1 INSTITUTO SANTO INÁCIO FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA JUSSARA FILGUEIRAS DIAS SANTOS LINHARES A LIBERDADE COMO MISTERIOSO EVENTO SALVÍFICO DA AUTOCOMUNICAÇÃO DE DEUS: segundo a teologia de Karl Rahner Dissertação de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Ulpiano Vázquez Moro BELO HORIZONTE” 2008 2 Agradecimentos Um dia, alguém, tentando explicar a novidade de meu duplo domicílio disse que eu não moro em Belo Horizonte. Aqui, eu somente me demoro. Eu achei isso formidável. Tão formidável que não posso deixar de obedecer ao meu coração e dar graças pela presença de tantos mineiros e de outros não mineiros que têm adoçado esses anos de minha vida, pelo quê, lhes sou eternamente grata. Quando aqui cheguei, em 2006, morei no Carmelo vizinho até descobrir que o então Instituto Santo Inácio é uma experiência radical. Não se “passa” por ele. Aqui a gente entra e se demora mesmo. É pegar ou pegar. Ao concluir o mestrado, agora já na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, eu me vejo como alguém que se apegou às demoras com um novo e surpreendente “coração amineirado”. Eu sou muito grata a todos os funcionários desta casa. Desde a portaria, onde fica a atenta Eliane, passando por todo o corpo administrativo, destacadamente no final do corredor, Dulcinéia, o verdadeiro anjo da guarda da Teologia desta Faculdade. Descendo as escadas, encontro a Carminha e seus fiéis ajudantes, todos com um permanente sorriso no socorro aos alunos. A minha gratidão segue seu caminho e alcança a “nossa” magnífica biblioteca, a que nos referimos com tanto orgulho, a Biblioteca Pe. Vaz, onde encontrei sempre a competência da Wanda e da Zita que contagiam toda a equipe que se torna cúmplice da qualidade dos trabalhos aqui desenvolvidos por não poucos. Não posso deixar de agradecer à prof. Elizabeth. Suas aulas de francês tornaram possível o meu acesso à leitura de grandes textos, leituras que formam o estímulo intelectual de quem tem o privilégio de passar estes anos dedicados à pesquisa teológica. Devo um agradecimento pessoal e muito especial ao prof. Nilo Ribeiro, cujo carinho me permitiu freqüentar um de seus cursos na graduação, sobre o filósofo E. Levinas, o que tanto fruto me permitiu colher agora, na dissertação sobre Karl Rahner, em que lentamente pude tecer um paralelo entre esses dois gigantes, que creio unidos pela autocomunicação de Deus. Sou grata, também, ao grande prof. Konings, Coordenador da pós-graduação da FAJE e suplente na banca examinadora de minha dissertação a quem peço que receba e transmita o meu maior agradecimento a todos os demais professores, que me apontaram por seu conhecimento e exemplo de vida que é possível percorrer essa caminhada em busca do Cristo. 3 Faço um registro a quem eu “responsabilizo” no dia de hoje o fecho desta etapa de minha vida: a irmã Carmelita, então coordenadora da pós-graduação, que me recebeu nesta casa sem nunca haver me visto, e me “viu” numa folha de papel, que apenas apontava o meu desejo de encontrar a Deus também por meio da ciência da teologia. A ela devo o empenho na minha aceitação como aluna deste prestigiado Instituto que leva o nome do santo que me inspira espiritualmente. Devo à irmã Carmelita o estímulo e confiança com que ofereceu o espaço para que eu pudesse dispor minhas idéias na Revista Convergência. Mais que tudo, agradeço à irmã Carmelita a escolha do orientador desta dissertação, o professor Ulpiano Vázquez Moro, escolha esta que fez toda a diferença nestes anos de crescimento humano, acadêmico e espiritual em minha vida. Não posso evitar o desfile de rostos que avoluma diante de mim. A todos esses rostos que me cercaram, desde os funcionários e professores, não citados aqui nominalmente, devo somar os rostos e o sorriso de cada um e de todos os colegas, os companheiros, os amigos que este Campus possibilitou unir e aprofundar relações. Muito devo a todos. Não somente aos que dividiram as aulas na pós-graduação, mas também e com carinho todo especial aos leigos, jesuítas e a todos os alunos que aproveitam esta bela iniciativa que é o Curso de Teologia Pastoral, o querido CTP do ISI. É importante para mim a oportunidade de deixar um registro pessoal sobre a banca examinadora: estou convencida de esse grupo deve inspirar o sonho do aluno apaixonado pela pesquisa. Isto porque o momento da defesa é a oportunidade que o dissertante tem de apresentar o “mundo” pelo qual adentrou por alguns anos e que redundou na experiência que se resume nessas páginas silenciosas. Por isso, é meu dever parabenizar a FAJE pelo equilíbrio na composição da banca. Parto da escolha do professor convidado. A professora Maria Clara Bingemer, além de decana da PUC-Rio é a titular das matérias relacionadas ao estudo da Trindade naquela Universidade, o que a meu ver trouxe harmonia para a banca, como tal. Digo isto porque uma banca composta por meu orientador, o professor Ulpiano Vázquez Moro, e presidida por meu modelo de teólogo, o prof. Juan Ruiz de Gopegui, recebeu, pela presença de uma mulher, leiga e inaciana, como eu, um equilíbrio que se refletiu na desejável segurança para a dissertante, para os demais presentes ao debate que se quer plural nesta Casa obstinada pela excelência. 4 Além disso, a presença da professora Maria Clara uniu a totalidade de minha experiência de estudo na teologia. Na professora Maria Clara eu vi e me vi no 5º andar da PUC, no bar das freiras, no Centro Loyola, no Auditório Anchieta. A sua presença fez presentes nesta solenidade os meus amigos, os meus colegas e todos os professores da PUC-Rio, que nunca se ausentaram destes anos de minha vida. Passo ao professor que me honrou com sua presença na Presidência nesta banca. Pe. Gopegui. Pe. Gopegui é um teólogo de uma lucidez ímpar. “Conhecimento de Deus e evangelização”. Este meu livro de cabeceira, pe. Gopegui, deveria ser reeditado com prioridade. Acho que o li mais que o Curso fundamental da fé! Se não o li tanto, foi lá, certamente, que consegui a estrutura de pensamento necessário para compreender o Grundkurs des Glaubens. Por conta deste livro, que é a tese doutoral do pe. Gopegui, eu atirei o meu coração na evangelização. Apaixonada. A minha experiência na Igreja da Imaculada, da Paróquia São Francisco Xavier, já está no segundo ano e a cada nova semana eu sinto vontade de testemunhar aos alunos do pe. Gopegui que ele não sonhou teologia. Ele a vive. E mesmo que ele assim tivesse sonhado, coisa que a história da vida dele desmente, eu garanto: o sonho da evangelização gopeguiana é possível. Eu o vejo acordada. Para mim, o pe. Gopegui é um gigante da teologia por sua união de saberes dogmático e bíblico. Inesquecível Marcos !!! Mas inesquecível, também, a visão de Igreja que ele semeou no meu coração. O pe. Gopegui é assim: vida e obra inseparáveis da fé. O seu modelo de vida e a sua postura diante do mundo me dizem ser possível o cristianismo. Principalmente por sua noção aguçada do agora. Tão aguçada que dói. A serenidade com que vive a alegria e os sofrimentos da miséria do mundo são, no pe. Gopegui, o exemplo de atuação mais eficaz e silenciosa que já conheci. Não posso imaginar honra maior para um estudante como eu do que ter seu trabalho lido e examinado por alguém tão grande quanto o senhor. Que Deus o proteja. Com imensa gratidão, agora me volto a um grande jesuíta: Ulpiano Vázquez Moro, o professor orientador desta dissertação. Devo dizer que com este professor, eu conheci uma teologia absolutamente original. 