implica que, desde a primeira Palavra pronunciada por Deus, já está nela
contida a boa nova, embora a sua compreensão seja necessariamente obscura, posto que o Novo
Testamento está presente no Antigo de um modo “profético”, o que vale dizer que o Antigo
Testamento possui uma orientação teleologicamente apontada à Palavra final em Deus que se revela
Pai por Seu Filho, Jesus Cristo.
Mas não basta analisarmos apenas esse modo “profético”, porque a Palavra do Antigo
Testamento exige mais: ela é, a um só tempo, “histórica” – com respeito aos eventos a ela
contemporâneos – e “profética” – com respeito a eventos futuros. Esta tensão permanentemente
existente entre esses modos - histórico e profético - faz com que o Antigo Testamento somente se
revele plenamente no Novo71 e, por isso, não se pode desatrelar a sua leitura de sua plena
compreensão, já que ambos os Testamentos estão mutuamente implicados. Nesse sentido, Rahner
alerta que o cristão não se pode deixar levar pela leitura exclusiva do Antigo Testamento porque é
quase impossível evitar o perigo de se ver muito mais ou muito menos do que de
fato há no texto: não devemos nem transformar a continuidade do Antigo e do
Novo numa presença já manifesta do Novo, ou permitir enrijecer o Antigo,
tornando-o um inflexível bloco totalmente contido em si mesmo72.
70
RAHNER. Theos in the New Testament, in THI I, 79-148. Aqui, 88. As próximas referências a este artigo se farão
pela sigla TNT. Este artigo é fruto de uma conferência e sua primeira publicação data de 1954, no original alemão.
Observa-se na Constitução dogmática sobre a Revelação Divina “Dei Verbum” uma estreita relação entre o texto
aprovado pelo Concílio Vaticano II e as idéias aqui desenvolvidas por Rahner. Tradução brasileira: Theós em o Novo
Testamento. SP: Paulinas, 1972, 5-200.
71
TNT 88-9.
72
TNT 89.
39
1 - O significado do monoteísmo cristão do AT ao NT
Introdução
O que dizer de Deus no Antigo e no Novo Testamento, diante dessas considerações? Para
Rahner, a idéia de Deus do Novo Testamento não pode ser colocada ao largo da idéia de Deus do
Antigo, como se tratasse de uma idéia simplesmente nova, “surgida por generatio aequivoca. A
idéia de Deus tem que estar ativa no Antigo Testamento, embora escondida em profecias que, por
sua própria natureza, como já afirmado, são obscuras”73. Por isso, a concepção do Deus cristão, a
concepção do Deus que é Pai e Pai de nosso senhor Jesus Cristo, deve partir da palavra que Deus
mesmo nos permite “descobrir” a partir do Antigo Testamento e que se vai “revelar “ em plenitude
no Novo Testamento.
Rahner reduz o que foi dito nos seguintes termos: a fórmula básica do monoteísmo do
Antigo Testamento não é “Existe um Deus”, o que seria afirmar que há uma única e primária causa
do mundo, mas é “Yahweh é o único Deus”74. Sucederia, então, a pergunta por uma fórmula básica
para, também, afirmar o monoteísmo no Novo Testamento? É o que se vai perseguir nas próximas
linhas.
1.1 – O novo conhecimento de Deus
Neste ponto, devemos voltar o olhar para o homem do Novo Testamento. Segundo Rahner,
aí, o que primeiro nos surpreende é descobrir como o homem do Novo Testamento pensava Deus,
porque a “inquestionável certeza” de Deus é o que caracterizava a consciência do homem daquele
tempo. Em suas palavras,
jamais ocorreu ao homem do Novo Testamento levantar a questão da existência de
Deus, posto que ele nada sabia das principais características da moderna
consciência de Deus: do sentimento angustiante do homem de nosso tempo, para
quem questionar tem sempre que anteceder qualquer sentir, um sentir que exige em
primeiro lugar uma lenta reflexão buscando plantar um fundamento firme diante de
qualquer tipo de insinuação que admita o reconhecimento de Deus, por medo de
que Deus possa ser um nada, além de uma monstruosa projeção das necessidades
subjetivas do homem75.
73
TNT 89.
TNT 94.
75
Cf. TNT 94.
74
40
Mas este é o drama do homem moderno. Sempre seguindo o raciocínio de Rahner, voltamos
ao homem Novo Testamento, para quem Deus é, em primeiro lugar, aquele que “está lá”. “Ele está
lá” não obstante toda a sua incompreensibilidade, indisponibilidade e sublimidade,
tão simples quanto o mais evidente de todos os fatos, assim é Deus para o homem
do Novo Testamento: Aquele que realmente “está lá” e não ao alcance do homem,
mas ao contrário, é “lá”, é sob o Seu poder que o homem descobre a sua própria
realidade e a realidade do mundo de forma compreensível76.
Assim, para o homem que assume sem questionamentos a existência de Deus, a questão não
é se a realidade do mundo - que eles podem ver e tocar - aponta para além de si, para o abismo
infinito de um todo Outro; o que importa é como este Deus, que lhe foi sempre auto-evidente, de
fato age, a fim de que se possa saber como as coisas e o próprio homem se sustentam no mundo.
Para este homem, não é a realidade e a visível magnitude do mundo que serve como uma base pela
qual Deus vai se tornar alcançável pelo homem (de baixo), mas é exatamente o contrário: é apenas
(do alto), “sob” o poder de Deus, que o homem se entende e ao mundo como realidades da criação.
Desse modo, tal como no monoteísmo profético do Antigo Testamento, o homem do Novo
é também aquele que conhece Deus por sua ação na história da salvação. Mas não só, porque se
Deus se autocomunicou no “passado” da história de seu Povo, “agora”, no Novo Testamento, Deus
permite ao homem experimentar a Sua realidade como “Pai” que, num gesto de inusitada
gratuidade, assim “desce” e Se diz por seu Filho, Jesus Cristo.
O Deus que ninguém antes havia visto, “agora” se revela ao homem por Seu
próprio Filho (Hb 1, 1-2). “Agora”, o homem viu este Filho, o ouviu e o tocou com
suas próprias mãos (1 Jo 1, 1). Para o homem do Novo Testamento, a razão final
da conversão ao Deus vivo residirá na atividade histórica de Deus em si, que Se
revela a partir do mundo77, na loucura da cruz (1 Cor 1, 18) e na Ressurreição (At
17, 31).
Arrebatado pela força tangível do Cristo, por sua realidade, por seus sinais e pela
experiência da Ressurreição, o homem passa a dar testemunho: de que “lá” é onde o homem
encontra Deus Pai em suas vidas, porque foi “lá” que viram a ação do Cristo no meio dos homens.
O importante para este homem não é, pois, uma cuidada concepção de Deus, mas a concreta
autocomunicação de Deus Pai a eles, por seu Filho, Jesus Cristo. É em Cristo, na face resplandecida
do Filho, que Deus faz brilhar no coração do homem a glória (2 Cor 4, 6) de Deus, que Jesus ousou
chamar Pai.
76
77
Cf. TNT 94.
Cf. TNT 94-5.
41
Com Cristo, o conhecimento de Deus que leva a um real relacionamento com o Deus vivo
dá um salto e faz o homem “re-conhecer” Deus Pai, em Jesus Cristo, como O Salvador. Daí o
homem do Novo Testamento se ver diante da tomada de uma decisão porque doravante, aquele que
não tinha o Filho, não teria, também, conhecimento do Deus Pai, do Deus de toda misericórdia, do
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
No plano da salvação, há uma indissolúvel ligação entre a experiência que o homem vive
diante da realidade do Cristo e o conhecimento de Deus. As expressões Cristo e Deus se associam
de um modo tal que as realidades, Cristo e Deus, “agora”, passam a ser conectadas de modo a que a
experiência do crente que abandona a fé em um, faz abandonar, junto, a fé no outro (1 Jo, 2, 23).
Por isso, Rahner lembra a definição de Jesus:
“vida eterna é que os homens conheçam a Deus, o único verdadeiro Deus” (João
17, 3), porque a partir dela o monoteísmo cristão passa a ser mais do que um
fragmento da tradição do Antigo Testamento, eis que se liga a um dos mais
essenciais elementos da Palavra de Cristo: a confissão que resume o significado de
vida eterna: “conhecer a Deus, o único e verdadeiro Deus”78.
1.2 – A fórmula monoteísta do AT e do NT perpassa a idéia de typos da economia basiliana
Assim retornamos à busca de uma fórmula para o monoteísmo cristão, recordando que no
Antigo Testamento Rahner a apresenta como “Yahweh é o único Deus”. Vimos que, ao homem do
Novo Testamento, é nAquele que Se manifestou ativamente em Cristo e na realidade pneumática da
salvação que reside a distinção do monoteísmo do Novo Testamento, ou seja: a fórmula para o
monoteísmo cristão se resume em que “o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é o único Deus”79.
Mas não é só. Durante o estudo e a realização deste trabalho, desenvolveu-se uma pesquisa
na obra de um dos padres capadócios, São Basílio Magno80, por sua inspiração na teologia trinitária
rahneriana, como se aponta aqui e ali neste texto. Registre-se que o elo entre o pensamento de
Basílio e sua influência em Rahner despontou do estudo de dois textos exemplares: de Basílio, o
Tratado sobre o Espírito Santo e, de Rahner, o texto ora sob análise, encontrando-se a ponte da
fórmula entre o Antigo e o Novo Testamento onde Basílio trata dos typos.
78
Cf. TNT 101. O sublinhado é nosso.
Cf. TNT 102.
80
Rahner acompanha a certeza de muitos de que a patrologia grega oriental alcançou o seu ponto mais elevado com os
chamados Padres capadócios. Basílio Magno, Gregório de Nissa, seu irmão, e Gregório de Nazianzo. Basílio é tido
como o mais importante dos três, devido à sua personalidade fértil, ativa na reflexão e na produção literária assim como
na organização e administração das comunidades de sua diocese. A história eclesiástica o consagrou como o “Grande”,
pai e doutor da Igreja.
79
42
Em seu Tratado, Basílio, ao responder à quarta objeção contra o Espírito Santo, explica a
significância de typos para se defender da alegação de que em Moisés alguns foram batizados e nele
creram (Ex 14, 31).
Que responderemos? Que se tem fé no Espírito, da mesma forma que no Pai e no
Filho. Igualmente sucede do batismo. Quanto a Moisés, batiza-se nele e na nuvem,
enquanto são sombra e tipo. No entanto, se as realidades divinas são prefiguradas
por pequenos sinais humanos, nem por isso é insignificante a natureza divina, que
os tipos freqüentemente de antemão desenharam com luzes e sombras. De fato, o
tipo revela através de uma imitação o que se espera; deixando entrever o futuro,
com propriedade o indica81. (grifamos)
Desse modo, em Basílio lemos que a Escritura alia Moisés a Deus, e não ao Espírito; por
que Moisés era “tipo” de Jesus Cristo e não do Espírito. O que Moisés prenunciava, no ministério
da Lei, era a mediação entre Deus e os homens (1 Tm 2,5). “A fé depositada nele refere-se,
portanto, ao Senhor, ao mediador entre Deus e os homens, que disse: “Se crêsseis em Moisés,
haveríeis de crer em mim” (Jo 5, 46). Seria, pois, coisa pequena a fé no Senhor, pelo fato de haver
sido prefigurada por Moisés?”82.
Desse outro modo, em Rahner, expressa-se a “mesma realidade” quando nosso teólogo
assevera que “o homem do Novo Testamento é o que confessa Deus como Deus Pai”, portanto uma
pessoa, uma pessoa viva, que trabalhou na história da salvação do Antigo Testamento, e que Se
revelou definitivamente como Pai, por seu Filho Jesus Cristo. Rahner ressalta que
esse homem que nomeia o seu único e verdadeiro Deus pelas antigas expressões
“Deus dos Pais”, “Deus de Israel”, “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”, também
o diz “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Por isso, quem confesse o único Deus e não confesse também aí o “Deus dos Pais”
e o “Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, [...] não se está referindo ao
monoteísmo professado pela Igreja primitiva, que é de onde se diz que: “para nós
só há um Deus, o Pai, de quem tudo procede, e para o qual nós vamos, e um só
Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe e pelo qual nós existimos” (1 Cor 8,
6)83.
1.3 – A “volta do religioso” como idolatria que ameaça o monoteísmo cristão
Para os nossos dias, perceber o que Rahner tem a dizer do monoteísmo cristão é muito
importante, porque atual. Dizer da “unidade” de Deus com o olhar cravado na tradição dos
Testamentos permite tratar questões que ultrapassaram a vida do teólogo, quer para trás, pelo que a
81
BASÍLIO DE CESARÉIA. Tratado sobre o Espírito Santo. SP:Paulus. 1999, 124-128. As próximas referências a esta
obra se farão pela sigla TES.
82
TES 126-127.
83
Cf. TNT 102.
43
história da teologia nos conta e ensina, quer para além da vida de Rahner (1984), posto que são
questões que latejam forte no cerne do cristianismo, agora diante do chamado fenômeno da volta do
religioso. É nesse fenômeno que se esconde a exacerbação do individualismo, que traz junto de si
um perverso imediatismo. Tudo somado, o risco é estarmos assistindo o esfacelamento da idéia de
Deus do monoteísmo cristão, a tão duras penas defendido das heresias dos primeiros séculos pelos
Pais da Igreja.
Hoje, o contexto faz saltar aos nossos olhos a desesperança do homem. Não somente a
desesperança individual, porque esta mesma situação tem reflexos comunitários, na vida nas Igrejas
já que, todos, em busca de imediatez de resultados, culminam por perder o horizonte do Deus
cristão e, assim, deixam de reunir homens que efetivamente se constituam, em Cristo, verdadeiros
homens da Esperança.
Em vista desse arrazoado, crescem em importância as lições da Igreja primitiva na
experiência do trato com o diferente, crente ou não. Agora e sempre é imperioso manter o olhar no
que efetivamente constitui o monoteísmo cristão, o que aqui se intenta fazer pela perspectiva da
teologia rahneriana, posto que carrega ensinamentos para o embate que o cristianismo não poderá se
esquivar diante do grande ídolo da nossa era que vem de superar a idolatria ao dinheiro, com tudo
que dele se extrai.
Teme-se, nos dias que correm, que um novo ídolo suba ao pódio da mais terrível forma de
idolatria, qual seja, o homem fazer de si o seu próprio ídolo, o que traz no seu bojo não o risco de o
homem “matar” a (palavra) Deus, mas de o homem matar a sua própria humanidade porque assim:
O homem teria esquecido o todo e o seu fundamento, e ao mesmo tempo teria
esquecido [...] que se esqueceu. Que seria então? Só poderíamos dizer: ele deixaria
de ser homem. Ter-se-ia reduzido a um animal engenhoso. Não podemos mais
dizer tão facilmente hoje que já existe homem quando um vivente terrestre anda
em posição ereta, acende fogo e transforma uma pedra em picareta. Só podemos
dizer que existe homem quando um ser vivo, pensando, usando da palavra e agindo
livremente, confronta-se com a totalidade do mundo e da existência como pergunta
e problema, mesmo que, ao fazê-lo possa vir a se manter mudo e desconcertado
perante esta pergunta sobre a unidade e a totalidade84.
Conclusão
Nesse sentido, como repetidamente afirmado por Rahner por toda a sua vasta obra, o
imperativo é deixar “Deus ser Deus”85. Para tal, é mister clarear posições identificando o que “é” de
84
85
CFF 65.
CFF 155-156.
44
Deus e o que é “distinto” de Deus. Aí reside uma chance de o homem, angustiado com a
desesperança de seu isolamento, poder compreender a si mesmo e encontrar, na sua própria
realidade criatural, a esperança que dá sentido à sua existência. Por isso, o válido alerta de que
o que é decisivo na mensagem do Novo Testamento é, antes, que o círculo dos
poderes e forças intramundanos foi estourado por ação do único Deus vivo, que é
Deus, e não algum poder numinoso, e ele o estourou para abri-lo para a real
imediatez para consigo mesmo. Ele está presente para nós em imediatez no
Espírito Santo que nos foi dado e no que é chamado de “Filho” em sentido
absoluto porque estava com Deus no princípio e é Deus ele próprio86.
2 - o significado de um Deus pessoal que é Pai, Filho e Espírito Santo
Introdução
A unidade que espelha a mesma idéia de Deus não pode ser interpretada por um
reducionismo que tome a palavra “Deus” como uma essência comum e imutável, já que
este tipo de crença não está em questão na fé monoteísta, porque a causa última do
mundo poderia até ser conhecida, mas nunca crida, tal como cremos, na fé, em
uma „Pessoa‟ viva e ativa na história87.
2.1 – O homem que experiencia a pessoa de Deus Pai
Agora vemos o porquê de no Antigo e no Novo Testamento a concepção de Deus partir da
“experiência” em que o homem se relaciona com Deus como uma realidade viva, ou seja, uma
“Pessoa” a quem o homem chama de “Tu” no silêncio da oração, uma “Pessoa” que age livremente
por meio do mundo em que generosamente quis Se revelar88.
Essa “experiência” do homem encontra razão no próprio homem. Se atrelarmos o olhar à
Encarnação percebemos que a humanidade de Cristo não é o instrumento extrínseco pelo qual um
Deus invisível se faz conhecer. A razão está escondida no que Deus em si se transforma – apesar de
se manter Deus – ao Se exteriorizar no que é distinto de si, no que não é divino. Para Rahner,
86
CFF 155.
Cf. TNT 104.
88
Cf. TNT 104-5.
87
45
a última palavra sobre “o homem é que ele é o modo possível da existência de
Deus se Deus se exterioriza no que é distinto de Si; o homem é irmão potencial de
Cristo”89.
Nesse ponto, voltamos ao propósito de agora que é dar significado a um Deus pessoal que
é Pai, Filho e Espírito Santo. Dar significado passa pela barreira da tematização de uma realidade
que nos impede em sua originária experiência de expressá-la em sua real magnitude, o que é próprio
de toda a experiência transcendental.
2.2 – O homem que nomeia Deus
A primeira dificuldade ao falar de Deus é nomear Deus. Por isso, a idéia do “fundamento
absoluto de todas as coisas” é tão ilustrativa do desafio de uma adequada nomeação de Deus.
Imaginar o “Absoluto” contido numa palavra denota, per se, o que se impõe à linguagem. Em um
artigo clássico, que integra o CFF, Rahner enfrenta essa questão e diz que se o chamarmos “Deus
Pai”, a palavra “Deus” ganha expressão na realidade significada pela palavra “pai” em nossas
experiências e relações mais pessoais, íntimas e de contornos mais fortes. Ocorre que, isoladamente,
a palavra “Deus”, “se apresenta [...] como se [...] nos mirasse como um rosto cego, porque não fala
nada sobre o que significa ou sobre a realidade significada”.
Contudo, Rahner afirma que é pela ausência mesma de contornos que a palavra “reflete
aquilo a que se refere: o Inefável, o Sem-nome, o Silencioso e, porque significa o todo em unidade e
totalidade, pode ser descurado como um absurdo”90. Assim, o teólogo culmina defendendo o uso da
própria palavra “Deus” porque
aquele que se tornou sem rosto, a saber, a palavra “Deus”, que não mais se refere
por si mesma a uma experiência singular definida, está em condições de nos falar
corretamente de Deus, porquanto é a última palavra antes do calar em que, pelo
desaparecimento de todo particular denominável, temos de haver-nos com o todo
fundante como tal91.
Aqui, voltamos a distinguir o que os cristãos afirmamos do Deus pessoal - que se
autocomunica ao homem -, da idéia de que o fundamento absoluto de todas as coisas possa ser
impessoal e, portanto, incapaz de se comunicar, como uma lei cósmica, uma estrutura inconsciente,
uma fonte que a si mesma se esvazia sem se possuir, mas que dá origem ao espírito e à liberdade
89
RAHNER. Man, in: K. RAHNER (Ed.), Encyclopedia of Theology: The concise Sacramentum Mundi, NY:
Crossroad, 1975, 893. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura CSM.
90
Cf. CFF 63.
91
Cf. CFF 63.
46
sem que seja, ela mesma, espírito e liberdade. Isto apenas espelharia a idéia de um fundamento
originário, como na metáfora de Rahner, cego.
É cego porque não passa da representação tomada do mundo das coisas e que não
provém da experiência livre e subjetiva que um espírito faz de si mesmo e se
percebe com origem em outro; outro, portanto, que ele não pode interpretar como
se fora uma coisa.
2.3 – “Pessoa e personalidade” de Deus na teologia trinitária grega
Uma vez percebida a dificuldade de apreensão na linguagem da palavra “Deus”, passamos a
outra dificuldade, ou seja, pensar Deus como um Deus pessoal e agora o desafio é definir a palavra
“Pessoa”. Essa dificuldade nos foi trazida pelo tempo, uma vez que a sua significação originária não
acompanhou na vida da cultura o mesmo sentido. Não vamos já adentrar nas alternativas de
utilização de outra expressão92 para substituir a palavra, posto que como Rahner ao final se rende,
De fato, a palavra pessoa aí está. Foi sancionada por um uso de mais de quinze
séculos. [...] Devemos preservá-la, sabendo que ela não convém a todos os ângulos
daquilo que desejaríamos que ela dissesse, e que não apresenta “apenas”
vantagens93.
Diante do exposto, cabe uma breve reflexão sobre a origem da adequação da palavra
“pessoa” no que ela quer dizer dos atributos do Deus cristão. Para isso, não traria qualquer benefício
estender-nos sobre a etimologia da palavra. Basta ter claro que a palavra, “persona”, em sua origem
latina deriva do verbo “personare”, que significa ressoar, ressoar por toda parte. A moderna
filologia a relaciona com a palavra etrusca “persu”, encontrada escrita ao lado de uma representação
de duas figuras mascaradas. Esta palavra era usada para traduzir máscara, face, do grego ππόσωπον,
que, inicialmente usada no sentido da máscara do ator, designava o seu papel na peça 94. O conceito
“pessoa” vai surgir como um termo técnico usado no cristianismo primitivo, na teologia trinitária e
da encarnação95.
Em síntese, poder-se-ia tomar uma definição para a palavra
92
Rahner critica a expressão “maneiras de ser” utilizada por K. Barth em substituição à palavra “pessoa”, sob o
argumento de que “ao se falar da realidade concreta do Pai, Filho e Espírito, inclui-se a essência divina (absoluta) e
neste sentido não se pode falar sem mais de puras “maneiras de ser”. O que Rahner defende é que “formalissimamente,
aquilo que a hipóstase exprime em oposição à essência divina a substantialitas, poder-se-ia dizer, se substantia não
fosse já um conceito relativamente abstrato. De resto, isso vale também de hipóstase, que originariamente não exprime
o subsistente, mas o subsistir. Daí para o nosso autor dever-se usar a expressão “maneira de existência (ou de ser) ao
subsistir”. Cf. ODT, nota 26, 326.
93
RAHNER. Observações sobre o Tratado “De trinitate”, in ODR 252. As próximas referências a este artigo se farão
pela abreviatura TDT.
94
Cf. M. MÜLLER; A. HALDER. Person, in CSM 1206-7.
95
Cf. TERTULIANO. Adversus Praxean, 12; 27.
47
“pessoa” como a que não significa essência ou natureza, mas a realidade única e
efetiva de um ser espiritual, de um todo indivisível com existência independente e
não intercambiável com qualquer outro. Esta realidade é a realidade de um ser que
pertence a si mesmo e que, portanto, tem a própria finalidade em si mesma. É a
forma concreta assumida pela liberdade de um ser espiritual, na qual se
fundamenta a sua inviolável dignidade96.
Se a afirmação do Deus pessoal é fundamental para a convicção cristã, o seu enunciado
inegavelmente cria uma perplexidade ao que pressupomos em nossas orações e em nossa referência
a Deus pela fé, esperança e caridade97. Rahner reconhece a dificuldade, mas O reafirma como
pessoa, porque
ele é pessoa absoluta que se situa em absoluta liberdade perante tudo o que ele
estabelece como diferente de si mesmo, o que vale afirmar que Deus é o ser
absoluto, o fundamento absoluto, o mistério absoluto, o bem absoluto, o horizonte
definitivo e absoluto, em cujo interior se realiza a existência humana na liberdade,
no conhecimento e no agir98.
Como este trabalho não se propõe a ousadia de encontrar definições ou formulações
científicas, mas busca o significado de um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo na sua relação
pessoal com o homem, voltamos à perspectiva de Rahner que, na mesma busca, parte do
entendimento do que é mais evidente ao homem ao afirmar que
é claro que a subjetividade e a personalidade que experimentamos como nossa, a
unicidade individual e limitada pela qual nos distinguimos dos demais, a liberdade
que se deve exercer sob milhares de condicionamentos e necessidades, tudo isto
implica uma subjetividade finita marcada por limitações que, com tais limitações,
não podemos afirmar o mesmo do seu fundamento, ou seja, de Deus99.
Diz o teólogo que a personalidade individual, como a que o homem experimenta, não pode
“convir a Deus, que é o fundamento absoluto de tudo”. Porém, adiante, ele esclarece que Deus, o
fundamento de nossa personalidade racional, anuncia-se sempre, ao mesmo tempo que se esquiva,
precisamente na constituição transcendental de nossa pessoa e, com isso Ele já Se revelou a nós
como “pessoa”.
Se permitimos que este enunciado formal receba seu conteúdo de nossa
experiência histórica, permitiremos que Deus seja pessoa precisamente da forma
em que de fato quer encontrar-se conosco e se tem encontrado conosco em nossas
96
M. MÜLLER; A. HALDER. Person, in CSM 1207.
Cf. CFF 94.
98
Cf. CFF 94.
99
Cf. CFF 94-5.
97
48
histórias individuais, na profundeza de nossas consciências, e na totalidade da
história humana100.
Hodiernamente, é no estudo do Direito que se percebe com clareza tanto a dificuldade de
expressar a palavra pessoa em um conceito, como as dificuldades decorrentes de até hoje no corpo
do nosso direito pátrio não se haver ousado definir a palavra. Mas, é de se ressaltar que há uma
palavra que nos socorre tanto na teologia quanto nos enfrentamentos jurídicos: “personalidade”.
Num sentido ético, personalidade é o conjunto de atributos presentes no ser
humano que, por sua livre decisão aceita de fato que ele é “pessoa”: aceita o
caráter dialógico da vida direcionada ao mistério, aceita a liberdade, aceita o dever,
aceita a responsabilidade, a inefável alteridade do seu próximo, a dor e a morte. A
personalidade completa está enraizada no coração e não no intelecto101.
Se no que diz do homem o desafio permanece, no que respeita Deus, Rahner diz que
devemos reconhecer que
a teologia grega em seu apogeu (capadócios), [...] dava impressão de ser uma
doutrina trinitária, quase ainda mais formalista que a de Agostinho. Como se
explica isto? Os gregos compreendiam a Trindade tão naturalmente no quadro da
“economia da salvação”, que podiam com razão compreender toda a sua teologia
como uma doutrina da Trindade. [...] Nesse caso, esta não teria de falar nada sobre
cada uma das Pessoas divinas, mas não buscaria senão resolver o problema
(ulterior para os gregos) da unidade das três Pessoas que se encontram, distintas e
individuais, na teologia e na economia102.
A compreensão da teologia trinitária grega - que parte da maneira como Deus Pai se
manifesta a si próprio na economia da salvação, pela mediação da Palavra e no Espírito - é
retomada por Rahner para esclarecer que a diferença do que é “Deus para nós” é aquela de “Deus
em si”. Ele afirma que poderíamos declarar muito simplesmente que esta “trindade de Deus em si”
é chamada “tripersonalidade”, e que, neste contexto não se pode pensar no conteúdo de “pessoa”,
senão pelo que se depreende do testemunho da Escritura, nosso ponto de partida103.
Tornamos citar Basílio, que em seu Tratado ironiza a doutrina da “monarquia”, ao afirmar
que quando o Senhor nos transmitiu o Pai, o Filho e o Espírito Santo (Mt 28, 19), não os mostrou
com um número. De fato, não disse: no primeiro, e no segundo e no terceiro; nem em um, e em dois
e em três, mas através dos santos nomes concedeu-nos o conhecimento da fé que conduz à salvação.
100
Cf. CFF 95.
K. RAHNER; H. VORGRIMLER. Personality. Dictionary of Theology, 2nd. Ed., NY: Crossroad, 1985, 381. As
próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura DTH.
102
TDT, nota 12, p. 227-8.
103
TDT 252.
101
49
Aqueles [...] que utilizam contra a fé a numeração [...], cuidam de aplicar um
número à natureza divina, para deste modo não honrarem o Paráclito além de certa
medida. Mas, ó ilustres sábios, é preferível que o Inacessível esteja acima da
numeração. A antiga piedade dos hebreus empregava sinais particulares para
assinalar o nome inefável de Deus, demonstrando assim a sua superioridade sobre
todos os seres. E se importa contar, ao menos não se falsifique a verdade: ou, com
o silêncio se venerem as coisas inefáveis, ou que se enumerem piedosamente as
coisas santas. Há um só Deus Pai, um só Filho Unigênito, um só Espírito Santo.
Anunciamos cada uma das hipóstases singularmente. E se fosse conveniente “coenumerar”, não nos deixaríamos levar por rude enumeração a uma idéia
politeísta104.
Conclusão
Seguindo essa linha de raciocínio, Rahner recoloca a questão da relação entre os dois
tratados: De Deo uno e De Deo trino, para recordar que não é tão fácil separá-los, “como se admite
desde santo Tomás e outros a seu exemplo”.
Se se toma a sério a palavra De Deo uno, procura-se não somente a essência de
Deus e sua unicidade, mas a unidade das três Pessoas divinas e não somente a
unicidade da divindade; a unidade mediatizada, da qual a Trindade é a perfeição
verdadeira, e não da unicidade não-mediatizada da natureza divina, que pensada
numericamente una, está longe de poder ser, por si só, o fundamento da triunidade
de Deus. Mas se é o tratado De Deo uno que se fala e não o De divinitate una,
então trata-se do Pai, princípio sem princípio do Filho e do Espírito. E neste caso
se torna realmente impossível fazer sucederem-se dois tratados sem ligação entre
eles, como até hoje se faz105.
Com isso, não se pretendeu adentrar nas diversas controvérsias havidas ao longo dos séculos
sobre a adequação do uso da palavra “pessoa” ao que se quer significar quanto ao Deus cristão, o
único e mesmo „Deus dos Pais‟ e „Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo‟, que se revela na história
da salvação como Trindade econômica.
3 - o significado de um Deus que “quer” agir
Introdução
Retomando brevemente o que até aqui se apontou, ressaltamos que a questão da unidade de
Deus somente se resolve de modo existencial, posto que deve ser operativa no mundo e na história,
como nas palavras do nosso teólogo,
104
105
TES 142-143.
TDT 253. O sublinhado é nosso.
50
ao confessar um único Deus, o homem não confessa um fato, mas a sua própria
aceitação de uma tarefa, posta por um Deus que é pessoal, que age na história e
pretende, precisamente através deste meio, estender o seu Reino, a sua Basiléia, a
compreensão da sua divina unicidade, o que se dá num lento processo que se
arrastará até o final dos tempos106.
Na seqüência, vimos que Deus, por sua liberdade absoluta se manifesta como uma “pessoa”
ao se relacionar com o homem num “diálogo” histórico, por meio do qual Ele convida a sua criatura
pessoal a ser sua parceira, no uso da liberdade que a mensagem cristã diz ser contingente, ou seja,
marcada pela finitude e criaturidade do homem.
3.1 – O Deus que quer
Estas linhas não buscam resumir o que a inteligência de quase dois milênios produziu sobre
os atributos de Deus, mas apontar a Sua própria realidade que, misteriosamente nos atrai. Essa
atração permite que o homem, mesmo em seu caráter finito e passageiro na história, possa
compreender Deus não somente como uma pessoa que esconde a dimensão completa de Sua
liberdade perfeita, mas como o que somente se revela em Sua liberdade absoluta na experiência de
amar.
Vale aqui insistir em outra concepção de Deus para, por contraste, tirar conseqüências para a
identidade da vida cristã. Ter Deus como princípio e fim de toda a realidade, significa dizer que
Deus age como o que porta toda a realidade. Essa idéia implica toda a atividade de Deus que, assim,
permaneceria absolutamente transcendente. Por isto, tal modo de pensar a realidade contrariaria a
experiência do agir de Deus no Novo Testamento que, ao afirmar que tudo é, move e tem vida Nele,
vê Deus agindo na história da humanidade como um todo, pela sucessão de períodos históricos e
pela renovação dos homens sobre a terra (At 17, 26-9). Como pontua Rahner sobre a primeira
hipótese,
não há um Aqui e Agora no mundo de tal modo que este Aqui e Agora possa ser
experimentado em contraposição a tudo que este Aqui e Agora não é. E porque
tudo seria agir de Deus, esse agir esmaece como se adentrasse no anonimato do
Sempre e em Todo lugar.
Para o Novo Testamento, a autocomunicação de Deus não pode ser uma qualidade que adira
uniformemente a toda a realidade no mundo – por causa da soberana liberdade de Deus que permite
ao seu “querer” manifestar-se num agir que “escolhe um povo para si, o faz o seu Povo” (At 13,
17), firmando com ele uma Aliança (Rm 9, 4). No momento em que, no uso de sua liberdade
106
Cf. TNT 103.
51
absoluta e amor infinito, Deus envia seu Filho, faz com que deste evento histórico único dependa a
inteira salvação do homem e a transfiguração de todo o mundo107.
3.2 – O Deus que quer um único milagre: autocomunicar-se
Sobre esse agir de Deus, Rahner ensina que todas as coisas que
se reconhecem como presença e anúncio de Deus na história são presença real de
Deus em si mesmo e, assim sendo, constituem verdadeiros fundamentos da
religião, [...] na medida em que todas essas manifestações de Deus em nosso
espaço e em nosso tempo constituem realizações históricas e concretas da
autocomunicação transcendental de Deus que, de outra forma seria mero portento e
não o milagre da revelação histórica de Deus108.
Dizer que Deus quis agir em nosso espaço e em nosso tempo e que seu agir se constitui em
manifestações históricas e concretas implica lembrar, com Rahner, a expressão de Tomás de
Aquino, para afirmar que Deus age através de causas segundas. Rahner toma essa sentença de Santo
Tomás e diz que “Deus opera o mundo e não propriamente opera no mundo, que ele sustenta a
cadeia das causalidades, mas não que por sua atividade se insira nessa cadeia das causas como um
elo, como se fosse uma causa entre as outras”. Dito de outro modo,
A própria cadeia como todo, ou seja, o mundo no inter-relacionamento de suas
partes e não somente em sua unidade abstrata e formal [...], constitui a autorevelação do seu fundamento. E este fundamento mesmo não se pode encontrar
como tal imediatamente nessa totalidade. Pois que o fundamento não aparece no
seio do que é fundado, se ele é realmente o fundamento radical e, portanto, divino
3.3 – O Deus que é Pai é em si o Amor e quer amar criando
Deus - que os Testamentos confessam Criador do mundo - apresenta a sua criação como
obra de seu querer que, por sua absoluta liberdade, quis criar. Este agir de Deus se expressa com
meridiana clareza se pensarmos que a sua liberdade absoluta manifesta o seu agir em uma criação
contínua, fruto de uma liberdade que, como nas palavras do parágrafo acima, é “o fundamento que
não aparece no seio do que é fundado”. Não aparece porque esta liberdade absoluta é o misterioso
fundamento da relação amorosa que Deus, o Mistério que Rahner chama Santo, quis estabelecer
com a sua criatura.
É bonito perceber que a ação de Deus no curso na história da salvação não se resume a um
monólogo que Deus conduza por si só. Ao contrário, é uma relação que implica “um diálogo longo
107
108
Cf. TNT 106.
CFF 109. Também aqui exsurge a força dos EE de Inácio, em que Rahner coloca a CAA nos termos de sua teologia.
52
e dramático entre Deus e a sua criatura, pelo qual Deus confere ao homem o poder de dar uma
genuína resposta à sua própria Palavra, valendo-se do dom de sua liberdade que, ao longo de toda a
existência humana, é dom que incessantemente nos abastece”109. Por isso, na boa expressão de
Rahner,
a História não é um mero teatro no qual Deus se coloca no palco onde as suas
criaturas vão desempenhar papéis previamente determinados. Diferentemente, o
homem é co-autor deste drama que é a um só tempo divino e humano e que tem
seu desenrolar na história110.
Decorre como lição ao cristão que a História tem uma seriedade real, porque é a seriedade
de uma decisão eterna, de uma decisão absoluta que não pode ser relativizada pela idéia – ao
mesmo tempo falsa e verdadeira – de que tudo brota da vontade de Deus, a quem nada é capaz de
resistir. O cristão sabe que o poder de dar uma real resposta a Deus estará sempre condicionado à
última palavra, que é sempre a de Deus. Deus age de modo a que nenhuma reação do homem pode
seguir-se à ação última de Deus, que é sempre última porque o homem não tem poder para
sobrepor-se ao último agir de Deus que é amar criando.
Conclusão
Neste ponto lembramos que até aqui o que se buscou foi dar significado ao Deus cristão:
como pessoa, como uma pessoa que age livremente. Se assim não o fizéssemos estaríamos
enfrentando a questão equivocada para o homem, que estaria se questionando sobre “o que é Deus”.
Isto cresce em importância porque sabemos que a pergunta do cristão é outra. A pergunta cristã
deve passar a ser “quem é Deus”, com quem e como me relaciono?
Para isso, passamos a pensar quem é o homem e como ele vai, também, se relacionar com
Deus.
109
110
Cf. TNT 111.
Cf. TNT 111.
53
Capítulo II – Concepção de homem: uma doutrina da criação
A afirmação de que o homem é a criatura de Deus é conexa à afirmação da criação do
mundo em geral. Partindo, então, do termo criação é que podemos expressar a realidade do homem
e também a do mundo, como tendo seu princípio, fundamento e destino final em Deus ou, em outro
modo de dizer, criação, ativamente, é a ação criadora de Deus e, passivamente, criação é a
totalidade do mundo.
Assim como proposto, o título está buscando a concepção de homem aos olhos cristãos, o
que não se presta a uma concepção fragmentada do homem, como quando é objeto de uma miríade
de ciências que se alimentam com frações do conhecimento que a teologia cristã soma, com boa
vontade, mas constata que a totalidade da concepção cristã de homem é outra. A fim de
exemplificar o que é tão exaustivamente defendido por Rahner, tomamos da zoologia, que exagera
mas não desmente a visão fragmentada, uma porção do que lhe é possível corretamente afirmar:
Existem atualmente cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e
noventa e duas delas têm o corpo coberto de pelos. A única exceção é um símio
pelado que a si próprio se cognominou Homo sapiens. Esta insólita e próspera
espécie passa grande parte do tempo a examinar as suas mais elevadas motivações,
enquanto se aplica diligentemente a ignorar as motivações fundamentais111.
Este trabalho, por óbvio, não pretende conceber o homem a partir da sua diferenciação
evolutiva única – dentre cento e noventa e duas outras espécies de macacos e símios (sic.) mas, tal
como o CFF, busca mais que a evolução do símio, busca encontrar uma concepção de homem que
não “ignore as suas motivações fundamentais”. Assim, buscamos a concepção de homem inserida
na doutrina da criação como aquele que se sabe criado por Deus, como um homem diferenciado de
todas as outras espécies pela esperança que deflui de sua fé. Buscamos o que é o próprio da
teologia, ou seja, uma visão total do ser que é humano.
Por isso Rahner tem motivação na mensagem de Pedro "estai sempre dispostos a justificar
vossa esperança perante aqueles que dela vos pedem conta" (1Pe 3, 15)112. Com essa disposição, ele
aponta o destinatário da teologia nos seus dias, ou seja, o homem “que não se sente seguro em uma
fé que seja tida como coisa óbvia”113, visto que a fé experimentada na história, ao longo da
cristandade, já não mais justifica as (des)esperanças do homem. Eis aí seu desafio de chegar a uma
concepção de homem para hoje. Eis aí, ainda e sempre, o desafio da fé cristã que como não pode
111
D. MORRIS, O macaco nu, SP: Círculo do Livro S.A, 2ª ed., 1974, 7.
CFF 12.
113
CFF 15-16.
112
54
chegar à concepção de um homem isolado de seus semelhantes, torna-se para Rahner “a motivação
fundamental” sonhar uma igreja que reúna em Cristo os homens nEle criados, o que Rahner chama
de a Igreja do futuro.
1 – O significado da relação de Deus com o homem
Introdução
É nessa perspectiva que a doutrina da criação passa a ser, então, a primeira consideração de
uma teologia que conceba o homem e o fundamento de sua esperança, o que somente pode ser
encontrado na Trindade econômica. Porque, se assim não for, arrasa mais do que a esperança para
hoje, arrasa a mais evidente realidade que carrega o homem e o cristianismo por quase dois
milênios: a revelação de um Deus pessoal que quer livre e criadoramente se autocomunicar.
Se assim é, e assim o cremos, o homem de fé, que encontra nosso Senhor Jesus Cristo e se
toma por seu seguidor se depara com a grandeza irredutível de ter diante de si a “totalidade de sua
própria existência”, vale dizer ter-se por todo diante de si. O desafio de gerir uma experiência dessa
natureza é o que caracteriza o homem como tal. Nesse passo, a teologia de Rahner pretende ser este
saber que é salvífico e que diz respeito a todos. Daí sua advertência de que “uma atividade salvífica
sem fé é impossível, e fé sem encontro com Deus que se revela pessoalmente a si mesmo é
contradição nos termos”114.
1.1 – Vaticano I: a questão do Deus da razão natural e o Deus da Revelação
Com este propósito, Rahner sempre retomando a história, lembra que na teologia escolástica
surge a questão da doutrina do Concílio Vaticano I115, segundo a qual se pode conhecer a Deus pela
chamada luz da razão natural116. A questão que ele persegue é se há oposição entre o Deus da
“razão” e o Deus da revelação, ou seja: se esse “conhecimento” também se refere a Deus - não só
enquanto fundamento originário do mundo - como criador do mundo em sentido estrito, ou se a
nossa condição de criatura também é parte dos dados que se podem conhecer pela luz da razão
natural. Esta questão toca no cerne da teologia rahneriana porque põe em questão a
autocomunicação de Deus. O Concílio Vaticano I não responde a essa questão,
114
CFF 187.
Cf. Constituição Dei Filius.
116
H. DENZINGER, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, traduzido com base na 40ª ed.
alemã, aos cuidados de P. Hünermann, por J. Marino Luz e J. Konings, SP: Loyola, 2007, 644. As próximas referências
a esta obra se farão pela abreviatura DH.
115
55
na verdade ensina que Deus é criador de todas as coisas, que ele as criou e
continua criando do nada. Mas nada diz sobre se esta afirmação é meramente
filosófica ou se somente pode ser feita no interior da revelação e, portanto, da
autocomunicação pessoal de Deus117.
1.2 – Vaticano II: a questão do ecumenismo no Deus da Revelação
Esta questão foi superada no Concílio Vaticano II, com a Constituição dogmática sobre a
Revelação divina Dei verbum, que assim aclarou, em seu Cap. I, 6:
Pela revelação divina quis Deus manifestar e comunicar a si mesmo e aos decretos
eternos de sua vontade acerca da salvação dos homens, “para fazê-los participar
dos bens divinos, que superam inteiramente a capacidade da mente humana”118.
(grifamos)
É importante acompanhar a alta relevância da questão levantada por Rahner porque ela se
coloca dogmaticamente diante do que é fundamental para o que se possa pretender quanto à união
dos cristãos. Segundo testemunha o teólogo jesuíta B. Sesboüe,
Antes da abertura do Concílio, a revelação já era considerada tema central, tanto na
doutrina católica como no movimento ecumênico. [...] A relação entre Escritura e
Tradição constituía o objeto principal do desentendimento de católicos e
protestantes. [...] O “esquema” preparado antes do Concílio dividiu a assembléia.
[...] Foi o momento de maior crise no Concílio. Uma verdadeira guerra. E
começaram a circular contra-projetos assinados por teólogos de proa, como K.
Rahner e Y. Congar. [...] Em abril de 1964 o esquema ganhou nova redação, com
tonalidade mais bíblica. A revelação era focalizada mais como um ato de
comunicação de Deus por ele mesmo, mediante, sobretudo, Jesus Cristo do que um
conjunto de verdades transmitidas119.