5 Com o orientador, eu percebi que Ulpiano Vázquez Moro é motivo de larga e silenciosa admiração, admiração não somente minha, mas de muitos alunos com que venho cruzando. Ulpiano Vázquez Moro é um curioso escravo de sua agenda. Nunca vi igual domínio da elasticidade do tempo, toda vez que se trata de atender uma alma angustiada, um aluno com uma questão, uma dúvida teológica, sem dizer na grandeza que descobri do grande filósofo que mora nele e que doma o tempo e a vida para deixar lugar privilegiado à oração e à escuta dos sinais que nos cercam. Houve um tempo em que eu me somei a um lamento sobre a “pena” de Ulpiano Vázquez Moro pouco escrever. Mas chegar um pouco perto de Ulpiano Vázquez Moro me fez perceber que antes de eu me lamentar era mais importante que eu o lesse. Digo isso porque há textos. Digo isso porque cada parágrafo de seus textos - que podem variar de uma conferência internacional, a uma apostila costurada por anos de experiência trinitária, um editorial, ou uma rica meditação, enfim, uma variada gama de preciosos e inspirados textos sobre a sua experiência e a espiritualidade inaciana, o que resulta num acervo de extrema valia para quiser aprender a pensar. Hoje, eu aguardo serena, junto de todos os seus leitores, cada nova linha a ser por ele escrita, com a paciência que somente a releitura atenta de seus escritos me proporcionam, por serem textos de inesgotável originalidade e complexidade. São textos que a gente lê e sente profunda necessidade de reler e reler para deixar a palavra do autor Ulpiano Vázquez Moro adentrar por completa na nossa mente, por certo não tão brilhante, mas com a cumplicidade de quem percebe que a bondade que seu coração extravasa por toda a sua vida, está para muito além das muitas letras, mas brotam de sua vida vivida e sorvida na Palavra de seu Pai querido. Aprendi a guardar além das letras escritas por Ulpiano Vázquez Moro. Guardo as palavras de Ulpiano Vázquez Moro como guardaria a bondade de seu coração. Um tesouro no vaso de barro da minha experiência de discípula ad-referendum dele. Eu, que me propus estudar a liberdade, não posso deixar de dizer desse tema diante da minha experiência com Ulpiano Vázquez Moro, que possui uma capacidade de escuta insuperável, não só com os que têm o privilégio de o ter por pai espiritual, mas, também aos que fizeram a experiência, como eu, de ser por dois anos acompanhada academicamente por ele. Impressiona. 6 Ulpiano Vázquez Moro impressiona porque nunca sabendo qual a dificuldade que eu lhe traria, eu nunca vi tamanha paciência em ouvir, em permitir que um aluno desenvolva o seu pensamento, mesmo que, como muitas vezes eu me sentia, tentando “tematizar” o impossível, ou buscando uma compreensão de Rahner que a minha pobre teologia havia deixado escapar. A beleza que gostaria de deixar do meu depoimento sobre Ulpiano Vázquez Moro é que nunca saí de sua sala como entrei. Ele sempre me apontou um ensinamento, uma correção de rumo, uma leitura, ou me deu uma aula que algumas vezes me deixava louca de alegria pelo conhecimento vivo que emanava em nossas conversas e, junto disso, uma culpa horrível porque sabia que o tempo “perdido” comigo estava espremendo a sua agenda sempre lotada. Devo ao orientador Ulpiano Vázquez Moro o maior aprendizado desta tese: ouvir. Ouvir sempre. O que quer que seja dito pelo outro. E com a seriedade de quem está sempre tentando aproveitar alguma coisa ou alguma idéia – por mais estúpida que às vezes eu parecesse a mim mesma – e tirar às vezes da própria estupidez do aluno um mote para ensiná-lo a sair da estupidez para a luz. A Ulpiano Vázquez Moro, o professor, o orientador, o vigário, só posso agradecer oferecendo a ele a minha gratidão e a minha amizade pessoal, pelo respeito que tenho pelo exemplo de jesuíta que nele vejo; pela sua profunda vida de oração que transborda em todas as suas atividades; pelo gigante intelectual que esta experiência de mais dois anos me permitiu perceber e silenciosamente admirar e mais que tudo: agradeço não a você, Ulpiano Vázquer Moro, mas agradeço a Deus que lhe permitiu acolher a bondade do nosso querido Pai, agradeço a Deus por esta sua vida vivida na fidelidade incondicional a nosso Senhor, entrego a Ele os seus cigarros e dedico ao nosso Senhor Jesus Cristo o meu trabalho. Quero, ainda, agradecer aos meus pais que me deram a vida, em especial a minha mãe que vem suportando com muito carinho as minhas demoras, as minhas irmãs, ao meu cunhado e sobrinhos, pela compreensão e apoio ao meu afastamento. Finalmente, faço aqui a memória saudosa de meu marido, que deu em vida, a vida de nossos filhos, que agora já se somam às vidas das minhas noras, eles que, juntos, me deram razões para que eu acolhesse o oferecimento inesgotável do Amor de Deus. Belo Horizonte, abril de 2008. 7 Sinopse A dissertação analisa a liberdade cristã, sob a ótica do teólogo alemão, o jesuíta Karl Rahner (1904-1984). O trabalho acompanha a estrutura do Símbolo dos Apóstolos e se apóia no axioma fundamental da teologia trinitária de Rahner, cujo pensamento soube fazer retornar à experiência existencial a concepção do Deus cristão, que é Pai, Filho e Espírito Santo. Ao longo dos Capítulos, vão se entrelaçando diversos temas da gigantesca teologia de Rahner, em especial o relativo à teologia da criação por indissociável do tema da salvação, sem o quê desaba a coerente estrutura de sua avançada teologia que propõe a existência cristã como a totalidade da nossa própria existência, numa visão do homem como o evento da livre e indulgente autocomunicação de Deus. Palavras-chave: Deus, liberdade, criação, autocomunicação, salvação. Abstract The dissertation focuses the Christian liberty, on Karl Rahner (1904-1984), a German Jesuit. Divided in three main Parts, it follows the structure of the Apostle‟s Creed, grounded on Rahner‟s fundamental axiom. This Trinity theology of him was willing and able to bring to our existential experience the conception of the Christian God, who is Father, Son and Spirit. Through the chapters, some of the various themes from Rahner‟s huge theology are mixed, specially the related to the theology of creation that can‟t stay apart from the theme of Salvation, without ruining the coherent structure of his theology that suggest the Christian existence as the totality of our own existence, in a mind-set where man is the event of the free and indulgent self-communication of God. Key-words: God, liberty, creation, self-communication, salvation. 8 SUMÁRIO ABREVIATURAS .................................................................................................................................. 13 I - Obras Gerais ................................................................................................................................................ 13 II - Obras sobre Karl Rahner .......................................................................................................................... 13 III - Obras de Karl Rahner .............................................................................................................................. 13 IV - Artigos de Karl Rahner ............................................................................................................................ 13 I INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 14 1 – A liberdade cristã em Karl Rahner ............................................................................................................. 15 1.1 – A proposta que o estudo persegue .......................................................................................................... 15 1.2 – A estrutura metodológica que se utiliza ................................................................................................. 16 1.3 – A propósito da autocomunicação da Trindade divina .......................................................................... 18 2 - O incansável autor e seu agitado caminho .................................................................................................. 18 2.1 – Começos .................................................................................................................................................... 18 2.1.1 – a marca da espiritualidade de Inácio de Loyola ................................................................................. 19 2.1.2 – a marca de Rahner no mundo .............................................................................................................. 20 2.1.3 – a marca do mundo de Rahner .............................................................................................................. 22 2.2 – Caminhos .................................................................................................................................................. 24 2.2.1 – do professor que marca com a sua teologia ........................................................................................ 24 2.2.2 – do pastor marcado na guerra por sua teologia ................................................................................... 25 2.2.3 – do teólogo que marca o Concílio Vaticano II...................................................................................... 25 2.3 – Marcas da caminhada ............................................................................................................................. 27 3 - O espírito de Rahner na teologia e o Curso fundamental da fé ................................................................... 28 3.1 – O autor desafiante .................................................................................................................................... 28 3.2 – Um olhar desafiado .................................................................................................................................. 29 3.3 – Um método desafiador e o desafio da síntese......................................................................................... 30 II O AMOR EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO: CREDERE IN DEUM ............................................................................................................................. 34 PRIMEIRA PARTE: A LIBERDADE QUE FUNDAMENTA A NOSSA RELAÇÃO COM DEUS PAI .............................................. 35 CAPÍTULO I - CONCEPÇÃO DE DEUS PAI........................................................................................... 38 1 - O significado do monoteísmo cristão do AT ao NT ................................................................................... 39 Introdução ......................................................................................................................................................... 39 1.1 – O novo conhecimento de Deus ................................................................................................................ 39 1.2 – A fórmula monoteísta do AT e do NT perpassa a idéia de typos da economia basiliana ................... 41 1.3 – A “volta do religioso” como idolatria que ameaça o monoteísmo cristão ........................................... 42 Conclusão .......................................................................................................................................................... 43 2 - o significado de um Deus pessoal que é Pai, Filho e Espírito Santo........................................................... 44 9 Introdução ......................................................................................................................................................... 44 2.1 – O homem que experiencia a pessoa de Deus Pai ................................................................................... 44 2.2 – O homem que nomeia Deus ..................................................................................................................... 45 2.3 – “Pessoa e personalidade” de Deus na teologia trinitária grega ............................................................ 46 Conclusão .......................................................................................................................................................... 49 3 - o significado de um Deus que “quer” agir .................................................................................................. 49 Introdução ......................................................................................................................................................... 49 3.1 – O Deus que quer ....................................................................................................................................... 50 3.2 – O Deus que quer um único milagre: autocomunicar-se ....................................................................... 51 3.3 – O Deus que é Pai é em si o Amor e quer amar criando ........................................................................ 51 Conclusão .......................................................................................................................................................... 52 CAPÍTULO II – CONCEPÇÃO DE HOMEM: UMA DOUTRINA DA CRIAÇÃO .......................................... 53 1 – O significado da relação de Deus com o homem ....................................................................................... 54 Introdução ......................................................................................................................................................... 54 1.1 – Vaticano I: a questão do Deus da razão natural e o Deus da Revelação ............................................. 54 1.2 – Vaticano II: a questão do ecumenismo no Deus da Revelação............................................................. 55 1.3 – A preocupação da dogmática é a realidade da criação ......................................................................... 56 Conclusão .......................................................................................................................................................... 59 2 - o significado de na radical dependência de Deus estar a genuína autonomia do homem ........................... 59 Introdução ......................................................................................................................................................... 59 2.1 – A ab-soluta distinção de Deus ................................................................................................................. 60 2.2 – A radical dependência é a genuína realidade do homem ..................................................................... 61 2.3 – A autonomia do homem e a dependência: uma proporção divina....................................................... 62 Conclusão .......................................................................................................................................................... 63 3 - o significado da afirmação de que o homem é o ser da transcendência ...................................................... 64 Introdução ......................................................................................................................................................... 64 3.1 – O homem é a pergunta para a qual não há resposta............................................................................. 65 3.2 – O homem é sujeito e pessoa ..................................................................................................................... 66 3.3 – O homem não pode tornar “possível o impossível” .............................................................................. 66 Conclusão .......................................................................................................................................................... 66 CAPÍTULO III - CRIADOR E CRIATURA: O ENCONTRO DE DUAS LIBERDADES .................................. 68 1 - O significado da liberdade absoluta do Criador .......................................................................................... 68 Introdução ......................................................................................................................................................... 68 1.1 – A natureza da liberdade é ser livre......................................................................................................... 