Esse é momento de “dizer” Rahner como batalhador ecumêmico. Para além de sua
reconhecida luta no Concílio Vaticano II, este teólogo escreveu inúmeros artigos que enfrentam as
dificuldades de unificação na fé com um tom comum em seu discurso, qual seja o de fundamentar
um diálogo que não renuncie à “verdade”. Com isso, ele aposta na dogmática para acender a chama
da “igreja do futuro”, alertando que para os cristãos de todas as Igrejas separadas se sintam à
vontade como irmãos e irmãs,
a igreja do futuro não pode surgir pela mera assimilação das grandes igrejas
Protestantes ou Ortodoxas por parte da Igreja Católica Romana, tal como ela se
encontra juridicamente organizada no Ocidente latino. A igreja do futuro terá que
abrir espaço a um largo pluralismo nos aspectos práticos da vida cristã. Entretanto,
117
CFF 97.
DH 983.
119
B. SESBOÜE (dir.), História dos dogmas. A palavra da salvação (sécs. XVIII – XX), v. IV, SP: Loyola, 2006, 419422.
118
56
o problema crucial do ecumenismo é o lado dogmático que reside em como a
Igreja do futuro poderá sustentar e professar a mesma fé cristã.
A mim parece que a liderança da Igreja católica poderia aceitar que a unificação da
igrejas implica que as verdades propriamente fundamentais da revelação cristã
sejam expressamente afirmadas por ambos os lados120.
1.3 – A preocupação da dogmática é a realidade da criação
É marcante na personalidade de Rahner o cuidado incessante em busca de sempre mais e
melhor refletir sobre as verdades fundamentais do Cristianismo, que nada mais são do que a
verdade do homem. Esta preocupação deve ser a de todo teólogo e, por isso, ele nos deixou um
chamado aos manuais de teologia, por sua insuficiência escolástica e científica. Seu alerta também
alcança os tratados de teologia histórica porque, somadas as suas observações, ele torna a perguntar:
o que estes resultados da investigação histórica significam para o conteúdo genuinamente
teológico? Ao que ele mesmo responde sumariamente: praticamente nada, por sua infrutuosidade
dogmática.
Diz que fazer teologia histórica assim resulta num tratado dogmático tão semelhante aos
tratados dogmáticos dos últimos séculos, como um ovo se assemelha a outro ovo. A finalidade do
estudo da teologia histórica não é a defesa de opiniões, e sim o diálogo com um pensador antigo;
não para inteirar-se, em última análise, de sua opinião, mas para aprender alguma coisa sobre a
própria realidade121.
Por isso a preocupação da teologia é sempre “aprender algo sobre a própria realidade”, para
que a proclamação da revelação de Deus pela Igreja do futuro “possa ser como deveria, a fim de
que a Palavra de Deus possa ser ouvida pelo homem e a Sua Graça possa atuar e nos glorificar”122.
permanecendo (os manuais de hoje) no que pertence ao passado, não podem
conservar nem o passado com a limpidez devida. Pois só pode conservar o
passado, quem se sente obrigado ao futuro, quem conserva conquistando123.
Para seguir o ensinamento do mestre e “aprender alguma coisa sobre a própria realidade”,
deve ser esforço permanente da doutrina da criação considerar não apenas o início da realidade
criada por Deus, mas considerar a criação como a base do relacionamento entre Deus e o homem.
Rahner visibiliza o exposto, se valendo da experiência transcendental, assim dizendo:
120
RAHNER. Realistic possibility of a unification in faith? THI, XXII, 72-75. O sublinhado é nosso.
TED 117.
122
RAHNER. Forgotten dogmatic initiatives, in THI, XXII, 105.
123
TED 114.
121
57
Em nossa experiência transcendental, que [...] nos remete ao inefável mistério
santo, está dado o que venha a ser condição de criatura [...] como algo
experimentado imediatamente nessa experiência. O termo “condição de criatura”
interpreta correntemente essa experiência original da relação entre nós e Deus.
[...] Se viéssemos a pensar que a condição de criatura não passaria da [...] relação
de duas realidades categoriais [...], de início já teríamos deixado de perceber o que
significa condição de criatura, que não constitui um dentre os muitos casos de nexo
causal entre duas coisas que se apresentam organizadas sob uma unidade que só
ocorre uma vez e, portanto, tem lugar único124.
Tal entendimento não somente enriquece a resposta vinda com o Concílio Vaticano II –
sobre se a afirmação de que Deus é o criador de todas as coisas somente pode ser feita no interior da
revelação e, portanto, da autocomunicação pessoal de Deus –, mas cresce em atualidade, uma vez
que ainda sofremos questões sobre a teoria evolucionista, que se contraporia à teoria criacionista.
Rahner toma a discussão e a “encerra” nos limites de sua antropologia, afirmando que
A idéia de que o homem não passaria de produto casual, constituindo assim como
que um capricho da natureza, contrasta não somente com a metafísica e o
cristianismo, mas também no fundo com as próprias ciências naturais. Se o homem
existe, se [...] ele é o “produto” da natureza, se ele não emerge em tempo qualquer,
mas em determinado momento da evolução, depois e a partir do qual pode até
dirigir (ao menos parcialmente) essa evolução no seu curso objetivando-a e
modificando-a, então é nele precisamente, no homem, que a natureza chega a si
mesma. E, assim sendo, esta se organiza e se orienta em vista do homem, pois o
“acaso” é termo sem sentido para as ciências naturais, e o representante delas, com
base em seus resultados, conclui pelo menos a existência de um movimento assim
orientado125.
Essa página de Rahner ilustra o papel do homem diante do restante da criação, sem o quê
não poderemos considerar a história do cosmos e a do homem como uma história una. O teólogo diz
que nessa eventualidade, o pensamento humano culminará recaindo no que ele qualifica como “uma
espécie de dualismo platônico”, porque o espírito que passe a se considerar “como estranho
habitante e êxito fortuito na terra” acabará se desprezando e se excluindo como insignificante e
impotente. Se o espírito não for considerado a meta da natureza, e se não se perceber que nele a
natureza encontra a si própria apesar de toda a fraqueza física do homem, este com o passar do
tempo somente poderá fazer-se valer e avaliar-se como contraditor díspar da natureza126.
Ressalte-se que a teologia da criação em Rahner não quer tratar do “primeiro momento do
tempo” em que ocorreu a criação da realidade, mas do processo que ocorre agora como ocorreu em
momento anterior do tempo de nossa existência, que se estende no tempo. Assim,
124
CFF 97-8.
CFF 227.
126
Cf. CFF 227-228.
125
58
criação e condição de criatura não indicam um evento dado em um momento, ou
seja, o primeiro momento de um existente127 temporal, mas a constituição desse
existente e de seu tempo mesmo, constituição que precisamente não entra no
tempo, mas que é o fundamento do tempo.
É importante anotar que Rahner diz que esse início absoluto não é o vazio infinito, o nada,
mas a plenitude, a única a explicar o participado que começa a existir, que pode carregar um
processo de devir, conferindo-lhe realmente a força para se mover na direção do que é mais
evoluído e ao mesmo tempo mais íntimo. Nesse sentido, “o fim é o início absoluto”128.
Essa significação de criação padecia diante da realidade de Rahner. Ele viu seus
contemporâneos serem taxados de racionalistas por sentirem o mundo como domínio explorável de
sua ciência e de sua técnica, o que o teólogo justificou ao afirmar que o homem poderá se
desinteressar deste abismo (do princípio e fim de sua existência), refugiando-se na ciência como se
fosse o único espaço claro e compreensível de sua existência129. A apreciação de Rahner cresce
quando ele a contrasta ao paradoxo que nos salta aos olhos na atual explosão de seitas e práticas
ditas místicas, que culmina apresentando o homem nem sempre tão racionalista, mas como quem,
também, “pressente e venera o indizível e o inominado”.
Daí o alerta à teologia dogmática
hodierna:
Todavia, justamente por este motivo, uma dogmática complicada parece-lhe (ao
homem) demasiadamente científica, sutil e racionalista, excessivamente
doutrinária e positivista, o que faz com que o homem não se convença quando,
todas as vezes que não se sabe mais como prosseguir na dogmática, invoca-se um
decreto misterioso de Deus e que se chamam mistérios. A questão é que o homem
de hoje sente o mistério de Deus como demasiadamente imenso para que lhe seja
fácil admitir inúmeros mistérios que, à primeira vista, lhe parecem mais com
resultados da complicação da dialética humana que se enredou a si mesma130.
A admissão de mistérios que se enveredam como um labirinto, não encontra respaldo na
doutrina dogmática de Deus, que não é “um deus anônimo e longínquo”, mas aquele que nunca diz
algo sobre si que seja indiferente ao homem. O Absoluto, o Deus descrito na doutrina, é o que Deus
“em si” comunica a nós em sua revelação pessoal e absoluta de si. Em outras palavras, Deus se
revela nas estruturas formais do “estado criatural e quem é o Deus cristão já se revela ao
chamarmos a nós mesmos suas criaturas”131. Por isso Rahner não permitir que sua teologia
enverede nesse labirinto de mistérios que ele vai restringir sempre a um único, qual seja, a
autocomunicação de Deus.
127
“existente”. Na tradução francesa, l‟étant (p. 96) e na edição norte-americana, existent (p. 79).
Cf. CFF 230.
129
Cf. CFF 231.
130
RAHNER, Conceito de mistério, in ODR 155. As próximas referências a este artigo serão abreviadas como CDM.
131
RAHNER. Creation, in CSM 325.
128
59
Para compreender esse mistério único, Rahner diz que é preciso recordar que os sujeitos
espirituais significam antes de tudo liberdade e por isso a história da autoconsciência e do autodevir
do cosmo é história da intercomunicação dos sujeitos espirituais, o que implica o encontro recíproco
entre os sujeitos. A autocomunicação da parte de Deus é, portanto, comunicação à liberdade e
intercomunicação dos muitos sujeitos cósmicos. Essa autocomunicação volta-se para a história livre
da humanidade, e só pode ocorrer e realizar-se se for livremente aceita por sujeitos, no seio da
história comunitária. A autocomunicação divina não é endereçada bruscamente a uma subjetividade
isolada e individual. “Ela é historicamente humana e se volta para a intercomunicação entre os
homens, porque somente nela e através dela pode vir a ser acolhida de maneira histórica”132.
A aceitação ou recusa por parte de cada uma das liberdades não dispõe do evento
da autocomunicação divina como tal, mas somente da relação que a criatura
espiritual assume com referência a ela. Habitualmente falamos de
autocomunicação quando essa vem a ser aceita de maneira livre e, assim sendo,
beatificante, mas muitas vezes como existe necessariamente ou na forma da préexistência em si e para a liberdade, ou na forma do acolhimento (justificação) ou
na forma de rejeição (incredulidade ou pecado)133.
Conclusão
Dito resumidamente, a condição de criatura somente tem sentido se a considerarmos na
relação originária com Deus como Pai e, assim, também, Criador. Com isso entre os termos criatura
e Criador coloca-se um outro. Relação. Por isso Rahner afirma que essa relação com o Criador é,
em sua essência última, o que se pode caracterizar propriamente como relação que em “seus traços
fundamentais últimos [...] apenas vem expressa cabalmente no conjunto de toda a mensagem
cristã”134.
2 - o significado de na radical dependência de Deus estar a genuína autonomia do homem
Introdução
Nesse passo, temendo parecer repetitiva e temerosa de estar dando voltas no entorno do
inexplicável, que não encontra na linguagem a tematização adequada, valho-me das pacientes
palavras de Rahner para dizer da intencionalidade deste trabalho no que aparentemente pode
parecer sempre o “mesmo”.
132
Cf. CFF 232.
CFF 233.
134
CFF 96.
133
60
Quando – como ocorre na dogmática – a realidade que se deve expor é uma e,
contudo inabarcavelmente múltipla, cujo último axioma é a infinita imensidade de
Deus, as interferências de temas particulares são inevitáveis e é impossível
estabelecer o melhor esquema, um esquema que se imponha com necessidade
lógica. Não temamos tais interferências. Não é prejudicial que em cada parte se
repita o todo. Na dogmática, pagam-se sempre os esquemas claros e simples
demais com um empobrecimento dos ângulos de visão. E, reciprocamente, o tratar
em diversos lugares o “mesmo” de maneira aparentemente dispersa e dividida,
pode contribuir para aclarar a plenitude real de uma verdade e realidade da fé135.
2.1 – A ab-soluta distinção de Deus
Pelo que se viu, a doutrina cristã dá um especial realce à relação entre Deus e o mundo de
condição criada. O estabelecimento dessa condição por parte de Deus não pressupõe a existência de
um material pré-dado. É neste sentido que a criação se dá do “nada”. Criação “do nada” significa:
criação totalmente a partir de Deus, mas de tal sorte que nessa criação o mundo seja radicalmente
dependente de Deus, e Deus não se torne dependente do mundo, mas, pelo contrário, permaneça
livre com referência ao mundo e fundado em si mesmo136. Rahner lembra que a experiência humana
intra-mundana é totalmente diversa porque
em toda relação causal de natureza categorial e intra-mundana, o efeito é
dependente de sua causa, mas esta causa é por sua vez dependente do seu efeito,
pois não pode ser tal causa sem causar tal efeito. Isso não ocorre na relação entre
Deus e a criatura, pois de outra forma Deus seria um elemento no âmbito de nossa
experiência categorial, e não o horizonte infinitamente distante da transcendência,
em cujo interior compreendemos a realidade finita singular137.
Dada essa premissa, Rahner distingue a relação do homem que pensa e a coisa que ele pensa
como seres finitos e, diferentemente, o absolutamente infinito: ou seja, é a absoluta distinção entre
os objetos categoriais entre si, por um lado, e o absolutamente diverso, por outro, que nos permite
entender a falsidade tanto de um panteísmo real como de um dualismo vulgar – que ocorre também
no campo da religião e que situa Deus e o não-divino como duas coisas lado a lado138. Não aceitar
essa premissa é tomar Deus como um objeto do conhecer conceitual, e não como O que fundamenta
o conhecer. Por isso, Deus não pode prescindir da realidade finita que é o “mundo”, já que somente
assim Ele é real e radicalmente distinto do mundo criado, e não apenas uma peça de um todo mais
elevado, como se pensa no panteísmo.
A distinção entre Deus e o mundo é de tal natureza que Deus estabelece e é a
diferença do mundo para consigo mesmo. Por essa razão ele estabelece a unidade
135
TED 128.
Cf. CFF 99.
137
Cf. CFF 100.
138
Cf. CFF 81.
136
61
mais estreita na diferenciação, pois se a diferença mesma provém de Deus, e, se
assim podemos falar, ela própria é idêntica com Deus, então a distinção entre Deus
e o mundo deve-se conceber de forma totalmente diversa do que a distinção entre
realidades categoriais, às quais antecede uma distinção, porque, de certa forma, já
pressupõem um espaço que as contém e as diferencia, e nenhuma dessas realidades
categorialmente distintas entre si estabelece ela própria a distinção com referência
às outras realidades nem essa distinção. Por isso se poderia chamar o panteísmo de
sensitividade para o fato de que Deus é a realidade absoluta, o fundamento
original, o Aonde último onde se volta a transcendência. Essa é a dimensão de
verdade no panteísmo139.
2.2 – A radical dependência é a genuína realidade do homem
Por sua parte, o mundo deve depender radicalmente de Deus, sem tornar Deus dependente
do mundo, da forma como o senhor é dependente do servo, como exemplifica Rahner. O mundo
não pode trazer em si nada que seja independente de Deus. Nesse sentido, a expressão
“criaturidade”, segundo Rahner, significa
uma propriedade fundamental de toda realidade distinta de Deus, propriedade que
precede a distinção entre natureza e graça e que só na ordem da graça sobrenatural
se realiza perfeitamente, já que “criaturidade” não é uma expressão puramente
negativa140.
Esta dependência é livremente estabelecida por Deus e, por ser uma dependência finita que é
sempre parte de um processo que se renova, não pode existir por qualquer que seja a necessidade,
mas apenas pelo que ora chamamos de uma espantosa espontaneidade de Deus. Contra
argumentando, por absurda que fosse tal necessidade, ela somente poderia advir de uma
necessidade situada em Deus mesmo e em seu próprio ato de estabelecer o mundo, necessidade que
faria o mundo ser uma necessidade de Deus e que, portanto, não permitiria a Deus ser independente
do mundo, e sim carente dele.
Assim, por ser Deus quem estabelece a criatura e a sua distinção com referência a si é que a
criatura é realidade genuína e distinta de Deus e não mera aparência por detrás da qual se esconde
Deus e sua realidade. Nesses termos Rahner coloca que a
Dependência radical e genuína realidade do existente que procede de Deus
crescem na mesma proporção e não em proporção inversa. Na experiência humana,
quanto mais algo é dependente de nós, tanto menos é diferente de nós e tanto
menos possui sua própria realidade e autonomia141. [...] Mas quando refletimos
sobre a peculiar relação transcendental entre Deus e a criatura, fica claro [...] que aí
genuína realidade e radical dependência constituem simplesmente aspectos de uma
139
CFF 81-82.
TED 135.
141
A paradigmática relação da mãe com o recém nascido pode ser esclarecedora para o pensamento do autor.
140
62
só e mesma realidade e, em decorrência, crescem na mesma proporção e não em
proporção inversa142.
2.3 – A autonomia do homem e a dependência: uma proporção divina
Rahner não se cansou de advertir que o mundo livremente estabelecido por Deus não é
Deus, mas o espaço que o Criador disponibiliza à criatura para que, no tempo que lhe é dado na
história, exerça sua atividade criadora. Por isso, o conceito de criação só pode ser entendido pela
pessoa que faz a experiência de sua própria liberdade e responsabilidade, e também a acolha no ato
de sua liberdade e na reflexão143.
Por isso é justo considerar o mundo não como uma “natureza sagrada”, mas como
o material disponível para a atividade criadora do homem. Não é na natureza, mas
é em si próprio, e no mundo apenas enquanto conhecido e administrado por ele na
ilimitada abertura de seu próprio espírito, que o homem faz a experiência de sua
condição criada e aí se encontra com Deus144.
O que está por detrás da afirmação de Rahner é que o homem pode exercer a sua atividade
criadora independentemente de Deus. Dizer isto é reforçar ao extremo a paradoxal idéia de que a
independência do homem - que recebe a liberdade como dom - se funda na liberdade absoluta que o
homem jamais terá, posto que a liberdade absoluta é própria de Deus. Tirar conseqüências da
liberdade do homem de até dizer um “não” a Deus é admitir que ele não necessita de Deus para
caminhar na sua existência, é admitir que o homem é livre até para não acolher o seu próprio
fundamento, é admitir que ele se transforme até mesmo em um risco para si próprio e o restante da
criação.
A contrário senso, imaginar as conseqüências de uma relação amorosa do homem com o seu
Criador é exigir um “sim” a Deus com tudo que daí deflui como engrandecimento para a nossa
humanidade. Tirar conseqüências de uma existência humana que acolhe Deus é pensar o homem
num “sim” crescente ao exercício de sua liberdade, que será exercida no mundo com a autonomia
de um “administrador”, diante de escolhas que lhe permitam fazer da liberdade um crescente dom
de eterna gratuidade. Por isso, Rahner dá rumo a este estudo ao afirmar que
devemos refletir primeiramente sobre o homem como a questão universal que ele é
para si mesmo, e, em conseqüência, fazer filosofia no sentido mais próprio do
142
Cf. CFF 100. O sublinhado é nosso.
Cf. CFF 101.
144
Cf. CFF 102. Ver também EE 23.
143
63
termo. Essa questão, que o homem é e não só faz, deve-se considerar como a
condição da possibilidade de a resposta cristã vir a ser escutada145.
O todo desta reflexão significa que a procedência radical de Deus é que funda a nossa
autonomia, e disso só se faz experiência quando a pessoa criada exerce a sua liberdade como
proveniente e referida a Deus, e se percebe sujeito não somente livre, mas também responsável.
Assumindo essa responsabilidade é que entende o que seja autonomia, é que se entende que essa
autonomia não decresce, mas aumenta na proporção da dependência a Deus. Somente então é que
se torna claro ao homem a condição em que ele é ao mesmo tempo autônomo e dependente do seu
fundamento146.
Conclusão
De temas tão abstratos, a genialidade de Rahner anteviu conseqüências das quais hoje
pagamos o preço no planeta pela destruição promovida. Mas não só. Corremos o risco de a própria
vida no planeta extinguir-se por conta de uma compreensão equivocada de Deus, não concebido
como Criador nosso para que habitássemos o mundo criado como co-criadores porque algumas
vezes a pilhagem que desnutre a Terra, o desamor na distribuição dos bens tidos da Terra e com a
espantosa capacidade criadora do homem encontram razão num Deus,
que opera e funciona como existente individual ao lado de outros e que, assim, de
certa forma, esteja presente como parte no interior da casa maior da totalidade do
real. Este Deus de fato não existe realmente. A pessoa (teísta) que procurar um
Deus deste tipo estará procurando um Deus falso. O ateísmo é também uma falsa
noção de Deus. Só que o primeiro nega simplesmente essa noção falsa, ao passo
que o segundo está persuadido de que ainda pode pensá-la logicamente. No fundo,
ambos se equivocam. O teísmo vulgar, porque o Deus que se imagina não existe; e
o ateísmo, porque Deus é a realidade mais radical, mais original e em certo sentido
a mais evidente por si mesma147.
Nisso, a incompreensão do que seja essa dependência de Deus faz tolher a autonomia do
homem ou a interpreta de modo ganancioso a tal modo que ela surja devastadora do próprio homem
que se isola de seus semelhantes e do restante da criação numa agressividade sem precedentes.
145
Cf. CFF 22.
Cf. CFF 101.
147
CFF 82-83.
146
64
3 - o significado da afirmação de que o homem é o ser da transcendência
Introdução
Na seqüência de seu raciocínio, o teólogo alemão alerta o que de primeiro se deve dizer
sobre o homem é que ele é pessoa e sujeito. O significado exato dessa afirmação só se conclui do
todo da antropologia de Rahner que nos impele analisar o que as diversas antropologias - que ele
chama regionais - nos ensinam, quando ressalvamos que a biologia, a genética, a sociologia, etc.
aproximam-se do homem sob determinado ponto de vista e não pretendem
sozinhas ser a única e total antropologia. Cada uma delas, porém, pretende dizer
algo sobre o homem como todo. E, uma vez que o toma como todo, não pode
querer perder qualquer afirmação que se possa fazer sobre esse todo uno. Cada
uma dessas antropologias tenta explicar o homem a partir de dados particulares,
mediante decompô-lo em seus elementos e em seguida reconstruí-lo novamente
desde esses dados particulares148.
Tornando a Desmond Morris, ele, na análise de um dado particular, revela que 80% das
mães embalam seus filhos no braço esquerdo, “de modo a mantê-lo contra a metade esquerda do
corpo”. Imaginou-se que isso se devia a um maior número de mulheres destras. Porém, verificou-se
que 78% das mães canhotas têm o mesmo comportamento. Diz o zoólogo que a “única outra”
hipótese provém do fato de que o coração fica do lado esquerdo e que o feto, acostumado ao
(barulho) coração da mãe, quando o “reencontra”, o ruído familiar passa a ter um efeito calmante
sobre o bebê.
Vários grupos de recém-nascidos foram colocados em quartos onde se ouvia a
transmissão do ruído do coração batendo ao ritmo normal de 72 pulsações por
minuto. Verificou-se que choravam 60% do tempo em que não ouviam o ruído,
enquanto que o choro se reduzia para 38% quando se voltava a ouvir o pulsar do
coração. Os bebês que ouviam permanentemente o ruído engordavam mais, apesar
de receberem a mesma quantidade de alimento porque não gastavam tanta energia
chorando149.
A mesma estatística norte-americana analisou 466 quadros representando nossa Senhora e o
menino Jesus. Por se tratarem de obras produzidas há vários séculos sabe-se que seus autores
representam não o comportamento materno, mas a visão (masculina) do comportamento materno.
Contudo, o bebê está colocado à esquerda em 373 pinturas, ou seja, em 80% dos quadros. “Esses
148
149
CFF 41.
Cf. D. MORRIS, op. cit. 92.
65
números contrastam com os referentes à forma como as fêmeas pegam embrulhos: 50% do lado
esquerdo e 50% do lado direito”150.
3.1 – O homem é a pergunta para a qual não há resposta
Ao se colocar sob análise, abrindo-se para “o horizonte ilimitado de questionamentos”, o
homem já transcende a si mesmo, a todas as dimensões pensáveis de sua análise ou da autoreconstrução empírica de si. Nisso o homem se afirma como quem é mais do que a soma dos
componentes analisáveis de sua realidade. Em seu CFF, Rahner diz que
O homem não é a infinitude não questionada. Ele é a pergunta que se levanta
perante ele, vazia, mas de forma real e inevitável, e que ele nunca pode superar
nem dar resposta adequadamente151.
Nesse sentido, Rahner contrasta a transcendência do homem com um sistema finito de
elementos, que não pode se situar diante de si mesmo como um todo. É o exemplo do sistema
respiratório que adquire uma relação com a operação respirar, mas não possui relação com o seu
próprio ponto de partida, ou seja, os meus pulmões não percebem o sistema respiratório como um
todo. Meus pulmões não se interrogam sobre si mesmos, os meus pulmões não são sujeito152.
Por isso é útil voltar ao exemplo do bebê que aparentemente se acalma ao ouvir o pulsar de
um coração. Alguém pode pensar como impertinente, mas não creio porque ilustra como o homem,
diante desse comportamento “irrelevante” enfileira questões em busca de uma resposta que lhe
satisfaça os padrões e exigências científicas. Ao cabo, se rende, ao concluir que não são apenas
bebês que se acalmam diante do ritmo do coração.
Sempre que nos sentimos inseguros recorremos ao reconfortante ritmo do coração
como disfarce. Não é por acaso que a música folclórica em grande parte tem ritmo
sincopado. Não é por acaso que os adolescentes de então chamaram rock (embalar)
e beat (bater como o do coração) a sua música. Sempre que se vê um conferencista
balançar-se, meça o ritmo do seu desconforto para ver se o mal estar causado pela
audiência não o leva a executar os movimentos mais reconfortantes que o corpo
pode proporcionar em tal circunstância: o familiar batimento uterino153.
150
Cf. D. MORRIS, ibid., 92-93.
CFF 46. Sobre este tema, ver Primeira Parte 1.1.1.
152
CFF 44.
153
Cf. D. MORRIS, op. cit. 93-94.
151
66
3.2 – O homem é sujeito e pessoa
Afirmar que o homem é sujeito e pessoa é também dizer que o homem é irredutível, que não
se pode produzir a partir de elementos disponíveis. A principal conseqüência desse raciocínio é que
o homem, então, é o ser que sempre está entregue à responsabilidade por si mesmo e pode, por isso,
questionar tudo (diferentemente do pulmão que se insere em um sistema finito). Quanto à extensão
da palavra “tudo”, significa dizer que tudo pode se transformar em nova pergunta para o homem
que se coloca e se recoloca infinitamente em questão a cada resposta sempre parcialmente obtida.
Ao experimentar a sua finitude radicalmente, o homem se percebe como um ser
transcendente, como espírito. O horizonte infinito do questionar humano é experimentado como
horizonte que sempre se retira para mais longe quanto mais respostas o homem é capaz de dar, do
bebê ao conferencista nervoso. Por isso, certa feita, numa entrevista a um jornalista que lhe
perguntou o que é o homem, Rahner fulminantemente respondeu: o homem é a pergunta para a qual
não há resposta. Nesse sentido, ele assim confirma no CFF:
A infinitude a que se sente exposto o homem perpassará por seu agir do dia-a-dia,
porque ele permanece sempre a caminho. Toda meta que ele possa prefixar-se vem
a ser sempre de novo relativizada, será sempre provisoriedade e etapa. Toda
resposta sempre volta a ser o começo de uma nova pergunta154.
3.3 – O homem não pode tornar “possível o impossível”
Para Rahner, o cristianismo chama a atenção do homem para a realidade de que a sua
projeção para diante é e será sempre, também, uma volta do homem para dentro de si mesmo, para a
tomada de consciência de sua condição de ser finito e criado. Diante disso, alerta que
torna-se arriscado declarar que alguma coisa é impossível: tal declaração foi
freqüentemente, na história, o começo de um esforço vitorioso para tornar possível
– o impossível. [...] Contudo, o homem não é – e nunca será – o Onipotente, que
cria do nada; ele é apenas o ser capaz de “criar” com elementos que encontra em si
mesmo, e com as realidades preestabelecidas do seu mundo-ambiente155.
Conclusão
Todo empenho até aqui vem no sentido da compreensão do que seja um ser pessoal como
alguém cuja liberdade somente pode ser exercitada por si mesmo. É essa experiência que possibilita
a adoção do conceito de pessoa ao ser espiritual que, por sua liberdade, dispõe de si.
154
155
CFF 46.
RAHNER. A caminho do “homem novo”: a fé cristã e ideologias terrenas do futuro. Petrópolis: Vozes, 1964, 7-8.
67
Daí a experiência de transcendência ser a experiência da liberdade, da vontade e também a
do amor. A transcendência é constitutiva do sujeito que, dotado da faculdade de conhecer e de
pensar, é livre. Esse sujeito vai confrontar a sua liberdade com a de outro, também sujeito de
transcendência. Essa é a condição de o sujeito estar presente a si mesmo e também, originariamente,
estar presente a outro sujeito. Para um sujeito que está presente a si mesmo e tem consciência de si,
essa liberdade que afirma o outro significa amá-lo156.
156
CFF 85.
68
Capítulo III - Criador e criatura: o encontro de duas liberdades
Para o cristão, Deus é e permanece do início ao fim o indisponível, o mistério absoluto e
incompreensível. Deus é também quem quis, em sua liberdade absoluta, relacionar-se pessoalmente
com o homem, dirigindo-se a ele, chamando-o, convidando-o a ser parceiro de Sua própria
realidade viva. Assim, é por meio da aceitação da liberdade pelo homem, que Deus lhe possibilita
ser Seu parceiro, num encontro em que o homem constitui-se como tal e unindo-se, solidariamente,
a seu semelhante, partilha do mesmo destino final, de in-condicionada liberdade.
Dizendo isso é hora de afirmarmos que toda e qualquer questão que se levante sobre a
palavra “pessoa” e a sua inerente personalidade está, na verdade, referida à sua mais profunda
característica, ou seja, a liberdade. Isto porque o significado profundo da palavra pessoa e o de
liberdade se fundem, não se podendo separá-los sob pena de um desnaturar o outro.
Tudo o que até aqui se disse da trindade das pessoas e do ser pessoal que o homem é,
passará, doravante, a ser visto como intrinsecamente relacionado à liberdade que em Um é absoluta,
como Ele é absoluto e que, no outro, o humano, é dom. É dom de um amor infinito que Se quis
expressar, comunicando a Si mesmo, comunicando a sua própria, perfeita e libérrima realidade, por
seu Filho e seu Espírito, à sua criatura.
Esta é a autocomunicação de Deus que, por ser em si Amor, é a mais completa expressão da
liberdade de Deus Pai, o que “significa que Deus se torna ele mesmo em sua realidade mais própria
como que um constitutivo interno do homem”157, o que Rahner espetacularmente assim consagrou:
Mas eis que agora atingimos o núcleo mais íntimo da compreensão cristã da
existência com a afirmação de que o homem é evento de absoluta, livre, gratuita e
indulgente autocomunicação de Deus158.
1 - O significado da liberdade absoluta do Criador
Introdução
Seguir Rahner e dar significado à liberdade absoluta de Deus exige, como mínimo, que nos
detenhamos diante da “síntese da matéria relevante da Revelação”. Para ele a “história da revelação
é essencialmente a história da vinda do homem à sua total herança como homem e, por conseguinte,
157
158
CFF 145.
CFF 145.
69
é a história de sua liberdade”159. Desse modo, nosso autor expõe a liberdade como dado relevante da
revelação e a supõe “comunicada” ao homem, num gesto permanente do Criador, para que
percebamos a significância da liberdade na aceitação do mistério absoluto a que chamamos Deus.
Nesse ponto tomamos a sugestão do próprio Rahner e trazemos o excerto de uma oração, síntese de
todos os parágrafos acima:
Deus Pai, Vós espalhais a Vossa graça segundo a Vossa santa liberdade! Exerceis
a Vossa misericórdia com quem quereis, onde e quando Vos agrada. É por efeito
da Vossa bondade que chamais os homens a participar da Vossa própria vida. [...]
Para que se veja claramente que a salvação vem de Vós e é uma graça livre, é
necessário que o homem Vos encontre precisamente onde decidistes estar presente
para ele. Para cada homem, o caminho da salvação [...] passa por um desvio: [...] o
desvio do Vosso Filho que se tornou um de nós. [...] Foi por ele que a Vossa graça
chegou até nós. O Vosso Espírito Santo sopra onde quer, sem que eu lhe possa
impor a minha vontade; o lugar da sua presença e ação não depende da vontade do
homem. É necessário que eles se dirijam ao lugar preciso onde Ele decidiu estar
presente para eles pela sua graça160.
1.1 – A natureza da liberdade é ser livre
De novo e sempre o teólogo alemão se vale do método transcendental para falar de Deus em
sua relação com o homem. De novo recorda que Deus é distinto dos demais objetos individuais que
nos são dados a posteriori e para os quais temos alguma liberdade neutra de escolha, com isso
querendo ressaltar a natureza da liberdade, que é outra. As escolhas que o ser humano faz no
exercício de sua liberdade ele as faz porque é da natureza da liberdade ser livre e, portanto, o
homem não a exerce movido por qualquer que seja o objeto da sua liberdade, mesmo que, no caso,
fosse possível elencar Deus como mais um na fila de escolhas.
Deus é, antes, aquele que „raia‟ como numa aurora para o homem, antes de tudo
nesse absoluto ato de liberdade em que somente a natureza da própria liberdade
chega à sua completa realização. Assim, no sentido teológico liberdade é a que
deriva de Deus e é dirigida para Deus. [...] Em outras palavras, Deus tem de ser
encontrado não de maneira reflexa, em cada ato de liberdade, mas como seu
alicerce e seu termo último161.
1.2 – O mistério da liberdade que Deus nos doa
Para Rahner, é assim que “desejamos” Deus. É assim que experimentamos o que significa
Deus realmente, ou seja, em todo e cada ato de liberdade finita, já que “Deus, que está para além do
159
RAHNER. Teologia da Liberdade. Caxias do Sul: Paulinas, 1970, 83-85. As próximas referências a este artigo serão
abreviadas como TDL.
160
RAHNER. Apelos ao Deus do silêncio. Dez meditações, Lisboa: Paulistas, 1968, 101-102.
161
TDL 87.
70
que alcança a nossa inteligência e o nosso coração, permanece essencialmente mistério da
transcendência do homem”162. As implicações de a liberdade permanecer mistério da
transcendência que está sempre voltado ao horizonte, como diz Rahner, é o que dá ao homem a sua
qualidade específica de sujeito – que é transcendência. Se liberdade é, então, a liberdade de aceitar
o mistério absoluto de Deus, aí está dado também que a liberdade é liberdade também de rejeitar
Deus, como já alertado.
1.3 – O mistério da liberdade transcendental como capacidade para algo total
Do ponto de vista cristão, a liberdade é constitutivo permanente da natureza humana, e é
através dela que o homem pode se determinar, dispondo de si não somente como um todo, mas de
uma vez por todas. Para a revelação cristã, a natureza da liberdade surge da afirmação de que ela é o
fundamento da salvação ou condenação absoluta. O homem, “quando deve responder e ser capaz de
responder como alguém livre, por si e por toda a sua vida, diante do julgamento de Deus, que não
julga a meia superfície da vida, mas que olha o íntimo da pessoa sobre quem ele livremente dispõe:
olha o coração”163. Assim, insiste-se, a liberdade não é qualidade de um ato executado, ela é a
“marca” transcendental do próprio ser humano, é a capacidade para alguma coisa total.
Conclusão
Nesse sentido Rahner diz que o homem, que de algum modo se compreende a si mesmo, se
rende ao “misterioso julgamento de Deus, que se realiza secretamente no ato irrefletido de sua
liberdade”. Dito isto e posto este ponto, Rahner nos abandona diante da afirmação de que
“Liberdade é mistério”164.
2 - O significado da liberdade profunda de Jesus de Nazaré
Introdução
Na história da auto-experiência da liberdade, torna-se gradualmente evidente ao cristão, a
maneira como Deus se doa a essa liberdade.
162
TDL 87-88.
TDL 96-97.
164
TDL 113.
163
71
Deus, o absoluto, exercita a sua absoluta liberdade se doando. O cristão é o homem que não
evita o encontro com Deus. Por isso, deste encontro resta a confiança incondicional a Deus, na
mesma aventura da liberdade que viveu Jesus Cristo, ciente de que a liberdade que lhe é oferecida
como dom é, também, limitada, finita, contingente tal qual o homem.
Essa história da experiência da liberdade é a que nós chamamos a história da salvação e da
revelação que é a experiência realizada em Jesus Cristo165.
2.1 – A liberdade no Deus-homem
A primeira questão a ser aqui esclarecida é no que respeita a liberdade que se diz profunda
em Jesus de Nazaré. A “diferenciação” que marca a liberdade do Nazareno da nossa está na sua
radical aceitação do dom, dom que não custa recordar jorra a todos os seres humanos na mais ampla
e irrestrita manifestação do extravasamento do amor de Deus Pai.
Dito isso, se observarmos o evento Jesus e retomarmos a proporção divina que aumenta a
nossa autonomia na mesma razão em que cresce a nossa radical dependência de Deus, passamos a
perceber porque Jesus é verdade, caminho e vida. É hoje, ainda e sempre porque assim ele foi no
enfrentamento de sua verdadeira finitude e mudanidade, participando na “dimensão do espírito e da
liberdade, na história que atravessa a porta estreita da morte”166.
2.2 – A liberdade como evento do eterno
O homem que responde por si como um sujeito livre, entrega a si mesmo o objeto do ato de
sua liberdade, que é uno em sua origem, e afeta toda sua existência. Por isso, um ato livre não pode
ser (re)editado, reformado ou anulado à moda de um documento que se assine. Por isso, um ato
livre tem alto grau de seriedade posto que “dura por ser eterno”, o que é radicalmente diverso do
que a poesia expressou como um ato “que seja infinito enquanto dure”167.
Por isso, podemos dizer que a eternidade da pessoa humana somente se pode
entender como liberdade autêntica e definitiva que maturou para além do tempo.
Toda outra coisa só pode ser seguida de mais tempo e não eternidade que não
representa o contrário do tempo, mas antes a consumação do tempo da
liberdade168.
165
Cf. CFF 120.
Cf. CFF 237.
167
VINÍCIUS DE MORAES, Soneto do amor eterno.
168
CFF 55.
166
72
2.3 – A auto-realização da pessoa livre diante de Deus se chama Salvação
Quando não se compreende a salvação no sujeito e na própria natureza da liberdade, diz o
teólogo alemão que a salvação parece estranha e cheira mitologia. Isso porque o conceito teológico
de salvação não se refere à salvação futura que se precipita inesperadamente sobre a pessoa e que a
ela se atribua com base em um juízo moral, como tribunais de justiça onde se prolatam sentenças de
condenação ou absolvição sobre um ato da pessoa que age na liberdade e com a responsabilidade
humanamente convencionadas.
Pelo contrário, a salvação refere-se ao caráter de definitividade da auto-realização da pessoa
livre diante de Deus. Daqui se parte para o entendimento do que teologicamente significa salvação,
que é algo lentamente constituído pela soma de todos os atos livres de uma pessoa e que, no seu
conjunto, aponte (ou não), ao horizonte ilimitado.
Conclusão
Numa página de tremenda eloqüência, Rahner assevera que (em Jesus Cristo)
Deus, na sua mais íntima divindade, entregou-se à liberdade que, por sua vez se
entregou ao incontrolável mistério de Deus. Deus não é apenas o contexto remoto
no qual, como algo sempre mais afastado, o homem projeta a sua livre
autocompreensão. Ao contrário, Deus tornou-se o reino e o objeto desse exercício
da liberdade em imediateidade absoluta169.
3 - O significado da liberdade contingente do homem
Introdução
Todo caráter criativo que se deu até aqui à natureza da liberdade, não retira da liberdade do
homem a característica primeira de ser uma liberdade “criada”. Isto porque a liberdade humana que
é dirigida para Deus e dele procede é executada na mais alta modalidade concebível, porque tem
suporte na autocomunicação de Deus, num amor pessoal que abrange o próprio Deus. Daí Rahner
afirmar que “o contexto e o objeto do amor, livremente conferidos, tornam-se idênticos”170.
169
170
CFF 120.
CFF 121.
73
3.1 – A liberdade como a faculdade da subjetividade
Rahner alerta que é um equívoco pensar a liberdade como a faculdade de fazer isto e depois
fazer aquilo de modo a que a segunda alternativa seja o oposto, como que a desmanchar a primeira,
de maneira tal que – se tal processo continuasse em tempo físico não interrompido por si mesmo –
sua realização pudesse somente ser entendida como interrupção extrínseca dessa série de atos
singulares, assim chamados livres, uma série que por si se estendesse ao infinito e apenas seria
interrompida pelo fato de o campo para essa liberdade ser-lhe retirada extrinsecamente por Deus na
morte.
A liberdade não é a capacidade de continuar eternamente em um processo novo de dispor e
redispor. Ao contrário, a liberdade comporta em si uma necessidade que não se encontra no que é
fisicamente necessário, porque ela é a faculdade da subjetividade, ou seja, do sujeito que não é um
ponto acidental de intersecção em uma cadeia de causas que se estenda indefinidamente, como já
apontamos.
3.2 – A liberdade do sujeito constrói o que somos e o que nos tornamos
Afirmamos com Rahner que o homem, por sua transcendência, se encontra em abertura total
dirigida a Deus e nisso está entregue a si quando conhece e quando age. E é assim que o homem se
percebe responsável e livre. Decorre disso que a liberdade não é a capacidade de fazer o que sempre
possa ser revisado, mas é a capacidade de fazer algo de final e definitivo. É a faculdade de um
sujeito que por essa liberdade deve atingir sua identidade final e irrevogável. Nesse sentido, e a
partir daí, a liberdade é a faculdade do eterno, como dito desde o primeiro parágrafo na Introdução
deste trabalho. Se quisermos saber, agora, o que é definitividade, devemos fazer a experiência
daquela liberdade transcendental que é realmente eterna, porque estabelece precisamente o
definitivo, que por sua natureza não pode nem quer ser diferente.
E onde quer que não aja liberdade, sempre está dado apenas algo que por sua
própria natureza continua a gerar-se, a transformar-se em outra coisa e a reduzir-se
a algo de diverso em seus antecedentes e conseqüentes. A liberdade é o evento do
eterno, evento a que, é claro, não assistimos como espectadores externos, pois
somos nós próprios que estamos a acontecer na liberdade, mas sofrendo a
multiplicidade do temporal, realizamos este evento da liberdade, constituindo a
eternidade que nós próprios somos e nos tornamos171.
171
CFF 120-121.
74
Assim a liberdade implica o confronto com seu próprio horizonte e por ser mediada de
maneira histórica é também liberdade com referência a um objeto categorial, por isso é exercida na
mediação do mundo do outro e, sobretudo, através da pessoa do outro, mesmo quando ela pretende
ser exercida com referência a Deus (1 Jo 4, 20)172.
3.3 – A liberdade, a responsabilidade e a culpa
Desse modo, liberdade não é uma faculdade neutra que a pessoa possa ter consigo como um
colar, como algo distinto de si, mas, ao contrário, a liberdade é a propriedade básica do que, no
tempo e no mundo, experimenta-se na consciência originária (autopossessão), como realidade pela
qual o sujeito não apenas é responsável, como também deve ser responsabilizado173.