69 1.2 – O mistério da liberdade que Deus nos doa............................................................................................. 69 1.3 – O mistério da liberdade transcendental como capacidade para algo total ......................................... 70 Conclusão .......................................................................................................................................................... 70 2 - O significado da liberdade profunda de Jesus de Nazaré ............................................................................ 70 Introdução ......................................................................................................................................................... 70 2.1 – A liberdade no Deus-homem ................................................................................................................... 71 2.2 – A liberdade como evento do eterno ........................................................................................................ 71 2.3 – A auto-realização da pessoa livre diante de Deus se chama Salvação ................................................. 72 Conclusão .......................................................................................................................................................... 72 3 - O significado da liberdade contingente do homem ..................................................................................... 72 10 Introdução ......................................................................................................................................................... 72 3.1 – A liberdade como a faculdade da subjetividade .................................................................................... 73 3.2 – A liberdade do sujeito constrói o que somos e o que nos tornamos ..................................................... 73 3.3 – A liberdade, a responsabilidade e a culpa .............................................................................................. 74 Conclusão .......................................................................................................................................................... 75 SEGUNDA PARTE: A LIBERDADE ABSOLUTA QUE REVELA AO HOMEM O PAI, POR SEU FILHO E NOSSO REDENTOR ................................................................................................. 77 CAPÍTULO I – CONCEPÇÃO DE REVELAÇÃO ..................................................................................... 80 1 – O caráter tanto transcendental quanto histórico da Revelação ................................................................... 81 Introdução ......................................................................................................................................................... 81 1.1 – O limite ao ilimitado questionar do homem: a ilimitada graça da autocomunicação de Deus ......... 81 1.2 – As historicidades da Revelação: graça de Deus e ação apostólica do homem..................................... 83 1.3 – A utopia intra-mundana e a escatologia cristã: unidade e diversidade ............................................... 84 Conclusão .......................................................................................................................................................... 86 2 – O caráter tanto essencial quanto existencial no conteúdo da Revelação .................................................... 86 Introdução ......................................................................................................................................................... 86 2.1 – O conhecimento originário de Deus ....................................................................................................... 87 2.2 – Os nomes do inominável: o Aonde e o Donde que porta a transcendência ......................................... 89 2.3 – O mistério evidente .................................................................................................................................. 90 Conclusão .......................................................................................................................................................... 92 3 – Deus se expressa em Jesus, portador da última e insuperável palavra ....................................................... 92 Introdução ......................................................................................................................................................... 92 3.1 – A pobre tematização do saber originário do homem ............................................................................ 93 3.2 – O ouvinte de Deus: uma antropologia teológica .................................................................................... 94 3.3 – O ouvinte é Deus: a unidade da antropologia e da teologia na cristologia .......................................... 95 Conclusão .......................................................................................................................................................... 96 CAPÍTULO II – CONCEPÇÃO DE REDENÇÃO ..................................................................................... 97 1 – A unidade entre Redenção e Criação ......................................................................................................... 98 Introdução ......................................................................................................................................................... 98 1.1 – Os pares de realidades: a unidade no mundo ........................................................................................ 98 1.2 – A unidade da realidade é plural e hierárquica ...................................................................................... 99 1.3 – O homem e o êxito do Deus-homem ..................................................................................................... 101 Conclusão ........................................................................................................................................................ 103 2 – O locus cristão, numa visão evolutiva do mundo ..................................................................................... 103 Introdução ....................................................................................................................................................... 103 2.1 – A graça e a glória: meta da autocomunicação de Deus ...................................................................... 104 2.2 – A graça pressupõe a natureza: uma ontologia teológica .................................................................... 105 2.3 – A graça e a natureza: uma unidade histórica inacabada, periclitante e oculta ................................ 107 Conclusão ........................................................................................................................................................ 109 3 - Graça e liberdade: a tensão de uma doutrina ............................................................................................ 109 11 Introdução ....................................................................................................................................................... 109 3.1 – A graça sem a liberdade: uma heresia ................................................................................................. 111 3.2 – A graça e a liberdade: a causalidade salvífica ..................................................................................... 113 3.3 – A graça da liberdade libertada: a Redenção e a justificação ............................................................. 114 Conclusão ........................................................................................................................................................ 115 CAPÍTULO III – CONCEPÇÃO DE SALVAÇÃO .................................................................................. 