A pessoa, a partir de sua experiência transcendental, sabe que sua liberdade é una, que se
objetiva em atos livres no mundo e na história e que podem redundar em uma decisão radicalmente
má. Há momentos na vida em que toda pessoa se percebe pecador. Em meio à decepção de se
admitir pecador, deve, também, admitir que não é o único pecador em toda a humanidade, não é a
“palmatória” exclusiva da espécie humana174. Assim, a pessoa que fez essa experiência de culpa
subjetiva, deve pensar e não cair na armadilha de que somente ela deu causa a algo ruim ao mundo,
o que seria extremamente grave porque as conseqüências de nossos atos livres não podemos
desfazer, como se fosse possível rebobinar o vídeo de nossas vidas, recomeçando ab initio. A vida
nos ensina que cada ato livre nosso é eterno. Podemos remediar seus efeitos, apagá-los, nunca. As
marcas, nós as carregamos, aliás, como Jesus Cristo mostrou e Tomé constatou175.
Rahner conclui dessa análise que o homem não é e nem pode ser uma ilha, cuja natureza já
não esteja co-determinada pela culpa de outros. E isso a um tal ponto que mesmo uma boa ação da
liberdade de uma pessoa, como, por exemplo, a doação de uma casa para abrigar um asilo, pode ter
surgido da manifestação de seu contrário, podendo ter sido realizada essa doação por interesses
tributários ou para promoção pessoal com fins eleitoreiros menores numa cadeia infinita de
possibilidades, isso porque a concretude da realização do ato de liberdade é também co-determinada
pela culpa.
172
CFF 123-4.
CFF 53.
174
CFF 135.
175
Jo 20, 27-28. Em seguida, disse a Tomé: aproxima o teu dedo aqui e olha as minhas mãos; aproxima a tua mão e
mete-a no meu lado, deixa de ser incrédulo e torna-te um homem de fé. “Tomé lhe respondeu”: Meu Senhor e meu
Deus!
173
75
Essa co-determinação da liberdade humana pela culpa é, por sua vez, de toda sociedade, e se
arrasta numa corrente que perpassa o tempo, não só avançando rumo ao futuro, mas inserida,
também, desde a origem da história, o que implica em que reconheçamos um “pecado original”176.
Rahner recorda que, se na essência, pecado é o exercício da liberdade transcendental que diz “não”
a Deus, então ele é possível como o primeiro ato do homem como homem, como um ser
transcendente ou, do contrário, sequer podemos chamá-lo homem. Este “não” a Deus parte da
liberdade humana não como um ato na seqüência de outros, por isso não há como se conceber o
homem inocente como se tivesse vivido durante longo período de tempo num paraíso histórico, nem
de rejeitar como puro mito o que realmente se quer dizer no livro do Gênesis177.
Por isso, jamais saberemos se o que é objetivamente culposo em nossa ação é objetivação da
liberdade em um “não” contra Deus, porque podemos estar diante de uma situação imposta, que se
apresente como uma necessidade, que manipula a liberdade, o que pode fugir à nossa observação,
mas que pode ter sido em essência um “sim” dito a Deus. Por isso, nunca saberemos se somos ou
não pecadores. Mas temos certeza de que podemos ser, até quando a vida cotidiana parece estar
rodeada de aplausos. Então e nisso mesmo, a sabedoria de “não julgueis!” (Rm 14, 13).
Conclusão
Como a possibilidade do pecado acompanha a totalidade da vida e da liberdade contingente
do homem, a ameaça que o sujeito livre representa para si mesmo não é característica de uma fase
da vida. É característica permanente e jamais superável178, que deve servir não como desestímulo,
mas, ao contrário, deve permitir recordar, em cada novo amanhecer que
este homem cristão, que experimenta o esforço da aspiração moral, está sempre
consciente de ser aquele que falha, aquele que fica atrás com referência à sua
própria obrigação, à sua própria responsabilidade e inclusive às suas próprias
possibilidades reais. E, em conseqüência, ele é aquele que se sabe sempre
envolvido pelo amor de Deus, e ao mesmo tempo tem sempre consciência de ser
pecador. E neste sentido é uma vez mais aquele que se realiza através da história
da sua existência. Sai sempre de sua própria falha e se volta para o que lhe está
adiante. Na incompreensibilidade de sua liberdade cheia de trevas e escuridão,
sabe-se continuamente envolvido pela graça de Deus e que sempre deve refugiarse nesta graça. É sempre aquele que não faz cálculos perante Deus, mas, pelo
contrário, entrega a Deus e à sua graça todo cálculo, todo esforço moral, toda
provação moral que se lhe imponha, uma vez mais sem a pretensão de fazer contas
exatas perante Deus.
176
CFF 137.
CFF 144.
178
CFF 131.
177
76
Crê, espera ser santificado pelo Espírito Santo de Deus, e reza, como o diz o
Concílio de Cartago, não só por espírito de humildade, mas em toda verdade:
“Perdoai-nos as nossas ofensas”179.
179
CFF 475, cf. Concílio de Cartago, 8, in DH 230, 87: [..] Quem afirmar que as palavras da oração do Senhor, quando
dizemos “Perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 6, 12), são pronunciadas pelos santos no sentido da humildade, não da
verdade, seja anátema. Pois quem poderia suportar um orante que mente, não aos homens, mas a Deus mesmo, quando
com os lábios diz que quer ser perdoado, mas, com o coração, que não tem dívidas a lhe serem perdoadas?
77
Segunda Parte:
A liberdade absoluta que revela ao homem o Pai, por seu Filho e
nosso Redentor
78
Se a Primeira Parte teve por meta dar significado à Teologia da Criação em Rahner, a
segunda vai entrelaçando-a a outros temas da dogmática porque não podemos afastar a relevância
da Criação do conjunto da fé cristã. E o conjunto a que chamamos de fé cristã está centrado no
evento Jesus Cristo, que merece atenção posto que, tomando a si as palavras do Apóstolo Paulo,
Basílio ensina e resume a importância que Rahner vai atribuir ao “conjunto da fé no Cristo”.
Todos vós, que fostes batizados em Cristo, é na sua morte que fostes batizados
(Rm 6,3). Ora, nomear a Cristo é confessar a todos, pois designa a Deus que unge,
o Filho que foi ungido, e a unção que é o Espírito. [...] Efetivamente, aquele que
redimiu da corrupção a nossa vida, outorgou-nos uma força renovadora, cuja causa
inefável encontra-se oculta no mistério, e que traz às almas sublime salvação180.
Por isso, insiste-se que na Criação se perceba o “estado criatural” como o “relacionamento
permanente” entre Deus e o homem, sem reduzi-la à mera origem da existência – o que, por tantas
vezes, alimenta, de um lado, a inútil querela entre as teorias evolucionista e criacionista, e, de outro,
deforma a Criação transformando-a na versão cristã de mais uma cosmogonia.
Iluminada por este inusitado relacionamento que une o Criador à sua criatura, a doutrina da
criação é o primeiro elemento a ser considerado na teologia formal e fundamental e se toma por
pressuposto da doutrina dogmática de Deus (De Deo uno et trino). Essa pressuposição em Rahner
se reflete na teologia da revelação, pois que aponta Deus como quem se comunica a nós em sua
pessoal e absoluta revelação de si. Este caminho, corretamente percorrido, desemboca na idéia de
que o “absoluto”, o “econômico” e a doutrina da trindade devem ter a mesma significância, não se
devendo, portanto, afastar a doutrina dogmática De Deo uno da De Deo trino.
Com isso, a Segunda Parte é a oportunidade de realçar a doutrina da graça e da ordem
sobrenatural porque se a doutrina da criação se ocupa do relacionamento entre o mundo e Deus, aí
já está dada a distinção que não afasta, mas relaciona propriamente natureza e graça, aqui entendida
como graça do Verbum incarnatum na qualidade de Logos, ou como na eloqüência com que Rahner
busca afastar a “timidez antitrinitária”: graça Verbi incarnandi181.
Porque partimos de que a doutrina da criação não se encerra na origem da natureza no
mundo e no homem é que esta natureza criada deve ser vista como precondição à exteriorização do
livre agir do Deus trino. Dito nas palavras de Rahner, a natureza deve ser vista em conjunto com o
180
181
TES 120-1.
ODT 287.
79
“existencial sobrenatural”182 e com a potentia oboedientialis183 para graça como autocomunicação
de Deus. Aqui podemos avançar e perceber a doutrina da criação como também pressuposta da
“aliança”, já que a criação é um aspecto do poder de Deus de se dar livremente na graça e na
encarnação a um outro aspecto de si mesmo.
Desse ponto de vista é possível à doutrina da criação alcançar o significado da doutrina
bíblica da criação no Logos divino, sem diluí-lo a uma mera apropriação acidental184.
Para abraçar o mesmo tema sobre novo ângulo, a Segunda Parte se divide em três Capítulos
que avaliam a concepção rahneriana de Revelação, de Redenção e de Salvação. Assim, os temas
que se costuram nesta Segunda Parte vão marcar ora o caráter tanto essencial quanto existencial da
Revelação, ora o seu caráter tanto transcendental quanto histórico como condições para que o
conjunto da Segunda Parte se aproxime do Evento Jesus Cristo por meio da unidade necessária
entre teologia e antropologia transcendental nas cristologias que serão, por conseqüência,
analisadas.
A Segunda Parte, como é a proposta de todo este trabalho, retorna sempre à estrutura do
pensamento teológico de Rahner. Em vista da diversidade de temas tão centrais como a fé, a
encarnação e a ressurreição é importante não deixar escondido o seu “único” objetivo: trazer ao
debate da “razão” a ousadia de apontar “o amor de Cristo que nos uniu”.
182
Cf. CFF 158 – Para Rahner, a tese que afirma que o homem como sujeito é evento da autocomunicação de Deus é
afirmação que diz respeito a todos os homens, afirmação que expressa um existencial de toda e cada pessoa humana.
Dessa maneira entende-se o conceito de sobrenatural como o que supera essencialmente o “natural”.
183
Cf. CFF 260-261 – Para Rahner, “potentia oboedientialis” significa a capacidade de a pessoa humana receber e
responder à autocomunicação de Deus na liberdade e no amor. Essa expressão toma corpo na união hipostática, que
implica entender a receptividade da natureza humana por parte da pessoa da Palavra de Deus e em que consiste tal
receptividade; implica entender que só uma realidade pessoal-espiritual é assumível por Deus, implica saber que essa
“potentia oboedientialis” não é uma capacidade ao lado de outras do ser humano, mas que objetivamente se identifica
com a essência do homem.
184
Cf. RAHNER. Creation, CSM 325-328.
80
Capítulo I – Concepção de Revelação
Partimos da intelecção do conceito de revelação divina que não se identifica nem com a
criação do mundo, nem com o mundo, mas que é “dita por Deus ao mundo”, de tal modo que é por
meio da Palavra – que não é o mundo, mas que tem lugar no mundo –, que Deus se revela. Assim é
importante a Palavra. Importante, por ser insubstituível, uma vez que nada que pertença à realidade
intra-mundana (do criado ou do criável) pode substituí-la como meio da auto-abertura de Deus
transcendente, em sua relação com o homem185.
Por outro lado, continuar pensando com Rahner a concepção de revelação exige a retomada
da preocupação do teólogo quanto à distinção entre “revelação natural” e a “revelação verdadeira”
de Deus, ou revelação propriamente dita186, o que ele sintetiza da seguinte forma:
Quando Deus cria o outro diverso dele e, criando-o, o cria como finito, quando
Deus cria o espírito e, confrontando-o com o seu próprio fundamento, o conhece
como o totalmente outro, ou seja, como o mistério santo e inefável, então, com isso
já está dada certa manifestação de Deus como o mistério infinito que se costuma
chamar de revelação natural de Deus, que deixa Deus continuar desconhecido
enquanto só é conhecido por analogia como mistério, [...] assim como também por
referência mediada e não por proximidade e acesso direto a Deus que se dá a
conhecer em si mesmo187.
A bela “questão” aí levantada sobre a “revelação natural” apresenta a existência de Deus
como uma questão, e não como resposta que identifica na essência do homem a capacidade de
receber e responder à autocomunicação, ou seja, tratamos aqui da potentia oboedientialis. Assim é
que da relação transcendental entre a criatura dotada de espírito e Deus, o homem infere que Deus
não quer ser a infinitude silenciosa fechada em si e, portanto, distante de nossa finitude, mas a
radical proximidade em sua autocomunicação. Com isso, Rahner expressa o conceito de
sobrenatural como um existencial que supera o essencialmente natural em cada um e em todos os
homens.
185
Cf. TED 129.
O tema foi inicialmente abordado na Primeira Parte, Capítulo 2.
187
CFF 207-8.
186
81
1 – O caráter tanto transcendental quanto histórico da Revelação
Introdução
A seguir tentaremos observar como uma moeda pode ser uma embora apresentando um
verso e um reverso absolutamente distintos. Assim é a que a revelação de Deus se nos apresenta sob
duas faces: uma transcendental e outra histórica.
São faces distintas e interdependentes, embora ambas sejam necessárias à compreensão da
unicidade da revelação porque como reafirma Rahner, “foi assim que, de fato, Deus se revelou”188
e, a partir daí, sabemos que a revelação mediante a autocomunicação de Deus em si mesmo é
possível189.
1.1 – O limite ao ilimitado questionar do homem: a ilimitada graça da autocomunicação de
Deus
Ao partimos da premissa da Palavra como insubstituível à revelação pessoal e histórica de
Deus, devemos também perceber que ela atinge em primeiro lugar a singularidade espiritual do
homem.
Isto significa que, por sua transcendência, Deus nos concede a possibilidade de ouvi-lo e de
acolhê-lo na fé, esperança e caridade. É por meio desse carinhoso modo de agir que Deus não
“rebaixa” o homem à mera criatura finita. Ao contrário, é assim que, dirigindo-se a nós, a sua
Palavra toca o homem como automanifestação do próprio Deus.
Esta relação - entre Deus que se achega e o homem - é reveladora na medida em que o que
Deus manifesta é a si próprio. E como esta manifestação é Deus, ela é a marca de uma doação que
ocorre em absoluta e indulgente proximidade. A primeira conseqüência que tiramos desta afirmação
é que ela, por si mesma, nega a idéia de um deus que seja ora a absoluta distância que rechaça o
homem, ora o juízo que nos acusa – embora advertisse Rahner, pudesse ser ambos.
Contudo, Deus é aquele indulgente, sempre pronto para perdoar, ou na boa expressão de
Rahner, é quem, em sua indulgente proximidade se entrega ao homem como a plenitude da absoluta
188
189
DH 3004.
CFF 208.
82
ilimitação transcendental, como veremos lentamente por este capítulo, que quer mostrar a imagem
de Deus invisível190.
Esse “aconchegar” de Deus que quer e se revela à sua criatura em palavras, só se
compreende por Sua liberdade absoluta que, por si e em si mesma permite-lhe dizer-se ao homem.
[...] parece relativizar-se a si mesmo, pois só o relativo se relaciona; parece sair de
si, despojar-se, esvaziar-se de si, desapropriar-se e deformar-se nessa relação em
que o imutável e eterno, o Logos, se faz carne191.
É nesse passo que o homem, existencialmente bombardeado por sua ilimitada capacidade de
questionar, percebe que alcança um “limite”. Este limite de seu ilimitado questionar é acatado pelo
homem como o próprio “sentido” de sua vida. Esta afirmação que beira a contradição somente é
possível porque, em seu horizonte de “ser espiritual”, o vazio de respostas àquela pergunta infinita é
“preenchido” pela inefável autocomunicação divina com a confiança da fé em Deus, que responde a
pergunta infinita com a resposta infinita que é ele mesmo.
Daí, Rahner conclui que sempre, e em todo lugar, a história do homem é também história da
Revelação de Deus como resposta àquela aterrorizante pergunta infinita que, desse modo, é
ilimitadamente revelada ao homem, pelo próprio Deus, como sua resposta absoluta192.
A isto, nós cristãos chamamos graça santificante e justificante, que se constitui na elevação
que “diviniza” o homem, na medida em que Deus não concede ao homem nada distinto de si, mas é
a si mesmo que Ele se dá, num ato que ao mesmo tempo sustente a doação divina e também a sua
recepção, pelo homem.
No tratado da graça santificante, mas sobretudo no tratado da escatologia quando
se fala da realização plena e total do homem na visão de Deus, a mensagem cristã
diz que o homem é o evento da absoluta e indulgente autocomunicação de Deus193.
Essa graça, ofertada por Deus em todos os tempos a todos os homens e de maneira absoluta
em Cristo, é ativa, é permanente, enquanto oferta e, segundo esperamos, um dia será “aceita” pela
maioria dos homens no resultado final do ato total de liberdade de suas vidas194. Diante disso,
Rahner aguçadamente crítico deixa uma questão quase como uma missão.
190
Col 1, 15.
VÁZQUES MORO. A configuração do cristianismo. 370.
192
Ver Primeira Parte, Capítulo 2.3.1.
193
CFF 147.
194
CFF 208.
191
83
O tratado De gratia é tão intemporal e a-histórico, que dá a impressão de que tudo
o que nele se diz vale sempre e em todo tempo. Por isto, mal se chega a apontar,
brevemente, que também os justos do Antigo Testamento possuíram a graça de
Cristo. [...] Isto é exato. Contudo, será que a única coisa que se pode dizer a
respeito das diversas maneiras de ser dada a graça, é que a graça de Cristo não era
dada antes dele com tanta “abundância”? Enfocando-se o problema a partir de uma
perspectiva teológico-bíblica, não será isto demasiado pouco, se se pensa em
Abraão, o pai dos crentes, [...] e não será, por outro lado, demasiado, se se leva em
conta o que se diz em Jo 7, 39195 e em vários outros lugares? Porque antes de
Cristo se pôde ter a graça de Cristo e não a visão beatífica como (efeito da) graça
de Cristo. Onde encontrar no tratado De gratia uma investigação sobre graça e
tempo (história)196?
1.2 – As historicidades da Revelação: graça de Deus e ação apostólica do homem
Dissemos que a revelação de Deus tem uma história. Vimos que esta história não parte de
baixo e não se conta a partir do homem como numa metafísica que defina a essência divina, mas
apenas por Deus em si que, por sua liberdade absoluta, num Evento de sua livre e soberana
onipotência, responde o que o homem não pode esclarecer197. A natureza desta decisão de Deus é
essencialmente histórica em dois sentidos.
Primeiro, no sentido da historicidade divina, que significa a decisão de Deus, livre e pessoal,
como um momento no diálogo com o ser humano. Assim, tal Revelação é sempre um evento livre,
não porque o homem em si é um ato da liberdade de Deus, mas porque a Palavra de Deus e seu agir
salvífico são livres198.
A Palavra e o agir de Deus são livres no sentido de que são dirigidos ao homem em
sua existência e, por isso, são essencialmente Evento e História e não algo, uma
idéia. [...] O que ocorre na história da salvação não é o resultado natural de uma lei
idealmente imutável, mas o livre, o incalculável, o sempre novo Evento do agir de
Deus. Nesse sentido a palavra e a ação de Deus tomam forma em um diálogo
histórico e temporal199;
Segundo, no sentido da historicidade humana onde se dá a real história da Revelação, o que
significa dizer que Deus não estabeleceu uma e mesma coisa de uma vez por todas e para sempre,
mas o que ele disse, e fez, foi dito, e feito, em locais definidos no tempo e no espaço de modo que
se o tema presente é a revelação de Deus que se dá no seio da história humana, assim também no
seio do cristianismo vivido faz quase dois milênios, parece importante analisar a existência do
195
Jo 7, 39: Ele designava assim o Espírito que deviam receber os que creriam nele: com efeito, ainda não havia
Espírito, porque Jesus ainda não fora glorificado.
196
TED 125.
197
TNT 86 ss.
198
TNT 87.
199
TNT 87.
84
homem, segundo a visão cristã de um mundo plural. A tese fundamental de Rahner é que a
redenção e a criação não se devem considerar como realidades justapostas ou coincidentes, mas
como realidades que se entrelaçam. Portanto, assim ele enuncia a sua tese:
A graça divina, que é fruto da redenção, realmente penetra o mundo para o curar e
santificar; incorpora o mundo, considerado sob o aspecto natural que permanece,
ao mistério de Cristo; e este processo de incorporação do mundo à vida de Deus
por obra da graça requer, por vontade de Deus, a cooperação ativa do homem e,
conseqüentemente, o que chamamos de ação apostólica do leigo200.
1.3 – A utopia intra-mundana e a escatologia cristã: unidade e diversidade
Para Rahner, o cristão é alguém a quem foi confiada a tarefa religiosa de aceitação serena da
existência humana em um mundo plural, no mundo da profissão, da arte, da ciência, da política etc.
O cristão sabe que o homem não pode integrar a sua existência em um sistema que ele controle e
domine se real e efetivamente respeita a sua frágil criaturidade.
Por outro lado, o pluralismo da realidade, que tem natureza “distinta” da de Deus, não é um
vazio por detrás do qual a realidade – Deus – estaria, de sorte que tudo pareceria vazio ou existiria
somente o único deus absoluto. Se o cristão confessa na fé que Deus é Deus de tal maneira que faz
existir o outro, que é “diverso” dele na sua pluralidade incalculável, então cristão é o que se entrega
tranqüilamente a este genuíno pluralismo da existência humana201.
Por expor-se a uma realidade plural, o homem constrói sua existência a partir de valores do
mundo que ele experimenta e cria: se este valor é a verdade ou a força divina, o amor, a arte, diz
Rahner que isto não importa: o cristão tem mais do que o direito e o dever de abandonar-se ao
pluralismo de sua existência, de experimentar a contradição do amor e da morte, do sucesso e da
desilusão. E, em meio a tudo, deixar-se interpelar por Deus, que quis este pluralismo a fim de que o
homem perceba que tudo está envolvido pelo mistério eterno.
Aqui é importante distinguir com Rahner entre “Igreja e a humanidade” possuidoras da
graça, posto que as duas não significam a mesma coisa. Senão vejamos os exemplos que ele nos dá.
A paciência duma mãe, a oração da criança pelos pais em seu aposento, a
compreensão social de um diretor de empresa em seu posto, a decisão dum
estadista em sua política em harmonia com o evangelho, etc., podem e devem
certamente ser atos sobrenaturais, praticados sob o influxo da graça divina,
inspirados pelas normas do evangelho [...] atos que contribuam para a salvação.
200
RAHNER. A realidade da redenção no mundo criado, in Missão e graça, 1º vol. Petrópolis: Vozes, 1964, 50. As
próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura RMC.
201
CFF 470.
85
Não são, porém, atos eclesiásticos. Vivem da vida da Igreja, mas não constituem a
vida mesma da Igreja. São atos cristãos, mas não eclesiásticos202.
Rahner vai adiante e afirma que se o homem é realidade corpórea, histórica, espírito
transcendentalmente pessoal, indivíduo e membro da humanidade a quem pertence o meio ambiente
e, se essas afirmações são também pressupostos escatológicos, então essas afirmações em sua
pluralidade devem ser consideradas no interior da escatologia.
Por isso Rahner afirma a existência de uma escatologia individual e de uma escatologia
coletiva, já que a escatologia individual não pode se apartar do homem como ser histórico, membro
do mundo e da coletividade.
A escatologia cristã não pode pensar que o mundo e sua história prossigam
indefinidamente e o homem enquanto individuum, como existência pessoal, se
desligue sozinho desta história ao atingir a sua consumação. A escatologia do
homem individual concreto só pode vir a ser completa se acompanhada de
escatologia coletiva. Daí, a escatologia cristã nos dizer que a história do mundo, do
espírito, da salvação e da perdição em seu conjunto é uma história em uma só
direção: a de sua definitividade, o que vale dizer que a história não continua de
maneira indefinida203.
Tratar da escatologia coletiva, para Rahner é tratar da relação entre a tarefa intra-mundana
do homem, de sua ideologia do futuro e seu contraste com a espera do Reino de Deus, em que o
cristão espera o futuro absoluto que é Deus, considerando a história intra-mundana como evento da
autocomunicação de Deus, num elenco que para o homem significa “tudo”, inclusive o que respeita
à sua salvação, pois é na história que Deus doa a si mesmo ao homem e é na história que se dá o
livre acolhimento da autodoação de Deus infinito enquanto mistério, pelo homem204.
É bonito perceber com o nosso teólogo que entre a utopia intra-mundana e a escatologia
cristã percebemos a mesma relação de “distinção e unidade” que o cristão experimenta entre a
“unidade e a diversidade” do amor a Deus e o amor ao próximo, pois em toda ação intra-mundana é
propriamente o amor ao próximo que se torna concreto. E nesse sentido, é no amor ao próximo que
o cristão não somente cumpre a sua missão, mas é também aí que recebe o milagre do amor, no qual
Deus se doa ao homem.
Assim, a utopia intra-mundana e a escatologia apresentam “unidade e distinção”, como no
axioma fundamental da cristologia, onde “homem e Deus” não são a mesma coisa, mas também
jamais estão separados.
202
RMC 54.
CFF 513.
204
CFF 515.
203
86
A história da salvação e da condenação é ao mesmo tempo a história desta unidade
a ser realizada e que corre perigo. A história desta unidade já entrou em sua fase
definitiva e escatológica pela encarnação do Verbo de Deus, que já se efetuou e
não se encontra apenas no decreto divino; pois Deus inseriu o mundo como um
todo, com sua unidade ontológica indestrutível, em sua própria vida divina, num
dos elementos do mundo do qual se apropriou pessoalmente: denominamo-lo
humanidade de Cristo. [...] Na encarnação e na cruz, Deus decidiu [...] apesar da
liberdade do homem, a favor de um mundo e duma natureza redimida, glorificada,
destinada a ser salva pela graça vitoriosa.
O drama já não está em suspenso; a história do mundo já se decidiu, no sentido de
sua salvação205.
Conclusão
A atividade histórica de Deus no mundo tem uma conexão interna, uma teleologia interior
que faz com que todo e qualquer ato só se torne compreensível e significativo como um elemento
pertencente a um todo nesta história da salvação. Dito de outro modo, somente quando uma pessoa
espiritual livre altera o seu comportamento – do que nos dão testemunho a aliança no Antigo e no
Novo Testamento –, é que, progressivamente, vai se lhe revelando Deus, num processo que atinge o
clímax de sua revelação em Cristo.
2 – O caráter tanto essencial quanto existencial no conteúdo da Revelação
Introdução
A par da confissão mencionada na Introdução206 em que Rahner, por sua influência
marechaliana, diz sua teologia como existencialista, a estrutura de sua teologia vai além. Senão
vejamos sua afirmação:
Toda dogmática católica deverá ser teologia “essencial” e “existencial”; o que
significa que terá de investigar e dar conta das estruturas essenciais e necessárias
de suas relações. E, igualmente, do que sucedeu e como sucedeu de fato (de
maneira livre e irredutível) na história da salvação. O segundo aspecto entende-se
por si mesmo. Mas também o primeiro, apesar de todo o existencialismo atual, é
verdadeiro. Pois teologia é pensamento. E não é possível de modo algum pensar
em fatos completamente dispersos e atomizados. O ato livre possui também sua
essência, suas estruturas, suas relações, suas homologias e analogias207.
Assim é que a necessidade teológica exige que a natureza da realidade faça aparecerem
juntas, nas dogmáticas tradicionais, tanto uma teologia essencial quanto uma teologia existencial,
205
RMC 68.
Introdução, 2.1.3.
207
TED 123-124.
206
87
embora ambas merecedoras de um “método claro”. Contudo, defende Rahner, “é erro” não perceber
reflexivamente essas relações fundamentais e isso ele diz que se pode observar em todas as
dogmáticas porque, “sem notar, umas vezes se faz pouca teologia essencial e outras muito pouca
teologia existencial”208.
A implicação entre essência (ontologia teológica) e existência (narração histórica) é para
Rahner inevitável. É nesta base que ele vai sustentar o Esboço para uma dogmática. É dessa base
que parte a origem de sua obra O Espírito no mundo. Daí o exemplo elucidativo em que Rahner
toma santo Tomás por modelo.
Para Tomás, sua teologia é sua vida espiritual e sua vida espiritual é sua teologia.
Nele, não se dá aquela horrível divisão que se pode observar na teologia posterior,
entre teologia e vida espiritual. Ele pensa a teologia, porque dela necessita em sua
vida espiritual como um de seus pressupostos mais essenciais; ele a pensa de tal
maneira que possa ser realmente significativa também do ponto de vista
existencial. [...] Para Tomás, teologia e vida espiritual são verdadeiramente uma
mesma coisa209.
Na sua lucidez o teólogo explica que junto da notícia de que aconteceu isto ou aquilo, devese dizer sempre o que é propriamente “aquilo” que “assim” aconteceu. Ele ressalva que há
estruturas que se mantêm através da surpreendente novidade dos acontecimentos e alerta que se
assim não fosse careceria de sentido “uma” história da salvação, segundo um plano de Deus, que a
abrange e que em Deus existe invariável desde toda a eternidade, embora somente aos poucos se
nos vá revelando.
Não é possível tratar sempre de novo do que resta comum na ordem “essencial”
em cada uma das partes em que se vá relatando a história da salvação. É necessário
que se veja e que se fale do comum enquanto tal. Temos que fazer também
teologia abstrata, essencial, muito embora só logremos saber algo quando o
aprendemos dos acontecimentos da história da salvação210.
2.1 – O conhecimento originário de Deus
Como estamos perseguindo o conteúdo da Revelação que é Deus, cuidar da essência e da
existência na teologia de Rahner é afirmar que é no encontro com o mundo que ocorre a mediação
do conhecimento transcendental, ou como dito por ele: é no encontro categorial com realidades
concretas de coisas e pessoas - e não na fuga do mundo.
208
TED 124.
In: VARGAS-MACHUCA, op. cit. 36-7.
210
TED 124.
209
88
Essa afirmação de Rahner vale para o conhecimento a posteriori de Deus que se origina do e
mediante o encontro com o mundo, do qual também nós somos parte211 e é por isso que se este
caráter a posteriori do conhecimento abandonar o elemento transcendental212, o homem pode
desviar-se dessa transcendentalidade, focando-se no categorial, ou seja, em seu mundo concreto, seu
trabalho, suas ocupações no espaço e no tempo, reagindo, principalmente, de três maneiras:
A primeira, ingênua, fará o homem dizer que não vale a pena esquentar a cabeça
com essas idéias de algo que possa ultrapassar os limites deste mundo. A segunda,
auto-suficiente, faz o homem deixar esta questão como uma questão, na qual, no
mero declarar que não se pode respondê-la, a pessoa já está admitindo que, em
última análise, não a pode descartar; e a terceira, desesperada, impele o homem a
um ativismo em que ele ocupa cada segundo de sua existência, como que a dizerse, já que o todo como todo carece de sentido, a pergunta correspondente do todo
pelo todo, também se torna sem sentido213.
O caráter a posteriori do conhecimento de Deus implica a percepção de que somos seres
referidos a Deus e que essa experiência originária está sempre presente e não se deve confundir com
a reflexão objetivante sobre ela, por mais necessária e significativa que nos seja. Por isso, não basta
olhar o mundo para nele descobrirmos Deus direta ou indiretamente, nem imaginar que poderemos
daí provar sua existência214.
Nesse ponto, torna-se plausível em Rahner o conhecimento originário de Deus na
transcendência porque o teólogo nos obriga de duas, uma: ou a esclarecer o que seja esse lugar para
onde a transcendência sai em movimento (Aonde), ou a buscar uma mistagogia existencial que
descreva e focalize a atenção de cada indivíduo em sua existência concreta, nas experiências de
transcendência que fez, momento este em que tenha sido arrancado de si para o interior do mistério
inefável215.
Em vista da claridade e da força de persuasão das experiências dessa natureza (na
angústia, na preocupação que o sujeito possa ter com o absoluto, na aceitação livre
da responsabilidade no amor, na alegria...), tal mistagogia ajuda a pessoa a
perceber que a experiência de transcendência ocorre repetidamente, e sem ser
denominada, em seu trato com o mundo concreto216.
211
CFF 69.
CFF 70.
213
CFF 47.
214
CFF 70.
215
CFF 77-8.
216
CFF 78. Cf. Moções (movimento de consolações e desolações em Inácio).
212
89
Rahner vai buscar tornar acessível a compreensão de Deus em sua essência e existência,
designando Deus como o Aonde da transcendência humana e precisamente aí como o mistério
permanentemente incompreensível217.
Esse Aonde não se pode interpretar como idéia do pensamento humano. Esse Aonde “é o
que se abre”, possibilita e deslancha o processo de transcendência, mas não o cria. Portanto, o
Aonde da experiência e do conhecimento, por serem transcendentes, são, também, originários e
abrangentes e se dão na experiência como o que é verdadeiramente real, por ser unidade originária
de essência e existência218. Conclui o teólogo que no ato da transcendência é que se afirma a
realidade do seu Aonde, porque é somente nele que se faz a experiência do que seja
verdadeiramente a realidade219.
2.2 – Os nomes do inominável: o Aonde e o Donde que porta a transcendência
Acompanhando o caminho pelo qual Deus quis “lidar” com o homem – a quem ele se revela
pela Palavra –, é justo com as palavras que Rahner “luta” para que reflexamente possam dizer de
Deus, em sua essência e existência. Na Primeira Parte, mencionamos a preocupação do teólogo com
o significado da palavra Deus220, preocupação que se origina de quem sabe que o nome diz o que é.
Portanto, Rahner relaciona o cuidado com a palavra deus e a ortodoxia221.
Se partirmos de sua primeira afirmação, de que a palavra “deus” existe, e o seguirmos em
sua luta por nomear o inominável, observamos que ele se utiliza de dezenas de expressões
diferentes, embora próximas, todas complementares ao significado umas das outras, numa luta do
que percebe as expressões múltiplas como quem mira pétalas soltas com um “rosto cego” que nunca
viu uma rosa.
Isto porque o conceito de Deus em seu fundamento originário e a realidade a que o conceito
se refere conjuntamente emergem para nós ou conjuntamente se ocultam de nós 222. Desse modo, a
lista de “pétalas” que Rahner utiliza em seu esplendoroso esforço de expressar o inominado –
217
CFF 524.
CFF 87.
219
CFF 88.
220
Ver Primeira Parte, Capítulo 2.2.2.
221
Rahner, também aqui, soma-se a Basílio que, cerca do ano 374, registrou sua preocupação com as palavras e a
doxologia, sendo que o santo torna-se inigualável em sua luta pela significância das “pré-posições” que antecedem os
termos teológicos, ou seja Pai, Filho, Espírito Santo, no seu Tratado. in TES 1.3, 91: “Há pouco, estava rezando com o
povo. Glorificava a Deus Pai com ambas as formas de doxologia: ora com o Filho, com o Espírito Santo; ora pelo Filho,
no Espírito Santo”, como este trabalho detalha em sua Terceira Parte, Capítulo 1.1.1.
222
CFF 73.
218
90
tomando-se apenas o seu CFF223 - encontra-se ao final deste trabalho, porque se de seu conjunto não
se nomeia a rosa, é de lá que emerge a “flor” possível.
Em sua incansável busca por significar o que quer dizer com a palavra “deus”, ele toma as
expressões Aonde e Donde que porta a transcendência para aclarar o que com elas chamamos de
“Deus”, ou fundamento original, ou abismo, mesmo cientes de que esses termos estão carregados de
imaginações que vão além do que significam e nada têm a ver com o que se quer dizer, posto que
cada um desses conceitos carrega a marca da história224.
Mas então esse inominável e indelimitável Aonde da transcendência, que só por si
mesmo se delimita, distinguindo-se de toda outra realidade e diferenciando de si
todo o resto, e que constitui a norma para tudo e que se situa para além de todas as
normas distintas dele, esse Aonde, dizemos, torna-se o que se situa absolutamente
fora de nosso alcance e disposição.
Ele está sempre presente como aquele que dispõe225.
Rahner descreve o conhecimento originário de Deus apontando para onde essa
transcendência se volta, o que ela encontra, ou melhor, a partir de que ela se abre. Mas a
denominação desse Aonde e Donde da transcendência só se pode entender pela evocação da
experiência transcendental como tal que, de tão óbvia pode, como ele insiste, passar desapercebida.
Na verdade, a ousadia não seria buscar nomear substantivamente, porque quer parecer que
precisamos de um verbo que diga desse movimento da transcendência. Expressar esse movimento é
apreender o súbito em palavras. É como o cego tateando pétalas sem conseguir dizer que o nome da
flor é rosa. É apreender o que se assemelha à iluminação que emerge no fulgor de um raio na
tempestade que desfalece tão subitamente quanto surgiu, como um vestígio. Na caminhada cristã,
parece que o homem mais guarda desses momentos iluminadores das suas tempestades o fragor da
atordoante trovoada do que a direção apontada na breve percepção da luz.
2.3 – O mistério evidente
Assim é a dificuldade da nomeação do Aonde e do Donde de nossa experiência originária de
transcendência que, para fugir da tradição filosófica ocidental, Rahner chama de “Mistério santo”,
porque se falássemos que o Aonde de nossa transcendência é “Deus” manteríamos o mal entendido
de falar de “Deus” tal como se ele já estivesse explicado. O teólogo usa, então, Mistério santo sob a
223
Contamos 70 expressões distintas nas primeiras 100 primeiras páginas do CFF. Ver Anexo.
CFF 79.
225
CFF 83.
224
91
alegação de que é expressão menos corrente e menos definida, no intuito de expressar o termo a que
se volta a transcendência e a origem de onde ela procede.
Deus é o totalmente outro com relação ao mundo. A realidade inteira é portada por
este Aonde e este Donde. O Aonde da transcendência é indelimitável porque o
horizonte mesmo não pode estar presente dentro do horizonte e, assim, ser
distinguido de outras coisas. A medida última escapa ela própria a toda medida. O
limite que a tudo dá a sua definição, não pode ele mesmo ser definido por limite
que esteja mais afastado. A amplidão infinita, que tudo abarca e pode abarcar, não
pode ela mesma ser abarcada. Ele se nos apresenta na forma do auto-subtrair-se, do
silêncio, da distância, do manter-se permanente em sua inexpressividade, de tal
sorte que todo esse falar sobre ele – para que possa ser escutado com sentido –
requer se ouça seu silêncio 226.
A afirmação de que devemos nos ter com Deus em sua própria realidade, de forma
absolutamente imediata, impõe que nos entreguemos incondicionalmente ao inominado, à luz
inacessível que nos pode parecer como que trevas. Em outras palavras, entregamo-nos ao Mistério
santo que surge e permanece tal quanto mais ele se aproxima.
E, se todos os caminhos nos levam aonde não há mais caminho algum, nos levam a fundar
todas as razões no abismo sem fundo, a entender todos os argumentos da incompreensibilidade, e
que nunca poderemos estabelecer algum ponto em torno do qual pudéssemos organizar um sistema
de coordenadas que tudo incorporasse,
se o homem é ser de transcendência remetido e orientado ao mistério santo e
absolutamente real, e se o Aonde e o Donde da transcendência, na qual e através da
qual o homem como tal existe e que constitui sua essência originária enquanto
sujeito e pessoa, é este mistério absoluto e santo, então surpreendentemente
podemos e devemos acrescentar: o mistério com sua incompreensibilidade é o que
existe de mais evidente.
Se a transcendência não é coisa qualquer que, como que de passagem, praticamos,
por assim dizer, como luxo metafísico de nossa existência intelectual, mas se essa
transcendência é a condição mais simples de todo entender e compreender
espiritual, então o mistério santo é propriamente a única realidade evidente por si
mesma, a única realidade que está fundada em si própria, mesmo do nosso ponto
de vista227.
Resta ao homem entregar-se ao mistério inefável e santo e aceitá-lo na liberdade, que como
tal se torna tanto mais radical para nós quanto mais ele se comunica e quanto mais nos permitimos
doar essa autocomunicação no que chamamos de fé, esperança e caridade.
Mas esta afirmação da absoluta autocomunicação de Deus, em que ele é doador e
dom e fundamento da acolhida do dom a uma só vez, também se diz que o que se
perde a si mesmo completamente encontra-se a si mesmo na presença do amor
226
227
CFF 83.
CFF 34.
92
infinito, diz-se que quem toma o caminho infinito chega e sempre já chegou a seu
termo, e que a pobreza absoluta e a morte, para os que se entregam a elas e a todo
o seu horror, nada mais são do que o começo da vida eterna228.
Conclusão
Acompanhar Rahner é acompanhar a sua luta que consiste em descrever conjuntamente a
experiência e o que nela é experienciado, antes de chamar de Deus o que é experienciado como o
infinito, o indefinível e o inefável. Daí o horizonte infinito (o Aonde da transcendência) não se
permite atribuir um nome, que o situaria na seqüência das realidades referidas a este Aonde e a
partir deste Donde.
Na verdade, devemos dizer que ele é algo distinto de tudo mais, por que, enquanto
fundamento absoluto de todos os entes singulares não pode ser a mera soma
posterior dessa multidão de seres particulares229.
3 – Deus se expressa em Jesus, portador da última e insuperável palavra
Introdução
Rahner é um teólogo curioso. A simplicidade com que afirma Deus como o mistério
evidente é a mesma com que afirma usar de precaução ao falar de nosso senhor Jesus Cristo como o
portador absoluto da salvação.
Com esta aparente cautela, Rahner parte do anúncio de Jesus Cristo como o último profeta.
Isto porque a auto-interpretação de Jesus, contida em sua mensagem e confirmada em sua
ressurreição, o situa na linha do “profeta”, ou seja, do portador de uma palavra de Deus voltada para
a existência histórica concreta. Mas ele avança e diz que
Este profeta, porém, considera sua palavra como a última e insuperável. [...] Isso
contrasta com qualquer outro verdadeiro profeta, que na sua palavra deve dar lugar
a que Deus seja maior em suas ilimitadas possibilidades, e considerar a sua palavra
essencialmente como promessa ainda aberta e não acabada. Jesus é, portanto,
profeta que, com a pretensão que ressoa em sua palavra, supera a própria essência
do profeta. A palavra de Jesus é a última palavra de Deus precisamente porque
além dessa palavra nada mais existe a dizer, porque em Jesus, Deus se disse
realmente a si mesmo em sentido estrito e rigoroso230.
228
CFF 156.
CFF 80.
230
CFF 331.
229
93
Por isso Jesus é aquele que a teologia tardia do Novo Testamento e a cristologia da Igreja
pretendem expressar: Ele é o Filho e a Palavra de Deus. Ele não é servo que se possa identificar
com Deus mesmo. Ele é Filho. Ele é a Palavra de Deus simplesmente que nos foi dita em tudo o que
ele foi, disse e que depois na ressurreição foi acolhido e confirmado definitivamente231.
Se, assim, podemos perceber que Deus é aquele que fala à sua criatura no extremo máximo
da comunicação admissível, vamos percorrer as próximas linhas nos admirando com a luta do
homem para, também ele, expressar-se na experiência de sua existência como o ser capaz de ouvir a
Palavra definitiva de Deus.
3.1 – A pobre tematização do saber originário do homem
O homem fala. Tem necessidade de exprimir a experiência de sua existência, o que sabe de
si, em palavras. Busca traduzir o que de mais profundo sente e vive, em conceitos. Isto resulta no
que Rahner chama de “original autopresença a si do sujeito” que, em sua existência, se espreme na
linguagem, na tentativa de comunicação com outro sujeito.
A busca do conceito acompanha o saber originário numa relação tensa que tende ao
crescimento do saber teórico sobre si. Aí o rico exemplo que Rahner oferece de que toda pessoa
busca dizer a outrem, sobretudo à pessoa amada, o que ela está sofrendo 232. Aí o homem se rende
em face da impossibilidade invencível de expressar-se completamente. Na dor que emerge da
saudade, por exemplo, esse saber originário, se vê diante da fuga de palavras que o definam. Assim
é que o conceito no seu fundamento e a realidade à qual o conceito se refere, movem-se para além
de nós e entram juntos no desconhecido. E à pessoa resta a angústia de não saber e nem poder
jamais expressar totalmente, “a dor” (da saudade) “que deveras sente”, como diria do fingidor, o
também poeta Fernando Pessoa233.
Rahner alerta que usualmente imaginamos o conhecimento como um espelho que reflete
qualquer objeto. No espelho, o objeto refletido é algo que vem de fora e se imprime na capacidade
receptiva do conhecimento. Assim é que eu conheço o que é uma mesa. Mas, na verdade, o
conhecimento tem estrutura mais complexa, pois que o sujeito que conhece possui no conhecimento
tanto de si mesmo (é sua a dor da saudade) como seu conhecimento (de saudade)234. É algo que se
passa por detrás do sujeito que conhece (a dor da saudade), e que parte de si para fora, avançando
231
CFF 331-332.