117 1 – A Tua fé nos Salvou ................................................................................................................................. 118 Introdução ....................................................................................................................................................... 118 1.1 – A unidade da experiência apostólica da ressurreição e a nossa própria ressurreição ..................... 119 1.2 – Relação de fé existente de fato .............................................................................................................. 121 1.3 – Relação com Jesus como absoluto portador da salvação.................................................................... 121 Conclusão ........................................................................................................................................................ 123 2 – Cristologia transcendental ........................................................................................................................ 123 Introdução ....................................................................................................................................................... 123 2.1 – O que significa ser Filho Eterno de Deus ............................................................................................. 125 2.2 - O que significa Deus se fez homem ....................................................................................................... 126 2.3 – O que significa ressurreição .................................................................................................................. 127 Conclusão ........................................................................................................................................................ 128 3 – Cristologia existencial .............................................................................................................................. 131 Introdução ....................................................................................................................................................... 131 3.1 – A necessidade de uma cristologia “existencial” ................................................................................... 132 3.2 – A reflexão teológica descendente e a ascendente ................................................................................. 133 3.3 – A unidade entre o amor concreto ao próximo e o amor a Jesus ........................................................ 134 Conclusão ........................................................................................................................................................ 135 TERCEIRA PARTE: A LIBERDADE NA UNIDADE DO ESPÍRITO SANTO ........................................................................... 137 CAPÍTULO I – CONCEPÇÃO TRINITÁRIA DE ESPÍRITO DE DEUS ..................................................... 141 1 – O significado de causa santificadora do Espírito numa doutrina sistemática da Trindade ...................... 142 Introdução ....................................................................................................................................................... 142 1.1 – Ouvir a Escritura ............................................................................................................................... 143 1.2 – Páscoa e Pentecostes ........................................................................................................................... 144 1.3 – O batismo no Espírito e a Santa Eucaristia ..................................................................................... 146 Conclusão ........................................................................................................................................................ 147 2 – O significado de causa perfectiva do Espírito em dois milênios de evolução do dogma ......................... 147 Introdução ....................................................................................................................................................... 147 2.1 – A verdade e o erro: a tradição e os dogmas ......................................................................................... 148 2.2 – A tradição e a evolução do dogma ........................................................................................................ 149 2.3 – A evolução do dogma e a realidade da palavra ................................................................................... 151 Conclusão ........................................................................................................................................................ 152 3 – O significado de causa universalizadora do Espírito na autocomunicação divina ................................... 155 12 Introdução ....................................................................................................................................................... 155 1.4 – O ponto de partida: conceito sistemático de Trindade econômica ................................................. 156 3.2 – A expressão trinitária da Igreja ............................................................................................................ 157 3.3 – A suspeita do mito .................................................................................................................................. 158 Conclusão ........................................................................................................................................................ 159 CAPÍTULO II – CONCEPÇÃO TRINITÁRIA DE AUTOCOMUNICAÇÃO E A FÉ .................................... 162 1 – O significado de autocomunicação “de Deus” ......................................................................................... 162 Introdução ....................................................................................................................................................... 162 1.1 – O relacionamento interno - τάξις - entre as maneiras de autocomunicação de Deus ...................... 164 1.2 – Os duplos aspectos da autocomunicação de Deus ............................................................................ 165 1.3 – A natureza do destinatário e a unidade interna da autocomunicação .............................................. 167 Conclusão ........................................................................................................................................................ 168 2 – O significado das breves fórmulas ........................................................................................................... 169 Introdução ....................................................................................................................................................... 169 2.1 – Uma breve fórmula teológica ................................................................................................................ 171 2.2 – Uma breve fórmula antropológica........................................................................................................ 172 2.3 – Uma breve fórmula futurológica .......................................................................................................... 174 Conclusão ........................................................................................................................................................ 174 III CONCLUSÃO ..................................................................................................................................... 176 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................. 183 I - Obras Gerais .............................................................................................................................................. 