CFF 28.
233
FRNANDO PESSOA. Autopsicografia.
234
CFF 29.
232
94
em direção ao seu objeto (de saudade). Este ato reflexivo é um exercício permanente que não torna
supérfluo o originário estar-presente-a-si-mesmo do sujeito que sabe de si (da dor da sua saudade) e
do seu saber (sobre a saudade) 235.
Diante deste esforço pessoal, aqui empreendido como um exercício de quem busca
expressar com toda a limitação da linguagem humana o mecanismo transcendental em que se
baseiam os entendimentos da teologia de Rahner, reduzo-me ao silêncio ao me perceber diante do
Deus cristão, o Deus semper maior, aquele que não cabe em fórmula nenhuma projetada a partir do
mundo e para quem o mundo sempre se acha aberto, sem, contudo, poder abarcá-lo, dentro desta
abertura que manifesta em nós sua divindade porque “somos” e porque “chegamos a ser”236.
3.2 – O ouvinte de Deus: uma antropologia teológica
Rahner coloca uma corajosa questão: quem poderá ouvir a mensagem última e mais
autêntica do cristianismo? Admitindo o homem como o ouvinte da mensagem do cristianismo, a
resposta se baseia no sentido ontológico-existencial do ser humano, porque Rahner frisa a maneira
como se entrelaçam os pressupostos do ser humano e a mensagem cristã. Sua resposta implica em
que as duas realidades pressupõem-se reciprocamente, mesmo quando explicadas de maneiras
diferentes, reflexamente.
Assim, a mensagem cristã situa o homem perante a verdade real e profunda do seu ser,
verdade esta a que permanece preso237, ainda que tal prisão seja a infinita amplidão do
incompreensível mistério de Deus, o que por si só implica entrelaçamento entre filosofia e teologia.
Rahner parte da história do homem como um sujeito espiritual, que se auto-explica na
experiência transcendental como algo que ocorre em meio à vida histórica e não à margem dos
acontecimentos. Essa auto-explicação categorial do que o homem é acontece não só nos enunciados
antropológicos, mas em toda a história do homem, no agir e sofrer da vida individual, como temos
afirmado, com nosso autor.
A reflexão teórica de uma antropologia metafísica ou teológica238 é por ele reconhecida
como necessária e, ao mesmo tempo, porém, secundária, porque se vincula à história global da
humanidade. Ressalva que essa auto-explicação não deve ser concebida como uma evolução
235
CFF 30.
TED 129.
237
A palavra “preso” é usada aqui com sentido de ser um constitutivo do ser humano.
238
Essa antropologia metafísica ou teológica Rahner chama de auto-explicação e auto-interpretação do homem.
236
95
biológica e determinista, porque ela é história e, em conseqüência, é liberdade, é risco, é esperança,
é voltar-se para o futuro e possibilidade de malogro239.
E porque o homem somente faz a experiência transcendental na história, a autoexplicação dessa experiência na história é necessária, porque integra a própria
constituição transcendental, ainda que as duas não sejam nem a mesma coisa e
nem idênticas240.
3.3 – O ouvinte é Deus: a unidade da antropologia e da teologia na cristologia
Decorre de tudo que até então temos visto que uma antropologia que pense o homem como
existente transcendental, tem que tomá-lo, em toda e qualquer ação categorial de conhecimento e
liberdade, situado para além de si e do seu objeto categorial, na subjetividade, na relação com o
outro, em referência ao futuro, bem como no hiato em cada uma dessas dimensões em si e entre elas
em seu conjunto, que se volta e se projeta para o mistério inabarcável que, como tal, abre e porta o
ato e o objeto, mistério a que damos o nome de Deus241.
Rahner quer reafirmar, com isso, que a pergunta surgida historicamente sobre o que é o
homem constitui, com sua resposta – que é Deus -, uma unidade. E esta unidade é do que trata a
cristologia, porque trata da unidade da essência de Deus e do homem. Daí a cristologia constituir o
começo e o fim da antropologia, desta antropologia que é, por toda a eternidade, teologia.
A teologia, antes de tudo dito por Deus, ao dizer a sua Palavra como nossa carne
para dentro do vazio da realidade não-divina é a teologia que fazemos na fé, se não
pensarmos que podemos encontrar a Deus passando por alto a Cristo e, com isto,
ao homem. Podia-se dizer do criador, com o Antigo Testamento, que ele está no
céu e nós na terra. Mas do Deus, que proclamamos na fé em Jesus Cristo, é preciso
dizer que está exatamente onde nos achamos e somente aí pode ser achado242.
Daqui vislumbra-se um ponto de partida para uma cristologia ascendente243 que parte do
Jesus histórico não porque ouve de seus lábios uma teologia descendente do Logos-Filho, e a vê
confirmada na sua ressurreição, mas porque faz a experiência deste homem salvado juntamente com
sua pretensão dirigida a nós244.
239
CFF 189.
Cf. CFF 189.
241
CFF 251
242
CFF 269
243
Ver o tema tratado na Segunda Parte, Capítulo 3.3.2.
244
CFF 333.
240
96
Conclusão
A essa altura, numa primeira reflexão sobre a existência pessoal cristã, Rahner nos situa em
um nível em que há unidade de filosofia e teologia245, porque estamos refletindo sobre o todo
concreto da auto-realização humana. E isso Rahner reconhece que é “filosofia”. Se pensarmos sobre
a existência cristã e sobre a justificação intelectual de uma auto-realização cristã, isto já é
basicamente “teologia”, diz ele. Assim se justifica o porquê de fazermos filosofia no seio da própria
teologia246.
Essa unidade originária já está dada na vida concreta do cristão. Ele crê e por exigência de
sua própria fé é uma pessoa que reflete sobre o todo de sua existência. Rahner formula essa unidade
em seu CFF de modo distinto:
Primeiramente refletindo sobre o homem como a questão universal que ele é para si mesmo
e, em conseqüência, faz filosofia no sentido próprio do termo. Essa questão sobre o que o homem
“é” e não só “faz”, deve ser considerada como a condição da possibilidade de a resposta cristã vir a
ser escutada.
Em segundo lugar, sobre as condições transcendentais e históricas que tornam possível a
revelação, ele reflete de tal sorte que se veja o ponto de mediação entre pergunta e resposta, ou seja,
entre filosofia e teologia.
Em terceiro lugar, devemos pensar a afirmação fundamental do cristianismo como resposta
à questão do que o homem é e, em conseqüência, devemos fazer teologia. Estes três momentos
condicionam-se e se constituem em uma unidade diferenciada. Assim é que a questão cria a
condição de ouvir, e a resposta leva a pergunta à sua existência reflexa. Este círculo é essencial e no
CFF nosso autor não busca dissolvê-lo, mas refletir sobre ele247.
Se, por sua absoluta liberdade, ao invés de autocomunicar-se, Deus escolhe
permanecer envolto em silêncio, nós alcançaríamos o topo de nossa vida espiritual
e de nossa existência religiosa ao ouvir o silêncio de Deus248.
245
CFF 13: o Decreto Optatam totius, 14 do Vaticano II pede a unidade interna entre filosofia e teologia, sendo que
cabe a esta concentrar-se em torno ao mistério de Jesus Cristo.
246
CFF 21-2.
247
CFF 22.
248
RAHNER. Hearer of the Word. Laying the foundation for a Philosophy of Religion. No original, Hörer des Wortes.
Zur Grundlegung einer Religionsphilosophie, Munich: Verlag Kösel-Pustet. 1941. Traduzido da primera edição alemã
por Joseph Donceel, S.J. NY: The Continuum Publishing Co. 1994, 9.
97
Capítulo II – Concepção de Redenção
A concepção de Redenção não se aparta da concepção de Deus. Rahner frisa que a
experiência de Deus, que implica na experiência de transcendência, não se faz em primeiro lugar e
originariamente numa reflexão teórica, mas, ao contrário, na atuação originária do conhecimento e
da liberdade cotidiana e, portanto, esta experiência de Deus, por um lado é inevitável e, por outro,
pode ocorrer de maneira “muito anônima e preconceitual”.
Por isso se deve solicitar ao homem a descobrir em si, pela reflexão, e a objetivar
conceitualmente esta experiência de Deus que nele em todo caso existe [...], de
modo a que se perceba como se pode chegar à compreensão do que propriamente
se entende ao falar de Deus.
Resumidamente vimos como Rahner expressa a autocomunicação de Deus como um
acontecimento ao mesmo tempo existencial e histórico, o que a teologia corrente chama de graça
justificante, ao menos enquanto ofertada, ou autocomunicação existencial de Deus no Espírito
Santo. Também consideramos como Deus, que doa a si próprio em autocomunicação ao homem, o
faz mesmo sob a pressuposição de que o homem seja pecador, ou seja, doa-se em um amor
indulgente.
Por isso chamamos história da salvação e revelação à automediação histórica, a objetivação
histórica e historicamente progressiva da autocomunicação de Deus na graça, inserida como
fundamento permanente da história, ao menos como oferta.
O que, dito de outro modo, retoma o aforisma rahneriano. Em suas palavras:
Com essa afirmação da dupla autocomunicação de Deus ao mundo, a saber, as
duas missões histórico-salvíficas – a existencial no Espírito (Santo) e a histórica no
Logos (Filho) – e levando em conta que já falamos do mistério inabrangível de
Deus enquanto permanentemente tal (Pai), está dada de imediato a Trindade
econômico-salvífica e com isso, também, já, a imanente, porque se não existisse
essa, não haveria nenhuma real e verdadeira autocomunicação de Deus249.
Nos próximos parágrafos tentaremos apontar que a vida humana pode ser resumida numa
progressão, ou, como chamamos acima, na história da salvação. Para tal, é fundamental entender
Redenção e Criação como conceitos que formam uma só unidade. Isto porque é daí que
perceberemos a unidade do todo criado como uma hierarquia, em que, carreado pela Graça, o
homem liberta a sua própria liberdade numa progressão a caminho do Deus-homem, nosso Senhor
Jesus Cristo.
249
Cf. CFF 23.
98
1 – A unidade entre Redenção e Criação
Introdução
Com extrema brevidade vimos que a antropologia, a teologia e a cristologia afinal se
constituem em uma unidade diferenciada. O caminho que ora percorreremos tem na sua partida a
explicação para a origem desta “unidade”.
O uso de conceitos correlativos é recorrente em Rahner que, ao opor uns aos outros, na
verdade constitui pares de realidades. Nosso objetivo é tratar um desses pares: a redenção e a
criação, em busca de compreensão da unidade que se estabelece entre estas duas grandezas que,
embora não sendo uma e mesma coisa, refletem-se na existência cristã que surge desta unidade e se
empenha em realizá-la.
1.1 – Os pares de realidades: a unidade no mundo
Para relacionar redenção e criação é preciso tratar o mundo como a “realidade da criação”, o
que Rahner confessa que “na linguagem teológica é expressão nada fácil de compreender”250.
Por isso, listamos outros tantos pares de “realidades” em que não é possível tratá-los
igualmente em seus propósitos e conceitos, valendo o alerta de Rahner de que “é sumamente
perigoso tomar essas oposições como equivalentes”251. Senão vejamos:
Pares de realidades
Graça
Natureza
Redenção
Criação
Entre graça e natureza, Rahner diz que a linha de separação difere totalmente da que separa
a redenção da criação.
A graça é uma grandeza realmente distinta da natureza, gratuitamente concedida à
natureza por Deus. [...] Graça e natureza guardam entre si a relação de grandezas
adequadamente distintas. [...] Graça é essencialmente uma determinação, elevação
e divinização da natureza. [...] Só existe graça real no homem agraciado, na
natureza agraciada, sob a forma de divinização desta mesma natureza.
A graça não se assemelha, pois, a um andar superior, edificado cuidadosamente
sobre o andar térreo da natureza pelo arquiteto divino, e isso, de tal maneira que
250
251
RMC 49.
RMC 51.
99
esta última se conserva o mais intacta e no seu estado natural, servindo apenas
como uma espécie de suporte ao andar superior e podendo alguém demorar-se num
e noutro, sem que isso os afete mutuamente252.
Entre redenção e graça, falamos explicitamente de tudo que pertence à existência concreta e
à atuação real da graça como realização eficaz da redenção. Nisso a “ordem da redenção” inclui a
ordem da criação como elemento essencial que lhe é intrínseco.
Elementos intrínsecos
Redenção
Graça
Criação
Com isso, não se identificam simplesmente ambas as ordens, mas tampouco se
distinguem adequadamente entre si, antes se relacionam entre si como o todo com
a parte, como o que se supõe e o que faz a suposição se relacionam com a
suposição mesma253.
Assim, devemos ser prudentes e não tomar os dois pares de conceitos “graça e natureza” e
“ordem da redenção e ordem da criação”, inteiramente no mesmo sentido. A luta aqui é pela
precisão terminológica para se evitar dificuldades com o uso de terminologia inadequada.
Precisão terminológica
Graça
Natureza
Redenção
Criação
1.2 – A unidade da realidade é plural e hierárquica
Nesse passo, estamos diante do fato de haver realidades que são efetivamente uma coisa só,
mas que nessa “unidade perfeitamente intacta, encerram-se elementos verdadeiramente distintos
entre si”254. Há nessa afirmação um problema de ordem lógica e ontológica porque os diversos
elementos distinguem-se no seio da realidade e, não obstante, constituem uma unidade real e
verdadeira. Diz Rahner que deve haver um princípio unificador da pluralidade, que permita
compreender cada um dos diversos elementos em sua diversidade, bem como as correlações mútuas
entre os mesmos.
Unidade plural
Corpo
Alma
Espírito
Várias
potências
252
RMC 52.
RMC 53.
254
RMC 56.
253
100
A unidade resultante do homem composto de corpo e alma, a unidade do espírito
com suas várias potências, são exemplos diversos em que encontramos de maneira
diferente e análoga este mistério ontológico da unidade plural255.
Com isso, Rahner vai tirar conseqüências de suas afirmações para a doutrina católica que
compreende a alma como o princípio que confere atualidade e forma ao corpo, e que, por si, plasma
essa corporeidade distinta da alma, unindo-a a si, apesar de lhe conservar o caráter distinto. Diz que
a corporeidade não é condição fortuita, mas essencial que a alma cria para si como entidade distinta,
mantendo-a unida a si desde o momento da origem.
Unidade substancial
Matéria
Espírito
Espírito na Matéria
No homem estão unidos matéria e espírito numa unidade verdadeiramente
substancial e, em face do dogma da ressurreição da carne, definitiva, é dogma de
fé, puro e simples. Deste dogma se depreende que o homem não pode desenvolver
sua vida espiritual, e mesmo sua vida sobrenatural, a não ser pela incorporação
deste desenvolvimento na realidade material, pelo recurso ao mundo, pela inserção
do espírito na matéria. O mundo, portanto, é de fato uma unidade, um todo
unido256.
Daí Rahner avança e apresenta o próprio conjunto da criação como um todo. Um todo que
não existiria se Deus não quisesse cada parte e, portanto, cada uma das partes somente encontra
razão para sua existência em outra. Diz que como Deus quis este todo segundo certa ordem, “o
inferior existe para o superior, e tudo na criação existe para a realidade suprema deste mundo.
Assim ele assevera que Deus quer a totalidade da criação por amor ao que há de mais elevado na
criação e, com isso, se pressupõe a adoção de uma visão evolutiva de mundo o que, sob esse ponto
de vista, equivale a dizer que a unidade do mundo é uma unidade hierárquica257.
Portanto, é da unidade – e não da identidade - existente entre espírito e matéria que
podemos passar a entender o homem como o existente no qual a tendência
fundamental da matéria a se encontrar a si mesma no espírito chega à sua irrupção
definitiva mediante a autotranscendência, de forma que, a priori a natureza do
homem se veja inserida no interior de uma concepção complexiva e integral do
mundo258.
A natureza do homem, por meio de sua sublime, livre e plena autotranscendência para Deus
- e por Deus gratuitamente possibilitada em seu exercício pela autocomunicação -, “‟está na
255
RMC 57.
RMC 59-60.
257
Cf. RMC 60-61.
258
CFF 218.
256
101
expectativa‟ da sua consumação e da consumação do mundo àquele nível que, em termos cristãos,
chamamos graça e glória”259.
Graça e Glória
Unidade hierárquica
Visão evolutiva de mundo
Totalidade da Criação
Autotranscendência
Unidade entre Espírito e Matéria
1.3 – O homem e o êxito do Deus-homem
Rahner – tendo diante de si o desafio de Jesus Cristo – interroga-se sobre o nexo desta
imagem evolutiva - que se dá entre espírito e matéria -, ou seja, sobre a unidade do mundo, da
história da natureza e da história do homem para que, adiante, alcance o enunciado de que o Logos
“se fez carne”.
Nesse processo de se interrogar, Rahner descarta de pronto o entendimento do dogma
fundamental do cristianismo como mitológico, por reconhecer o argumento como insustentável ao
homem de hoje. Seu esforço é buscar o que “qualquer teólogo poderia dizer ao se confrontar com a
necessidade de atualizar sua teologia sob o impacto das questões colocadas pela visão evolutiva do
mundo”260.
Já tratamos, na Primeira Parte deste trabalho, do significado de criação “do nada” e de que o
cristão professa na fé que tudo o que existe, o céu e a terra, toda realidade material e espiritual
constitui criação de um só e único Deus. Agora, repito, o desafio do teólogo diante do Evento Jesus
Cristo obriga perceber que a obra criadora de Deus se efetua neste mundo “por milagre do amor
divino”, na comunicação sobrenatural de Deus mesmo à criatura, de tal maneira que Deus, saindo
pessoalmente de si, assume como própria uma realidade criada, aniquilando-se, ao se tornar
criatura.
O início duradouro e a absoluta garantia de que essa última autotranscendência –
que em linha de princípio é insuperável – terá êxito e já começou é aquela
realidade que chamamos de “união hipostática”261.
Em suas palavras, Rahner sublinha que o “Deus-homem é o início primeiro do êxito
definitivo do movimento de autotranscendência do mundo para o interior da proximidade absoluta
do mistério de Deus”. Essa união hipostática não deve considerar Jesus Cristo distinto de nós, os
259
Cf. CFF 218.
CFF 217-8.
261
CFF 219.
260
102
outros homens, mas, antes, como o Evento que deve ocorrer uma vez e somente uma vez ao
começar o mundo a entrar em sua fase última (o que Rahner adverte que não significa dizer a mais
breve), na qual deve realizar sua concentração definitiva, atingindo seu ponto alto definitivo e sua
radical proximidade ao mistério absoluto chamado Deus262.
Assim é que Rahner argumenta que se entendermos por criação tudo que existe fora da
vida íntima de Deus, temos também que entender a expressão “Deus dá de si mesmo pela
encarnação de seu próprio Verbo, numa realidade distinta de Deus”, como o ato supremo da criação
divina. E, portanto, tirando conseqüências deste arrazoado, podemos e devemos afirmar que “tudo o
mais existe por causa dele, neste mundo que é uno e ordenado hierarquicamente”263.
Na mesma linha de raciocínio, diz Rahner fulminantemente que é “supérfluo saber se Deus
se teria tornado homem, ainda que não tivesse havido pecado. É nesse sentido que brilha a seguinte
afirmação:
O mundo concreto que Deus quis, e que ele quis como um só, sem que tenhamos
de imaginar de maneira antropomórfica uma série de decretos divinos que, da parte
de Deus, guardam entre si uma relação de dependência, este mundo é um mundo
tal em que Deus permitiu o pecado e, por isso, um mundo em que a encarnação do
Verbo de Deus se efetuou necessariamente por causa do pecado e por causa de
nossa salvação. Mas é também um mundo, em que esta encarnação é o ato
supremo de Deus, ao qual se relacionam essencialmente todas as outras realidades
e, por causa do qual tudo o mais, conseqüentemente também a natureza, o profano
e o puramente material, foi criado por Deus264.
Nesse ponto, o teólogo alemão vai tomar por ilustração o amor, para expressá-lo tal qual
Jesus Cristo, como “ato supremo de Deus”. Diz ele que o homem concreto experimenta o seu amor
a outro ser humano como dotado de um valor, de um sentido eterno e de uma profundidade
indizível, que não existiriam se esse amor não fosse destinado a ser uma forma de amor a Deus,
amor que é obra do próprio Deus que atua no homem.
Assim, Rahner elucida e relaciona as grandes questões da existência humana, ao tratá-las
unificada e paralelamente: vida e morte, pecado e redenção, e amor, atribuindo a morte que o
homem concretamente sofre “unicamente ao fato de que Adão morreu como pecador e Cristo
morreu na cruz”265.
262
CFF 219.
RMC 61.
264
RMC 61-62.
265
RMC 64.
263
103
Temos tanta consideração para com o homem e devemos e podemos tê-la,
unicamente porque Deus, na encarnação do Verbo divino, teve consideração tão
absoluta para com o homem, de sorte que só podemos considerar a Deus tal qual é,
se o respeitamos como homem e o homem nele.
Todas as realidades humanas têm um cunho cristão, objetivo, anônimo, talvez
apenas potencial, mas real. A todas as realidades terrenas se pode aplicar a palavra
de são Paulo aos atenienses: “O que vós adorais sem o conhecer, isso vos anuncio
a vós, a saber, o Deus, no qual tudo tem o ser e a vida e que, precisamente como o
Deus da criação, é o Deus da redenção, e vice-versa”266.
Conclusão
Assim é que ao contemplarmos a palavra criação “contemplamos” a humanidade e sua
história com o mundo material e espiritual, como criação concebida originariamente por Deus em
uma unidade, de tal modo que cada parcela é de importância para o todo, e vice-versa. Esta
interdependência mútua, que fundamenta a unidade da criação, admite variações, visto que dentro
da “unidade” da criação há realidades diversas, essencialmente distintas e cujas funções não podem,
em decorrência, ser as mesmas. Nestes termos, Rahner diz que se impõe um princípio.
O cristianismo não conhece muitas criações, senão uma só. As coisas criadas por
Deus estão relacionadas entre si, não só por terem a mesma origem, mas também
por estarem em comunicação mútua todas elas267.
Desse arrazoado que aponta a unidade entre redenção e criação o mais importante é inferir
que a realidade criada integra a realidade da redenção, no dom que Deus faz de si mesmo na
encarnação de seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo divino.
Por isso, a redenção inunda de graça precisamente esta realidade criada, abre-a
para si mesma em todas as suas dimensões e possibilidades e confere a tudo um
sentido último sobrenatural.
Mas a graça também confirma a criação em seu caráter genuinamente natural e
permanente e procura saná-la, onde foi lesada268.
2 – O locus cristão, numa visão evolutiva do mundo
Introdução
Neste passo, voltamos mais uma vez à Trindade divina - que se manifesta “revelando” a
“redenção” -, porque parece ser momento de este trabalho incorporar a teologia da graça à doutrina
266
RMC 64-65.
RMC 59.
268
RMC 62.
267
104
da Trindade, já que para Rahner o vazio da doutrina atual trinitária somente pode ser superado
unindo estreitamente ambas doutrinas: a da graça e da Trindade269.
2.1 – A graça e a glória: meta da autocomunicação de Deus
Segundo o que nos ensina o cristianismo - com simplicidade ao afirmar que “vim de Deus e
volto a Deus”-, e não poderia deixar de ser reafirmado por nosso autor, também o cosmos direcionase para a sua própria totalidade e o seu fundamento, de modo tal que essa autotranscendência só
chega real e inteiramente à sua plenitude quando o cosmos na criatura espiritual, que é a sua meta e
o seu vértice, não é somente o que foi tirado de seu próprio fundamento, ou seja, que foi criado, mas
o que recebe a autocomunicação imediata do seu fundamento mesmo.
Esta autocomunicação de Deus à criatura espiritual acontece no que denominamos
“graça”- no período histórico dessa autocomunicação e “glória”- em sua
consumação final. [...] Neste sentido, o fim é o início absoluto. Este início não é o
vazio infinito, o nada, mas a plenitude, a única a explicar que Deus não apenas cria
a realidade diversa dele, mas se doa a si mesmo a essa realidade diversa270.
Aqui Rahner toca no coração de todo este trabalho, ao afirmar que
Nesta história unidirecional, que sucede em liberdade e ação, existe mais realidade
no fim do que o início criatural contém enquanto tal em si mesmo, início que
todavia há de se distinguir daquele início absoluto que é o próprio Deus absoluto
na sua glória271.
Dentro desta visão evolutiva do mundo, Rahner pressupõe que a meta do mundo é a
autocomunicação de Deus a ele e que a dinâmica que Deus inseriu no devir do mundo em processo
de autotranscendência está sempre orientada para tal autocomunicação por parte de Deus e sua
aceitação por parte do mundo. Para compreender essa autocomunicação de Deus à criatura
espiritual é preciso recordar que tais sujeitos espirituais do cosmos significam antes de tudo
liberdade272.
Aqui o teólogo brilha ao afirmar que a história da autoconsciência e do autodevir do cosmos
é sempre e necessariamente história da intercomunicação dos sujeitos espirituais, porque o vir-a-simesmo do cosmos nos sujeitos espirituais deve significar sobretudo e necessariamente também um
encontro recíproco entre os sujeitos nos quais o todo, cada vez de maneira própria, está junto-de-si,
pois do contrário o chegar-se-a-si-mesmo dividiria e não uniria.
269
Cf. TED nota 28, 140-141.
Cf. CFF 230.
271
CFF 230.
272
CFF 232.
270
105
A autocomunicação da parte de Deus é, portanto, comunicação à liberdade e
intercomunicação dos muitos sujeitos cósmicos. A autocomunicação divina não é
endereçada, de maneira bruscamente acósmica, somente a uma subjetividade
isolada e individual. Ela é historicamente humana e se volta para a
intercomunicação entre os homens, porque somente nela e através dela pode vir a
ser acolhida de maneira histórica273.
2.2 – A graça pressupõe a natureza: uma ontologia teológica
Rahner se utiliza de categorias filosóficas para afirmar o que se vem descrevendo acima, ao
reconhecer como difícil a uma ontologia e uma lógica formais aclarar o que seja a unidade de uma
realidade plural. Ele parte da constatação de que é certo que o espírito criado se acha diante do fato
de haver realidades que efetivamente são uma só coisa, mas que, essa unidade, que ele qualifica por
“uma unidade perfeitamente intacta”, encerra elementos verdadeiramente distintos entre si. E assim,
Rahner elenca as dificuldades:
Os diversos elementos são realmente distintos no seio da realidade em questão;
não se deduzem um do outro; a existência de um não é dada por si mesma e
evidentemente com a existência do outro, pois neste caso um seria necessariamente
idêntico com o outro. E, não obstante, estes vários elementos devem constituir uma
unidade real. Por conseguinte, nesta realidade una e única existe forçosamente um
princípio último que constitui a unidade, um princípio que, por forma igual,
mantém a distinção do múltiplo dentro da unidade e transforma o múltiplo em
unidade real e verdadeira274.
Nesse passo, nosso autor que se vale, para esclarecer seu pensamento, de uma formulação
“assaz abstrata”, qual seja a unidade plural, em que uma coisa, para poder ser ela mesma, produz
uma realidade distinta de si, que lhe serve de pressuposto; opõe-se a ela, sem deixar de formar uma
só unidade juntamente com essa realidade distinta.
Então, se a formulação acima é, de fato, assaz abstrata, ele mesmo a esmiúça de tal forma a
que não fiquemos sem a concretude de seu pensamento. Assim é que ele dá, por exemplo, o
elemento corporal concreto que é, por óbvio, distinto do elemento espiritual do homem. Aí diz
Rahner que quem compreende “acertadamente” a doutrina católica que considera a alma como o
princípio que confere atualidade e forma ao corpo, sabe o que se trata ao afirmarmos que
A alma por si mesma, plasma essa corporeidade, distinta da alma, unido-a a si,
apesar de lhe conservar o caráter distinto; destarte, a alma se realiza a si mesma,
atinge sua plena realidade de espírito; a corporeidade não é condição fortuita, mas
273
274
CFF 232
RMC 56-57.
106
essencial, que a alma cria para si como entidade distinta, mantendo-a unida a si
desde o momento da origem275.
Assim Rahner estende seu pensamento ao mundo, reconhecendo-o como de fato se
constituindo em uma unidade, “um todo unido”276, em que a interdependência real de cada coisa
com o todo nasce da vontade originária do Criador e se objetiva nas relações recíprocas entre os
seres particulares, baseadas na natureza de cada uma. Ademais, diz o teólogo que para além dessas
relações, neste mundo, também, descobrimos uma ordem, uma escala objetiva de valores
ontológicos, de dignidade, de poder de ação, nos seres particulares deste mundo que forma uma
unidade. Esta unidade procede igualmente da vontade de Deus, pois do contrário não existiria.
Com esse caminho, Rahner quer alcançar a realidade criada, mesmo considerada na ordem
natural, como parte da realidade da redenção, do dom que Deus faz de si mesmo na encarnação do
Verbo divino, pela graça. De início, isto significa que toda a criação natural dos anjos e dos homens
representa uma “potentia oboedientialis” para a graça, ou seja, trata-se de um sujeito apto a receber
a graça sobrenatural, se Deus a quiser comunicar. Indo além, Rahner diz que cada realidade natural
da criação está, de tal modo, ordenada para a graça que não pode conservar sua integridade própria
nem atingir plenamente seu destino natural, a não ser integrada na ordem sobrenatural da graça277.
A autonomia dos domínios próprios da natureza e da cultura não se estende
absolutamente sendo, por isso, uma autonomia relativa, uma vez que não podem
alcançar adequadamente o seu sentido próprio e imanente, sem a graça de Deus em
Jesus Cristo.
Desta afirmação que é a afirmação genuína da doutrina católica, diz Rahner que quem deixa
de realizar sua salvação sobrenatural, deixa de realizar a da natureza. Com isso o teólogo não
significa que o natural perca suas próprias leis imanentes ou que ao cristão seja lícito sobrepor-se a
essas leis naturais a favor de um fim diretamente sobrenatural e religioso. Não é disso que se cogita,
mas de que a ordem da redenção pressupõe como seu condicionamento próprio, precisamente, o
natural em sua estrutura também natural e lhe confirma a validez natural. Daí a afirmação de que o
natural é a condição da possibilidade do sobrenatural, condição que o sobrenatural cria como
distinta de si mesmo278.
275
RMC 57-58.
RMC 60.
277
RMC 62.
278
RMC 63.
276
107
2.3 – A graça e a natureza: uma unidade histórica inacabada, periclitante e oculta
Como na expressão de nosso autor, acima tratamos da unidade diferenciada de redenção e
criação, do ponto de vista de uma ontologia teológica que é “quase estática”, restando observar esta
unidade como determinação de um mundo histórico, com suas características próprias.
Diz Rahner, em primeiro lugar, que esta unidade é real e sempre válida por ser objeto da
vontade criadora incondicional e todo-poderosa de Deus e que não pode existir mundo algum ao
qual falte inteiramente tal unidade, pois esta se funda ultimamente na decisão absoluta de Deus de
se aniquilar, tornando-se criatura em seu próprio Verbo. E tal decisão não pode ser revogada pela
liberdade criada, embora esta unidade se destine a ser determinação de uma realidade criada,
querida por Deus que se desenrolasse num processo histórico279.
Destarte, a unidade do mundo, constituída pela natureza e pela graça, embora seja
perpétua e irrevogável, tem, contudo, sua história. É uma unidade a ser realizada;
cabe também ao homem a tarefa de participar em sua realização280.
Esclarece o teólogo, então, que a unidade tem a sua história, que está incompleta em duas
dimensões: em nós e no mundo em que vivemos. Incompleta em nós, porque estamos ainda a
caminho da integração plena de todo o nosso ser à graça e ao amor de Deus e porque aguardamos a
glória de filhos de Deus; e incompleta no mundo, porque ele tampouco está integrado, em seus
domínios naturais à graça de Deus em Jesus Cristo, de maneira definitiva, visto que ainda ostenta a
perturbação introduzida pelo pecado e não representa a corporificação transfigurada da graça.
Esta falta de acabamento, embora só se possa remediar pela vinda de Deus no
retorno de Cristo, vinda essa que o mundo é incapaz de obter à força, constitui
contudo uma tarefa para nós. Se o homem só é capaz de assumir suas derradeiras
atitudes espirituais numa ação física no mundo, porque é um ser essencialmente
ligado ao mundo281, sua fé encarnacionista no acontecimento passado, mas ainda
oculto, da salvação definitiva do mundo pela encarnação e ressurreição de Cristo,
somente se pode realizar verdadeiramente numa ação do homem sobre o mundo, e
não numa mentalidade puramente idealista do homem todo ou do homem
interior282.
279
Cf. RMC 66.
RMC 66.
281
Rahner refere-se à expressão ser-no-mundo, de Heidegger que, considerando as categorias Aristotélicas de
substância, qualidade, quantidade etc., entende que elas se aplicam a todos os entes, mas que Dasein existe de um modo
diferente dos outros entes, razão pela qual Heidegger distingue suas características essenciais chamando-as de
Existenzialien, “existenciárias, existenciais”, em vez de “categorias”. Ser-no-mundo é um existencial de Dasein,
bastante diferente de ser-dentro-do-mundo, como são as pedras e os utensílios (ST 44). Cf. M. Inwood. Dicionário
Heidegger, RJ: Jorge Zahar Ed., 2002, 59.
282
RMC 70.
280
108
Esta unidade do mundo da redenção e da criação, que é incompleta e nos é confiada como
tarefa a ser cumprida por um ato de fé, em forma de ascese ou de aquiescência ao mundo, corre
constante perigo pelo fato de ser inacabada283.
Como, por um lado, cabe ao homem a missão de estabelecer a ordem da criação e a da
redenção, o homem corre o risco permanente de se equivocar acerca desta missão, entregando-se a
um pessimismo que foge o mundo ou a um otimismo que se apega ao mundo e, por isso, o
cumprimento desta missão se acha permanentemente ameaçado.
Verdade é que este perigo já foi conjurado e superado pelo triunfo escatológico da
graça de Deus, que representa uma aceitação irrevogável e perpétua do mundo;
contudo, dentro do lapso de tempo que se estende desde o início desta vitória, na
encarnação e na ressurreição de Cristo, até à manifestação deste triunfo na parusia,
vivem os homem, os povos e a Igreja, numa história que aguarda sua livre decisão;
em conseqüência disso, dentro desta história ainda são possíveis vitórias e derrotas,
na missão de estabelecer a unidade de que falamos284.
Por fim, trata-se de uma unidade oculta.
A uma, porque a própria ordem da salvação como um todo é objeto da fé, que crê que essa
realidade não se apreende pela simples experiência, por ser oculta, embora a ordem da redenção se
anuncie por prodígios e sinais da força do Espírito.
A duas, esta unidade é oculta porque a graça pode ser erroneamente tomada por uma força e
potencialidade própria do mundo, como se vê das utopias intra-mundanas geradas pelas ideologias
que se sucedem com o desenrolar da história do homem.
A três, a unidade é oculta visto que deve cada vez de novo passar pelo escândalo da cruz,
isto é, constantemente é desmentida pelo fato de que o mundo não se cura, pelo fato de que todos os
esforços heróicos para melhorar o mundo sempre se reduzem, como parece, ao absurdo e
incessantemente geram, eles mesmos, os elementos que destroem o seu êxito. Como conseqüência,
o mundo parece apresentar-se como a aventura absurda e irrealizável, que tem um único fim que se
possa demonstrar de maneira realística: a morte. Em outras palavras:
A própria ordem da redenção acha-se envolta na obscuridade da fé; seu poder
sobre o mundo se pode interpretar erroneamente como sendo uma força imanente
ao próprio mundo e, nada de definitivo consegue realizar no mundo, mas sucumbe
à lei prepotente do mundo, à lei da ruína e da morte. A unidade entre ordem da
criação e da redenção está envolta em trevas e esta condição constitui novo perigo
para sua própria consumação.
283
284
RMC 71.
RMC 72.
109
Conclusão
A unidade entre natureza e graça exige - com Cristo, por Cristo e em Cristo -, que não se
possa mais descaracterizá-la. Por isso é exigido do cristão diante do mundo uma “sobriedade
realista em face do próprio mundo, tal como fundamentalmente somente o cristão pode ter, quer por
ter conhecimento explícito de seu cristianismo, quer seja apenas um cristão anônimo, ou seja, um
homem justificado pela graça de Deus”285.
Por conta do mesmo fundamento de seriedade quer com a natureza, quer com a graça, o
locus cristão não permite que o mundo seja divinizado. O cristão sabe que não é numinoso, mas
uma criatura de Deus, “sustentada por ele acima do nada”. O cristão sabe, também, que a
consumação definitiva do mundo lhe é dada unicamente pela ação divina, ou seja, vem do alto e não
é produto de uma evolução que tenha sua fonte no mundo e na história.
O cristão sabe que esta consumação, que confere o sentido último a tudo o mais, não pode
ser forjada pelo homem, mas se atinge naquele ponto, em que o homem chega à profundeza última
de sua impotência. Assim é o homem que, inspirado pela fé, conhece e ama a expectativa na
esperança, cujo cumprimento se espera unicamente de Deus286.
3 - Graça e liberdade: a tensão de uma doutrina
Introdução
A palavra “graça” (χάπιϛ), no Novo Testamento, encontra-se quase que exclusivamente em
Lucas e na literatura paulina (ou próxima a Paulo), o que demonstra que “graça” como conceito
fundamental para definir a salvação trazida por Jesus Cristo somente surgiu em determinados
círculos do cristianismo primitivo287.
Rahner, considerando que em comparação com o entorno greco-judaico o termo graça é até
bastante freqüente, o toma por uma expressão de uma escola de direção missionária. Nessa linha,
285
RMC 74.
RMC 75.
287
Na tradição sinótica χάπιϛ aparece, embora não ofereça ponto de apoio terminológico para o desenvolvimento de
uma doutrina da graça, enquanto que em Lc 6, 32 ss aparece a linguagem pré-lucana da fonte Q, em que χάπιϛ é a
recompensa celestial, ou seja, uma salvação futura. Também em João (1, 17), de maneira semelhante a Paulo, a χάπιϛ é
contraposta à lei e em 1, 16 descobrimos o tema da plenitude da graça, que nos v. 14 e 17 é interpretada pelo bem
salvífico da verdade, o que é mais típico de João. Cf. K. BERGER. Gracia. SAC 313-314.
286
110
ele sustenta que a palavra χάπιϛ foi desenvolvida por Paulo, mormente a partir da fórmula epistolar
“graça e paz”, que tem sua origem em uma saudação judaica288.
É curioso notar que o conceito neotestamentário de χάπιϛ289 designa global e
indiferenciadamente a salvação que Deus outorgou em Cristo, por pura bondade e não se refere,
como teologicamente, à história da salvação, mas à idéia de que Deus sana, ou seja, cura a relação
com o homem por um amor livremente outorgado.
A vinculação da palavra χάπιϛ à salvação, na pessoa de Jesus Cristo, só encontramos em
Atos 15, 11290, também aí de modo geral, porque para Lucas, a graça do Senhor reside “Nele”. Em
Paulo, na carta aos Romanos, temos o primeiro momento de uma ampla reflexão sobre a palavra
χάπιϛ, em que o autor ressalta o aspecto da gratuidade.
Rahner observa que, na segunda carta aos Coríntios (1, 12)291, não se trata de mero jogo de
palavras, mas de que a χάπιϛ é a conduta dirigida “ao outro” em uma relação de amorosa
misericórdia. Esta relação é constituída pela misericórdia de Deus na ação salvífica em Jesus Cristo.
Aí está a razão e o modelo da misericórdia mútua entre os homens que ao invés da
razão usam a gratuidade. Por conseguinte, o uso de χάπιϛ mostra que a gratuidade
é exatamente a ação que corresponde à graça nesta relação.
Passando à doutrina da graça, percebemos que nela se manifesta o mais íntimo da fé cristã
como um problema teológico, pois nela está implicada a concepção humana de Deus, de mundo e
do próprio homem, como, aliás, temos visto, vagarosamente por todo este trabalho.
Como nosso teólogo adverte, a doutrina da graça exige a doutrina trinitária, já que ambas
compreendem a vida humana como missão histórica no mundo, com suas tensões polarizantes, ou
seja: é a vida como vocação que abarca a responsabilidade humana pela ordem do mundo suportado
pela onipresente bondade e santidade de Deus.
A doutrina sobre a obra salvífica de Jesus, Deus e homem e do Espírito divino na
Igreja, assegura a ação do Deus trino, no que a realiza Jesus Cristo, Deus e homem
e o Espírito divino no perdão da culpa, na cura do enfermo abatido pelo pecado e
288
Misericórdia e paz para convosco, Cf. K. BERGER. ibid 309.
Observe-se que em grego profano o conceito de χάπιϛ indica tanto a condescendência de um quanto a gratidão do
outro, e igualmente a graça, a formosura, e também a mútua abertura livre e espontânea, outorgada com alegria e, por
isso, na relação com Deus, indica simultaneamente a salvação dada por Deus e a gratidão do homem. A gratuidade da
χάπιϛ em contraposição à retribuição é ressaltada desde Aristóteles. Cf. K. BERGER. ibid 310.
290
At 15, 10-11: Portanto, porque tentais a Deus, impondo ao pescoço dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem
nós fomos capazes de suportar? Pois cremos ter sido salvos, e eles também, pela graça do Senhor Jesus.
291
2Cor 1, 12: Nosso orgulho consiste no testemunho da consciência. Ou seja, que pela graça de Deus, e não por
prudência humana, me comportei com todos, e em particular convosco, com a simplicidade e sinceridade que Deus
pede.
289
111
na santificação do homem natural pela benevolência e pelo dom do amor de Deus.
Tanto a natureza quanto a liberdade de decisão pessoal do homem retornam
novamente ao espaço de Deus, nosso criador, Senhor e Pai292.
3.1 – A graça sem a liberdade: uma heresia
A história nos conta que na revelação, sobretudo no Novo Testamento, o que se afirma com
categorias judaicas sobre a história universal da salvação – nos sinóticos e em Atos -, ou sobre uma
mística escatológica – como em João – ou de uma teologia da redenção ou da salvação – como em
Paulo -, teve que ser mantido e desenvolver-se, posteriormente na Igreja primitiva num contexto de
excessiva acentuação de questões éticas, provenientes de um espírito farisaico e estóico, assim
também diante de uma espiritualização platônica293. Nos séculos II e III, a luta ao redor dos
mistérios da fé cristã travou-se contra as influências do gnosticismo (judaico, pagão e
intraeclesiástico). Diante de uma doutrina de autoredenção do ser humano por meio de um especial
saber salvífico, e a decorrente falsa interpretação de Cristo como demiurgo, os primeiros grandes
teólogos da Igreja, Irineu de Lyón, Tertuliano e Orígenes, anunciaram a Cristo, o crucificado, como
o único redentor.
É um longo período em que o cristianismo passa da defesa do que lhe é central, à afirmação
que se constituirá, posteriormente, na soma dos Concílios de Nicéia e Constantinopla, no Símbolo
cristão da fé, que crê no Deus trino: Pai, Filho e Espírito Santo294.
Pela ordem, estas questões culminaram nas heresias cristológicas, que tiveram “resposta”
em Nicéia e que foram seguidas por heresias pneumatológicas, como bem nos deu conta Basílio que
expirou antes do Concílio de Constantinopla, mas, ainda assim, em seu Tratado sobre o Espírito
Santo, tantas vezes citado, inspirou o texto final do Símbolo até hoje professado pelos cristãos,
desde o texto final dos Concílios Niceno-constantinopolitano.
A doutrina da interna filiação divina (1Jo 3, 1 ss) aprofundou-se teologicamente pelo
desenvolvimento do dogma eclesiástico de Cristo, Deus e homem, e do Deus trino dos séculos IV e
V. Dentre os capadócios, tão profundamente estudados por Rahner, destacam-se Atanásio e
Gregório Nazianzeno; Dídimo o Cego, a respeito do Cristo, e Basílio, quanto à inabitação do
Espírito de Deus; além de Cirilo de Alexandria na inabitação do Deus trino.
292
Cf. K. BERGER. ibid 308-314.
Cf. J. AUER. Historia de la doctrina de la gracia. SAC 314.
294
Concílio de Nicéia, 325; Concílio de Constantinopla, 380; Concílio de Éfeso, 431; Concílio de Calcedônia, 450.
293
112
Sob a influência da filosofia neoplatônica (Plotino), surgiu uma mística cristã,
fundada por Orígenes, hoje “reconhecido entre os escritores eclesiásticos da
antiguidade como o mais lido depois de Agostinho” que ensinava a possibilidade
de uma consumação terrestre da vida da graça na base de uma sobrenatural e
extática contemplação de Deus e do concomitante amor a ele no marco da piedade
eclesial. Esta teologia da graça continua sendo normativa até hoje na Igreja oriental
grega295.
Enquanto isso, na Igreja romana ocidental, Agostinho elaborou a doutrina da graça em um
peculiar tratado teológico, polemizando contra a doutrina exteriorizada do pecado e da graça no
pelagianismo. Fundamentando-se em Paulo, Agostinho ressaltava a causalidade total de Deus na
justificação, santificação e predestinação do homem a si mesmo. Sem dúvida, conforme diz nosso
teólogo, Agostinho substituiu a visão histórico-salvífica de Paulo ancorada no judaísmo, por um
enfoque antropológico, acomodado ao pensamento romano (da parte de Agostinho) e germânico (da
parte de Pelágio). Sua doutrina, elaborada entre o ano 412 e 430 em numerosos, amplos e polêmicos
escritos contra Pelágio, obteve a aprovação da Igreja de Roma296.
Teólogos do século V já não entendiam a graça como Agostinho (expressão do
amor), mas como expressão da onipotência de Deus. Ensinavam equivocadamente
a falta de liberdade do homem diante da predestinação e reprovação divina, o que
gerou o chamado semipelagianismo no qual ao menos o inicio da fé e a
perseverança final são obra do homem e não da graça. Ambos os erros foram
condenados em numerosos concílios, particularmente no segundo de Orange, no
ano 529 (Dz 178-200), e a doutrina de Agostinho recebeu, com limitação no que se
refere à predestinação, sua definitiva aprovação eclesiástica297.
A doutrina católica da graça adquiriu um tom abertamente antropológico quando na alta
Idade Média a metafísica, a ética e a psicologia de Aristóteles passaram a ser a base para o
desenvolvimento dos problemas teológicos, primeiramente entre os dominicanos (Tomás de Aquino
e sua escola), mas desde 1280, aproximadamente, em especial, desde João Duns Escoto também os
franciscanos expuseram a teologia de tendência agostiniana com categorias e princípios
aristotélicos.
Tomás desenvolveu sua definição da graça como um estado (habitus) sobrenatural da alma
humana, enquanto que os franciscanos - Duns Escoto e seguidores -, identificaram a graça com a
virtude sobrenatural da caridade. Os reformadores reagiram contra esta doutrina da graça na Idade
Média posterior, sobretudo por verem nela uma fuga do temor de Deus para refugiar-se na santidade
das obras. Lutero ensinou que a justiça de Deus (Rom 1, 17) imputa ao crente (Rom 3, 22) sem a
295
J. AUER. Gracia. SAC 315. Cf. também em H. CROUZEL. Origenismo. Dicionário patrístico e de antigüidades
cristãs. Petrópolis: Vozes. 2002, 1052.
296
J. AUER. ibid 315-316.
297
J. AUER. ibid 316.
113
sua colaboração, posto que o crente é pecador (Gal 3, 13) a obra redentora de Cristo. Calvino, junto
a esta justificação pela fé, volta a ressaltar a transformação do homem pela penitência e o
renascimento, assim como a vida cristã que brota da fé.
O Concílio de Trento (Dz 792ª-843), em 1547, posicionou-se contra estas
doutrinas a base de uma mentalidade escolástica, que se desenvolveu
ulteriormente, sobretudo na Espanha. Com o mesmo espírito procedeu a grande
disputa entre a escola dos Dominicanos (tomismo) e a dos Jesuítas (molinismo) em
torno à ação da graça e da liberdade humana nas obras meritórias. Se o tomismo
pretendia deixar a causalidade total do Deus criador como causa primeira
(praemotio physica) na ação das criaturas, o propósito do molinismo era defender
tanto a liberdade do homem como a de Deus (concursus simultaneus). A disputa
terminou em 1607, sem que se elucidasse, por intervenção da autoridade
eclesiástica, embora tenha voltado à tona no século XX298.
3.2 – A graça e a liberdade: a causalidade salvífica
O problema da relação entre graça e liberdade é uma questão interna da teologia católica. A
questão surge da dificuldade de salvar simultaneamente dois dados reais: o homem é realmente livre
ao decidir-se por um “ato salvífico” podendo, portanto, recusar a graça oferecida para tal ato; ou o
homem, para esse ato salvífico, necessita absolutamente da interna graça divina? Além disso, há
que se considerar que “esta graça não alcança seu efeito pelo consentimento do homem, a não ser
que de antemão tenha em si a virtude de produzir, de fato, tal consentimento”299.
O problema se amplia especulativamente na teologia, formulado na seguinte
questão: como se comporta a ação de Deus (em sua cooperação) com o ato livre do
homem (e assim com o ato naturalmente bom e com o ato moralmente mau)?
Aqui se encaixa o que tratamos exaustivamente nestas páginas sobre a distinção ente Deus e
a criatura, e qualquer outra dependência causal intramundana. A característica da autonomia da
criatura e a sua dependência de Deus não estão em uma proporção inversa, mas, ao contrário, estão
em proporção direta. Isto porque a causalidade de Deus é a que produz a verdadeira diferença entre
ele e a criatura, a que cria a autonomia com o seu próprio ser.
Esta relação de índole transcendental, e não categorial, alcança o seu ponto
culminante na relação entre Deus e o ser livre junto com os seus atos livres. A
origem transcendental do ato livre em Deus implica precisamente sua posição
como tal ato livre, sua entrega a criatura para que o receba sob sua
responsabilidade. Este radicalismo da mais autêntica criação, em que toda a
298
299
Cf. J. AUER. ibid 314-319.
RAHNER. Gracia. SAC 334.
114
criação alcança o seu sentido, é o mistério da coexistência entre Deus e criatura
livre, mistério que não pode desentranhar-se300.
Para Rahner, algo parecido deve ser dito sobre a ação moralmente má, ou seja, sobre o
pecado e a culpa, já que ineludivelmente se trata de ação nossa. O ato bom e o ato mau, o bem e o
mal, nem no plano ontológico nem no plano moral, equivalem a duas possibilidades completamente
iguais da liberdade. O mal, tanto na origem de sua liberdade como em sua objetivação, é menos ser
e menos liberdade. Nesse sentido, podemos e devemos dizer que o mal, em sua deficiência como
tal, não requer nenhuma procedência de Deus301.
Esta observação não resolve o problema da relação entre Deus e o mau uso da
liberdade, mas aponta a possibilidade de reservar à criatura algo que, nem pode
derivar-se de Deus, como a boa ação, nem há de devolver-se a Ele com gratidão,
como graça Sua302.
3.3 – A graça da liberdade libertada: a Redenção e a justificação
O tratado da graça é parte de uma antropologia da graça que se ocupa do homem redimido e
justificado. Por isso Rahner defende que este tratado não deve tratar da graça em abstrato, mas do
homem agraciado, pois se a realidade do homem não contempla todas as suas dimensões, a noção
de graça se restringe à abstração formal de uma “experiência” da essência do homem, ou de uma
ajuda moral para a sua vida ética.
Esta parte relativa ao homem redimido e justificado deve encontrar o seu lugar depois da
cristologia e da eclesiologia, pois nestes tratados se descrevem a causa, a condição prévia e a
situação do homem santificado. O tratado deve ser uma doutrina sobre a graça que diviniza e perdoa
o homem em todas as dimensões de sua vida, incluindo, pois, a doutrina sobre as virtudes teologais
como componente necessário que, em seu conjunto, constitui a base dogmática essencial a uma
originária teologia moral dogmática, conforme a caracterização de uma teologia moral no Concílio
Vaticano II (Optatam totius, 16)303.
Considerando que, ao fim, a graça é a comunicação de Deus absoluto à criatura e esta
comunicação tem também uma história que alcança seu ponto culminante escatológico e
irreversível em Jesus Cristo, como vimos insistindo junto com Rahner, segue-se que, na teologia do
homem redimido e justificado (santificado) pela graça, entra também a doutrina do homem
300
RAHNER. Gracia y Libertad. SAC 335.
Cf. RAHNER. ibid 339-340.
302
RAHNER. ibid 340.
303
RAHNER. Tratado teológico sobre la gracia. SAC 341.
301
115
justificado antes de Cristo (ainda que justificado por ele) ou fora do âmbito de onde chegou a
mensagem histórica do cristianismo sobre a salvação eterna304.
Assim o tratado sobre a graça não pode abster-se de tratar, primeiramente, da comunicação
trinitária de Deus ao homem na sua estrutura essencial, a qual, como ato fundamental de Deus sobre
o que não é divino, inclui e distingue a criação e a graça, a ordem supralapsária305 e a
infralapsária306.
Partindo desse fundamento, o tratado da graça deve explicar a noção de graça sobrenatural
da justificação como graça incriada. Mas isso também não se há de fazer mediante uma mera
abstração formal e a redução à intimidade subjetiva de cada indivíduo, mas há de se ressaltar o
caráter cristológico dessa graça, como dinamismo para participar nos mistérios e na morte de Cristo
e sua natureza infralapsária, que constitui uma permanente ameaça para a graça que, não obstante,
esta ameaça, vence sempre e de novo, cada vez mais e mais. Esta graça da justificação relaciona-se
como divinização e redenção (libertação) de todas as dimensões da existência humana, o que
implica ter que elaborar o caráter individual e coletivo - ou eclesiológico -, o antropológico e o
cósmico (graça como transfiguração do mundo) da graça.
Temos que pensar a graça de acordo com as dimensões transcendentais do homem, como
verdade, amor e beleza. Diz Rahner que, se assim o fizermos, entrelaçamos a doutrina sobre a
atualização da graça sobrenatural na relação dialógica entre Deus e o homem, relação esta que é
livre de ambas as partes e, portanto, novamente livre por parte de Deus (graça eficaz), assim
compreendendo a doutrina sobre a graça atual, em sua essência formal e em sua relação com a graça
da justificação; a vida justificada em Cristo sob seus aspectos formais, ou seja, a gratuidade da
graça e, inclusive, o desenvolvimento dinâmico da justificação; o caráter oculto da graça e
experiência da liberdade sobre a graça que é a libertação da liberdade pela graça.
Conclusão
Para entender realmente o problema “graça e liberdade”, ao final de tanta tinta gasta na
história da humanidade, como brevemente aqui tentamos apontar, diz Rahner, bela e
surpreendentemente, que é preciso deixá-lo (o problema !) de lado e aceitá-lo: é preciso voltar à
atitude orante.
304
RAHNER. ibid 341.
Supralapsária: graça de Deus no estado original, ou seja, cristocêntrica.
306
Infralapsário: após o pecado (original), que a graça somente permitiu em vista de sua vitória incondicional.
305
116
O orante “recebe” o que ele é e o devolve a Deus, tomando a aceitação como
momento do dom mesmo. Por adotar esta posição orante, com a qual se aceita a
“solução” do problema, não se cai em nenhuma petitio principii307 nem se
empreende uma fuga. Com isso se aceita simplesmente o que é ineludível: a
unidade do real e o originário, quer dizer, a criatura, que crê com liberdade, e no
ato de crer é criada como graça308.
307
petitio principii. (raciocínio, argumento circular), em geral, a falácia de assumir como premissa uma declaração
que tem o mesmo significado que a conclusão. Cf. http://philosophy.lander.edu/logic/circular.html. Acesso em
09.11.2007.
308
RAHNER. Gracia y Libertad. SAC 340.
117
Capítulo III – Concepção de Salvação
Salvação apesar de ser um conceito básico para a religião e para a teologia, não é um termo
técnico teológico. O problema fundamental é que a palavra salvação não significa primariamente
uma conquista “objetiva”, como nas utopias seculares, mas, ao invés disso, a cura “subjetiva”
existencial e a realização da vida.
Rahner nos faz lembrar que, de acordo com o testemunho das escrituras, a vontade salvífica
de Deus não é um atributo de Deus, mas a atitude livre e pessoal que se revelou pela primeira vez,
definitiva e irrevogavelmente em Jesus Cristo. Por conseguinte, nosso autor defende que não se
pode compreender o termo salvação apenas identificado com a graça, mas numa visão
complementada pelo conceito de visão beatífica e da ressurreição da carne. Nessa linha, ele diz que
a salvação que se aplica à totalidade do ser, e não é dada neste mundo por uma redenção objetiva,
permanecendo como o objeto essencial da esperança cristã.
E porque a esperança é suportada pelo (escatológico) evento salvífico Jesus Cristo,
a salvação não é uma dentre duas possibilidades, com a perdição como a outra
metade a dividir um status equivalente, e entre as duas, a liberdade humana
podendo fazer uma escolha autônoma. Por meio de sua soberana e efetiva graça,
Deus já determinou a inteira história da liberdade em favor da redenção do mundo
em Jesus Cristo309.
Em razão disso, a salvação tem uma história. Esta história parte de Deus, e, é história que,
em cada indivíduo e na humanidade, se funda na livre autocomunicação pessoal de Deus. Dito com
Rahner, é uma história livre a partir de Deus no sentido de que o seu desenlace é evento da
liberdade de Deus, que doa a si mesmo ou se subtrai.
A historicidade da história da salvação a partir de Deus e não só a partir do homem vem a
ser experimentada e aparece com maior clareza no dogma fundamental do cristianismo, que afirma
a encarnação do Logos eterno em Jesus Cristo. Mas esta história é também contada a partir da
liberdade do homem, uma vez que a autocomunicação pessoal de Deus enquanto fundamento dessa
história dirige-se precisamente à pessoa criada em sua liberdade310.
Toda ação salvífica de Deus no homem é também e sempre uma ação salvífica do
homem. A revelação somente pode ocorrer na fé do homem, que é o ouvinte desta
revelação. Nesse sentido a história da salvação e revelação é sempre síntese
simultânea da ação histórica de Deus e da ação histórica do homem, porque a
história da salvação de Deus e humana não podem ser pensadas como uma
colaboração de tipo sinergético. Deus é o fundamento do ato de liberdade do
309
310
DTH 458-459.
CFF 175.
118
homem e, em seu próprio agir, enche o homem da graça e da responsabilidade por
seu próprio e irrecusável agir. Por isso a história divina da salvação aparece
sempre na história humana da salvação, a revelação aparece na fé, e, vice versa311.
1 – A Tua fé nos Salvou
Introdução
“A tua fé te salvou, vá em paz”.
Estas são das palavras mais repetidas por Jesus que, apesar de ter a fé perfeita, nunca falou
de sua própria fé, mas da nossa, como Salvação. Nesse sentido, passamos analisar esta fé que nos
salva e a do Filho de Deus, que nos salvou, Jesus Cristo.
A existência cristã é plasmada na fé. Numa fé que preludia o Deus Trino. Este trabalho não
se permite tomá-la por uma premissa cega, tal qual na doce fé do carvoeiro. O que aqui se cuida é
de uma fé sempre crua, exposta ao desafio em que Rahner luta para justificá-la “com honradez
intelectual”312. Para tanto, não pensamos a fé sem restringi-la ao seu primordial adjetivo: cristã. A fé
que é cristã, a fé vivida pelo cristão, “que sabe que toda a realidade terrena está envolvida por
aquele Uno, Incompreensível que chamamos Deus e que confessamos na fé como o Pai do amor
eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”313.
Pode parecer suficiente afirmar que já encontramos a fé, há quase dois milênios, condensada
no que cremos, nas fórmulas sintetizadas nos símbolos professados pelos cristãos. Sabe-se que não.
O tempo muda o sentido das expressões. As expressões perdem em significância para uma ou outra
cultura. Esse é o desafio que torna constante a busca de atualizar o conteúdo do que se professa e,
principalmente, o melhor modo de dizer o que vive o cristão. Ademais disso,
considerando a profundidade e a incompreensibilidade do mistério a que o
cristianismo se refere, não podemos dizer algo sobre seu conceito a todos ao
mesmo tempo314.
Se assim é, e assim o cremos, o homem de fé, que conhece nosso Senhor Jesus Cristo e se
toma por seu seguidor se depara com uma grandeza irredutível, qual seja, ter diante de si a
“totalidade de sua própria existência”, vale dizer ter-se por todo diante de si.
311
RAHNER. Traité fundamental de la foi: introduction au concept du christianisme. Paris: Éditions du Centurion,
1983, 167-168. Cf. CFF 175-176. A presente citação foi colhida da versão em francês.
312
Cf. CFF 6, 16, 17, 20, 23. O autor insiste por toda a sua vida em dar à fé honradez intelectual.
313
CFF 470.
314
CFF 5. Note-se que por conceito, Rahner segue Hegel e refere-se a um “esforço conceitual”.
119
Os desafios de gerir uma experiência dessa natureza é do que passamos a tratar. Assim,
levantando a pergunta sobre se o Jesus histórico será o Cristo da fé, como se usa colocar na teologia
fundamental católica, esta pergunta, além da credibilidade da nossa fé em Jesus como o Cristo,
implica também o “estado objetivo das coisas”. Diz Rahner que a pergunta, por sua própria
natureza, apela e diz respeito ao todo da existência humana, não se podendo de antemão colocá-la
sem que as dimensões concretas da existência do sujeito que interroga possam ser excluídas.
Se levanto uma pergunta, que, realmente, me atinge como todo, nada posso deixar
em mim de lado como irrelevante ao colocar essa pergunta. Se me interrogo por
uma salvação para mim, necessariamente me interrogo por mim como todo, pois
isto implica precisamente a idéia de salvação315.
1.1 – A unidade da experiência apostólica da ressurreição e a nossa própria ressurreição
Somente através do testemunho apostólico, ou seja, é na dependência do testemunho dos
que viram o Senhor ressuscitado que cremos na ressurreição: nossa fé permanece vinculada ao
testemunho dos apóstolos, negando-se a aplicação a esse testemunho, do que se entende como
testemunho jurídico, porque ouvimos a mensagem da ressurreição que cremos, mediante a graça de
Deus, sob influência do testemunho interior da experiência do Espírito.
De novo, para Rahner é importante afastar a suspeita do mito. Por isso mesmo ele afirma
que a fé pascal expressa o seguinte: na fé e esperança em nossa própria ressurreição, fazemos a
experiência da coragem de nos situar acima da morte. Isso tendo em vista o Ressuscitado que se
apresenta no testemunho apostólico e o Espírito Santo em quem fazemos a experiência de Jesus e de
sua causa como vivos e vitoriosos.
A nossa esperança (transcendental) na ressurreição está sempre em busca de sua
apreensibilidade (atestação categorial), por ser imperioso para quem crê na possibilidade salvífica
cristã para todos. Essa esperança (transcendental) somente pode dar ao seu fundamento e objeto o
seu nome (categorial) pelo testemunho apostólico sobre Jesus ressuscitado. Rahner cita são Paulo
para realçar a mútua relação de condicionamento entre a experiência do Espírito e a fé na
ressurreição, assim afirmando que o que alcançamos historicamente não é a ressurreição de Jesus,
mas a convicção dos discípulos de que “Ele vive”. É este Jesus, com sua história concreta, dotado
de permanente valor e aceito por Deus, que percebemos na “experiência” da ressurreição.
315
CFF 274.
120
A marca de toda a teologia rahneriana remete e introduz à “experiência” de fé316. Não de
uma fé preconcebida, mas uma fé despertada em um movimento de entrega à própria vida317. Sua
teologia não se restringe a um conhecimento salvífico, mas pretende continuar sendo este saber
salvífico que diz respeito a todos. Daí a importância de lembrar agora sua advertência de que “uma
atividade salvífica sem fé é impossível, e fé sem encontro com Deus que se revela pessoalmente a si
mesmo é contradição nos termos”318.
Para Rahner o acontecimento (histórico) fundante da fé e a fé mesma constituem uma
relação que se dá no interior da própria fé. Rahner torna esta afirmação válida com respeito não
apenas às primeiras testemunhas, mas também a nós que viemos a crer posteriormente.
Para a nossa fé, a fé dos primeiros discípulos, bem como a das gerações de fé dos
que se situam entre aqueles e nós, significa não só a transmissão do material
histórico, que depois transformamos para nós – dentro do nosso ato de fé
absolutamente novo, autônomo e original – em motivo e objeto da fé. [...] Na
medida em que somos estimulados pela fé dos primeiros e dos testemunhos dos
que nos antecederam, entramos nós próprios na estrutura da sua fé e podemos com
toda razão com eles dizer, por exemplo: porque Cristo ressuscitou, eu creio319.
Este espetacular e ousado pressuposto metodológico de Rahner suscita a pergunta sobre se o
homem que não crê em Jesus como o Cristo pode aceder a esta fé, de dentro ou de fora do campo de
influência do Cristianismo. Diz Rahner que existe um saber em cujo círculo uma pessoa se
“experimenta” introduzido sem que ele mesmo tenha construído esse círculo de maneira reflexiva.
Aqui ele alerta que isso que lhe vem dado pode cessar depressa e o homem torna-se cego para o
conhecimento que lhe é oferecido na “experiência”, ainda que não produzido propriamente por ele
mesmo. Por isso a doutrina cristã postula que tal círculo não é produzido em reflexão posterior, é
algo que se deduz da gratuidade da fé.
E por isso, é nosso convencimento de que o “título” da principal obra de Rahner, o Curso
fundamental da fé, nos obriga a essa lenta e prévia análise para compreensão posterior do que seja
Salvação.
316
Seu discípulo J. B. Metz (1928-), certa vez, qualificou Rahner “Não apenas mestre de minha teologia, mas pai de
minha fé”. In B. SESBOÜE, Karl Rahner. Itinerário teológico. SP: Loyola. 2004, 9.
317
Ibid.
318
CFF 187.
319
CFF 287-288.
121
1.2 – Relação de fé existente de fato
Do ponto de vista humano e, por isso, do ponto de vista da teologia fundamental, é legítimo
que a cristologia parta da relação de fato existente entre o fiel e o Cristo.
Por mais que o que crê tenha que dar razões [...] a si e aos outros, do fundamento
pelo qual está convencido de encontrar o portador absoluto da salvação
precisamente em Jesus, ele não tem necessidade de se comportar como se
estabelecesse ou devesse estabelecer pela primeira vez essa relação através de tais
reflexões. Ainda que o crente deva dar razão de sua fé em Jesus Cristo, pode,
contudo, principiar por refletir primeiramente sobre sua fé dada de fato e sobre a
natureza dessa. Pode e deve fazê-lo, pois a fé precede a teologia, e não precisa ser
de opinião que uma reflexão teológica possa edificar sua fé como que desde o
nada, ou que deva alcançar em seus fundamentos a fé, que afinal se baseia na graça
e na livre decisão, a fim de tornar supérfluas a graça e a decisão livre320.
A nossa relação com Jesus, que Rahner admite como algo dado, somente pode ser
compreendida como é entendida e vivida nas Igrejas cristãs, sendo irrelevante para sua reflexão a
determinação da natureza dessa relação, como ele explicita, acima, bastando o pressuposto que ela
se distinga de relação puramente histórica ou puramente “humana” para com Jesus Cristo, tal como
pode ter todo indivíduo a quem já chegou alguma notícia sobre Jesus de Nazaré.
Ao descrever esta relação cristã, não precisamos (pelo menos de início) distinguir
entre o que Jesus é “em si” na fé dos cristãos e o que ele significa “para nós”. Pois
estes dois aspectos não se podem distinguir adequadamente em sua unidade. De
um lado, não poderíamos nos interessar nem nos interessaríamos por Jesus, se ele
não tivesse nenhuma “importância para nós”, e, por outro lado, toda afirmação
acerca dessa importância para nós é afirmação referente a um “em si”, pois de
outra forma, contrariamente à convicção da fé cristã, seríamos nós próprios que
por nossa própria iniciativa e responsabilidade lhe atribuiríamos tal importância321.
1.3 – Relação com Jesus como absoluto portador da salvação
Na afirmação de Rahner acima, encontra-se mais um desafio para a sua teologia filosófica
porque aqui “subjaz outra questão”.
Outra questão que se pergunta se é dado ao homem – ou se o homem tem a
capacidade – de perceber uma idéia, ou uma forma, um ato ou um evento
absolutos. [...] O que certamente se impõe ao pensamento teológico cristão é a
320
321
CFF 244.
CFF 245.
122
necessidade de mostrar de que maneira a particularidade da fé em Jesus Cristo tem
um caráter universal e absoluto322.
A grande marca da teologia de Rahner vem apontando neste trabalho o papel da liberdade
dentro do que mais profundamente crê nosso teólogo ao dizer que o movimento inteiro da
autocomunicação de Deus vive do seu chegar ao seu próprio fim, ao seu vértice, ao evento de sua
própria irreversibilidade, precisamente, portanto, do que chamamos de portador absoluto da
salvação. Este movimento teimosamente ascendente produz um efeito único: universalizar a
salvação que nessa “caminhada” encontra destino em Seu verdadeiro e irreversível fim, ou, seja,
encontra caminho, verdade e vida (eterna) naquele que é, naquele que porta em si e que nos transporta ao nosso irreversível destino.
Em conseqüência, este portador absoluto da salvação, que constitui o vértice da
autocomunicação de Deus ao mundo, deve ser ao mesmo tempo o apelo absoluto de Deus à criatura
espiritual em seu conjunto e o acolhimento da autocomunicação, pois de outra forma a história não
poderia chegar à sua irreversibilidade. Somente então é dada a autocomunicação de maneira
simplesmente irrevogável de ambas as partes e presente no mundo de forma histórica e
comunicativa323, e de onde se pode valorar a liberdade absoluta e a liberdade criada como
indispensáveis a este movimento.
De acordo com a convicção da fé cristã, Jesus é aquele que – através de sua obediência, sua
oração e livre aceitação de seu destino de morte – realizou também o acolhimento da graça dada a
ele por Deus e a imediatez com referência a Deus, graça e imediatez de que goza enquanto
homem324.
Jesus Cristo, o portador absoluto da salvação – ou seja, a irreversibilidade da história da
liberdade como autocomunicação exitosa de Deus, é de início ele próprio e, por sua vez, momento
histórico do agir salvífico de Deus para com o mundo de tal sorte que ao mesmo tempo é parcela da
história do próprio cosmos.
Ele não pode ser simplesmente o próprio Deus agindo no mundo, mas precisa ser
parcela do mundo, momento em sua história e precisamente em seu climax. É isso
que se afirma no dogma cristológico: Jesus é verdadeiramente homem,
322
VÁZQUEZ MORO. A configuração do cristianismo, 365. Ressalto que neste texto o autor faz uma distinção
importante ao usar o verbo “mostrar”. Em suas palavras: Digo mostrar, não demonstrar. O que se impõe aos olhos da fé
que o teólogo estuda na Escritura e na tradição viva da Igreja, ou simplesmente, aos olhos da fé do cristão que tem fome
de compreender as dimensões da graça daquilo que crê, não é algo que se possa impor a outras pessoas por razões
demonstrativas.
323
CFF 234-235.
324
CFF 235.
123
verdadeiramente parcela da terra, verdadeiramente momento no devir biológico
deste mundo, momento da história natural humana, pois “ele nasceu de uma
mulher” (Gl 4,4)325.
Com este arrazoado não queremos distanciar de nossa fé que o Messias, o Filho de Deus,
nosso Senhor Jesus Cristo seja um homem que, em sua subjetividade espiritual humana e finita, é,
da mesma forma que nós, receptor da graciosa autocomunicação de Deus que afirmamos com
Rahner como universalmente destinada a todos os homens e, portanto, também ao cosmos, como
sendo o ponto mais alto da evolução, no qual o mundo chega de forma absoluta a si mesmo e à
absoluta imediatez com referência a Deus.
Conclusão
Crer em Jesus Cristo, o nosso Senhor, é afirmá-lo como critério de discernimento. Diante da
grandeza dessa afirmação, Rahner a sustenta dizendo que somente no evento pleno e insuperável da
auto-objetivação histórica da autocomunicação de Deus ao mundo em Jesus Cristo é que temos o
evento que, por ser escatológico, está em princípio excluído de eventuais depravações históricas e
de explicações perversas que possam surgir na ulterior história da relação categorial e da
deformação da religião (sic.).
Em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado temos um critério para discernir [...],
entre o que é mal-entendido humano da experiência transcendental de Deus e o que
é legítima explicação dela. Somente partindo de Jesus, é possível realizar em
última análise semelhante discernimento dos espíritos326.
2 – Cristologia transcendental
Introdução
Este trabalho persegue a liberdade, na visão trinitária da obra de Rahner. Alguma vez, a
tentação de enveredar pela multiplicidade de temas que nosso autor comentou obriga afunilar o
estudo para não perder o foco. Tal não é o caso com as cristologias que passamos a defender porque
o estudo atento as mostrou como peças importantes na compreensão do objeto central perseguido.
Nesse sentido, nos detemos no pensamento transcendental de Rahner por ser uma marca
cada vez mais forte em toda a sua teologia. Este pensamento transcendental é a fonte da formulação
325
326
CFF 235.
CFF 193.
124
de infinitas questões do “último” Rahner, no período de 1964-1979, por exemplo, no objeto que ora
estudamos, ou seja, a cristologia transcendental, que ele vem tratar sem abordar estreitamente suas
considerações filosóficas básicas, ou seja, do ponto de vista do teólogo, na abalizada avaliação de
K. Lehmann, aqui desponta em Rahner a dimensão missionária e pastoral que “isola” as
considerações filosóficas básicas de seu filosófico ponto de partida, em seus começos327.
A motivação de nosso autor é singular: a fé não pode depender de conceitos filosóficos sob
pena de perder seu próprio poder explosivo, único, o qual pode ser visível por meio de muitas
filosofias e, ainda assim, transcendê-las todas.
Feita a ressalva, voltamos a Rahner, para quem não podemos eliminar a necessidade de uma
cristologia transcendental sob o argumento de que o surgimento histórico de Jesus, portador
absoluto da salvação, a encarnação do Logos divino em nossa história, constitui o milagre absoluto
que se nos impõe sem que o possamos deduzir e, em conseqüência, sem que possa ser
especulativamente explicado e intuído.
O que surge na história inesperada e miraculosamente deve achar vias para “chegar” a nós.
Por isso deve ser-nos possível perguntar pelas condições de possibilidade deste “poder chegar” a
nós, sobretudo desde o momento em que nos demos conta de que não devemos pressupor que tais
condições se devam buscar no que, em terminologia teológica tradicional, chamamos de “natureza
pura”, mas está implicado na elevação “sobrenatural” da “natureza humana, que obviamente (uma
vez que essa elevação não se situa para além da consciência e uma vez que é ofertada a todos) pode
ser invocada também por uma cristologia transcendental328.
Hodiernamente, além da antropologia que constata de modo meramente empírico e descreve
de maneira aposteriorística, existe, também, uma antropologia transcendental, que justifica uma
cristologia transcendental explícita que se interrogue pelas possibilidades apriorísticas no homem
para que a mensagem de Cristo chegue a ele.
Sua ausência na teologia tradicional acarreta o risco de avaliar os seus enunciados
simplesmente como exageradas hipérboles mitológicas (no mau sentido do termo)
elaboradas sobre acontecimentos históricos, e, daí, não se possuir nenhum critério
para que se possa distinguir na cristologia tradicional entre genuína realidade da fé
e interpretação da fé, interpretação que não mais está em condições de mediar para
nós hoje o que se entende pela fé329.
327
Cf. TCF 25.
CFF 248-249.
329
CFF 249.
328
125
2.1 – O que significa ser Filho Eterno de Deus
Rahner conclui que uma cristologia transcendental tenderá por sua própria natureza a um
“portador absoluto da salvação”, ressalvado que, na fé, o conceito de portador da salvação pode se
encontrar e na verdade foi encontrado pelo cristianismo precisamente em Jesus de Nazaré e
unicamente nele. Mas este incansável teólogo diz que “ainda assim” não se terá respondido à nova
questão: A partir desse conceito, o portador absoluto da salvação pode ser identificado com o Verbo
e Filho Eterno do Pai, que o cristianismo já no Novo Testamento confessa ser este Jesus, ou a
afirmação do Logos encarnado do Deus não passa de afirmação acessória e superável que se
acrescenta ao enunciado de Jesus como o portador absoluto da salvação?
Se com isso já se começa a escrever uma cristologia transcendental (e, sendo
assim, “essencial”), não pode carecer de sentido levar avante semelhante
cristologia essencial e, antecedentemente à questão acerca do encontro com o Jesus
historicamente concreto, perguntar-nos o que propriamente se entende quando o
cristianismo fala de encarnação de Deus330.
Nós não partimos da premissa de que só conheceríamos algo de Jesus por pesquisa ou
curiosidade histórica, mas, ao contrário, pressupomos existir a fé do cristianismo, ainda que esta fé
venha a ser mais tarde legitimada por uma reflexão histórica elaborada para contribuir com a
teologia fundamental. Este caminho, para Rahner, não implica um circulus vitiosus de
argumentação e, por isso, torna legítima a pergunta sobre o que propriamente significa encarnação
de Deus, sem que a pergunta se restrinja e se vincule ao sentido de portador absoluto da salvação331.
Para Rahner, a questão sobre o sentido da encarnação ou do fazer-se homem da parte de
Deus move-se no interior de uma cristologia essencial, ou seja, não inclui ainda a pergunta sobre se
o portador da salvação assim entendido já existe na história e quem é ele. Nesta questão está o
centro da realidade de que vivemos os cristãos, nós, os que cremos. É somente a partir daí que o
mistério da Trindade divina nos atribui de forma definitiva e historicamente tangível o mistério de
nossa participação na natureza divina.
Este mistério é inesgotável e, em comparação com ele, a maioria das coisas sobre o
que refletimos são relativamente sem importância. A verdade da fé somente se
pode salvaguardar fazendo teologia sobre Jesus Cristo e fazendo-a sempre de
maneira nova. Pois também nesse ponto vale que só possui o passado quem o
conquista como seu presente332.
330
CFF 254.
Cf. CFF 254-255.
332
CFF 255.
331
126
Com isso, Rahner não busca demonstrar o sentido de “encarnação de Deus” como consta
nos documentos da Igreja, mas tratá-lo enquanto tal. Esclarecido que estas reflexões se referem ao
“sentido” de encarnação de Deus, observe-se que estamos tratando de cristologia essencial de
descida, ainda que não seja possível elaborar cristologia desta natureza sem contínua referência a
reflexões de antropologia transcendental, posto que aqui, sempre e novamente está se tratando da
universalidade da salvação.
2.2 - O que significa Deus se fez homem
A fé cristã, no Prólogo do Evangelho de João, nos diz que a “Palavra de Deus” se fez carne,
ou seja, homem (Jo 1, 14). Rahner aponta o risco de se renunciar a dizer algo sobre a proposição da
“Palavra de Deus”, pois poderíamos não compreender a “encarnação” da Palavra de Deus, se a
expressão “Palavra de Deus” representasse algo muito confuso.
Desde Agostinho, a teologia escolástica se habituara a pensar como coisa óbvia que
qualquer daqueles Três infinitos - pessoas da única divindade -, poderia ter-se feito homem,
bastando que a respectiva pessoa divina o quisesse. Sob tal pressuposto, o termo “Palavra de Deus”
significaria qualquer sujeito divino, qualquer hipóstase divina. Se assim fosse, esta proposição
significaria o seguinte “um da Trindade se fez homem”.
Porém, se nos voltarmos à outra tradição, à patrística grega, podemos entender o predicado a
partir do sujeito da sentença porque, se no sentido e na essência da Palavra de Deus, está implicado
que só ela pode e de fato inicia a história humana, de sorte a que este mundo se torne não só a obra
posta por Deus, mas também a realidade própria de Deus. Então, só entenderá o que seja
encarnação quem souber o que seja propriamente a “Palavra” de Deus, assim como também só
entenderá o que seja “Palavra” de Deus quem souber o que seja encarnação, o que Rahner assim
sentencia.
Deus se fez homem. Pois somente aí é que entendemos o que significa
propriamente a Palavra de Deus. Não porque qualquer das pessoas divinas possa se
tornar homem, mas antes porque – desde a sentença de que Deus se auto-expressou
para nós imediatamente precisamente em uma história como homem – torna-se
inteligível que Deus, o princípio originário indevassável – que chamamos de Pai –
possui realmente um Logos, isto é, a possibilidade de expressar-se historicamente a
si mesmo e em si mesmo para nós, que este Deus é a fidelidade histórica e, neste
sentido, é o Verdadeiro, o Logos.
Rahner se põe a pensar sobre a palavra “homem” diante da proposição “Deus se fez
homem” por admitir que (“homem”) é o que somos, e o que melhor deveríamos com-preender e apreender. Mas ele nota que o que se dá é justamente o inverso, porque “definir, circunscrever
127
mediante fórmula que enumere adequadamente a soma dos elementos de determinada essência, só
se pode fazer quando se tem presente um objeto ou coisa que seja composta de parcelas originais
constitutivas últimas”. No que respeita ao homem, é impossível uma definição deste tipo, como
visto por toda a Primeira Parte deste trabalho. Assim, em sua genialidade, Rahner diz que podemos
cabalmente defini-lo “homem” como a in-definibilidade chegada a si mesma333.
O homem é, pois, em sua essência, em sua própria natureza, o mistério, não porque
seja em si a plenitude infinita, que é inexaurível, do Mistério para o qual tende,
mas antes porque ele, em sua essência autêntica, em seu fundo originário, em sua
natureza é a referência – pobre, mas chegada a si mesma a essa plenitude334.
Cabalmente definida a essência do homem, o teólogo parte em busca da compreensão de
“encarnação”. Ele alerta que a cristologia não se constitui em uma espécie de “cristologia da
consciência” em contraposição a uma cristologia ontológica da unidade substancial do Logos com a
sua natureza humana, mas se constrói com base na intuição metafísica de autêntica onto-logia,
segundo a qual o verdadeiro ser do espírito é, ele mesmo, espírito.
Pode-se, então, retirar das afirmações tradicionais da dogmática aquela impressão
mitológica de que Deus se teria revestido da roupagem de natureza humana, a ele
aderente apenas de forma exterior, a fim de vir cuidar da boa ordem na terra, visto
que dos céus não mais conseguia fazê-lo335.
2.3 – O que significa ressurreição
Rahner nos apresenta dois belos pressupostos. Primeiramente, a unidade entre a morte que
se apresenta de tal maneira que se supera na ressurreição, “como que morrendo ao entrar nela”.
Afirma, assim, que a ressurreição significa o começo de novo período da vida de Jesus, um período
continuado na ordem do tempo, e, em segundo lugar, o sentido de “ressurreição” em geral e da de
Jesus não é o de revificação de um cadáver físico-material, mas o de salvação definitiva perante
Deus.
Para o teólogo, a ressurreição de Jesus é a vitória escatológica da graça de Deus no mundo,
não podendo vir a ser pensada sem se ter alcançado a fé nessa ressurreição, na qual somente a
natureza da ressurreição chega à sua realização plena e consumada. É nesse sentido que Rahner diz
que “Jesus ressuscita na fé dos seus discípulos”. Naquela fé operada por Deus e que se entende
como libertação de todas as forças da finitude, da culpa e da morte, somente capacitada para tal em
virtude de que essa liberdade aconteceu em Jesus e nele se nos manifestou.
333
Cf. CFF 258.
CFF 259.
335
CFF 261.
334
128
A ressurreição - de que se trata na vitória de Jesus sobre a morte, à diferença das
ressurreições de mortos de que se fala no Antigo e no Novo Testamento - significa a salvação da
existência humana concreta definitiva perante Deus. Tirar conseqüência do pensamento aqui
exposto implica entender que um sepulcro que se constate vazio, jamais poderá testemunhar,
enquanto tal e por si só, a existência e o sentido de ressurreição, que é salvação definitiva operada
por Deus.
A palavra “ressurreição” deve evitar o falso sentido de retorno a uma vida biológica no
espaço e no tempo tal qual a vivemos aqui no mundo, porque ressurreição não significa perduração
salvificamente neutra da existência humana, mas o ser assumido e salvo por Deus336.
Insiste Rahner que a morte e a ressurreição de Jesus significam o começo de novo período
“na vida” de Jesus, preenchido com algo de novo, mas continuado na ordem do tempo. É antes
precisamente “a definitividade permanente e salva da única vida singular de Jesus” que, pela morte
enfrentada na liberdade e obediência, atinge a “permanente definitividade de sua vida”337.
Conclusão
Estas linhas são centrais para o cristianismo como pontua são Paulo ao sentenciar que se
Cristo não ressuscitou, a nossa fé é vã e, por isso, o grande desafio cristão de dizer a ressurreição
aos homens de cada época. Apresentamos aqui um ilustrativo parêntesis em que se perfaz o
caminho desses dois milênios, por engrandecerem as conclusões do conjunto coerente do
pensamento rahneriano.
De início, lutava-se contra o pensamento judeu, que acreditava no roubo do corpo. Lutavase, também, contra o pensamento grego que, no exemplo de Platão acreditava que o corpo é o
túmulo da alma, resultando na cena do areópago em que são Paulo não consegue levar adiante o
tema da ressurreição. Na Patrística, Orígenes, Irineu e Tertuliano foram os maiores a enfrentar a
questão, sendo que o primeiro tratou mais da ressurreição de Cristo e os dois últimos alargaram o
tema à nossa ressurreição. No Concílio de Calcedônia articulou-se o problema das duas naturezas.
Desse período em diante, a ênfase passa à encarnação, até atingir a Idade Média, no expoente Santo
Tomás, para quem a paixão remove o mal, enquanto que a ressurreição acrescenta o bem. No século
XVIII, a exegese encara o método histórico-crítico e no século seguinte, filosofia transcendental,
com Kant. Dessa corrida pelo tempo resta, depois do horizonte histórico-crítico, uma quase
336
337
Cf. CFF 317.
CFF 315.
129
decepção pelo que de efetivo resultou. A questão, então, teve que ser vista em outro parâmetro, não
mais espaço-temporal, mas escatológico. Da luta ao longo da história, algumas questões foram
sendo trazidas como, por exemplo, se a ressurreição é um evento ou não. O esclarecimento é
importante porque se chegássemos à conclusão de que a ressurreição não é um evento,
culminaríamos por admiti-la como um mito. Daí resulta fundamental a não desvinculação da
ressurreição da soteriologia. A ressurreição de Jesus Cristo somente pode ser entendida como
evento salvífico, evento esse em que Deus é o agente.
Nesta brevíssima síntese, objetivamos ressaltar a inteligente e hábil proposição de Rahner
como a que melhor consegue confessar e professar a fé pascal para os nossos dias, em vista do quê
deixamos sem mencionar de per si os tópicos que classicamente se relacionam à ressurreição, como
kerigma, relatos do túmulo vazio e os de aparição. 338.
Na análise dos relatos de infância elaborada por Rahner, eles têm a mesma dimensão
histórica que a última ceia de Jesus, mas a ressurreição se constitui numa realidade particular,
porque, de um lado, refere-se ao Jesus histórico concreto em si e não à nossa afirmação de fé e, de
outro, afirma uma realidade que não mais pertence à nossa dimensão histórica, o que se vê pela
experiência do ressuscitado só se haver comunicado aos crentes e não aos seus adversários.
Rahner nos diz que a fundamentação de sua tese visa à fé em Jesus Cristo, o que só podemos
tratar interpretando Jesus como o portador absoluto da salvação e isso já legitimado pela
ressurreição, o que somente pode ser pensável “no interior do círculo da fé una”, posto que o
conhecimento salvífico exige do homem unificação na única dimensão capaz de permitir que uma
pessoa possa a-preender algo que goze de significado salvífico: a da transcendentalidade na graça.
Ressaltando, com isso, que os relatos do Novo Testamento são no todo e nas partes,
afirmações de fé, Rahner passa a considerar o círculo entre fundamentação da fé e a fé ao se
perguntar na perspectiva histórica, o que não foi somente objeto, mas também motivo da fé, ao
indagar-se: Será que Jesus teve consciência de ser o portador absoluto da salvação e será que esta
pretensão pode ser afirmada, com segurança para a nossa consciência, como apreendida no
conhecimento histórico?