183 II - Obras sobre K. Rahner ............................................................................................................................ 184 III - Obras de K. Rahner ................................................................................................................................ 185 IV - Artigos de K. Rahner .............................................................................................................................. 187 ANEXO .............................................................................................................................................. 189 13 ABREVIATURAS I - Obras Gerais ATS DH EE MAN MYS SAC TES A teologia do século XX (R. Gibellini). Denzinger-Hünermann: compêndio dos símbolos, definições e declarações da fé e da moral. Ejercicios Espirituales. Ignacio de Loyola (introdução C. Dalmases). Manresa. Mysterium Salutis. Sacramentum Mundi. Tratado sobre o Espírito Santo (Basílio de Cesaréia). II - Obras sobre Karl Rahner ATI EDV ITT TCF Abstracts of Karl Rahner‟s Theological investigations 1-23 (D. Pekarske). Karl Rahner: experiencia de Dios en su vida y en su pensamiento (H. Vorgrimler). Karl Rahner: itinerário teológico (B. Sesboüe). Karl Rahner: the content of faith. The best of K.R‟s theological writings (K. Lehmann). III - Obras de Karl Rahner CFF CSM DTH MEG ODR SZT TLJ THI Curso Fundamental da Fé. Encyclopedia of Theology: the concise Sacramentum Mundi. Dictionary of Theology (H. Vorgrimler; K. Rahner). Missão e Graça. O dogma repensado. Schriften zur Theologie. The Love of Jesus and the Love of neighbor. Theological investigation. IV - Artigos de Karl Rahner CDM EHS ODT RMC TDL TDT TED TNT Conceito de mistério, in ODR. Experience of the Holy Spirit, in THI, XVIII. O Deus trino, fundamento transcendente da história da salvação, in MYS. A realidade da redenção no mundo criado, in MEG I. Teologia da liberdade, in Teologia da liberdade. Observações sobre o Tratado “De Trinitate”, in ODR. Tentativa de esboço para uma dogmática, in ODR. Theos in the New Testament, in THI, I. 14 I Introdução 15 1 – A liberdade cristã em Karl Rahner Este trabalho quer tratar a liberdade cristã na ótica de Karl Rahner, o que implica o desafio de “libertar” o conceito de liberdade das reduções em que a palavra se encontra hoje aprisionada. Nesse sentido, “libertar” a liberdade significa retirar-lhe o peso do efêmero, que talvez seja a marca do homem da chamada pós-modernidade e que, no extremo, é o que escraviza impeditivamente o entendimento da liberdade cristã como “evento do eterno”1. Mas não é só. Cuidar da liberdade que é cristã implica perceber a liberdade como uma misteriosa experiência, por seu caráter indissociável da relação do ser humano com Deus. Por isso, a liberdade que pretendemos “des-cobrir” nessas linhas tem sua origem encoberta no “mistério absoluto a que chamamos Deus”2. Tal relação somente será entendida no contexto hodierno se perseguir o exato sentido que ora a presente página assim delimita: a tarefa de pensar o cristianismo através da sua configuração na cultura plural parece-me fadada à superficialidade meramente morfológica do fenôneno cristão [...] se nós não nos perguntássemos pela idéia, ou pela essência, ou pelo ato que produz a forma ou a figura cristãs como absolutas. Ab-solutas, no sentido rigoroso do termo, isto é, livres da relação, livres na relação; livres, assim, para a livre relação3. 1.1 – A proposta que o estudo persegue Assim é que esse estudo encontra a liberdade como a realidade da experiência transcendental. É quando o sujeito experimenta a sua própria ação não como um evento objetivo, mas como um evento subjetivo, que o homem experiencia um acontecer salvífico, na medida em que o exercício da liberdade não se reduz a uma escolha efêmera, mas implica o evento, cujo objeto valorado é o próprio homem. Nas palavras de Rahner, quando se entende realmente a liberdade, compreende-se que ela não é a faculdade de fazer isto ou aquilo, mas a faculdade de decidir sobre si mesmo e construir-se a si mesmo4. 1 KARL RAHNER. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo, 2ª ed. SP: Paulus, 1989, 121. As próximas referências ao autor se farão como RAHNER e a esta obra pela abreviatura CFF. 2 CFF 23. 3 U. VÁZQUEZ MORO. A configuração do cristianismo numa cultura plural, Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, no 70, 363-364, set./dez. 2003. 4 CFF 54. 16 É esta a perspectiva que faz do exercício da liberdade um evento salvífico e que, por isso mesmo, implica trazer a concepção de salvação para a concepção de criação. Em sua sabedoria, Rahner defende que o homem, quando se aceita real e serenamente como criatura, se aceita como ser da liberdade e da responsabilidade, como o ser da diferença entre o que ele é e o que deve ser. Essa diferença pede ao cristão uma superação e, portanto, “um „não‟ a alguma coisa e um „sim‟ a outra coisa, a uma coisa melhor”5. Desse modo é no exercício da sua misteriosa liberdade que o homem, num tempo único que lhe é dado pelo Criador, vai-se construindo, na história, na superação da diferença entre um “não” e um “sim”, ou seja, “entre a preguiça do seu espírito e o seu egoísmo, por um lado, e a luz da verdade, do amor, da fidelidade e do desinteresse, por outro”6. É diante disso que o tema da liberdade e o tema da criação se entrelaçam de tal maneira no cristianismo que se tornam indissociáveis na compreensão que se pretenda alcançar do que seja o homem. 1.2 – A estrutura metodológica que se utiliza Neste ponto impõe-se esclarecer a estrutura deste trabalho, que é marcada pelo entrelaçamento e pela complexidade de suas questões, porque assim nos impõe a realidade do cristianismo, tal como o percebeu o autor sob estudo. Por isso, não perseguir esta complexa trama incorreria cair numa “temível simplificação”, conforme a advertência de Rahner: Quem leva em consideração apenas uma parte dentro de um estado de coisas complexo, pode falar de um modo “claro”. Sua clareza, contudo, é tão-só a de um temível simplificateur (simplificador). Quando o objeto não permite que a sua realidade seja simplificada, é inevitável certa complicação na linguagem7. Rahner recomenda ao leitor que vá penetrando na trama das reflexões que ele reconhece, também lhe foram difíceis. A ressalva é pertinente porque se observarmos os capítulos que se apresentam, poderia parecer que seus títulos, por si, apontam uma impermeabilidade, apontam uma seqüência estanque em que o primeiro traria a liberdade como mistério do Pai; o segundo trataria a liberdade como um evento salvífico e, portanto, discorreria sobre o Filho; e o terceiro encerraria a segunda parte, apresentando a missão do Espírito Santo, na autocomunicação de Deus ao ser humano. 5 CFF 472. CFF 473. 7 RAHNER. In Publik-Forum, 23 de fevereiro de 1979, nº 4, 13. Apud H. VORGRIMLER. K. Rahner: experiencia de Dios em su vida y en su pensamiento. Santander: Sal Terrae, 2004, 23. Tradução brasileira: Karl Rahner: experiência de Deus em sua vida e em seu pensamento. SP: Paulinas, 2006, 25-6. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura EDV, segundo a edição em Espanhol. 