Rahner assevera que há duas teses fundamentais à cristologia quanto à fé. Primeira, Jesus
não se considerou apenas como um a mais entre os muitos profetas, entendendo-se como o Profeta
escatológico, como o portador absoluto e definitivo da salvação. Segunda, essa pretensão de Jesus é
338
Cf. CFF 287-336.
130
fidedigna para nós se, a partir da experiência transcendental gratuita da autocomunicação absoluta
do Deus santo, considerando o acontecimento que desvela o portador da salvação em sua realidade
global, ou seja, a ressurreição de Jesus.
Rahner restringe os milagres de Jesus à análise da ressurreição, e de sua credibilidade
histórica, posto que a ressurreição possui identidade suprema de sinal e de realidade salvífica, por
nos interpelar radicalmente, apelando à nossa esperança de salvação e ressurreição que se dá por
necessidade transcendental.
Por outro lado, Rahner recorda que a ressurreição da “carne” que é o homem, não significa
ressurreição do “corpo” que é um dos componentes que constituem o homem. Por isso, quando o
homem afirma a sua existência como permanentemente válida e a ser redimida, está afirmando “na
esperança” a sua ressurreição e superando um dualismo platonizante. Assim percebemos o homem
tal como ele é: uno, posto que a fé veda que se excluam partes e dimensões do homem, como se
fossem irrelevantes para o seu estado de definitividade.
Assim, Rahner estende à cristologia da primeira experiência dos discípulos com o Jesus
crucificado e ressuscitado, a metáfora de que é “desde a flor que se pode conhecer a raiz e viceversa”. Com isso, busca a revelação mais originária enquanto “evento e experiência de fé” para
tratar de maneira compreensível o “círculo entre a experiência originária e a sua interpretação” sob
a alegação de que se a fé vale como esperança em nossa ressurreição, então a fé crê a ressurreição
primeira, do próprio Jesus.
Em outras palavras, a fides qua e a fides quae, o ato de fé e o conteúdo da fé podem estar
dadas juntos e de forma inseparável; toda fides qua, enquanto liberdade absoluta do sujeito
procedente de Deus e em orientação para ele, já é fides quae na própria ressurreição, pelo menos
implicitamente.
O que Rahner apresenta é uma proposição para o entendimento de sua teologia da
ressurreição que se baseia na esperança transcendental de ressurreição, que constitui o horizonte
dentro do qual o homem pode compreender a experiência de fé na ressurreição de Jesus, pois essa
esperança transcendental na ressurreição busca necessariamente mediação e confirmação históricas
em que ela possa se exercer expressamente e, com o quê, adquire característica de esperança
escatológica, que se acende na centelha da esperança do que já se realizou.
Em sua inesgotável habilidade em questionar, Rahner pergunta ainda: Mas qual é a
pretensão real que se percebe como válida na ressurreição de Jesus Cristo? E ele ensina que é
precisamente a pretensão que Jesus teve em sua vida, a de que “com ele” ocorre a proximidade nova
131
e insuperável de Deus, proximidade que ele chama de reino de Deus, que veio e que vem, e que
exige do homem a decisão explícita de aceitar ou não a este Deus, que assim se fez próximo.
Este profeta Jesus considera a sua palavra como a última e insuperável, com a pretensão que
ressoa em sua palavra, que supera a própria essência do profeta. E nós devemos pensar a Sua
palavra como a última palavra de Deus. Não porque Deus deixará de falar, mas porque a palavra
presente em Jesus é última porque para além dessa palavra nada mais existe a dizer. Em Jesus, Deus
se disse a si mesmo em sentido estrito e rigoroso.
3 – Cristologia existencial
Introdução
Nosso autor alega que para promover uma maior unidade entre a cristologia teológicofundamental e a cristologia dogmática, devemos inserir em nossa reflexão sobre a cristologia
transcendental, que examinamos acima, uma complementação que priorize a existência sobre a
reflexão abstrata e formal a seu respeito.
Em sua análise anterior, vimos que Rahner aponta salvação e fé como um processo que
“abrange e atinge globalmente o homem uno e inteiro” e que não pode ser construído mediante
reflexão pura, primeiro porque a reflexão não pode captar adequadamente o processo reflexo da
existência e, segundo, porque o homem jamais vive de pura reflexão.
Rahner, que toma as Escrituras como pressupostas em toda a sua teologia, diz que o cristão
pode e deve aceitar a “cristologia” que pratica em sua vida, na fé una da Igreja, ou no culto prestado
ao seu senhor ressuscitado, ou na oração em seu nome, ou na participação em seu destino até a
morte com ele. Para esta experiência global, que não podemos submeter adequadamente à reflexão mas que paradoxalmente dá testemunho de si mesma -, continua válida a confissão de fé de Gl 1, 8
ss e é em vista dela que o cristão continua autorizado a dizer ainda hoje: “Senhor, a quem iremos?
Tu tens palavras de vida eterna”(Jo 6, 68)339.
A reflexão sobre o que de libertador, de vivificante, e que tudo encerra em um
sentido misterioso e imperscrutável, que a partir de Jesus Cristo chega ao crente,
pode talvez de início (como reflexão!) entender a fé em Jesus Cristo apenas como
uma entre outras possibilidades abstratamente pensáveis de haver com o problema
da vida e da morte. Mas a reflexão como tal não precisa produzir mais: ela
apreende essa possibilidade como dada, já realizada, salvífica; não vê outra melhor
339
CFF 347.
132
como concretamente possível; isso basta para que, para além das possibilidades da
reflexão, o crente possa deixar-se apreender pela pretensão de absoluto de Jesus, a
que a fé e não a reflexão, responde com um sim absoluto e exclusivo340.
3.1 – A necessidade de uma cristologia “existencial”
Queixa-se Rahner que o tema da cristologia existencial não ocorre na dogmática corrente,
sendo estranhamente relegado à consideração dos mestres da vida espiritual e da mística cristã. Ele
justifica porque
o cristianismo que não é uma teoria abstrata da realidade que possa ser pensada
como uma coisa diante da qual se tomam posições pessoais. “Em sua essência
mais própria, o cristianismo entende-se realmente como processo existencial, ou
seja, como o que chamamos de relação pessoal com Jesus Cristo”341.
Neste ponto esclarecemos que este trabalho não toma ainda a relação existencial com Deus
que se dá no que Rahner cunhou de cristianismo anônimo e implícito, por ser nossa meta aqui
restrita ao cristianismo pleno, consciente de si mesmo na audição crente da palavra do evangelho na
profissão de fé da Igreja, nos sacramentos e no exercício expresso da vida cristã, que se sabe em
referência a Jesus de Nazaré342.
É deste ponto de vista que Rahner vê que “sempre somos cristãos para nos tornarmos
cristãos”. E isso vale também para o que chamamos de relação pessoal com Jesus Cristo na fé,
esperança e caridade que, por se tratar de uma realidade existencial, está sempre apontando o que o
homem ainda deve conquistar e levar à realização radical, pelo empenho de toda a sua existência
pessoal, através de toda a longitude, latitude e profundidade de sua vida: a relação pessoal com
nosso Senhor, que nos torna cristãos343.
Assim, no dizer bonito de nosso autor, a experiência humana é um convite ao homem para
que se entregue com paciência, com abertura e fidelidade, ao desenvolvimento de sua própria
existência cristã, até que essa vida, passo a passo, talvez em meio a dores e falhas, venha a se
desenvolver, transformando-se na experiência de relação pessoal com Jesus Cristo.
Então essa será uma experiência que expressará e confirmará por si só o que aqui
podemos dizer de maneira pálida e abstrata, ainda que se trate da coisa mais
340
CFF 347-348.
CFF 360.
342
CFF 361.
343
CFF 361.
341
133
concreta, e ao mesmo tempo absoluta, ou seja, de nós mesmos em nossa sempre
irrepetível relação com Jesus Cristo344.
3.2 – A reflexão teológica descendente e a ascendente
Do ponto de vista descendente, a fé cristã professa que Jesus Cristo é portador absoluto da
salvação, a mediação histórica concreta de nossa relação imediata para com Deus em seu mistério,
que se comunica a si mesmo. Assim, a fé sabe que o Deus-homem, evento da absoluta unidade de
Deus e homem, não culmina com o fim da história que decorre temporalmente, porque permanece
como é - e constitui momento essencial da realização plena e consumada do mundo, o que é
conseqüência da verdade fundamental da ressurreição de Cristo - posto que a realidade humana de
Jesus Cristo, enquanto realidade do Logos eterno, permanece eternamente345.
Mas essa consumação eterna para além do tempo da humanidade de Cristo que,
enquanto humanidade do Logos divino, goza da visão imediata de Deus, com
certeza não se pode entender somente como consumação e recompensa individual
do homem Jesus só em sua própria existência humana para ele mesmo. O Cristo
“ontem, hoje e para a eternidade” da epístola aos Hebreus (Hb 13, 8) deve ter
significado soteriológico para nós próprios. A realidade humana de Jesus deve
sempre ser para nós a mediação permanente da proximidade imediata para com
Deus346.
Ao fundamentar a relação pessoal com Jesus Cristo por via ascendente, ou seja, partindo de
baixo para cima, da unidade entre o amor concreto para com o próximo e o amor para com Deus,
veremos que o amor pessoal para com Jesus Cristo, enquanto realização e fundamentação
existencialmente mais real desse amor ao próximo resulta na mediação permanente para a
proximidade imediata para com Deus.
Existe, pois, significado salvífico permanente da humanidade de Cristo, ou melhor, do
homem Jesus? Diz Rahner que se este homem e sua realidade humana tal como é também momento
interno de nossa própria realização salvífica consumada e plena como tal e não só em sua história
temporal, e se nossa salvação é sempre singular e irrepetível, então não se pode duvidar de que uma
relação pessoal com Jesus Cristo em amor íntimo e pessoal seja parte essencial da existência cristã.
No seu encontrar-se com Deus, no seu precipitar-se no abismo absoluto, infinito e
incompreensível de todo ser, o homem não se dilui no universal, mas pelo
contrário, se faz absolutamente singular e único, pois somente assim obtém relação
344
CFF 361-362.
CFF 362-363.
346
CFF 363.
345
134
única com Deus, relação na qual este Deus é o seu Deus e não só uma salvação
geral e igualmente válida para todos347.
3.3 – A unidade entre o amor concreto ao próximo e o amor a Jesus
De acordo com a doutrina cristã acerca da unidade entre o amor a Deus e o amor ao próximo
enquanto realização salvífica da existência cristã, o amor ao próximo não é apenas mandamento a
ser cumprido se é que o homem deseja estar em relação salvífica com Deus, mas é a realização pura
e simples do cristianismo, pressupondo-se que esse amor ao próximo tenha se desenvolvido até
atingir sua essência plena e que acolha expressamente o seu fundamento e o seu “sócio” misterioso,
a saber, o próprio Deus, sem o qual a intercomunicação pessoal entre os homens no amor não pode
atingir sua profundidade radical e seu caráter definitivo.
Todo o dito por Rahner nestas páginas se refere a quem busca e tem a coragem de amar a
Jesus de maneira pessoal e se arrisca a encontrar-se com ele pessoalmente e, ao fazê-lo, recebe
como graça a coragem de não temer. Esta afirmação somente é percebida quando nós cristãos não
nos referimos a uma idéia abstrata de um Deus infinito.
A experiência de um encontro com o Jesus concreto dos Evangelhos, em toda a
concretude e irredutibilidade de sua figura história, não confina o homem que
procura a infinitude incompreensível do mistério absoluto de Deus à concretude de
um ídolo [...]. A experiência concreta deste encontro, ao contrário, o abre para a
real infinitude de Deus348.
Por isso, a vida em Cristo não é cumprimento de normas proclamadas pelo magistério da
Igreja. Para além disso, é o apelo de Deus mediado pelo encontro com Jesus numa mística singular
do amor - que se realiza na comunidade dos que crêem e amam, comunidade a que chamamos de
Igreja.
pois aí, no seu evangelho, ao seu kerigma – que para além de toda doutrinação
atinge o coração do indivíduo -, no sacramento e na celebração da morte do
Senhor, bem como na oração individual e na decisão última da consciência, Jesus,
aí, então, como o Cristo se oferta a si mesmo e nele o próprio Deus se oferta349.
Rahner lembra que lemos a biografia de Jesus, e que não é a biografia de alguém do
passado. Sua biografia ganhou definitividade na sua ressurreição. Ele avança e diz que
347
CFF 363.
RAHNER. Foundations of Christian faith. NY: Crossroad, 2002, 310. A presente citação foi colhida da versão em
inglês. Cf. CFF 365.
349
CFF 366.
348
135
lemos a Sagrada Escritura ao modo de dois amantes que se entreolham, juntos, na
vivência de seu dia-a-dia. Sentimos e experimentamos na profundeza de nossa
existência o que este ser humano concreto tem a nos dizer, concretamente. Nós nos
permitimos aprender com ele coisas que, de outra maneira, não conheceríamos
para a nossa vida. Nós nos encontramos face a face com a síntese, o indissolúvel,
entre normas que são eternamente válidas e Jesus como o único modelo do
cumprimento de tais regras. O Absoluto concreto, em quem a abstração das
normas e a insignificância do meramente individual e contingente, transcende e
supera350.
Conclusão
Em 1981, já ao final de sua vida, o nosso teólogo escreve um livro em duas partes351. A
primeira, cristológica, responde à pergunta: O que significa amar Jesus? A segunda, antropológica,
responde à pergunta: Quem é meu próximo?
São páginas em que o teólogo permite ao poeta Rahner dizer o “mesmo”, com suma
sensibilidade. O que significa amar Jesus, parte de mim, ou seja, fala na experiência que todo e
qualquer ser humano faz do amor. Agora, o autor dos parágrafos intrincados, toma o amor entre
dois amantes e, com tinta suave, pergunta: O que acontece quando, apesar de suas diferenças, duas
pessoas se apaixonam? Podemos dizer que este amor as torna uma só pessoa?
Elas são diferentes, pessoas distintas. As suas respectivas existências não são dadas
a priori como se jorrassem de uma mesma fonte e origem. Será que com toda
proximidade física e fisiológica, os dois permanecem diversos, distintos? Sim,
porque mesmo “aí” os amantes tombam, desabam de costas, separando-se, mesmo
quando, no ato supremo de amor, eles parecem alcançar a unidade, a
singularidade352.
Diz Rahner que este é “o ponto” exato da questão: a diversidade dos amantes é sustentada
pela própria base do amor existente entre eles. Isto porque nem a diversidade entre os amantes é
causa de impedimento amoroso, nem a distância no espaço e no tempo entre duas pessoas que
perseguem o amor, e de fato se amam, prenuncia a impossibilidade de amar. Até porque, diz ele,
antes de encarar a dificuldade da separação espaço-temporal, o amor tem que encarar uma diferença
muito mais radical.
E a experiência mostra perfeitamente que o amor faz isso. Esta radical diferença
entre os amantes é confirmada no próprio amor, já que o amante ama e afirma o
350
K. RAHNER. The love of Jesus and the love of neighbor. NY: Crossroad. 1983. Originalmente publicado sob os
títulos Was heisst Jesus lieben? e Wer ist dein Bruder?, respectivamente, nos anos de 1982 e 1981. Breisgau: Verlag
Herder. Aqui, 22-23. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura TLJ, segundo a edição em Inglês.
351
TLJ.
352
No inglês, “oneness”. TLJ 21.
136
outro precisamente “como” outro, e não simplesmente sorvendo o amante para
dentro do seu jeito peculiar de ser.
Note-se que, por “ponto” exato, por alvo do seu pensamento, o que Rahner persegue é a
tematização, por meio do exemplo de uma experiência amorosa entre dois seres humanos, do amor
que é tanto capaz de superar a barreira inevitável da separação física quanto da separação temporal
– ambas impostas pela mútua alteridade inerente aos sujeitos que se amam.
Os amantes naturalmente almejam a maior proximidade possível nas trocas
palpáveis de seus afetos – para alívio e expressão da intensidade de seu amor. Mas
eles amam um ao outro através do tempo e do espaço. Este amor sabe que está no
rumo certo, mas que ainda não alcançou a vitória da definitiva união no amor. [...]
Mas dizer que este amor se contamina ou acaba pela distância no tempo e no
espaço que separa os amantes, é esvaziar de sua verdadeira e genuína essência o
amor353.
Rahner, apaixonado por nosso Senhor Jesus Cristo, diz que também eu posso amar Jesus
Cristo. Diz que eu posso amá-lo sem hesitar porque a amada que sou eu está viva com Deus, o que
somente é possível ser estipulado pelo toque da fé que me faz sentir a iniciativa deste Jesus - que
salta das profundezas da divindade que o preserva vivo - e toma a iniciativa neste amor por mim e,
através do que chamamos graça, torna possível o meu amor por ele.
Esta é a Parte central do presente trabalho. Culmina com uma espécie de desabafo de
Rahner, depois de haver contado uma conversa por ele mantida com outro teólogo. Num tom
informal, ele suspira e confessa:
Eu acho que uma pessoa pode e deve amar Jesus, na imediaticidade e em
concretude, com um amor que transcenda o espaço e o tempo, em virtude da
natureza do amor em geral e pelo poder do Espírito Santo de Deus354.
Amém.
353
354
TLJ 22.
TLJ 23.
137
Terceira Parte:
A liberdade na unidade do Espírito Santo
138
As duas Partes anteriores buscaram a liberdade em relação à totalidade da existência
humana no que esta se abre à fé que confessamos, professamos e testemunhamos na Igreja de Nosso
Senhor Jesus Cristo. A validade de recordar o rumo tem o propósito de voltar ao ponto de partida
cristão, confessado e proclamado em nossas assembléias e a que chamamos sumariamente “Credo”.
É na hora de explicitar qual é a realidade concreta que permite ao teólogo as suas
abstratas afirmações, que a linguagem da teologia deverá necessariamente
reconduzir para aquela outra linguagem que sustenta como fonte toda teologia
possível; deverá conduzir para a língua materna da comunidade cristã; para as
palavras nas quais os cristãos professamos a nossa fé, não como proposições
dogmáticas ou como enunciados ortodoxos; mas também não como devoção
individual ou subjetiva, mas como confissão atual da fé que da Igreja e em Igreja
todos recebemos. Essas palavras concretas, com a sua gramática, sua sintaxe e seu
estilo próprios, são sempre mais originais, mais primigênias, do que qualquer
teologia. Elas se proferem no tempo e no espaço originários da Sagrada Liturgia,
que é o âmbito e o ambiente da socialização cristã, isto é, o espaço e o tempo onde
os cristãos dizemos o que somos e somos o que fazemos: Povo de Deus, Corpo de
Cristo e Templo do Espírito Santo355.
Por isso, e acompanhando a irrefutável síntese acima, é necessário esclarecer que não
colhemos textos de Rahner com objetivo de visualizá-los como a um “credo rahneriano”, à moda
dos tantos já escritos por grandes teólogos356. Tal ressalva é importante porque essa pretensão seria
descabida em face de Rahner, nas últimas páginas de seu Curso fundamental da fé357, analisar
Breves fórmulas de fé, como conclusão de todo o seu esforço por considerar uma vez mais e de
outra maneira o todo do cristianismo, o que examinaremos ao final desta Terceira e última Parte.
Se, de um lado, o nosso autor não apenas defende, mas também apresenta três fórmulas
breves da fé, de outro, ele reconhece que o Símbolo dos apóstolos teve semelhante função,
sobretudo como profissão de fé dos batizandos adultos. Em sua argumentação, o teólogo alemão
toma as fórmulas brevíssimas de fé do Novo Testamento como necessárias para a conservação do
que se aprende durante o catecumenato, pela via de uma clara estruturação da “hierarquia das
verdades”358, o que veio a se constituir doutrina no Vaticano II ao ensinar que nem tudo o que é
verdade deve por isso mesmo ser tido por importante, a fim de que a plenitude da fé cristã não se
venha tornar amorfa ou que, na prática religiosa, o fiel passe a dar valor excessivo ao que é
meramente secundário. Neste sentido, irresistível aqui a eloqüência do pai e doutor da Igreja,
Basílio que, em seu Tratado sobre o Espírito Santo, nos idos de 374 d.C, afirma:
355
VÁZQUEZ MORO. “O que fazem as pessoas divinas?” EE 108. Itaici: Revista de Espiritualidade Inaciana. SP:
Loyola. Número 39, ano 1, 2000, 7.
356
Cf. Karl Barth, Urs Von Balthazar, B. Sesboüe, Hans Küng entre outros.
357
CFF 517-531.
358
Cf. Unitatis redintegratio 11. Mencionado no CFF 517.
139
Há pouco estava rezando com o povo. Glorificava a Deus Pai com ambas as
formas de doxologia: ora “com” o Filho, “com” o Espírito Santo; ora “pelo” Filho,
“no” Espírito Santo.
Alguns dos presentes nos acusaram de empregar palavras estranhas e até
contraditórias entre si359.
Basílio, tal qual Rahner, aponta a riqueza escondida e preservada nas “palavras” da
doxologia cristã. Isto significa que no processo de assemelhar-se a Deus, o homem passará pela
aquisição de um “conhecimento”, que somente podemos obter pelo ensino que nos é dado no
“aprendizado” das palavras da doxologia cristã.
São as “palavras” que nos introduzem na fé e que, por sua vez, nos introduzem no
conhecimento que busca atingir a perfeição da sabedoria. Sabedores de que no Novo Testamento a
perfeição reside em “ir até o fim” (teleomai), o significado profundo da perfeição cristã é, assim,
teleológico e, portanto, implica para o cristão uma caminhada orientada pelo Espírito Santo que foi
derramado em nós e que em nós está presente como a chama que ilumina não o caminho, mas que
nos ilumina na marcha que buscamos percorrer até o final. A beleza dessa imagem somente se
revela quando o homem percebe em seu coração que é o “fim” da marcha que dá sentido ao
caminho que percorremos peregrinando rumo ao Senhor.
Não ouvir superficialmente os termos teológicos (Pai, Filho, Espírito Santo), mas
tentar descobrir o sentido oculto de cada palavra, de cada sílaba, não é próprio dos
tíbios, e sim daqueles que conhecem a finalidade de nossa vocação, pois nos é
proposto assemelharmo-nos a Deus, quanto possível à natureza humana. Todavia,
não há semelhança sem conhecimento (gnosis), e este conhecimento se obtém por
meio de ensino (didaskalia)360.
Feita esta ressalva, podemos voltar a olhar a Primeira Parte deste trabalho sob novo ângulo,
como se tivéssemos partido do Pai e criador e da sua relação com o ser humano, o que se dá ao
longo de nossa existência que se vai abrindo, observando no percurso deste estudo o movimento
que tira o homem de si, atirando-o nos obscuros abismos do deserto daquele que chamamos Deus,
numa experiência que são Paulo vai chamar de louca.
Na Segunda Parte acompanhamos a experiência desse movimento que lança o coração do
homem ao alto, numa altura que atinge o paradoxo das profundezas do obscuro abismo que o
cristão percebe como mistério, como o mistério que é santo, em quem nos atiramos acolchoados na
certeza da graça de nosso Senhor Jesus Cristo.
359
360
TES 91.
TES 90.
140
Com esse novo olhar, arriscamos apostar qual fosse a afirmação que o homem mais teria
repetido ao longo desses dois milênios depois de o Cristo haver dividido o tempo. Chegamos numa
síntese apertada da homologia cristã. “Creio em Deus Pais todo-poderoso, criador do céu e da
terra”. Mesmo considerando que aí não haja uma verbalização exata do contido nestas palavras que podem esconder ou contrariamente expor uma imagem de Deus que sabemos, nunca foi, não é,
e jamais será a imagem certa, porque essa certeza nos escapa por entre os dedos como água-, a
aposta é que aí está o que de mais natural e evidente é próprio do homem, daí a convicção de o
homem afirmar que a sua existência não encontra origem em si mesmo, mas em Deus, nossa fonte,
o criador de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Dizemos isto porque a significância da homologia cristã é, em certo modo, o esforço de toda
a Primeira Parte, ou seja, dizer da imagem trinitária daquele que nomeamos, na fé, como nosso
Criador, o Deus que é Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, em que tudo é criado e continuamente
portado, pela história, no Espírito Santo.
As duas Primeiras Partes cuidam também dos pressupostos de Rahner. Esses pressupostos
partem da fé cristã que, como vimos, encontra-se sob permanente tensão que deriva basicamente da
experiência de Deus feita pelo cristão e a luta em que se vai buscar com honradez intelectual
colocá-la em palavras, assim também tateando o que se quer dizer ao dizer a palavra Deus.
Portanto, vimos que a nossa fé encara desafios em vista de o cristianismo ser a religião que toma a
existência do cristão como a totalidade da sua existência, e não como um adendo social às nossas
rotinas semanais.
É mais. E vimos que não somente é mais como também é diferente, porque ser cristão
implica uma experiência de Deus que não apenas nos arrebate aos céus, mas que passe a
efetivamente repercutir no chão de nossas vidas. Essa repercussão, o cristão e bem assim eu mesma,
percebo como algo edificante de mim. Eu, criada de forma inacabada, portadora de um existencial
permanente que permite perceber-me como um ser de transcendência remetida e orientada ao
Mistério Santo, eu, o fruto da infinita liberdade desse Ser ab-soluto, eu, assim me percebendo, nesse
sentido semelhantemente livre, descubro Nele, no Mistério mais querido, a liberdade que me liberta.
141
Capítulo I – Concepção trinitária de Espírito de Deus
Já insistimos sobre as dificuldades do “lusco-fusco” teológico da Trindade em nosso tempo
perturbado, como é notório, pela secularização da cultura ocidental. Diante disso, a terceira pessoa
da Santíssima Trindade sofre os efeitos epocais na tentativa de se estabelecer não uma concepção
atual de espírito, mas a do Espírito de Deus que “desceu” ao mundo para visibilizar e viabilizar o
aperfeiçoamento que possibilita a “subida” do homem em seu caminho a Deus.
Este trabalho, com as ressaltas efetuadas, adota a estrutura do “Símbolo dos Apóstolos”, que
conjuga as verdades que constituem a fé cristã e reúne os principais enunciados da fides quæ361.
Este seguimento, por si, aponta a pretensão da Terceira Parte, querendo dizer do mistério da fé do
Deus uno e trino, a partir do que ousamos professar no terceiro artigo do Símbolo NicenoConstantinopolitano:
Creio no Espírito Santo,
Senhor que dá a vida,
E procede do Pai [e do Filho];
E com o Pai e o Filho é adorado e glorificado;
Ele que falou pelos profetas.
Creio na Igreja,
una, santa, católica e apostólica.
Professo um só batismo para remissão dos pecados.
E espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir.
Amém.
O resultado óbvio da afirmação dos parágrafos supra é que haveremos de estabelecer
parâmetros e condições para que, de uma concepção humanamente formulada do substantivo
“espírito”, seja possível o salto santificador para nele crer como o Espírito de Deus, que desce ao
mundo não para conosco habitar o mundo, mas para nos tornar por ele povoado, por ele ocupado, de
modo divinizante, ou seja: o tempo da experiência do Antigo Testamento, em que os homens
caminhavam na certeza na proximidade de um Deus que os assegurava “vou contigo”, foi superado
pelo evento Jesus Cristo que toma a dianteira e diz ao homem: “vem comigo”. Agora, o Espírito de
Deus, ao inabitar o homem, diz: “vou em ti”. Portanto, recebemos do Senhor Jesus o seu Espírito, o
portamos no tempo como uma marca, um selo, a tatuagem permanentemente a nos recordar na
história que somos o templo do Espírito de Deus que é Deus.
Por isso é “sob” o significado de “causa santificadora” do Espírito que advém a consciência
de que somos (pneumatophoros), portadores do Espírito que, em “si”, emana a própria luz que
361
CFF 524-531.
142
penetra o mundo pelos meus olhos a fim de que eu – e não ele – possa ser como um refletor a
iluminar o caminho que, de outra forma, na escuridão, me seria invisível.
E porque porto esta luz, vejo. E porque vejo, reajo em minha vida ao que vejo. Este caminho
iluminado pelo Espírito Santo culmina no exercício conseqüente de um discernimento que
acompanha a todos como “marca” de purificação, fruto da permanente conversão cristã.
Diz Rahner que a Escritura indubitavelmente fala de conversão, de uma metanoia (Mt 3, 2;
Mc 1, 15, Lc 5,32), da decisão de seguir o Cristo, o nosso “sim” ao chamado de seu discipulado, à
decisão de cumprir às exigências da resposta que é Jesus à nossa infinita pergunta de como alguém
pode se tornar perfeito.
A pistis ou qualquer outro nome usado no Novo Testamento para esta experiência
de retornar e nascer de novo, [...] pressupõe igualmente que a vida do homem
inabitado pelo pneuma é capaz de crescer e de progredir [...] porque o seguimento
do mandamento de Cristo nos torna mais perfeitos, embora haja uma total ausência
de definição para classificar os estágios dessa progressão. Segundo são Paulo, a
progressão cristã tem uma orientação predominante em direção ao conhecimento:
o homem perfeito se distingue do homem menos perfeito por sua maior sophia e
gnosis (1 Cor e Hb), o que não tem qualquer semelhança com algo meramente
racional e intelectualista. O maior conhecimento é um dom tornado efetivo pelo
Espírito Santo362.
Nesta Terceira Parte, ficará mais e mais evidente o “envolvimento” trinitário, que se per-faz
ou se aperfeiçoa na unidade do Espírito Santo. Daí ser nosso objetivo cada vez acentuar e estreitar o
que é possível dizer do Espírito Santo e da “experiência” que cada ser humano faz em sua vida,
“apesar de constantemente estarmos nos perguntando quando e como uma experiência como esta
ocorre em nós”363.
1 – O significado de causa santificadora do Espírito numa doutrina sistemática da Trindade
Introdução
Na sombra da teologia de Rahner, tomamos as palavras do teólogo ao cobrir seu ensaio de
uma Doutrina Sistemática da Trindade. Assim diz ele:
“Sistemático” significa aqui algo de muito simples: Depois que se ouviu, tornandose por medida [...] o que dizem a Escritura, a história dos dogmas e o magistério
eclesiástico sobre a Trindade, pretende-se tornar a dizer resumidamente o que se
362
363
THI III. Reflections on the problem of the gradual ascent to Christian perfection. Aqui, 5.
THI XVIII. Experience of the Holy Spirit. As próximas referências a esta obra se farão pela sigla EHS. 190.
143
ouviu. As duas coisas não são o mesmo. É absolutamente impossível ouvir
uniformemente e ter por igualmente importante tudo o que se diz: quem ouve
forçosamente deixa de ouvir certas coisas. É por isso que dizer o que se ouve e
dizer o que se ouviu e guardou não é o mesmo. Por isso, neste lugar deixaremos de
dizer muitas coisas que se ouviram – ou poderiam ter sido ouvidas. [...] Aqui nos
atribuímos a liberdade que a própria teologia tradicional das escolas tacitamente se
atribuiu, a liberdade da temática explícita364.
A singeleza do modelo de “sistematização” acima é acentuada no último parágrafo deste
valioso texto, O Deus trino, fundamento transcendente da história da salvação, onde Rahner
reconhece que “neste espaço era absolutamente impossível expor a doutrina „sistemática‟ da
Trindade a não ser de modo muito a-sistemático”.
Ainda assim, ele reconhece o procedimento por ele adotado como legítimo porque muitas
questões de sutil conceituação escolástica são de pouca utilidade querigmática e, por outro lado,
porque é isto o que decorre justamente de seu axioma fundamental – a cristologia e a doutrina da
graça, a rigor são a doutrina da Trindade, os dois capítulos dessa doutrina sobre as duas processões,
respectivamente missões divinas (aspecto imanente e econômico). Por conseguinte, o aqui exposto
não é outra coisa senão certa antecipação formal da cristologia e da penumatologia (doutrina da
graça).
Não é por outra razão que esta sistematização será valorizada nas próximas linhas, nos
pontos onde o estudo de uma cristologia e uma pneumatologia devem se tocar de forma a constituir
“o” ponto que precisamente une e caracteriza o evento salvífico fundante de nossa fé: a
autocomunicação de Deus.
1.1 – Ouvir a Escritura
Cabe aqui um esclarecimento sobre o livro que “guia” este trabalho, o CFF. Folhear ou
percorrer o índice desta obra revela que, dentre as nove seções em que o livro se divide nenhuma é
dedicada à Terceira Pessoa da Trindade. Mais. A Trindade e o axioma raheriano são explicitamente
tratadas em sumárias duas páginas.
Foi somente no transcurso deste estudo que esta aparente “ausência” foi se esclarecendo.
Depois de muitas dezenas de releituras deste livro base, depois de igual pesquisa em outros textos
dispersos, principalmente nos vinte e três volumes da edição em língua inglesa de suas Theological
Investigations e na coleção Mysterium Salutis, ouso inferir que a evolução do pensamento deste
364
ODT 331.
144
gigante explica, por sua imensa obra sobre a “graça”, em seus primórdios, a preocupação existencial
que se derrama por sobre a Terceira Pessoa trinitária, como a experiência universal de Deus, o que
resta amplamente comentado no tema da autocomunicação, ao menos enquanto oferta ao homem.
Talvez, por isso, Rahner fulmina suas impressões sobre o Espírito Santo:
“Mas a primeira coisa que devemos fazer é simplesmente dar ouvidos ao que a
Escritura nos diz sobre o Espírito Santo. “Isto” aceito, crido, vivido, abraçado, e
amado na profundeza de um ser – “isto” é o Espírito Santo !”365.
E acrescenta que “lá” ele nos encontra tal qual ele é e não como uma mera e abstrata
apropriação, posto que, em qualquer acontecimento, a nossa verdade, a nossa vida sobrenatural,
consiste na comunicação do Espírito divino.
O que alguém pode afirmar do conjunto da essência, glória e fim do cristão
resume-se a dizer que quando o cristão recebeu o Espírito do Pai foi encharcado
pela vida divina. “Isto” explica todo o resto !
Nós poderíamos somar a esta consideração que o Senhor glorificado é a fonte deste
Espírito.
E podemos ainda acrescer:
O Senhor com seu coração transpassado pela lança !” 366.
Rahner pontua que o cristão que se aproxima das Escrituras com a “cabeça aberta” pode
“mesmo nos dias de hoje” meditar sobre Pentecostes na percepção do Espírito como o que (m)ora
em nós e conosco de modo muito profundo para a nossa fala e, no acesso ao Pai, como o que nos dá
a segurança da vida eterna367. Ele diz que “estas e outras maravilhosas e sublimes leituras
(escriturísticas) que encontramos reunidas numa meditação sobre Pentecostes oferecem um auxílio
corajoso à nossa fé e à nossa reflexão”368. Mas adverte que:
já que as Escrituras não fazem apenas uma doutrinação sobre o Espírito que é nos
dado, mas ao mesmo tempo apela à nossa própria experiência do Espírito,
podemos corretamente perguntar “quando e como” tal experiência ocorre em
nós369.
1.2 – Páscoa e Pentecostes
Para empreender o desafio de “dizer” o que “ouvimos” no terceiro artigo do Credo,
seguimos o próprio Rahner que parte das Escrituras. Por isso é inevitável abraçar o Cristo e seu
365
The Holy Spirit as the fruit of Redemption. In TCF 355.
TCF 356.
367
Sob o tema, ver Primeira Parte, Capítulo 1.1.1.
368
THI XVIII, 190.
369
THI XVIII, 190.
366
145
Espírito, no que pudermos compreender e expressar por meio da Páscoa e de Pentecostes como
revelação de nossa experiência salvífica de origem.
De início, é preciso reconhecer que todas as solenidades que celebramos no ano
litúrgico – Natal, Páscoa e Pentecostes – são tão proximamente interconectadas
que apenas representam o desenvolvimento temporal de um e mesmo evento
salvífico, a estrutura temporal de uma única ação de Deus, desenvolvida na história
e na humanidade370.
Rahner insiste que esta única e indivisível ação de Deus é a definitiva e irrevogável
aceitação da humanidade na encarnação do Logos. No que o Logos assumiu a “natureza” humana,
ele necessariamente assumiu a “historicidade” humana de modo tal que esta assunção da realidade
da natureza humana somente foi completada quando ele trouxe a história desta realidade à sua
consumação, na sua morte.
O singular e a novidade do evento histórico que assumiu a natureza e a história
humana é a sua “finalidade” definitiva. Sempre e em todo lugar, onde a história
humana se desenrola, ocorre um diálogo de salvação ou de perdição entre Deus e o
homem. Por conseqüência, sempre e em qualquer lugar, a presença do Espírito se
faz presente para nos julgar e para nos enriquecer com a graça371.
Duelando com a idéia que fazemos de tempo, Rahner diz que este singular diálogo que
ocorreu continuamente por toda a história da humanidade estava “aberto”.
Antes da encarnação do Logos nenhuma palavra de Deus havia entrado na história
do mundo como um evento, nenhuma palavra de Deus se impunha final e
definitivamente, nenhuma palavra na qual Deus destinasse a si mesmo definitiva e
irrevogavelmente ao mundo, nenhuma palavra que o expressasse definitiva e
exaustivamente, nenhuma palavra que revelasse o último plano de Deus, nenhuma
palavra que trouxesse o significado do real clímax no drama da história do mundo,
nenhuma palavra que levasse esse drama ao seu fim trazia o seu esclarecimento
final372.
O diálogo se arrastou do início da história da humanidade até a chegada do Cristo. O
importante nesse diálogo é que a última palavra ainda não foi dita e, portanto, o seu todo ainda
permanece aberto, porque a história foi capaz de desenvolver-se em duas direções (bem e mal). Por
isso, quando dizemos que em Pentecostes o Espírito Santo desceu sobre toda carne, é fundamental
perceber que estamos nos referindo ao Espírito escatológico, o Espírito como dom irrevogável, ou
seja, para sempre presente.
370
THI VII, 195-197. In TCF 359.
THI VII, 195-197. In TCF 359.
372
THI VII, 195-197. In TCF 359.
371
146
“Este” é o Espírito da eterna predestinação do mundo como um todo à vida e à
vitória, o Espírito invencível que foi implantado no mundo e em sua história, e está
indissoluvelmente unido a ele373.
1.3 – O batismo no Espírito e a Santa Eucaristia
Rahner recorda que “porque” houve a Páscoa - morte e ressurreição -, houve Pentecostes.
Portanto, Pentecostes é o evento para o qual culminam todos os eventos da Páscoa, na busca de
plenitude.
“Este” Espírito Santo não estava lá antes de Cristo e em Pentecostes foi revelado
que “este” Espírito é o Espírito de Cristo que, em sua emanação e em seu trabalho
no mundo, partilha da “finalidade” de Cristo em si; é o Espírito do Cristo
crucificado e ressuscitado e, por conseguinte, o Espírito que não desaparecerá do
mundo e da comunidade de Cristo.
Para os homens, Pentecostes é a revelação de que o Espírito é o Espírito do Cristo
ressuscitado, o Espírito que fora prometido ao mundo. Esta revelação, aceita em um ato de fé por
todos por sobre quem o Espírito desceu, é a resposta para a pergunta central formulada por Basílio
em seu Tratado: De onde ou como nos tornamos cristãos?
Pela fé, será a resposta. De que maneira seremos salvos? Pela regeneração, pela
graça do batismo374. [...] Relativamente à confissão de fé, entregue na traditio
simboli, quando, renunciando aos ídolos, aderimos ao Deus vivo, se alguém não a
guarda sempre, e não a segura durante toda a vida, qual sólida salvaguarda, faz-se
estranho às promessas de Deus, opondo-se ao documento escrito de próprio punho,
entregue por ocasião da reditio simboli.
Por isso lembra o teólogo alemão que Pentecostes é a solenidade da descida definitiva do
Espírito Santo, na celebração do Batismo no Espírito.
Pentecostes verdadeiro não é uma visita esporádica do Espírito, um êxtase místico
momentâneo. Pentecostes é a vital manifestação de que o Espírito jamais se
retirará do mundo até o final dos tempos375.
Mas o batismo, um dentre sete sacramentos que acompanham a vida do cristão, precisa ser
relacionado à sagrada eucaristia, porque
se o Batismo é o sacramento de iniciação na vida cristã, a eucaristia é o sacramento
no nosso crescimento diário na graça, o sacramento do nosso crescimento diário
naquele amor que é derramado por nós pelo Espírito Santo; é o sacramento que
pretende preservar, despertar e desenvolver em nós a vida divina em que
373
THI VII, 195-197. In TCF 360.
A palavra “regeneração” é utilizada com sentido de nascimento do alto (palingenesis,palingenese). In TES 118-119.
375
TCF 362.
374
147
mergulhamos e renascemos pelas águas do Espírito Santo, na pia batismal. Pelo
batismo, nós mergulhamos no ciclo vital do Cristo. De lá para cá passamos a viver
de sua graça, vivemos nele e fora dele376.
Conclusão
Creio na Igreja Católica.
Esta afirmação inclui-se no terceiro artigo do Símbolo da nossa fé por conseqüência da
afirmação antecedente de que cremos no Espírito Santo de Deus. Rahner lembra que cremos na
Igreja porque onde está a Igreja, “lá” também há um contínuo Pentecostes e, então, também nós
podemos continuamente orar: Veni Sancte Spiritus.
E porque dizemos esta oração em Igreja, então sabemos que somos ouvidos,
porque o espírito de silêncio e de recolhimento que conforta os nossos corações
está maduro para receber o Espírito da liberdade e do amor, que ilumina aos que
cremos no Espírito Santo que é vida eterna377.
Porque nós os cristãos cremos em Igreja, porque somos o Povo de Deus que se reúne em
assembléia, Rahner elenca as implicações da descida do Espírito para nós que, individual e
coletivamente somos orientados à santificação por meio do Espírito.
– O significado de causa perfectiva378 do Espírito em dois milênios de evolução do dogma
Introdução
Durante todo o estudo realizado para a elaboração deste trabalho, um ponto sempre tomou a
minha atenção como o argumento que mais e melhor explicita a atuação efetiva do Espírito Santo
na história, onde ele é penhor da verdade e tem o ônus de portá-la até o final dos tempos.
Queremos, pois, agora realçar da teologia de Rahner a delicada questão da Igreja entre a
tradição da verdade eterna e a possibilidade de evolução do dogma. O tema é importante para uma
sistematização que se pretenda da teologia trinitária porque faz dois milênios é na Igreja de nosso
Senhor Jesus Cristo e sob poder do Espírito Santo de Deus que conhecemos, preservamos e
tornamos efetivas em nossas vidas as verdades de nossa fé, o que a história apontou como nem
sempre tendo sido uma tarefa fácil à hierarquia da Igreja ao longo do tempo.
376
THI III, The Eucharist and suffering. 164-165.
TCF 366.
378
Perfectivo. Acabamento completo; perfeição. JOSÉ PEDRO MACHADO. In Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa. 4º vol. Lisboa: Livros Horizonte. 8ª ed., 343.
377
148
Esta Igreja que é histórica, constituída pelo povo de Deus, cada ser humano que lhe soma na
fé, esta Igreja é imediatamente fundada e para sempre influenciada pela “descida” do Espírito
Santo. Senão, vejamos. Carregar uma instituição através da história não tem sido fácil a qualquer
natureza de instituição. Carregar uma instituição através da história, instituição que tem por núcleo
a tradição das verdades da fé é a tensão que sofre a Igreja de todas as eras, em especial depois de
superado o período que chamamos cristandade.
“Tradição” na história significa muito, se reconhecermos que somos fruto de escolhas, de
maneiras e de modos de avaliar e julgar as situações de vida com que nos deparamos. Nossas
reações são influenciadas por pessoas com quem convivemos e de quem aprendemos. Herdamos
delas – e não apenas de nossos antepassados – toda uma riqueza que desemboca na idéia de que eu
sou o resultado dessa herança que, em uma palavra, chamamos tradição. O homem que é assim
moldado pela tradição, carrega como um “carimbo” estampado em suas reações, carimbo que
remete às referências passadas, para que o homem possa assumir atitudes diante do mundo e de
desafios futuros. Essa “marca” representa a bagagem que nos faz aceitar ou rejeitar o que se põe
diante de nós como escolha a ser feita por um ato de liberdade.
Se isso é assim para toda a experiência humana de tradição, o que seria, então, uma noção
católica de “tradição” para os tempos correntes, considerando que o cristianismo é uma religião de
revelação, baseada num evento histórico salvífico: a vida, o agir e a morte de Jesus de Nazaré que
afirmamos, na fé, ter sido ressuscitado por Deus. Tomamos, de início, os limites da palavra
“tradição” na constituição dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina, em que, na tradição da
Igreja, se acrescenta a graça do Espírito Santo:
A Igreja, na sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transmite a todas
as gerações tudo que é e tudo em que crê, sendo nela que se desenvolve a tradição
dos apóstolos, graças ao Espírito Santo379.
2.1 – A verdade e o erro: a tradição e os dogmas
A primeira questão que se põe é quanto ao conteúdo da tradição, porque a fé cristã deve ser
capaz de expressar o evento histórico (e salvífico) Jesus Cristo de modo tal que se torne acessível a
todos os homens em todos os tempos de maneira inteligível. Foi esta questão que, no primeiro
século, levou a Igreja primitiva em sua pregação apostólica a escrever os Evangelhos, o Novo
Testamento. Aquele contexto diferencia o magistério hodierno da Igreja de sua função meramente
379
Dei Verbum, art. 8º, 882-882ª.
149
ouvinte e serva da tradição dessa Igreja primitiva que foi inspirada por Deus ao lhe atribuir o dever
das escrituras.
O espectro desse trabalho não permite relatar o progresso e o crescimento da noção
católica de tradição, particularmente havidos entre os Concílios de Trento e o
Vaticano II, o que não impede que se reconheça que, a partir do movimento da
Reforma, a teologia católica tenha sido impelida a melhor justificar a sua
Tradição380.
Essa “justificação” passa pela observação de que com o decorrer do tempo as palavras
podem perder ou ganhar sentidos, de acordo com a mudança do contexto381. Bastaria esse dado para
que a literal repetição de doutrinas pelo magistério da Igreja não fosse suficiente para a explicitação
de um fato pretérito. Eis aí o exemplo da Reforma. O ponto chave deste desafio é que a Igreja se
ocupa com verdades de fé reveladas “por Deus para a nossa salvação” e a hierarquia da Igreja deve
ter presente “o dever que tem de aprender a ouvir o Espírito de Deus e acatá-lo, reconhecendo o
pluralismo legítimo na Igreja Católica”382. Eis aqui o preço da prudência humana na lentidão da
contra-reforma.
2.2 – A tradição e a evolução do dogma
Passando do entendimento de tradição ao de evolução, no que respeita os dogmas de nossa
fé, Rahner toma o exemplo paradigmático do dogma da Assunção de Maria aos céus. É na base do
raciocínio de uma doutrina que nem sempre esteve presente, ou seja, nem sempre nos foi
claramente explicitada, mas que se torna manifesta como obrigatória, que Rahner entende o termo
“evolução”.
Trata-se de algo que de alguma forma “chegou a ser” dentro da história do
cristianismo, uma vez que, no começo da pregação do Evangelho, não existia tal
como hoje383.
Rahner admite um processo evolutivo espiritual, em que ele reconhece que há uma “unidade
hierárquica”384, na qual vigora a mesma lei de evolução que aplicamos aos demais seres vivos e,
assim, busca diante da história que nos é reveladora do real o que, “sob a ação poderosa do Espírito,
introduz o homem em toda verdade”, num processo que não é somente “único”, mas também
380
Cf. RAHNER. Invariabilidade y cambio en la inteligencia de la fe en tiempo del concilio. In Adademia Teologica,
1967, v. 1, 105-137.
381
Ver Segunda Parte, Capítulo 3.3.1.
382
WEGER, Karl-Heinz. CSM. Tradition.
383
ODR 57.
384
Ver Segunda Parte, Capítulo 2.1.2.
150
constitui um “todo unitário”, que faz do cristianismo uma religião de fundo escatológico, que tem as
vistas voltadas para o futuro385.
Ao mesmo tempo em que para o homem moderno o futuro “já” começou, o cristão assevera
que tal futuro “ainda” não chegou, “porque se a plenitude terrena é uma plenitude finita, na verdade
não pode ser uma plenitude absoluta”386. Por isso a história em que se desvela a evolução do dogma
é a história da progressiva manifestação do mistério que chega ao conhecimento do homem
paulatinamente, independentemente de uma grande reflexão teológica, pelo poder do Espírito Santo.
Há certas leis da evolução do dogma que podem ser conhecidas a priori,
considerando que essa evolução culmina como uma apelação à Igreja, como a
última instância de julgamento dessa lei apriorística. Daí a permanente tensão
gerada pelo perigo que se constitui em espremer esse “conhecimento” a partir do
homem, ao invés de confiá-lo à “promessa do Espírito, e somente a Ele, que vela a
fim de que esse perigo, sempre possível, não termine se convertendo em
realidade”387.
Rahner diz que podemos seguir princípios a serem respeitados num conhecimento dessa
natureza. Um princípio é que se trata de “coisa óbvia”, posto que a verdade revelada é sempre a
mesma. Expressa algo que a Igreja se apossa como parte da revelação a ela confiada, como objeto
de sua fé incondicional, posse essa que se dá para sempre e em definitivo. Esse princípio limita o
conteúdo do dogma porque exclui reflexos de objetivações de sentimentos, atitudes e mentalidades
mutáveis e que se prendem a uma determinada época histórica e não a outra. O risco que existe em
o homem adotar essas proposições que são frutos de uma época é o de incidir num erro que o desvie
da verdade. Rahner vai chamar esse risco de que se possa adotar proposições que não sejam
“adequadamente verdadeiras, de proposições “meio falsas” por não expressarem a realidade em
questão e por suprimirem a diferença absoluta existente entre a “verdade e o erro”.
É difícil ao homem determinar o limite entre a proposição inadequada e falsa. Contudo,
devemos considerar o fato de as nossas proposições sobre a realidade infinita de Deus serem sempre
limitadas. Nesse sentido, as fórmulas com que expressamos a fé podem ser superadas, mantendo-se
verdadeiras, ou seja, podemos substituí-las por outra que diga o mesmo e acrescente mais alguma
coisa, que ainda assim diga “o mesmo”, porém com um novo matiz, desde que articulada ao novo
conhecimento no sistema de coisas que já se sabe, já se sente e já se faz na experiência histórica e
total de nossa vida, o que é o sentido que todo ser humano tem de tradição.
385
RAHNER. A caminho do homem novo. Petrópolis: Vozes. 1964, 3.
ibid, 14.
387
ODR 61.
386
151
2.3 – A evolução do dogma e a realidade da palavra
Até aqui tratamos de exprimir a mesma realidade, de outra maneira, o que não implica no
conceito que temos de progresso, ou como o diz Rahner: no aumento simultâneo de um “plus”
quantitativo de conhecimento.
É a Igreja trazendo no tempo a mudança do que permanece o mesmo, não
significando que tal mudança seja abandono da perspectiva anterior, o que é típico
das coisas materiais, mas não das coisas espirituais388.
Por isso, o mistério da Trindade divina, nas expressões de fé dos Concílios de Nicéia e de
Florença, não se pode tomar como ensaios teológicos, porque tais expressões não admitem
contradição entre si. Para o homem em particular, há uma diferença entre uma proposição anterior e
outra posterior, o que de fato existe, no que chamamos de evolução do dogma, como comprova o
modo efetivo de agir da Igreja na pregação de sua doutrina.
É nesse sentido que revelação é fruto de um diálogo histórico entre Deus e o
homem. E a comunicação da Igreja refere-se a este acontecer, ao diálogo que se
encaminha a um ponto final, no qual o acontecer e, em conseqüência, a sua
comunicação, chega ao seu ponto máximo e, com ele, à sua conclusão389.
Daí o núcleo central do cristianismo que afirma a revelação como acontecimento salvífico,
acontecimento que implica uma comunicação de verdades que, na história da salvação, alcançou em
Cristo seu ponto máximo, incapaz de ser superado. Por isso o alerta de Rahner de que o cristianismo
não é uma fase da história universal substituível por outro “éon” intramundano, porque
todos os tempos surgem e desaparecem, passam a uma distância infinita da
eternidade autêntica que permanece no mais além. Tudo o que nasce já traz a
morte em si: culturas, povos, reinos, sistemas culturais, políticos, econômicos390.
Antes de Cristo, o mesmo agir no mundo do Deus que se revelara, estava “aberto”. Este agir
criava tempos, planos sucessivos de salvação, todavia não se sabia como Deus responderia
definitivamente ao homem, se sua última palavra seria de ira ou de amor. Agora está dada a
realidade definitiva que não pode ser superada e nem substituída; o inextinguível e irrevogável
presente de Deus no mundo como salvação, como amor e perdão, como comunicação ao mundo da
mais íntima realidade divina e de sua vida trinitária: Jesus Cristo.
388
ODR 64-65.
ODR 67.
390
ODR 69.
389
152
Com isso a revelação está “encerrada” por estar “aberta” à plenitude de Deus, que se
encontra “ocultamente presente em Cristo”. A clausura da revelação, assim o diz Rahner, não é uma
expressão negativa, mas positiva, posto que é puro “sim”, é a conclusão que inclui tudo e nada
exclui da plenitude compreensiva.
Unida no “éon” de Jesus Cristo a palavra se une ao que já está presente na mensagem e a
Igreja crente possui o que crê: Cristo, seu Espírito, o penhor da vida, o vigor da eternidade,
realidade esta que não pode ser apreendida “extra muros” da palavra.
Isso nos leva a unir de modo indivisível a palavra e a realidade mesma: uma na
outra, nenhuma sem a outra. A luz do Espírito e da fé se faz valer no próprio
resultado, que é a nossa realidade391.
De outro modo, é importante dizer que a luz da fé e o impulso do Espírito não se deixam
objetivar de per si num olhar separado do objeto da fé, por que o objeto da fé não é mero objeto
passivo, mas é o princípio mediante o qual o mesmo Espírito é captado como objeto.
Daí ser possível explicar a evolução do dogma realmente acontecida e legítima,
afastando o perigo de rebaixar ao nível de nossas pobres operações mentais,
meramente humanas, à realidade superior e mais ampla do conhecimento da fé na
dependência do inferior e secundário, na dependência da teologia científica, que
também é um elemento interno do conhecimento da fé, mas de maneira alguma sua
essência adequada392.
Seguindo Rahner, existe uma evolução do dogma, que tem que existir e acontecer num
“contato vivo com a realidade revelada”. Entre uma expressão desse conhecimento e outra
expressão desse mesmo conhecimento que é dado da realidade, há a possibilidade de uma
elaboração lógica mais rigorosa, ou seja: a realidade contida nesses conhecimentos (conhecimento
fundante e o conhecimento fundado) está relacionada entre eles, supondo-se que “o conhecimento
que evoluiu” seja uma autêntica verdade dogmática, sob a garantia do magistério de que a nova
proposição reproduz exatamente o sentido da antiga, ou seja, o mesmo que a proposição original,
que diz também o que Deus revelou.
Conclusão
Assim é que se crê devido ao testemunho do próprio Espírito de Deus, com fé divina. Isto é
dogma e não apenas teologia. Com isso não se elimina uma evolução teológica, mas se afirma que
391
ODR 71.
ODR 76-77. Rahner não quer sob qualquer hipótese diminuir o valor da teologia dita científica porquanto ele mesmo
ressalva, na pág. 77, a honradez como virtude da Teologia.
392
153
existe uma evolução dogmática própria que não é resultado de um conhecimento novo, dedutivo,
mas que parte de várias proposições de fé presentes do conhecimento “revelado” por Deus do
sentido rigoroso da “fé divina”.
Rahner recorda que quando um homem fala, jamais alcança plenamente as conseqüências
reais que se deduzem necessariamente de suas palavras. “Nós falamos sempre “por cima de nossa
própria cabeça”. Tudo o que propriamente dizemos não é a expressão plena do que realmente
queremos dizer”. Mas, o grande alerta do autor é que quando Deus fala, não sucede o mesmo. Por
isso Deus mesmo diz o que só na história viva do que foi dito se desvela como dito, ou seja, não é o
que Deus pronunciou em seu sentido proposicional imediato, mas o que “comunicou” e, por isso,
pode ser crido como saber Seu.
Nessa linha, pode-se afirmar que somente é inspirado aquilo que o autor humano quis dizer,
o que implica que podem ter sido comunicadas mais coisas, mesmo tendo-se Deus como autor
literário da Escritura. Podemos estar diante de outros mensageiros, como os profetas, como
portadores originários e não literários da revelação – que encontram nos apóstolos sua expressão
inspirada na comunicação de uma mensagem de que não são os autores. Transmitem, assim, os
apóstolos, uma mensagem não própria, mas simplesmente a mensagem de Deus. Por isso, sua
comunicação pode superar o que eles souberam explicitamente dizer a respeito da mesma
mensagem.
Rahner imagina o saber consciente pleno da fé dos apóstolos e da comunidade primitiva,
sem cair num anacronismo a-histórico. Diz que é pouco o que se poderia saber a respeito, o que na
ocasião não era entendido e nem o poderia ser, mas também diz que se sabia “tudo” porque se
apreendera vitalmente a realidade total da ação salvadora de Deus e nela se vivia espiritualmente. A
herança que os apóstolos transmitem não são proposições, mas seu espírito, o Espírito Santo de
Deus, a realidade verdadeira do que eles experimentaram em Cristo e por isso chamamos de
perfectiva, já que nos reorienta sempre no caminho que volta ao Senhor.
Essa successio apostolica, no sentido pleno e total da palavra transmite à Igreja
pós-apostólica, precisamente no que se refere ao conhecimento da fé, não só um
conjunto de proposições, mas a experiência viva: o Espírito Santo, o Senhor
sempre presente na Igreja, com a vitalidade da verdade sem duplicidade393.
Portanto, para Rahner, podemos nos dedicar à investigação e reflexão teológica, com relação
à Assunção, sem que o resultado redunde em mera teologia, porque o magistério da Igreja dispõe de
393
ODR 94-95.
154
um critério superior ao do teólogo isolado. A Igreja possui o órgão para perceber o que aparece
como resultado do trabalho teológico, que é mais do que mero resultado do trabalho mental
humano, porque é a própria palavra de Deus, envolta noutra forma, numa nova articulação e
explicação. É o magistério, assistido pelo Espírito, que tem dupla função: garantir como verdadeiro
o resultado do trabalho teológico, inclusive quando tal trabalho não seja provável, podendo, ainda,
garantir que o resultado não é somente verdadeiro, mas também Palavra de Deus.
Nesse sentido ele acresce que os “novos dogmas marianos hão de ser vistos no conjunto da
compreensão cristã da fé”. Isto vale dizer que apenas se tomarmos por substância do cristianismo o
que Rahner chama de encarnação do próprio Logos eterno em nossa carne que, partindo desta fé e
de acordo com o testemunho escriturístico, deve-se dizer que
Maria não representa apenas episódio individual em uma biografia de Jesus Cristo,
episódio carente de interesse teológico, mas que ela, nesta história da salvação, é
realidade histórico-salvífica explícita. Se lermos Mateus, Lucas e João e se
rezamos o símbolo apostólico, onde professamos a fé em Jesus, o Logos divino,
que nasceu da Virgem Maria, com isso estamos a dizer – ainda que em fórmula
muito simples – que Maria foi a mãe de Jesus não só em sentido biológico, mas
como alguém que assume função bem determinada, e até mesmo única, nessa
história da salvação oficial e pública. No símbolo apostólico, Maria ocupa lugar
que nem sequer Lutero lhe contestou, embora ele tenha acreditado encontrar no
culto mariano daquela época medieval tardia tendências que ameaçavam ou
negavam o sola gratia394.
Por isso, Rahner resume a essência de seu pensamento asseverando que:
No dogma não se diz mais nada do que isso: Maria é a redimida de maneira
radical. Partindo-se daí, torna-se, na verdade, coisa muito óbvia o conceito básico,
segundo o qual Maria – como quem em sua maternidade pessoal e não apenas
biológica, acolheu na fé a salvação do mundo – constitui também o caso mais alto
e mais radical de realização da salvação, de fruto da salvação, da concepção da
salvação. Tanto na cristandade oriental como na ocidental isso foi algo tido como
sumamente óbvio, ainda que nem sempre se tenha apresentado neste grau de
reflexão explícita. E, a partir daí, é relativamente fácil compreender o que
queremos dizer, quando falamos de “imaculada conceição” e “assunção aos céus”,
sem que se tornem dogmas que fossem de modo adventício acrescentados à
substância real última do cristianismo395.
394
395
CFF 449.
CFF 449-450.
155
3 – O significado de causa universalizadora do Espírito na autocomunicação divina
Introdução
Rahner não teria sido capaz de decifrar as teses da teologia escolástica se não fosse a sua
extrema familiaridade com os escritos dos Pais da Igreja e os da teologia medieval, como estamos
sempre realçando. A teologia escolástica derivava das grandes experiências teológicas
fundamentais. Somente é possível compreender o alcance da teologia de Rahner se tomamos por
pressuposto décadas de intensa e discreta luta com a grande tradição. Isto porque,
se alguém apenas conhecer o “último” Rahner - do final da década de 50 até os
anos 80 -, terá quase perdido a riqueza e maestria do seu pensamento histórico, que
é o verdadeiro fundamento no qual se apóia o seu pensamento. Esta hipótese se
daria, em parte, porque precisamente estes trabalhos históricos somente foram
publicados posteriormente, ou jamais foram publicados de modo compreensível396.
Por certo, o trabalho histórico de Rahner não tem fim em si mesmo, embora não possa ser
desconsiderado porque ele nos permite “entrar em contato” com um pensador do passado, mais para
aprender de um e de outro autor algo sobre a realidade, do que para glorificar o passado, o que está
fora de cogitação. Nesse sentido, a tradição é importante porque pode ativar, expandir e talvez
mesmo corrigir, a reflexão contemporânea sobre a fé.
É importante dizer do vasto conhecimento de Rahner das Escrituras, da história do
montanismo, da teoria batismal de Gregório de Nyssa, dos problemas
eclesiológicos de Agostinho, das decisões sobre o semipelagianismo, da teologia
negativa de Tomás de Aquino, das experiências místicas de John Ruusbroec, dos
grandes da escolástica tardia, como Molina, Suarez, Ripalda397.
É exatamente da familiaridade com as fontes da fé que Rahner gera a ousadia e o candor de
seu pensamento teológico398. Exemplo notório de que esta cultura de Rahner é o seu próprio
inesgotável apelo à verdade, pode ser constatado na leitura, em tudo recomendada, do artigo
Reflexões sobre o problema da ascensão gradual à perfeição cristã399.
Aqui retomamos da teologia trinitária de Rahner a compreensão pela qual Deus se relaciona
conosco na graça de Cristo, de uma “tríplice maneira” para distinguir o que verdadeiro e o que
resvala por herético, ou não.
396
TCF 13.
TCF 13-14.
398
Cf. TCF 15.
399
O artigo está publicado em THI III, 3-23.
397
156
A tríplice maneira pela qual Deus se relaciona conosco na ordem da graça de
Cristo, é a própria realidade de Deus, como ela é em si mesma: realidade
“tripessoal”. Tal proposição seria sabelianismo ou modalismo, unicamente se ela
considerasse a “modalidade” da relação de Deus à criatura elevada à ordem
sobrenatural e agraciada com a própria realidade de Deus, em desconhecimento
absoluto do caráter radical de autocomunicação desta “modalidade” (na graça
incriada e na união hipostática), como sendo diferente da maneira pela qual Deus é
“em si mesmo” e se se imaginasse que Deus fosse tampouco atingido por esta
relação, que essa “diversidade” (como na criação e na relação natural de Deus ao
mundo) não registraria nenhuma diferença em Deus, mas a diferença se
encontraria unicamente por parte da criatura400.
Na base de todo o exercício de Rahner está firme a idéia perseguida por ele de que, pela
presença do Espírito Santo que nos inabita e por meio da aceitação pelo homem livre da
autocomunicação divina que lhe é sempre ofertada, aí está o mecanismo pelo qual a universalização
da mensagem cristã é tornada possível, ao menos de modo atemático.
3.1 – O ponto de partida: conceito sistemático de Trindade econômica
Para Rahner, o ponto de partida de seu axioma é a necessidade de um conceito sistemático
de Trindade econômica.
Aqui, porém, não nos podemos contentar, no que se refere a este ponto de partida,
com o que ficou dito acima. Pois agora é mister dizer mais exatamente o que seja
propriamente essa Trindade econômica, que pretende ser a imanente401.
O nosso teólogo crê que todos nós temos uma noção provisória de Trindade econômica. A
história da salvação, a experiência da mesma e sua expressão bíblica proporcionam tal noção, que
permanecerá sempre o fundamento e o ponto de partida insuperável e até mais rico do que quando
reduzido a um conceito sistemático. Ele diz que esta mesma pré-noção se desenvolve na cristologia
e na doutrina da graça.
Rahner deixa de ocupar-se com a conveniência de tratar a doutrina da Trindade antes da
cristologia e da doutrina da graça, ressalvando que não se pode simplesmente supor a pré-noção
bíblica e histórico-salvífica da Trindade econômica, embora não seja seu intento desenvolvê-la em
sentido bíblico-teológico, o que também se segue na metodologia deste trabalho.
Metodicamente, pois, não nos resta senão tentar ousadamente reduzir a Trindade
econômica a um breve conceito sistemático. Por mais problemática que seja tal
tentativa, ela é inevitável a essa altura. Pois, em primeiro lugar, não é possível
expor extensamente a experiência bíblica e histórico-salvífica (isto seria a
400
401
ODT 303.
ODT 331.
157
cristologia e a doutrina da graça na íntegra) e contudo não devemos simplesmente
omiti-la; além disso, ela deve ser formulada de tal modo (isto é, reduzida a um
conceito sistemático) que sirva diretamente ao nosso propósito de exprimir
teologicamente a Trindade imanente, que é o tema que propriamente nos ocupa
aqui402.
3.2 – A expressão trinitária da Igreja
Rahner reconhece que dificilmente a teologia católica veja claramente o problema. Ela
admite a Encarnação e o envio do Espírito como dois fatos que não se relacionem entre si a não ser
de modo assaz exterior. Pois, sem refletir muito, está propriamente convencida de que poderia haver
Espírito sem Encarnação, que cada pessoa divina poderia tornar-se homem, portanto também o
próprio Pai ou o Espírito, que poderia haver encarnação do Logos (mesmo num intuito
soteriológico, por exemplo, no de uma satisfactio condigna), sem que isso fundamentalmente
acarretasse o envio do Espírito.
Por conseguinte, estas duas autocomunicações de Deus estão ligadas entre si tão-somente
pelo vínculo dum decreto moral de Deus e já não se podem entender realmente como os “momentos
internos”, correlacionados entre si, na “única” autocomunicação em que Deus (o Pai) se comunica
ao mundo para uma presença absoluta.
Em conseqüência, não se percebe claramente a diferença entre Encarnação e
comunicação do Espírito, enquanto ambas são grandezas soteriológicas. Pois
enquanto se admite, por exemplo, que o Espírito pudesse da mesma forma ter-se
tornado homem e exercer a “função hipostática” em relação à natureza humana de
Jesus, na Encarnação nada pode estar contido (com exceção de outras palavra de
Jesus) que não estivesse também no outro caso. Enquanto se pressupõe que a
comunicação do Espírito seria possível sem a Encarnação, nada pode estar contido
nela, como tal, que signifique uma diferença essencial entre ela e a Encarnação do
Logos, salvo que neste caso é o Logos que exerce efetivamente a função
hipostática, a qual poderia da mesma forma ser exercida pelo Espírito403.
O caminho trinitário que Rahner percorre supõe que se Deus sai livremente de si na
autocomunicação (e não cria realidades distintas de si), é e deve ser precisamente o Filho quem
aparece historicamente na carne como homem e é e deve ser precisamente o Espírito quem produz a
aceitação, na fé, na esperança e no amor, desta autocomunicação por parte do mundo (como
criação). Na medida em que esta única autocomunicação divina, efetuada sob estes dois aspectos
complementares é livre, também a Encarnação e o envio do Espírito por parte de Deus é livre, ainda
que a conexão entre estes dois momentos seja necessária.
402
403
ODT 332.
ODT 333-334.
158
Em todo caso, não aparece no magistério eclesiástico nenhuma razão dogmática
incontestável contra esta suposição. Já foi dito acima que a Igreja concorda com a tradição préagostiniana. A razão, quanto a Rahner, que leva a esta suposição está no fato de que de outra forma
não é possível chegar a entender a doutrina da graça e a cristologia, conforme apontado
exaustivamente por todo este trabalho.
O fato de que justamente o Logos se tenha tornado homem e que justamente o
Espírito “santifique” é um acontecimento livre, na suposição e em razão de que a
autocomunicação de Deus seja livre. Se, porém, sob esta suposição, se passa a
considerar “livre” a Encarnação do Logos e a santificação precisamente pelo
Espírito, a própria história da salvação já não diz nada sobre Pai, Filho e Espírito.
A doutrina da Trindade passa a ser um acompanhamento verbal duma história da
salvação que a rigor quanto a nós (mas sem esse “quanto a nós” ela não é história
da salvação) decorreria da mesma forma, se se encarnassem o Pai ou o Espírito404.
Por conseguinte, diz Rahner que a questão só pode ser esta: como reduzir a um conceito, isto
é, entender a Encarnação e o envio do Espírito, em suas peculiaridades atestadas pela revelação, de
tal modo que apareçam como momento da única autocomunicação de Deus, portanto como uma
Trindade em sentido econômico-salvífico e não como duas funções de duas hipósteses divinas que a
bel-prazer se possam comutar uma pela outra405.
3.3 – A suspeita do mito
Rahner alerta que o seu conceito de autocomunicação de Deus não desperta suspeita de
mitologia por duas razões.
A primeira, porque pressupondo-se a existência de Deus e atentando-se para a circunstância
de que todo conhecimento de Deus, como quer que o mesmo se imagine em pormenores e se
interprete teologicamente, coloca a questão da relação de Deus para conosco e por isso traz consigo
o conceito de autocomunicação divina, ao menos como conceito “limítrofe assintótico desta
relação”.
A segunda, porque não exclui o “mistério”, mas o inclui e, conseqüentemente, sob esse
respeito, excede a reflexão teológica.
Acresce que o conceito de autocomunicação exprime (1) exatamente a presença
absoluta de Deus como o incompreensível e como o mistério que permanece em
sua incompreensibilidade; exprime (2) a absoluta liberdade e por conseguinte o
caráter irredutível de fato desta autocomunicação, que também por essa razão
404
405
ODT 334.
ODT 334.
159
permanece “mistério”, além disso, exprime (3) que a possibilidade interna da
autocomunicação como tal (autocomunicação absoluta do absolutamente
incompreensível) jamais será compreendida; experimenta-se por um fato puro, mas
não se pode deduzir de outro ponto, de sorte que também por isso permanece
mistério406.
A questão decisiva com relação ao conceito esboçado pela Igreja é que ele não explica as
duas maneiras de autocomunicação pelo Filho e pelo Espírito, como momentos internos,
internamente relacionados e distintos entre si, da única autocomunicação de Deus, de sorte que
também a distinção esteja incluída num só conceito.
Para Rahner, a questão, assim colocada é difícil de resolver, especialmente porque aqui não
é possível reunir, desenvolver e comentar para sua solução as indicações que naturalmente se
encontram esparsas por toda a parte na tradição bíblica e teológica, como já ressalvado.
Restou a Rahner a possibilidade de “uma tentativa que representa um início que se justifica
por ser inevitável, se é que se deseja desfazer, na situação histórico-intelectutal de hoje, a suspeita
surpreendente de que a Trindade seja um mito”407.
Conclusão
Rahner afirma que no tratado da Trindade podemos “despreocupadamente” procurar o
acesso à doutrina da Trindade na “experiência” de Jesus e de seu Espírito em nós. A citação a
seguir, remete o pensamento de Rahner à “experiência” narrada na autobiografia de Inácio de
Loyola408.
A Trindade para nós não é puramente uma realidade que se possa apenas exprimir
doutrinariamente. A Trindade mesma ocorre em nossa existência; como tal, ela
própria nos é dada, independentemente do fato de a Escritura nos comunicar
sentenças a seu respeito. Estas sentenças, ao contrário, são dirigidas a nós,
justamente porque nos foi concedida essa realidade mesma, acerca da qual se
proferem as sentenças409.
É pela comunhão e o seguimento do Cristo em que tudo foi criado que estamos, a um só
tempo, unidos com o Pai, fonte e origem e com o Espírito Santo, num processo vivificante,
dinâmico e eternamente criativo do todo distinto de Deus. E este todo permanece distinto de Deus
porque,
406
Cf. ODT, nota 10, 335.
ODT 334.
408
SAN IGNACIO. Obras de San Ignacio de Loyola. 6a ed. Madrid: BAC. 1997. Autobiografia, 29: “[…] Se não
houvesse Escritura que nos ensinasse estas coisas da fé, ele se determinaria a morrer por elas, só pelo que vira”. 119.
409
ODT 304.
407
160
nossa elevação à graça e nossa glória não poderiam ser reveladas plenamente, a
não ser que se declarasse este mistério, de sorte que ambos os mistérios, o de nossa
graça e o de Deus em si mesmo, são um e o mesmo mistério insondável. O tratado
de Trinitate nunca deve perder de vista esse fato. É dele, deste interesse existencial
da salvação, que o tratado vive e recebe seu impulso e nele encontra a verdadeira
via de acesso à compreensão410.
A implicação lógica e existencialmente fundamental reside em que, para a vida do cristão, é
do agir salvífico de cada uma e de todas as pessoas trinitárias que podemos inferir o significado
mais profundo de nossa causa principiadora, de nossa causa redentora, e de nossa causa
santificadora.
Isto se torna essencial neste ponto do trabalho porque está na base uma compreensão
lastimavelmente abstrata do tratado a ponto de causar, como na expressão de Rahner um
alheamento da vida que se faz sentir em muitos tratados.
Nesse caso, surgem distorções, posto que a Escritura passa a adquirir caráter de um
método que sutilmente tira conclusões de umas poucas proposições isoladas e as
organiza em seu sistema, diante do qual nos perguntamos se Deus realmente nos
revelou coisas tão distantes e de maneira tão obscura e necessitada de tantas
explicações complicadas.
Se é verdade, porém, que, para se ter presente o conteúdo da doutrina da Trindade,
se pode retornar sempre à experiência histórico-salvífica e histórico-sobrenatual
(de Jesus e do Espírito de Deus que age em nós), porque nela realmente temos já a
Trindade mesma como tal, não deveria existir nenhum tratado da Trindade em que
apenas no fim se anexasse a doutrina das “missões” como sendo, na melhor das
hipóteses, um corolário relativamente secundário e posterior desse tratado. [...]
Poder-se-ia afirmar afoitamente: quanto menos uma teologia da Trindade receia
ser histórico-salvífica, tanto maior é sua perspectiva de afirmar o essencial da
Trindade imanente e de abrir de fato este essencial a uma compreensão teórica e
existencial da fé411.
Tudo que Rahner quer nos dizer resume-se em uma notável sentença: “Na unidade de
Palavra e Espírito está presente Deus”412.
Por isso, não podemos desunir como se estanque fossem os três artigos do Credo nicenoconstantinopolitano e sua interpretação nos fatos da vida que nos permitem acolher Deus Pai, como
nosso criador, mas assim também o Filho em que tudo foi criado e o Espírito Santo que dá a vida.
Nesta “unidade” em que se presencia Deus, é preciso reforçar as experiências que
carregamos em nossa caminhada cristã, experiências estas que são profundamente marcadas pela
Redenção, que não podemos segregar como missão específica do Filho, porque a nossa vida aponta
410
ODT 304
ODT 304-5.
412
ODT 305
411
161
Deus, Pai, como o Pai de toda misericórdia, do mesmo modo com que nos permite, pela presença
do Espírito Santo de Deus em nós fazer da experiência da graça do perdão, num processo tal de revivimento que permite estarmos sempre renascidos do Pai, no Filho e no Espírito, renascimento este
que objetiva nos galgar hierarquicamente na natureza como aqueles destinados ao uso de sua
liberdade no sentido mesmo que Jesus orientou a sua liberdade que é perfeita, que é perfeita,
sabemos, porque é teleologicamente apontada para a vontade do Pai e neste sentido perfazemos, no
Pai, no Filho e na unidade do Espírito Santo de Deus, o caminho da santificação possível à nossa
natureza, a Deus assemelhada.
162
Capítulo II – Concepção trinitária de autocomunicação e a Fé
Se, no Capítulo anterior, cuidamos da concepção trinitária de Espírito de Deus, aqui
apontamos, também como objetivo da Terceira Parte, o realce existencial da presença do Espírito.
A qualquer leitor de Rahner, cremos que deva causar forte impressão a capacidade do
teólogo de não abandonar qualquer dado. Assim é que ele nada desprezando, vai construindo a sua
teologia que ao fim se imagina como numa longa trança que se vai enlaçando, como nos cabelos de
uma menina, em que nem todos os fios são ali unidos, mas que, na falta de melhor exemplo, apenas
se prendem aqueles que a reflexão e o amplo conhecimento histórico lhe sugerem tomar.
Este trabalho fala na autocomunicação de Deus por todas as suas páginas. Este trabalho não
chega ao final sem dedicar um capítulo a este tema porque sem ele, desaba o todo.
A razão pela qual somente agora o tema é mais amplamente tratado se escora na evidência
de que não há como dizer da automunicação de Deus, sem dizer, propriamente, a Trindade.
1 – O significado de autocomunicação “de Deus”
Introdução
No enfrentamento da tematização trinitária, pensar sobre Deus e seu diálogo com o homem,
é falar da autocomunicação a partir da palavra “presença”, ou como defendido na conceituada
Mysterium Salutis,
O módulo da “presença”, que deriva definitivamente a reflexão numa direção
personalista, deixando aberta a possibilidade de empregar vários esquemas de
espaço. Pode-se falar do mesmo jeito de presença no encontro com o Deus vivo,
como na sua imanência no mais profundo de nosso ser: Deus diante de nós, como
Deus na profundeza de nosso coração413.
Neste ponto, tomamos a expressividade do vocábulo presença, cientes de que a palavra é
simples e extravasará por outros significados, não sendo, portanto, possível o seu uso exclusivo,
mas como uma alternativa, por exemplo, à expressão inabitação que, pode vir em nossos dias
carregada de uma “inércia” própria do pior sentido do imobilismo.
Não devemos identificar a trindade como uma abstração desprovida de sentido
para nós, como algo inatingível. Se, porém, o horizonte da existência humana que
413
P. FRANSEN. As estruturas básicas da nova entidade. In MYS IV/8, 141.
163
funda e abarca todo o conhecimento humano é um mistério, neste caso o homem
possui uma afinidade dada pela graça, com aquele mistério cristão que constitui o
conteúdo básico da fé. E este mistério único pode plenamente fazer-se entender
pelo homem, caso este se entenda a si mesmo como alguém que está orientado e
remetido ao mistério a que chamamos Deus414.
Rahner chama experiência transcendental à consciência subjetiva, atemática e insuprimível
do sujeito que conhece, que se faz presente conjuntamente a todo ato de conhecimento. Ele chama a
esse conhecimento de experiência porque este saber atemático é condição de possibilidade de toda e
qualquer experiência concreta, porque é na experiência de infinita ultrapassagem de determinado
objeto ou categoria que se faz efetivamente a experiência de conhecer.
Também vimos, na Segunda Parte, que a experiência de transcendência não é experiência de
conhecimento categorial, mas é, também, experiência de vontade e liberdade, de tal modo que se
pode, a um só tempo, perguntar pela origem e pelo destino do sujeito que conhece e é livre415.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo416.
Dando ouvidos à manifestação do Espírito na poesia de Fernando Pessoa, percebemos como
ele tão bem se coloca como sabedor de si como criatura (não sou nada), como sabedor de seu saber
que lhe avisa que a partir de suas próprias forças sabe que não será nada, mas se reconhece em si,
como sujeito e pessoa que tem em todos os sonhos do mundo a marca transcendental do pluralismo
da realidade.
Daí a experiência de transcendência ser a experiência da liberdade, da vontade e também a
do amor. Essa transcendência, que é constitutiva de um sujeito que, dotado da faculdade de
conhecer e de pensar, é livre, para sonhar até todos os sonhos do mundo.
Esse sujeito que é livre vai confrontar sua liberdade com a de outro sujeito, no que Rahner
vai chamar de inter-humanidade, e também esse outro é sujeito de transcendência, e essa é condição
de o sujeito estar presente a si mesmo e também estar originariamente presente a outro sujeito. Para
um sujeito que está presente a si mesmo e tem consciência de si, essa liberdade que afirma o outro
significa amá-lo417.
414
CFF 23-24.
CFF 33.
416
FERNANDO PESSOA (Poesias de Álvaro de Campos). Tabacaria.
417
CFF 85.
415
164
Curiosamente, o mero fato de eu mencionar a experiência transcendental não a torna
presente. Ela pode passar despercebida, porque vem ao nosso encontro de maneira inesperada. Daí
ser tão difícil falar. Por isso, só falamos de maneira indireta do termo, do horizonte, para o qual
aponta essa experiência do movimento transcendental de nosso espírito418.
A transcendência – essa ultrapassagem do horizonte ilimitado de todo o movimento de
nosso espírito – é a condição, o horizonte, a base e o fundamento que nos possibilitam comparar e
classificar entre si os objetos singulares da experiência419.
Somente no acolhimento amoroso desse mistério, deixando-nos dispor, por ele, é que se
pode levar a bom termo o processo de crescimento na liberdade, perante si mesmo. À medida que o
homem uno assim se experimenta, pode e deve dizer: eu sou espírito420.
O movimento da transcendência consiste no irromper espontâneo do ser absoluto, o que não
depende do homem, que apenas o recebe. Diz Rahner que onde o homem se experimenta em sua
transcendência como inquietado por esse surgimento do ser, e exposto ao inefável, este homem não
pode mais se conceber como absoluto, diante da passividade do que recebe o que, nesse sentido, já
chamamos, “graça”421.
Assim, sabemos de nossa liberdade subjetiva, de nossa transcendência e da abertura
ilimitada de nosso espírito mesmo quando não conseguimos conceituar objetivamente este saber
originário, ou quando nossa tematização é deficiente, e até mesmo quando nos recusamos
inteiramente a aceitar essa tematização. Por essa razão, o conhecimento explícito de Deus na
religião e na metafísica só é compreensível quando as palavras que nele usamos apontam para a
experiência atemática de estar remetido ao mistério inefável422.
Este esclarecimento se fez, a título de necessário enquadramento do tema da
autocomunicação no restante da teologia de Rahner, com o quê, se pode agora tecer a trança.
1.1 – O relacionamento interno - τάξις - entre as maneiras de autocomunicação de Deus
A expressão da Trindade econômica trata de duas maneiras de autocomunicação livre e
gratuita de Deus à criatura espiritual, a saber: em Jesus Cristo e no Espírito Santo. Estas duas
418
CFF 33.
CFF 93.
420
CFF 221.
421
CFF 49.
422
CFF 71.
419
165
comunicações são distintas e relacionadas entre si, condicionam-se mutuamente e nesta relação de
condicionamento mútuo, contudo, formam uma só τάξιρ. Ao dizermos Deus, não estamos
pressupondo uma teologia trinitária latina (em oposição à grega), mas bíblica (e, se quisermos
grega), como já exaustivamente afirmado.
Nesse contexto, Deus é o Pai, isto é, o Deus simplesmente sem origem, que sempre
se considera pressuposto e que se comunica. Precisamente se a autocomunicação, e
porque a autocomunicação, por um lado não coincide simplesmente com ele em
identidade morta, e ele, por outro lado, nessa autocomunicação permanece aquele
que é livre, que não pode ser envolvido, que não se efunde, exatamente aquele que
não tem origem. Sua carência de origem, tal como ela aparece na
autocomunicação, tem nesta mesma comunicação um caráter positivo: a intangível
incolumidade da autocomunicação para aquele que se comunica, tal como só pode
ser própria do ser divino sem origem423.
Quando acima, citamos de Rahner que Deus é o Pai, isto é, o Deus sem origem, devemos
esclarecer que se poderia objetar que o autor esteja tratando de uma ausência essencial de origem de
Deus, portanto efetivamente de aseidade, e ao mesmo tempo estaria insinuando tratar-se de ausência
nocional de origem do Pai, o que para Rahner é uma objeção equivocada.
O equívoco se dá porque na identidade do que se autocomunica desvenda-se a natureza da
ausência de origem na sua forma concreta: divindade (aseidade), que pode comunicar-se a si
mesma, sem com isso perder-se e sem afinal reter a si mesma, para não retirar da comunicação o
caráter de autocomunicação.
Ora, com isto se designa a maneira concreta da “pessoa” do Pai, o qual não é
somente paternidade (portanto nocionalidade), mas o Deus concreto na unidade de
aseidade essencial e paternidade nocional, a concreta ausência de origem. Se se
pode afirmar que esta incolumidade também cabe ao Filho e ao Espírito, deve-se
responder que esta lhes cabe precisamente como comunicada424.
1.2 – Os duplos aspectos da autocomunicação de Deus
Pressupondo-se este conceito de autocomunicação de Deus, Rahner apresenta quatro
aspectos duplos necessários:
1) origem-futuro;
2) história-transcendência;
3) oferecimento aceitação ; e
4) conhecimento-amor.
423
424
ODT 332.
ODT nota 6, 332-333.
166
Estes quatro aspectos fundamentais resultam de nossa constituição de criaturas humanas,
não sendo possível excluir deste conceito o seu destinatário, posto que o mistério da
autocomunicação de Deus consiste justamente em que Deus realmente chega até ao homem, entra
na situação do homem, assume esta situação e é o que ele é, íntegro, chegando realmente como
aquele que é e continua sendo, sem que a situação do destinatário constitua impedimento
apriorístico da chegada425.
É sob a pressuposição de que o sujeito humano-pessoal seja o destinatário da
autocomunicação divina, exigido necessariamente pela natureza dessa comunicação e a que ela cria
como condição de sua própria possibilidade, que se pode compreender os quatro aspectos duplos.
Esta comunicação, ainda em processo de comunicação, tem origem e futuro no tempo que
transcorre entre esses dois momentos da comunicação: início como constituição do destinatário
duma possível autocomunicação e procedente dela, como início (origem) voltado para o futuro
(como autocomunicação divina consumada), sendo que este futuro não se há de imaginar como
evolução progressiva do início, mas apesar da orientação do início para o futuro como algo que se
defronta com essa origem como um momento distinto duma realidade radicalmente nova. A
liberdade da comunicação e a historicidade do destinatário permitirão compreender o primeiro
aspecto duplo no exemplo da evolução do dogma.
História e transcendência são o segundo par de aspectos que a autocomunicação de
Deus assume se ela há de atingir o homem todo. Já que nela Deus, como origem do
homem se dá inteira e imediatamente como salvação426.
Quando se efetua uma autocomunicação de Deus ao homem histórico que ainda está no
devir, ela só pode ocorrer na dualidade unificadora de história e transcendência que é o homem. Se
o homem é o existente na única dualidade de origem e futuro, rumo à transcendência, o existente
livre, por conseguinte, a autocomunicação de Deus deve também significar a diferença de
oferecimento e aceitação desta autocomunicação.
Finalmente, tomamos o par conhecimento – amor, realização da verdade, realização do
amor. Este aspecto caracteriza necessariamente a autocomunicação divina como tal e em sua
totalidade.
Por outro lado, essa dualidade no homem não pode nem ser eliminada nem
completada: verum e bonum, conhecimento e amor, com toda a sua pericorese, sua
unidade transcendental e única τάξιρ, são primordialmente distintos, de sorte que
425
426
ODT 335.
ODT 337.
167
não se pode conceber um como simples momento do outro: nem a vontade é
simples força motriz do conhecimento, simples “appetitus” de um”bonum”, único
em última análise, o que seria o verum, nem o conhecimento é simples luz do amor
que veria em si um momento do próprio amor427.
Para Rahner essa dualidade tampouco pode ser completada, porque do contrário prejudicaria
a compreensão de processões intratrinitárias, que se restringem necessariamente a duas, bem assim
como já não se poderia manter o axioma fundamental da identidade entre a Trindade econômica e a
imanente.
Entendendo-se vontade, liberdade e bonum em sua essência verdadeira e plena, isto é, não
como impulso, mas como amor para com uma pessoa, amor que não somente tende para a pessoa,
mas que repousa na sua plena bondade e esplendor, neste caso não se vê porque acrescentar a essa
dualidade uma terceira e ulterior faculdade.