6 17 Tal não corresponde ao que se pretende porque como nos diz a clareza de Rahner, “assim não pode ser”8. E não pode mesmo, pois quando “o Pai se nos dá a si próprio em absoluta autocomunicação mediante o Filho no Espírito Santo”, aí, está dada a experiência da “Trindade da história da salvação e revelação, e na qual fazemos a experiência da Trindade imanente”, ou seja, de como a Trindade é em seu ser mais íntimo, donde este trabalho pressupõe a ação da Trindade desde aqui e por todas as linhas até a conclusão, que melhor exporá a premissa trinitária que desde já se expôs. Dito isso, é a partir da afirmação de que a liberdade não se pode dissociar do tema da criação, que esta Primeira Parte luta por dar significado a uma teologia da criação que responda alguns problemas cruciais que desafiam a fé cristã – individual ou coletivamente –, no que tange à concepção de Deus, de ser humano e o papel desempenhado pela liberdade diante de ambos. Nesse sentido, será impossível reter a Primeira Parte apenas na análise da Primeira pessoa trinitária, ou seja, o Pai, uma vez que o cristianismo se funda na Revelação do Filho, que nos deixa seu Espírito, para que possamos atualizar a mensagem cristã de modo a que ela alcance os “confins do mundo”, sob a inspiração do Espírito de Jesus Cristo. Nesta Parte, desponta a liberdade como o mistério fundamental da relação entre Deus Pai e o ser humano, com o quê se espera tirar conseqüências do pensamento rahneriano para a experiência e a vivência cristã nos dias que correm. Na mesma linha, se o título pode sugerir que a Segunda Parte se exaure no exame da Segunda pessoa, ou seja, no Filho, o estudo mostrou-nos, de novo, o papel da liberdade de Deus Pai que quer revelar-Se por seu Filho, e nisso revela-Se por nosso Redentor. As implicações dessa revelação redentora, para a teologia da criação de nosso autor, desembocam no caminho de questões tais como o conhecimento de Deus, o encontro com o Deus homem e o significado a se atribuir ao mundo, à história e ao tempo, diante do misterioso evento salvífico que se dá na liberdade absoluta da autocomunicação de Deus pelo Logos. Finalmente, a Terceira Parte aborda a autocomunicação existencial pelo Espírito Santo mantendo o tema da autocomunicação. Portanto, carregando a missão do Filho e do Espírito Santo numa volta à liberdade transcendental, que deve ser entendida não como um conceito, mas como a experiência que permite ao homem, numa abrupta ruptura de si, a busca do caminho de Deus que se confunde com o bem que se expressa no amor ao próximo. 8 RAHNER. O Deus Trino, fundamento transcendente da história da salvação. Mysterium Salutis II/1, Petrópolis:Vozes, Cap. 5, seção I, 290. As próximas referências a este artigo se farão pela abreviatura ODT. 18 1.3 – A propósito da autocomunicação da Trindade divina A partir dos próximos pontos adentramos lentamente na compreensão trinitária de Rahner. Vamos caminhar por parágrafos em que nos perceberemos efetivamente filhos da fé cristã, eis que somos criados por Deus Pai, redimidos por seu Filho eterno e santificados pelo dom do Espírito Santo. Com isso, as três partes sob análise vão apontar em nossas vidas que é da liberdade transcendental que resulta o mistério da autocomunicação do Deus trino com o ser humano. Essa liberdade, que o cristão recebe por absoluta Graça, é exercida no confronto com “um mundo do qual o cristão se distingue por pensamentos e ações”, num tal exercício que perdure a totalidade de sua existência assim vivida em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. 2 - O incansável autor e seu agitado caminho As idéias aqui desenvolvidas surgiram do pensamento de Karl Rahner, um alemão da Floresta Negra, que assim falou reticentemente de si e de sua biografia: Se eu disser que nasci a 5 de março de 1904 em Friburgo, filho de um professor primário, e que cresci numa família cristã, católica convicta, à qual uma mãe de sete filhos imprimiu caráter, que fiz os estudos normais até acabar os estudos secundários em 1922, com bons resultados, absolutamente normais... que sei eu dos meus começos? Pouco, e este pouco desaparece cada vez mais num passado silencioso coberto pelo esforço quotidiano. Em 1922 entrei na ordem dos jesuítas. Passados 44 anos, acerca deste começo sabe-se que foi bom, que me foi fiel e que também lhe posso ser fiel. E pouco mais9. 2.1 – Começos Nada na vida do jovem Karl indicaria a sua futura fama10. Era um jovem que gostava de escalar as montanhas de sua terra e, na escola, foi um aluno médio, que achava as aulas chatas. Seu professor de religião, ao saber da decisão de se tornar um jesuíta disse: “isto não vai durar; isto não é para Karl”. Hoje, a opinião do teólogo norte-americano Modras é de que os historiadores ainda 9 www.triplov.com/espirito/frei_bento/dogmas.htm, acesso em 17.01.2006. Rahner foi jesuíta por 62 anos, sacerdote por 52 anos e levou uma “vida teológica” por quase 45 anos. Recebeu 14 títulos de doutor honoris causa, sendo chamado por seus discípulos de “o silencioso movimentador da Igreja Católica Romana” e de “o Pai da Igreja no século XX”. Cf. K. LEHMANN; A. RAFFELT (ed.), Karl Rahner: the content of faith. The best of Karl Rahner‟s theological writings, NY: Crossroad, 2000, xi. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura TCF. 10 19 elencarão Karl Rahner ao lado de gigantes da teologia como Orígenes, Agostinho e Tomás de Aquino11. Karl viveu uma Europa em busca de sua própria identidade. Aos 10 anos sofreu a Primeira grande guerra mundial. Aos 14 anos, viu os tratados de paz modificar a geografia política do mundo. Aos 18 anos, em 1922, na mesma Áustria em que o judeu Sigmund Freud lançava os escritos maduros de sua elaboração da psicanálise, Rahner iniciou a formação de jesuíta: espiritualidade de Inácio de Loyola e filosofia. 2.1.1 – a marca da espiritualidade de Inácio de Loyola Sabemos que o grande tema do mundo teológico de Rahner nasce da sua obstinação em pensar a fé e a experiência de Deus - que ele mesmo fez ao deixar-se conduzir pela espiritualidade do mestre Inácio de Loyola – e que ele busca justificar com honradez intelectual12 ao longo da batalha de sua vida de grande teólogo e místico do século XX. Foi quando o jovem jesuíta fez os Exercícios Espirituais de santo Inácio13 pela primeira vez, depois de dois anos no noviciado, e antes de dar início a seus estudos formais de filosofia, que Rahner assina seu primeiro artigo, publicado com o título: Porque rezar é indispensável14 e, ao contrário do que se poderia esperar do então inexperiente autor, lá está o tema da autocomunicação de Deus, a constante que sua teologia nunca deixará de perseguir, e que se alimenta de sua própria experiência espiritual com os EE. No artigo, encontram-se referências aos EE, em especial à anotação no 1515, em que Inácio afirma ser [...] mais conveniente e muito melhor que, buscando a divina vontade, o mesmo Criador e Senhor se comunique à sua alma devota, abrasando-a em seu amor e louvor e dispondo-a pela via que melhor poderá servir-lhe adiante. De modo que o que dá (os exercícios) [...] deixe obrar imediatamente o Criador com a criatura e a criatura com o seu Criador e Senhor. Durante a formação, o jesuíta estudou os manuais neo-escolásticos, mas, como herdara do pai um grande amor pela história e, igualmente influenciado por Hugo, seu irmão também jesuíta, 11 RONALD MODRAS. Ignatian Humanism: a dynamic spirituality for the 21st Century, Chicago: Loyolapress, 2004, 204. 12 CFF 23. 13 IGNACIO DE LOYOLA, Ejercicios Espirituales: introducción, texto, notas y vocabulário por Cándido de Dalmases, Santander: Sal Terrae, 1987. Os Exercícios Espirituais de santo Inácio de Loyola serão mencionados doravante pela abreviatura EE e os textos a ele referidos são tradução livre desta edição em Espanhol. 14 RAHNER. Warum uns das Beten nottut: [S.l.: s.n], republicado in Herbert Vorgrimler, ed., Karl Rahner, Sehnsucht nach dem Geheimnisvollen Gott, Freiburg: Herder, 1990, 77-80, apud R. MODRAS, op. cit., 204-328. 15 EE [15] 48. 20 Rahner dedica muito do seu tempo ao estudo da Patrística. Sabe-se que ele leu todos os pais da Igreja do segundo século, em busca do que cada um tinha a dizer sobre a experiência mística e sobre como cada um experimentou Deus. Nesta época, nosso autor publica, em francês, dois artigos de espiritualidade, em que estuda Orígenes16 e Boaventura17, respectivamente. Ao mesmo tempo, Rahner reconhecia que os Pais da Igreja não haviam encontrado os desafios do “agora e que cada época tem suas próprias questões. Não podemos esperar que os nossos Pais resolvam as nossas novas questões para nós”18. 