Conhecimento e amor descrevem na sua única dualidade a realidade do homem. A
autocomunicação de Deus ao homem deve, portanto, constituir-se como autocomunicação da
verdade absoluta e, como tal, do amor absoluto de Deus pelo homem.
1.3 – A natureza do destinatário e a unidade interna da autocomunicação
A criação do Deus uno deve ser considerada como um momento (condição de possibilidade
na constituição do destinatário) da autocomunicação divina, mesmo se pudesse haver tal criação
sem a autocomunicação. Ocorre que a natureza humana de Cristo não é uma realidade ao lado de
outras, que poderiam ter sido assumidas hipostaticamente, mas é exatamente o que resulta, quando
o Logos de Deus se exprime a si mesmo externamente. Ressalve-se que porque Rahner parte “de
baixo” isto não implica que ele acrescente a essa autocomunicação divina algo que a ela mesma seja
externo, porquanto provém de Deus.
A autocomunicação do Deus livre, que se dá como pessoa, pressupõe um receptor pessoal.
Deus não somente se comunica a ele de fato, mas o destinatário da autocomunicação deve ser tal,
em virtude da natureza da autocomunicação.
Se Deus quer livremente sair de si, deve criar o homem. Que neste caso Deus tenha
que criar um ser espiritual-pessoal e que somente este possua a potentia
427
Cf. ODT 338.
168
oboedientialis para receber a autocomunicação de Deus, não se precisa repetir
aqui428.
A vida espiritual não é uma série de ações indefinidamente sucessivas em busca de um
objetivo espiritual. Para Rahner, o passado existe misteriosamente contido em cada momento.
Assim, por sermos seres espirituais, a pessoa humana pode agir a cada momento com os recursos de
seu passado inteiro, que lhe é preservado como a soma das experiências de sua vida. O exemplo de
Rahner é o do tiro cuja origem no disparo pode ser determinada apenas se levarmos em conta o seu
trajeto. Em ampla medida, ação presente de um ser humano incorpora todo o seu passado: o seu
conhecimento obtido pelo esforço ou por sofrimento, a profundidade de sua experiência, as
mudanças havidas em sua vida, suas alegrias e dores. Rahner adverte que a nossa memória pode
modificar esses dados, mas, por todas estas influências, à ação presente é dada uma direção, a sua
profundidade e ressonância. O passado é preservado e levado adiante pela ação presente.
O indivíduo deve cercar as sucessivas oportunidades que lhe são oferecidas e, nisso,
perceber o que é eterno nele. Cada momento a ser preenchido com o todo de sua história espiritual é
para o indivíduo a mais rica possibilidade de presença da sua liberdade.
Diz Rahner que o mais misterioso, ainda que verdadeiro, seja que na graça de uma decisão
presente a pessoa humana antecipa o seu futuro, na medida em que seus atos se tornam
significativos para o seu futuro.
Nisso a importância do “fim cristão”, que já vimos que não carrega a conotação de que algo
“acabou”, mas de que alcançou a sua finalidade, na unidade do Espírito Santo. Se já vimos que a
unidade hierárquica na natureza, que caminha na direção de um processo de purificação, é na soma
das experiências passadas que a presença ou a inabitação do Espírito de Deus em nós possibilita por
esta autocomunicação de Deus na graça, que o processo de purificação do homem na realidade da
história seja o processo de divinização ao qual somos orientados pelo próprio Espírito no sentido da
santificação.
Conclusão
Este trabalho ressalta da obra de Rahner que a opção por uma teologia trinitária econômicosalvífica não significa que o mistério de Deus nos seja em si indiferente. Ao contrário, é importante
428
ODT 336.
169
perceber que não se está afirmando que “Deus se torne trinitário em sua obra salvífica econômica,
mas apenas que nessa sua obra salvífica se dê a conhecer trinitariamente”429.
Contudo, é, ainda, necessário recordar da Primeira Parte que toda a realidade cósmica tem
na Trindade a sua causa principiadora. Esta afirmação feita agora, na Terceira Parte, é com o
propósito de “embaralhar” os três artigos do Credo. A questão que o Capítulo presente quis
responder é em que sentido é possível ao cristão afirmar que as causas principiadoras, as causas
redentoras e as causas santificadoras são todas pertinentes às três pessoas do Deus do monoteísmo
cristão, que se autocomunica ao homem.
2 – O significado das breves fórmulas430
Introdução
Curioso que ao pretender elencar as fórmulas breves de fé que Rahner propõe nas últimas
páginas de seu CFF, fui surpreendida pelo fato de haver um texto deste autor, datado de 1971,
portanto anterior ao CFF, texto este publicado no volume III de seus escritos teológicos. A
curiosidade se deve à percepção de que o que Rahner colocou por último em seu CFF é o que
Lehmann expõe como o primeiro artigo do nosso autor, em um livro de 668 páginas sobre a obra de
Rahner. Esta posição dianteira reforça a importância do tema. No particular, Rahner assim disse:
As três fórmulas breves apresentadas pretendem ser apenas fórmulas possíveis, a
cujo lado pode certamente haver outras, mesmo porque estas três são pensadas a
nível bem determinado de abstração conceitual. Todavia talvez não seja mero jogo
teológico procurar compreender estas três fórmulas, em sua justaposição e interrelação, como reflexos e conseqüências da fé cristã na Trindade ou
respectivamente interpretá-las como as três vias de acesso da experiência humana
para obter primeiramente certa compreensão da Trindade econômico-salvífica e, a
partir daí, também da Trindade imanente431.
A concepção de fé cristã é um desafio que marca o próprio cristianismo. Por sua
característica duplamente milenar, o ajuste de sua concepção sujeita-se a variados elementos, dentre
eles a cultura em que se está mergulhado no tempo e na história. Diante disso, a idéia de breves
429
MYS IV/8, 143.
Cf. A short Formula of the Christian Faith. THI VII, 60-64. Aqui, TCF 45-49. Os textos acima, foram anunciados no
CFF, livro escrito em 1976. Ocorre que em 1971, no artigo agora mencionado, Rahner apresenta uma única fórmula,
assim descrita: O cristianismo é a crença da comunidade (igreja) formulada e tornada explícita por esta comunidade no
mistério absoluto que exerce um poder inescapável em nossas existências, e a que chamamos Deus. É nossa crença que
este mistério é o mistério do perdão que nos admite partilhar de sua própria divindade; é este mistério que
comunicando-se a si mesmo a nós na história moldada por nossas decisões livres, tomadas como seres inteligentes, por
sua auto doação em Jesus, manifesta-o como a vitória final e irrevogável na história.
431
CFF 530.
430
170
fórmulas fundamentais da fé, que não é originária do pensamento de Rahner, vai encontrar nele o
reconhecimento da exigência de expressar a fé de maneira correspondente à sua situação cultural432.
Por isso, ao apreciar os aspectos que devem ser observados numa fórmula breve, Rahner
leva em conta as condições do homem contemporâneo: plural e apressado. Em vista disso, o teólogo
afirma a impossibilidade de contarmos hodiernamente com uma única fórmula básica para toda
cristandade católica. E é por essa via da pluralidade que sentencia:
não haverá mais uma fórmula básica da fé cristã única e geral para toda a Igreja,
prescrita como obrigatória pela autoridade. Nesse sentido, o símbolo apostólico
não terá sucessor e, em conseqüência, permanecerá433.
Nas últimas páginas de seu CFF434, Rahner desabafa ao dizer de que “em tantas páginas
temos nos esforçado no sentido de conseguir na reflexão um conceito de cristianismo”. No desabafo
admite que a amplidão do material utilizado ao longo das reflexões, certas dificuldades de levar a
cabo o raciocínio e outras coisas ainda tenham mais obscurecido que iluminado a idéia visada, a
clareza do “conceito”. Por isso, ele considera uma vez mais e de outra maneira o todo do
cristianismo.
De início, Rahner conta que na teologia católica tem-se discutido se hoje não deverá haver
breves fórmulas fundamentais de fé com características novas para que a confissão cristã de fé
venha a se expressar de maneira correspondente a seu tempo e cultura.
Como já mencionamos, o Símbolo dos apóstolos teve semelhante função, mas o que se trata
neste momento é de disponibilizar uma formulação do gênero, breve e centrada sobre o essencial da
fé e da confissão da fé ao cristão leigo, que não precisa ser teólogo de profissão, mas que, todavia,
deve responder por sua fé no seu ambiente não-cristão.
Nada tão atual, embora decorrido quase um quarto de século de sua morte. Igualmente
atualíssima é a urgência também apontada por Rahner da missão eficaz da Igreja com a “moderna
incredulidade que exige um testemunho da mensagem cristã que a torne realmente compreensível
para o homem de hoje”435.
De novo, Rahner retoma o tema da hierarquia das verdades para dizer que também isso
pressupõe que se separe o essencial de tudo o que é secundário.
432
CFF 517.
CFF 518-519.
434
CFF 517-531.
435
CFF 518.
433
171
Pois de outra forma, o “pagão” moderno não conseguirá distinguir esta essência do
cristianismo da imagem fenomênica da Igreja (na pregação, na prática religiosa,
nas relações sociais etc.) que com freqüência é pouco convidativa e não atraente, e
neste caso ele transfere sua oposição – em parte justificada – aos cristãos para o
próprio cristianismo. A mensagem cristã deve, pois, apresentar-se de tal forma que
critique os cristãos e o próprio cristianismo concreto. Esta mensagem deve, de
mais a amais, dizer de forma breve e repetidamente o essencial ao homem super
atarefado de hoje436.
2.1 – Uma breve fórmula teológica
O aonde inabrangível da transcendência humana, que se realiza existencial e
originariamente – não só de maneira teórica e meramente conceitual –, chama-se
Deus e se comunica existencial e historicamente ao homem, como sua própria
realização consumada, em amor indulgente. O ponto alto escatológico da
autocomunicação histórica de Deus, no qual esta autocomunicação se manifesta de
maneira irreversivelmente vitoriosa, chama-se Jesus Cristo437.
A fórmula contém três afirmações fundamentais: a primeira se refere ao que se entende por
Deus. Busca tornar acessível a compreensão de Deus (em sua essência e em sua existência),
designando-se a Deus como o Aonde da transcendência humana e nisso diz que Deus deve ser
reconhecido como mistério permanente incompreensível.
Aí se frisa que esta experiência de Deus, implicada na experiência da transcendência, não se
faz em primeiro lugar e originariamente em reflexão teórica, mas no exercício do conhecimento e
da liberdade em nosso dia-a-dia. Se, portanto, esta experiência de Deus, por um lado é inevitável,
por outro, pode ocorrer de modo anônimo e atemático.
A primeira fórmula breve teológica não só diz da existência do Deus do qual
(como Tomás de Aquino) seria claro o que ele é, mas pretende também dizer como
se pode chegar à compreensão do que propriamente se entende ao falar de Deus438.
A segunda afirmação diz que este Deus não é a eterna meta assintótica do homem, mas o
que doa-se a si mesmo, como ele próprio, em autocomunicação ao homem como sua própria
realização consumada. Diz que, em verdade o faz sob a pressuposição de que o homem seja
pecador, ou seja, trata-se de doação em amor indulgente. Esta autocomunicação acontece de modo
existencial e histórico, implicando o mútuo relacionamento de ambos os momentos, que chamamos
graça justificante ou comunicação existencial de Deus no “Espírito Santo”.
436
CFF 518.
CFF 524.
438
CFF 524.
437
172
Com esta afirmação da dupla autocomunicação de Deus ao mundo, a saber, as duas
“missões” histórico-salvíficas – a existencial do Espírito e a histórica do “Logos (filho) – e levando
em conta o mistério de Deus enquanto (Pai), está dada de imediato a Trindade econômico-salvífica
e com isso também já a imanente, porque se não existisse essa, não haveria nenhuma real e
verdadeira autocomunicação de Deus.
A terceira afirmação diz que a autocomunicação histórica de Deus, tem seu ponto alto
escatologicamente vitorioso em Jesus de Nazaré. Pois, quando a autocomunicação histórica de Deus
chega ao seu ponto alto, na qual ela não existe apenas como dirigida e ofertada à liberdade do
homem (individual e coletivamente), mas como acolhida na humanidade como todo de maneira
irreversivelmente vitoriosa e definitiva, sem que com isso a história da salvação esteja determinada
de maneira absoluta.
Assim, a terceira afirmação confessa na fé que este ponto alto escatológico da
autocomunicação histórica de Deus ao mundo já ocorreu concretamente na pessoa histórica de Jesus
de Nazaré, uma vez que este evento escatológico não é pensável sem se pensar na sua permanência
histórica na história da salvação, que ainda continua, esta fórmula breve oferece também um
impulso para a Igreja, que só é compreensível como o sacramento permanente do agir salvífico de
Deus em Cristo em favor do mundo.
2.2 – Uma breve fórmula antropológica
O homem chega realmente a si mesmo em genuína auto-realização somente
quando ousa colocar-se radicalmente em favor dos outros. Ao fazê-lo, acolhe
(atemática ou explicitamente) o que se entende por Deus enquanto horizonte,
garante a radicalidade deste amor, o qual em autocomunicação (existencial e
historicamente) se faz o espaço da possibilidade desse amor. Este amor entende-se
de maneira íntima e social e na radical unidade destes dois momentos, ele é o
fundamento e a essência da Igreja439.
Aqui também Rahner elenca três afirmações, a saber:
A primeira diz que - na auto-transcendência existencial que acontece no ato do amor ao
próximo - o homem faz uma experiência de Deus. Esta afirmação concretiza o que se disse sobre a
atuação originária da transcendência humana ocorrer não na reflexão teórica, mas no conhecimento
prático concreto e na liberdade cotidiana. Rahner chama a isso com-humanidade e interhumanidade. Esta afirmação encontra garantia na verdade da unidade do amor para com Deus e do
439
CFF 527.
173
amor para com o próximo, “pressupondo-se que não se reduza essa verdade à obviedade, segundo a
qual não se pode agradar a Deus se se despreza o seu mandamento de amar ao próximo”.
A segunda afirmação diz que mediante sua autocomunicação Deus cria a possibilidade da
inter-humanidade de amor, que concretamente nos é possível. Esta segunda afirmação diz também
que o amor entre os homens é movido pela graça sobrenatural, justificante, do Espírito Santo.
Se compreendermos essa autocomunicação divina no sentido mais preciso, ou seja, na
unidade, na distinção e na mútua relação de condicionamento entre autocomunicação existencial de
Deus na graça e autocomunicação histórica de Deus com o seu ponto alto na encarnação do Logos
Divino, então o enunciado segundo o qual Deus na autocomunicação fez-se o espaço das
possibilidade dessa radical inter-humanidade, conta também o que se disse na primeira fórmula
breve acerca da autocomunicação de Deus como a essência mais lídima da fé cristã.
Se refletirmos sobre Mt 25, com certeza é de antemão incontestável que no amor radical
para com o próximo realizado praticamente já está implicitamente data toda a relação salvífica do
homem para com Deus e para com Cristo. Se nessa segunda afirmação da fórmula breve
antropológica alguém notasse a falta de uma afirmação explícita da relação do homem, e do seu
amor para com o próximo, com Jesus Cristo, poderia evidentemente dizê-la de maneira mais
expressa:
Esta autocomunicação de Deus ao homem, que sustenta o seu amor para com o
próximo, tem o seu ponto alto histórico escatologicamente vitorioso em Jesus
Cristo, o qual, portanto, é amado, pelo menos anonimamente, em todo outro
homem440.
A terceira afirmação desta segunda fórmula breve diz que esse amor, no qual no próximo
ama a Deus e o próximo é amado em Deus, apresenta uma dimensão de intimidade existencial e
uma dimensão de sociabilidade histórica, que corresponde ao duplo aspecto da autocomunicação de
Deus.
Onde este amor chega a seu ponto alto, está presente o que chamamos Igreja. Pois
o que é mais próprio na Igreja consiste na união escatologicamente indissolúvel
(não: identidade !) entre verdade – Espírito – amor, por um lado, e manifestação
historicamente institucional dessa comunicação do Espírito como verdade e amor,
por outro lado441.
440
441
CFF 528.
CFF 528.
174
2.3 – Uma breve fórmula futurológica
O cristianismo é a manutenção em aberto da questão do futuro absoluto, que quer
doar-se precisamente com tal em autocomunicação. Fixou este seu querer de
maneira escatologicamente irreversível em Jesus Cristo, e se chama Deus442.
Esta fórmula brevíssima é variante da afirmação sobre a transcendentalidade do homem
contida na primeira fórmula básica, interpretando-a como futuridade. Tal futuro não é a meta à qual
tende assintoticamente a história sem jamais ser atingida em si -, mas que quer se doar por sua
própria autocomunicação. Desta autocomunicação do futuro absoluto, a qual se encontra ainda em
fase de realização histórica, diz-se o que da autocomunicação de Deus já se disse na primeira
fórmula breve, que é, também, “existencial”, tendo um aspecto histórico no qual atingiu
irreversibilidade escatológica em Jesus Cristo.
Rahner nem precisa expor outra vez que no enfoque da divina autocomunicação ao mundo
que em Jesus Cristo tornou-se escatologicamente irreversível, já está dado o que a doutrina da
Trindade e a cristologia expressam e, também, que, na experiência de nosso extar-voltado-para-ofuturo-absoluto, faz-se a experiência de Deus – e precisamente do Deus da ordem sobrenatural da
graça, o que também não é mais preciso expor aqui.
O cristianismo, na medida em que é adoração do Deus único e verdadeiro, mantém o
homem aberto para o futuro absoluto e, à medida que este futuro é e permanece o mistério absoluto,
também no estado da realização plena e consumada desta autocomunicação, é a manutenção em
aberto da questão sobre o futuro absoluto.
Conclusão
A primeira fórmula fala de Deus como o Aonde inabrangível. Se pensarmos que assim se
indica o principium inprincipiatum, o princípio absolutamente não originado de toda realidade
pensável, então neste Aonde da transcendência humana menciona-se realmente o “Pai” da doutrina
cristã da Trindade. Na segunda fórmula breve, o foco é Deus que, em Jesus Cristo enquanto homem
se faz o espaço da radical inter-humanidade, então nela se menciona o Deus feito homem, o
“Filho”. O futuro absoluto do homem, que se comunica na história é de maneira especial o “Espírito
de Deus”, porque ele pode ser caracterizado como amor, liberdade e novidade sempre
surpreendente.
442
CFF 529.
175
Se uma fórmula de fé deve expressar a substância fundamental da realidade da fé cristã de
tal forma que a partir da experiência existencial do homem se abra o acesso máximo para a
compreensibilidade desta substância e, se, por outro lado, esta substância fundamental certamente
se pode encontrar no voltar-se trinitário e econômico salvífico de Deus para o mundo, então não se
deve descartar de início que deve haver três tipos fundamentais dessas fórmulas breves em
correspondência ao dogma trinitário.
Isto não exclui que cada um destes tipos básicos possa ser ainda bastante matizado,
quer mediante ulterior diversificação e acentuação de seu conteúdo, quer levandose em conta a variedade daqueles aos quais se destina semelhante fórmula básica
de fé443.
443
CFF 530-531.
176
III
Conclusão
177
O início deste texto deu a palavra ao teólogo Rahner - que assume a sua teologia como
filosófica. Com isso o que vimos é a palavra de um pensador mais afirmativo, porque é o Rahner
que monta as bases de seu pensamento, que tem que ser explicitado, sob pena de algum leitor não o
poder acompanhar.
No curso deste trabalho o tempo também fez seu papel na apreciação da maturidade
teológica de Rahner e, em razão disso, ao final, esta exposição tenta se aproximar do homem
Rahner, que se achega à obstinada busca da fé no seu infinito questionar para dela dar razão, “com
os braços apoiados no ombro de Jesus”444.
É muito fácil tomar um aspecto da teologia do gigante Karl Rahner e considerá-la “falsa”.
Basta afastá-la do conjunto de seu pensamento. Esta é a razão pela qual este trabalho configurou-se
como agora se apresenta, sem temer dar tantas voltas quanto a admirável sistematização de Rahner
exigiu de si, como modo de não se afastar da coerência de seu pensamento.
Se a impressão a prevalecer no leitor, for a de que este trabalho aproximou-se do todo uno
do pensamento de Rahner, este trabalho não terá atingido seu propósito que, com relação ao autor
que o inspira, quer justamente apontar a deficiência de em tão poucas linhas poder dizer algo que
efetivamente o diga. Resumir a estrutura básica do pensamento teológico desse grande e coerente
pensador, nas palavras de K. Lehmann, é abordar a
radical imediaticidade de Deus, ingenuidade especulativa, questões pastorais,
sensibilidade à importância da tradição teológica - é preciso ser capaz de dizer tudo
isto e muitas outras coisas, “ao mesmo tempo”, a fim de articular a origem e a
clareza da teologia de Rahner445.
Rahner nos legou uma teologia que conhece a História como poucos contemporâneos seus.
Por isso, do ponto de vista da história das idéias e da política da Igreja, Rahner não teve escolha, a
não ser entrar nesse milieu, o que lhe exigiu coragem. Este testemunho, que aqui é trazido nas
palavras de Lehmann, é uma constante nas declarações de seus outros tantos companheiros, não
bastasse o registro imortalizado em sua própria obra, por si, o maior exemplo de coragem.
O chamado “primeiro” Rahner dedicou-se a problemas específicos da teologia escolástica,
como o relacionamento entre Natureza e Graça, o que foi visto na Segunda Parte deste trabalho.
Agora é necessário que se diga da origem de alguns de seus mais famosos e não
menos questionados conceitos. Os conceitos de “existencial sobrenatural” e de
444
445
Cf. TLJ.
TCF 11.
178
cristão anônimo, por exemplo, nasceram no contexto da necessidade interpretativa
da Encíclica Mystici corporis, e das tensões que se lhe seguiram446.
Este comentário de Lehmann é importante porque fez perceber que, se nos seus começos,
Rahner é meticuloso nas explicações que dá de seu intricado modo de pensar, quando mais ele
“cresce”, menos se preocupa em apontar a origem do seu pensamento e, neste sentido, toda a sua
filosofia, todo o seu conhecimento se agrega ao seu pensamento e irrompe em seus escritos sem
maior preocupação de estar justificando esta ou aquela forma de dizer ou a origem deste ou daquele
pensar.
Rahner é um autor “ensaísta”447. É considerado de difícil leitura, mas é sempre inteligível
para aqueles que se esforçam no sentido de pensar “junto” com ele. Para tal, é fundamental
conhecer o seu método de pensar, ou o leitor corre o risco de abandoná-lo (ao seu rico pensar),
ainda nas “notas preliminares” de seus escritos.
Tal metodologia pode ser assim resumida. Primeiro, o objeto a ser investigado é
cuidadosamente circunscrito. Daí Rahner passa ao estado da questão, e a posição
que se encontra sob questionamento. Do mesmo modo que o objeto, o
questionamento é, então, cuidadosamente delineado. As categorias tradicionais e
os modos de pensar a questão são testados por sua capacidade de enriquecer as
informações sobre o objeto e prover respostas atuais. Ao mesmo tempo, como se
fosse um “tutorial”, Rahner recorda ao seu leitor o pensamento tradicional
acumulado sobre seu objeto448.
O bonito na descrição do método de pensar de Rahner não é que ele tenha uma pedagogia
capaz de ensinar ou convencer seus leitores. O bonito é que este método de pensar nos convida a
participar do movimento vivo do seu próprio pensamento que, renovadamente encara os problemas
da fé cristã, de maneira inovadora. Assim, a Palavra de Deus se torna constantemente mais e mais
frutuosa nesse “conflito produtivo” do pensamento de Rahner, que jamais separa método e
conteúdo.
É preciso abrir outro parêntesis para dizer da importância do pensamento de nosso autor
especificamente por sua reconhecida habilidade de expressão. O testemunho é também de K.
446
TCF 12-13.
O ensaio sempre fala de algo já formado ou, na melhor das hipóteses de algo que já tenha existido; é parte de sua
essência que ele não destaque coisas novas a partir de um nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as
coisas que em algum momento já foram vivas. E como ele apenas as ordena novamente, sem dar forma a algo novo a
partir do que não tem forma, encontra-se vinculado às coisas, tem de sempre dizer a “verdade” sobre elas, encontrar
expressão para sua essência. Cf. G. von KÚKÁCS. A alma e as formas. No original, Die Seele und die Formen, Berlim,
Egon Fleischel, 1911, 23 (apud T. W. ADORNO in Notas de literatura I. SP: Editora 34. 1a ed., 2003. 15, nota 2).
448
Segundo K. Lehmann, esta é a inconfundível marca do singular estilo experimental de pensamento de Rahner. Cf.
TCF 16.
447
179
Lehmann, muito citado aqui por ser o organizador dos arquivos Rahner e o principal responsável
pela equipe de cientistas encarregados de publicar a sua obra crítica, conforme já dito.
Porque Rahner posicionou-se no caminho histórico do pensamento teológico,
quando enfrenta questões teológicas mais próximas ao homem, seu pensamento
ganha um impressionante poder de comunicar-se ao mundo, de transcender os
idiomas e visões de mundo, e aparentemente superar dificuldades de expressão
(sem deixar de reconhecer a alta qualidade de seus bons tradutores e, ao mesmo
tempo, sem exagerar o efeito dessa influência)449.
Este aparente detalhe aqui recordado tem sua razão de ser por que é de conhecimento geral
que Rahner era exímio conhecedor do latim e falava francês, além de seu idioma materno. Desse
modo, ao mesmo tempo em que lamento a qualidade da tradução para o português de seu CFF, devo
aplaudir o comentário de Lehmann que resume a experiência que tenho tido ao tentar ingressar na
porteira do mundo rahneriano, por via de boas e cuidadosas traduções, principalmente para o inglês
e o francês.
Que este desabafo seja estímulo à nossa capacidade editorial no sentido de mais cuidadosas
e renovadas edições desse autor inesquecível a quem quer que se interesse pelo homem e seu
diálogo com Deus.
A conclusão deste trabalho não encontra espaço para se deter numa crítica que leve em
conta os comentadores – pró e contra Rahner -, o que demandaria praticamente um novo
(estimulante e desejado) estudo.
Abandonamos, também, a “tentação” de tomar a crítica de um único teólogo que fosse
cristão contemporâneo e que, em síntese apontasse “falhas” nos temas que buscamos tratar, da
totalidade de pontos alcançados na teologia de Rahner. Este “abandono” se deveu, em parte, pela
dificuldade de escolha de um só autor crítico em detrimento de outro ou da impossibilidade ideal de
se analisar diversos autores.
Desse modo, a presente conclusão, vem fechar este trabalho, com uma síntese que carrega as
melhores observações que pude colher durante estes inesquecíveis anos de estudo.
Passo a comentar o trabalho a partir do título da dissertação: A liberdade como misterioso
evento salvífico da autocomunicação de Deus.
449
TCF 15.
180
Este trabalho não quis pensar sobre o conceito de liberdade. Mas se propôs a apresentar a
liberdade cristã na visão de Karl Rahner. A origem do tema não se funda na curiosidade acadêmica,
mas na observação pessoal da aluna de que a liberdade cristã, tal como aqui descrita, consiste numa
das maiores grandezas do cristianismo.
Na liberdade cristã, apresentada por Rahner, encontrei a esperança de que o cristão dos dias
de hoje possam fazer dela o “marco” de uma evangelização que ainda há de cuidar, que ainda há de
ofertar ao “mercado” de consumo da desesperança, a liberdade do Cristo como caminho de
Salvação.
Esta liberdade manifesta o humano em Rahner. Para ele, a liberdade é catalizadora de toda a
sua teologia. É o fio que tece cada ramo do exemplo tolo da trança da menina e é, também, o nó que
ou aperta e sustenta a trança para que ela não escorregue e solte os fios, ou não é o nó que sustenta,
por isso não permite o trançado em que se sustenta o modelo.
O título adverte a liberdade como “misterioso evento”. Ao longo do texto, em especial na
Primeira Parte, o tema do mistério de Deus Pai é amplamente discorrido, menos por pretender um
tom misterioso ao tema, o que, aliás, é condenado por Rahner em seu espetacular artigo sobre o
Conceito de mistério na teologia católica450, mas por ser mistério o que de mais “evidente”
podemos considerar neste dado contexto em que Rahner expõe suas idéias e preocupações com
Deus Pai que se vai revelar no “evento” Jesus Cristo.
Este evento, ao contrário do afirmado por alguns, é central, não só para o cristianismo, que
nele se funda, mas também para que o cristianismo possa ser entendido hodiernamente, não com os
riscos que Rahner aponta de parecermos outra mitologia, mas como a fé que afirma que Deus, o
mistério santo que quis, em sua liberdade absoluta, revelar-se, é mistério de amor.
O evento desta livre revelação explode a concepção de realidade do homem que já viu o
iluminismo e vive o imediatismo, com pressa, pois que esta revelação de Deus Pai revela, também
ao homem que ele mesmo, em sua vocação primeira é capaz de fazer uso de sua liberdade limitada
e condicionada para, assim, trazer um pouco mais para perto de si e nesse mesmo movimento
empurrar um pouco mais para longe do ordinário, em direção ao horizonte, o fruto de sua liberdade,
como co-autora da criação de Deus.
450
RAHNER. Conceito de Mistério na Teologia Católica. ODR 153-216.
181
Portanto, o homem tem com o mistério uma relação que se funda na liberdade, absoluta por
parte do mistério que, por ser sabedor da pequenez de nossa liberdade criada, se revela como amor,
como amor indulgente.
Este amor indulgente nos é por primeiro comunicado. Mas, como no dizer de santo Inácio,
em sua Contemplação para alcançar o amor,
o amor consiste na comunicação de duas partes, isto é, em dar e comunicar o
amante ao amado o que tem ou daquilo que tem ou pode. E assim do outro lado, o
amado ao amante. De tal maneira que se um tem ciência, dá àquele que não a tem;
se tem honras, riquezas, e, assim, um ao outro451.
Assim, sem o acolhimento espontâneo, ou livre, deste amor indulgente, o homem perde a
percepção de que o misterioso evento salvífico da autocomunicação de Deus exige reciprocidade. A
exigência de reciprocidade no amor é ínsita ao cristianismo como expressão de fé e, portanto, de
salvação.
Nada do que foi dito aqui é novo, nada do que se disse na presente conclusão tem caráter de
definitividade. O que se pretende nestas linhas é dizer da descoberta. Registro que se em minha
opinião o título foi perseguido por todos os três capítulos, nesse caminho surgiram dados da
teologia de Rahner que são o próximo registro que passo a elencar.
Primeiramente quanto à teologia da criação. Rahner tem uma maneira de abordar a criação
que é de uma originalidade atordoante. Ao tempo em que é uma teologia que traz questões, ela
apresenta respostas com capacidade de romper disputas inúteis que representam tormentas antigas
dentro e fora do cristianismo. Refiro-me às questões que implicam o ecumenismo, o trato com o
mundo secular nas querelas sobre evolucionismo e tantas mais abordadas, sendo de se registrar aqui
que o grande fruto deste trabalho de Rahner é apontar o homem como criatura de Deus, uma
criatura que não tem porque se forjar como inferior por suas limitações, mas que deve levantar o
olhar para o que seja a efetividade de sua criaturidade.
Em segundo lugar, o que se aponta exaustivamente por toda a Segunda Parte: o evento
Jesus Cristo, sem o quê não há nada a dizer sobre o humano e a dignidade que se pretende sempre
concedida ao homem. A partir do estudo do Filho, foi possível despertar a atenção mais e mais para
a teologia trinitária de Rahner e seu axioma fundamental.
451
EE 231. A tradução é de Vázquez Moro, in A contemplação para alcançar o amor. SP: Loyola. 2005, 52.
182
Nesse ponto, ressalto a ponte que une as duas primeiras partes, quando, no cuidar do Pai se
fala na teologia da criação de Rahner abre-se caminho para encontrar na segunda parte, ou seja, em
Jesus, o absoluto portador da salvação. Um registro inesperado deste trabalho se encontra
exatamente no encontro da Criação com a Salvação no pensamento de Rahner que como que desaba
se uma não der conseqüência à outra. Aliás, o que Rahner faz é pôr luz na ponte que o cristão sabe
que o leva da condição de criaturidade à esperança de Salvação contida no evento Cristo. O nome
da ponte é “autocomunicação de Deus”.
Por conta da limitação temporal (e espacial) fica aqui como sugestão um trabalho que
persiga na sua pesquisa o axioma fundamental e o que Rahner efetivamente quer dizer com o “vice
versa” de sua afirmação valorosa de que a Trindade econômica é a trindade imanente, e vice-versa.
Mesmo sem adentrar a questão, é imprescindível observar que todas as linhas deste trabalho
mostram o encantamento da autora pela descoberta trinitária de Rahner em nossas vidas,
encantamento que merece ser partilhado entre nós, os cristãos que percebemos a experiência
trinitária do ponto de vista do chão de nossa existência.
Em terceiro lugar, este trabalho apontou embora discretamente a coerência de Rahner com a
tipologia trinitária grega. Isto justifica as menções feitas à obra de Basílio, em especial na Terceira
Parte, dedicada ao estudo da liberdade, na unidade do Espírito Santo.
A parte final deste trabalho vem com o propósito unificador de todos os três capítulos.
Trata-se de uma proposta paralela ao próprio tema que seguiu os artigos do Credo perseguindo a
idéia de uma única τάξιρ, com o fim já explicitado de permitir uma mais simples compreensão da
realidade trinitária em um sentido existencial, o que a herança cultural da palavra “pessoa” não vem
permitindo à teologia, ao longo dos anos.
A conclusão devida como avaliação da proposta e do projeto iniciais é muito otimista, ao
menos por parte da signatária. O texto que aqui se encerra aponta a oportunidade de um caminho
pessoal, no estudo de um autor, o que culminou numa experiência de discipulado inesperada. Esta
experiência não se deseja que tenha aqui o ponto final, mas que possa ser ponto de partida pelo
estímulo e pelo embasamento à pesquisa que se não forem possíveis à aluna que ora escreve
empreender, possa vir a ser a um eventual leitor que como eu desperte, por Karl Rahner, para a
prontidão do pensamento que se volta como vocação a nosso Senhor Jesus Cristo.
183
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185
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Deus do silêncio: dez meditações. Lisboa: Paulistas, [1968?]
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Herder, 1968. A primeira seção (teológica) foi republicada sob o título A antropologia: problema
teológico. SP: Herder, 1968.
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Missão e Graça: funções e estados de vida na Igreja. Petrópolis: Vozes, 1965.
Missão e Graça: problemas de espiritualidade e pastoral. Petrópolis: Vozes, 1965.
Free speech in the church. NY: Sheed & Ward, 1959.
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A caminho do homem novo: a fé cristã e ideologias terrenas do futuro. Petrópolis: Vozes, 1964.
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título Lo dinamico en la Iglesia. Barcelona: Herder, 1968. 2. Ed.
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Iglesia, iglesias y religiones. Academia teologica, v. III. Salamanca: Sigueme, 1967.
Piedad ayer y hoy. Academia teologica,. v. IV. Salamanca: Sigueme, 1967. Republicado em
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452
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186
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1968 - Teologia e antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969.
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Reflexiones en torno a la "Humanae vitae". 3a ed. Madrid: Paulinas, 1971.
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1971 - O problema da infalibilidade: respostas à interpelação de Hans Kung. SP: Loyola, 1976.
Libertad y manipulacion: en la sociedad y en la Iglesia. Pamplona: Dinor, 1971.
1972 – RAHNER, K.; THÜSING, Wilhelm. Cristología: estudio teológico y exegético. Madrid:
Cristiandad, 1975. Reeditado em ingles sob o título A new Christology. NY: Crossroad, 1980.
Estruturas em mudança: tarefa e perspectivas para a Igreja. Petrópolis: Vozes, 1976.
The shape of the church to come. NY: Crossroad, 1974.
1974 - O desafio de ser cristão: textos espirituais. Petrópolis: Vozes, 1978.
1975 – Encyclopedia of theology: the concise Sacramentum Mundi, NY: Crossroad, 1975.
1976 - Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. SP: Paulinas, 1989.
Reeditado em ingles sob o título Foundations of Christian faith. NY: Crossroad, 2002 e, em
francês, sob o título Traité fundamental de la foi: introduction au concept du christianisme. Paris:
Éditions du Centurion, 1983.
Meditations on Freedom & the Spirit. NY: Crossroad, 1978.
1977 – Experiencia del espiritu. Madrid: Narcea, 1978.
1978 – Palavras de Inácio de Loyola a um jesuíta de hoje. SP: Loyola (Prólogo de fev 1978).
1980 – The heart of Rahner. Londres: Burns & Oates, 1980.
1981 - The love of Jesus and the love of neighbor. NY: Crossroad, 1983.
BOSS, Medard. Angustia y confianza Cristiana. Fe Cristiana y sociedad moderna. IX. Madrid: SM
1982 - Este e o meu problema: Karl Rahner responde aos jovens. SP: Loyola, 1985.
1984 – Prayers for a lifetime, NY: Crossroad, 1984.
1985 – Words of Faith, NY: Crossroad, 1987.
1987 – The Great Church Year: the best of Karl Rahner‟s Homilies, sermons, and meditations.
NY: Crossroad, 1993.
1993 – La mia note non conosce tenebre: la celebrazione della settimana santa e del tempo
pasquale. Brescia: Queriniana, 1994.
187
THEOLOGICAL INVESTIGATIONS
1954 – v. I: God, Christ, Mary and Grace. Baltimore: Helicon Press, 1961.
1963 – v. II: Man in the church. Baltimore: Helicon Press, 1963.
1967 – v. III: Theology of the spiritual life: NY: Crossroad, 1982.
1972 – v. IX: writings of 1965-1967, I, Londres: Darton, Longman & Todd
1977 – v. X: writings of 1965-1967, II, NY: Crossroad, 1977.
1981 – v. XVII: Jesus, man and the church. NY: Crossroad, 1981.
1983 – v. XVIII: God and revelation. NY: Crossroad, 1983.
1986 – v. XX: Concern for the church. NY: Crossroad, 1986.
1991 – v. XXII: humane society and the church of tomorrow. NY: Crossroad, 1991.
1992 – v. XXIII: final writings. NY: Crossroad, 1992.
IV - Artigos de K. Rahner453
1933 - La doctrine des „sens spirituels‟ au Moyen-Age en particulier chez St. Bonaventure, Revue
d‟Ascetique et de Mystique 14 (1933), 263-299. Republicado como Die Lehre von den “geistlichen
Sinne” im Mittelalter: der Beitrag Bonaventuras, Schriften zur Theologie, v. XII, e como The
Doctrine of the “Spiritual Senses” in the Middle Ages, Theological Investigations, v. XVI.
1942 – Theos in the New Testament. Theological Investigations, v. I. Baltimore: Helicon Press,
1961. Republicado em português sob o título Theós em o Novo Testamento. Teologia e bíblia. SP:
Paulinas, 1972.
1952 – Dignidade e liberdade do homem. Escritos de Teologia, v. II, 1959. Republicado como The
dignity and freedom of man in Theological Investigations, v. II, Baltimore: Helicon Press, 1963.
Teologia da Liberdade. Teologia da liberdade. Caxias do Sul: Paulinas, 1970.
La libertà nella chiesa. Saggi di antropologia sopranaturale. Roma: Paoline, 183-211. Republicado
em Theological investigations, v. II, Baltimore: Helicon Press, 1963.
1954 – Tentativa de esboço para uma dogmática. O dogma repensado. SP: Paulinas, 1970
1959 – A realidade da redenção do mundo criado. Missão e graça, v. I, Petrópolis: Vozes, 1964.
1963 -No extingáis el Espíritu. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 3, no. 9, 49-50, jan-1963.
1964 - Faith for today. Belief today. NY: Sheed and Ward, 1967.
1967 – O Deus Trino, fundamento transcendente da história da Salvação, Mysterium Salutis II/1,
cap. 5, seção I, 1973, 283-359. Reeditado em francês sob o título Dieu Trinité: fondement
transcendant de l‟histoire du salut. Paris: Cerf, 1971 e em inglês sob o título: e, em inglês sob o
título The Trinity. NY: Crossroad, 2003.
A doutrina do Vaticano II sobre o ateísmo: tentativa de uma interpretação. Concilium, Petrópolis,
n. 3, 9-24, mar-1967.
Simul iustus et peccator. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 8, no 29, 42-46, jan/mar 1969.
453
Os artigos de Rahner estão ordenados segundo o ano em que o original foi publicado.
188
1970 – The experience of God today. THI, v. XI, NY: Seabury, 1974, 149-165.
1972 – Gracia. Sacramentum mundi: enciclopedia teológica, v. III, Barcelona: Herder [1972?]
Gracia y Libertad. Sacramentum mundi: enciclopedia teológica, v. III, Barcelona: Herder [1972?]
Tratado teológico sobre la gracia. Sacramentum mundi: enciclopedia teológica, v. III, Barcelona:
Herder [1972?]
1976 - La libertad del inferno desde el punto de vista teologico. Selecciones de Teologia,
Barcelona, v. 15, no 60, 329-333, out/dez-1976.
1978 – Experience of the Holy Spirit. Theological Investigations, v. XVIII.
1983 - Misterio de la culpa humana y del perdon divino. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 22,
no 85, jan/mar 1983.
1997 – A presença da paixão de Jesus em nós. Itaici: Revista de Espiritualidade Inaciana,
Indaiatuba, v. 8, n. 28, p. 90-92, jun 2007.
189
Anexo454
Só se poderá falar de Deus de maneira indireta.
K. Rahner, CFF 33.
1) Inominado (33)
2) obscuros desertos (12)
3) abismos da existência (12)
4) mistério intangível (23)
5) autocomunicação se chama Graça (24)
6) mistério único (24)
7) eternamente distante (24)
8) o todo simplesmente (32)
9) o ser como tal (32)
10) infinita amplidão (32)
11) amplidão sem fim de toda a realidade possível (33)
12) Aonde (33)
13) horizonte (33)
14) mistério santo (80)
15) absolutamente real (34)
16) Aonde e Donde da transcendência é o mistério absoluto e santo (34)
17) mistério evidente (34)
18) única realidade evidente por si mesma (34)
19) única realidade fundada em si própria (34)
20) mistério familiar (34)
21) mar do mistério infinito (35)
22) luz eterna (35)
23) infinita amplidão do incomparável mistério de Deus (37)
24) mistério incompreensível (39)
25) realidade da qual proveio o homem (41)
26) horizonte infinito (81)
27) horizonte inalcançável (46)
28) a absurdidade do que se lhe antolha (48)
29) ser puro e simples (48)
30) o inefável (49, 80)
31) origem indispensável do viver e conhecer (49)
32) infinitude indisponível e silenciosa da realidade (50)
33) ser como mistério (57)
34) abismo do mistério inefável (57)
35) rosto cego (62)
36) sem nome (63)
37) silencioso (63)
38) o todo em unidade e totalidade (63)
39) sem rosto
454
O anexo refere-se à nota de rodapé no 223.
190
40) mistério silencioso que se parece com o nada (65)
41) mistério absoluto (69)
42) a verdade mais autêntica de si mesma (71)
43) a realidade totalmente diversa (71)
44) mistério que está sempre presente e sempre se subtrai (72)
45) é o mundo que ele dá de si mesmo (73)
46) termo para o qual marcha o movimento da transcendência (76)
47) é a palavra que tudo fala ao dizer Deus (77)
48) mistério inefável (77)
49) Aonde e Donde da experiência originária de transcendência (78)
50) fundamento original (78)
51) abismo (78)
52) infinito (80)
53) indefinível (80)
54) inominável (81)
55) silêncio da experiência transcendental (81)
56) o totalmente outro com relação ao mundo (82)
57) é a realidade mais radical e evidente por si mesma (83)
58) a medida última (83)
59) o limite que a tudo dá a sua definição (83)
60) a amplidão infinita que tudo abarca e pode abarcar (83)
61) o inominado que de tudo dispõe de modo absoluto (85)
62) infinito Aonde do amor (85)
63) pessoa absoluta (94)
64) ser absoluto (98)
65) realidade absoluta e inabarcável (98)
66) horizonte ontologicamente se ocultando (99)
67) absolutamente infinito (99)
68) absoluto e infinito (99)
69) absolutamente diverso (99)
70) distância fria (108)
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