2.1.2 – a marca de Rahner no mundo Rahner, defensor de que a revelação de Deus se expressa para além da teologia científica, foi sentindo “as novas questões” na história da cultura de seu tempo em que explodiram uma série de movimentos de ruptura, que refletiam as guerras nos limites humanos: [...] Finalmente, acresce a variada manifestação não-científica da vida do espírito na arte, na poesia e na sociedade, multiplicidade tão vasta que nem tudo que aí aparece é mediado quer pelas filosofias quer pelas próprias ciências pluralistas e, contudo, representa uma forma do espírito e da autocompreensão humana com que a teologia tem que ver de alguma forma19. Neste mundo, então o centro das inovações, surge uma vanguarda que escandaliza, que prega a renovação da sociedade por meio da guerra e a convivência com o contraditório. Não é que o mundo que Rahner viu parecesse louco: o que Rahner viu, foi a reação que fez surgir o antimoderno e que obrigou o “esforço quotidiano” de suas idéias fazer dialogar o cristianismo com os expoentes da filosofia, da política, das ciências e da cultura de então, a partir do belo arrazoado que ele mesmo dá: Eu não sou apenas uma idéia; eu não posso abandonar a história nas mãos das minhas idéias. Por isso, eu sei que a história de Jesus não pode derrotar-me e deixar-me abandonado, ainda que, naturalmente, ela se encontre carregada de todo 16 RAHNER. Le début d‟une doctrine des cinq sens spirituals chez Origène, Revue d‟Ascetique et de Mystique 13 (1932), 113-145. O artigo foi republicado como Die “geistlichen Sinne” nach Orígenes. Schriften zur Theologie, XII, Einsiedeln: Benziger, 1975. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura SZT, seguida do número do volume, e como The“Spiritual Senses” according to Origen, Theological Investigations, XVI, NY: Seabury, 1979, 81103. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura THI, seguida do número do volume. 17 RAHNER. La doctrine des „sens spirituels‟ au Moyen-Age en particulier chez St. Bonaventure, Revue d‟Ascetique et de Mystique 14 (1933), 263-299. O artigo foi republicado como Die Lehre von den “geistlichen Sinne” im Mittelalter: der Beitrag Bonaventuras, SZT, XII, e como The Doctrine of the “Spiritual Senses” in the Middle Ages, THI, XVI, 104-134. 18 R. MODRAS, op. cit., 209. 19 CFF 19. 21 o relativismo do histórico e com todas as obscuridades do conhecimento dos fatos consumados20. Assim, atento, Rahner manteve em sua vida pessoal amizade com escritores, como a novelista Luise Rinser21, ensaístas e poetas católicos, que lhe renderam demonstrações desse seu cuidado na observação do mundo que o cercava, o que foi perenizado na edição de livros comemorativos de várias datas natalícias suas. Na passagem de seus 60 anos22, a edição conta com textos de Heinrich Böll23 e de Gertrud von Le Fort24, além do filósofo M. Heidegger, dos teólogos protestantes ecumênicos, K. Barth, R. Bultmann e G. Ebeling25, dentre centenas de outros nomes. Esta marca de sua teologia e de sua própria personalidade é fruto de toda a sua formação. Graças a um professor de seu escolasticado, Rahner conheceu mais do que o tomismo medieval. Estudou filosofia em Feldkirch e depois em Pullach, de 1924 a 1927. Leu I. Kant e descobriu o pensamento de seu colega jesuíta belga, Joseph Maréchal, que tentara correlacionar a teoria do conhecimento em santo Tomás com o método transcendental de Kant. Maréchal desenvolveu o que se chamou de tomismo transcendental, que atraiu o pensamento de Rahner. Em 26 de julho de 1932, ordena-se, na Igreja São Miguel de Munique, o padre Rahner que, sobre sua vocação, declarou: 20 RAHNER. SZT, vol. XIV (1980), 17-18. Citado in EDV 16. Luise Rinser (1911-2002) uma das maiores novelistas e contistas do século passado, vendeu mais de cinco milhões de livros em alemão, fora as traduções em vinte outros idiomas. Alemã, nascida na Bavária, católica, teve a vida marcada por desafios: feminista, pacifista, lutou contra armas nucleares e protestou contra as guerras. Fez campanha por Willy Brandt e em 1984 concorreu à presidência do então jovem Partido Verde. Casou-se com o músico Günther Schnell e com ele teve duas filhas. Com a ascensão do Nazismo e a recusa do casal em colaborar com o regime, teve seu marido morto em 1943 e ela, sob igual condenação foi presa e escapou da morte com o fim da Guerra. Em 1954, casou-se com o já então famoso compositor de Carmina Burana (1927), Karl Orff, de quem se divorciou em 1959. Rinser, amiga pessoal de Rahner, trocou com ele uma imensa correspondência epistolar. Dividiu sua vida entre Roma e Munique, onde morreu aos 90 anos, deixando uma polêmica entorno à publicação de sua correspondência pessoal com Rahner, que com ela se relacionou até o final de seus dias. Nesse período, ambos discutiram sobre a oportunidade de publicarem-se essas cartas, o que, ao final, Rahner decidiu-se contra e, num gesto de confiança, devolveu-lhe as cartas que ela lhe havia endereçado. Aos 82 anos de idade, Luise muda de opinião e publica a volumosa correspondência num livro que para ela seria o “diário íntimo de Rahner”, contra o que se voltaram não somente seus herdeiros, como também seus mais próximos seguidores, para quem “a publicação das cartas mais pareceu uma manobra com a inútil intenção de iluminar o monumento de Rahner com uma lanterna de bolso para que ela mesma pudesse assim brilhar com a luz dele refletida”. In EDV. p. 114-116. 22 Ao completar 60 anos, Rahner recebeu esta homenagem em dois volumes de 667 e 964 páginas, respectivamente. O título, Deus no mundo. A “Tábula gratulatória” incluía 14 cardeais, 2 patriarcas, 24 arcebispos, 150 bispos, numerosos teólogos protestantes, além de 564 pessoas de todos os âmbitos imagináveis. Rahner considerou esta impressionante lista de nomes como um tipo de escudo protetor. In EDV 121. 23 Heinrich Böll (1917-1985), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1972, deixou uma vasta obra cuja tônica é a luta contra a omissão, a injustiça e a opressão. Defensor implacável dos direitos humanos, antimilitarista convicto e um dos primeiros ativistas em defesa do meio ambiente, pela sua postura inabalável, pelo seu papel na divulgação dos ideais democráticos e o seu ativo engajamento nas causas pacifistas, Böll foi eleito o símbolo da integridade humana. 24 Gertrud von Le Fort (1876-1971), protestante convertida ao catolicismo, a poetiza alemã é autora de vários livros, tendo alguns deles sido reescritos para o teatro e o cinema. 25 EDV 121. 21 22 Sempre quis ser padre, sempre quis tornar-me religioso – por quê? Não saberia dizer ao certo. [...] É evidente que devem ter existido motivos pensados; certamente foram motivos religiosos, ligados à problemática de uma certa filosofia à qual se deseja pertencer. Mas as razões de um jovem se apagam e não são mais balizáveis na seqüência da existência. Isso, aliás, não é necessário. Se me perguntarem se desejaria novamente ser jesuíta, responderia: se eu fosse o que eu era então, evidentemente, e não lamento nenhuma das conseqüências que isso teve26. 2.1.3 – a marca do mundo de Rahner No centro da luta pela hegemonia, Rahner viu o mundo na Primeira Guerra Mundial apagar 10 milhões de vidas (quase 2 milhões de alemães) e pagar com 20 milhões de feridos o preço do duelo entre Reino Unido e Alemanha. Em 1933, Adolf Hitler torna-se chanceler de sua pátria. Com o nazismo, os jesuítas passaram a viver sob severa vigilância. Alguns jesuítas alemães foram sentenciados a campos de concentração e outros condenados à morte. Dentre eles destaca-se Alfred Delp27, aluno de Rahner de 1927 a 1929, período em que lecionou latim a seus confrades no juniorado de Feldkirch28. Delp e o teólogo Luterano Dietrich Bonhoeffer, que participaram da resistência contra Hitler, foram enforcados em Berlim, em 1945. De 1933 a 1934, Rahner encerra seu percurso de formação, completando sua terceira provação em Kärnten, na Áustria, sendo destinado a um doutorado em filosofia em sua cidade natal. “Ali acompanha durante dois anos, com seu companheiro jesuíta Johannes B. Lotz (1903-1992), as aulas de Martin Heidegger (1889-1976). Por várias vezes, Rahner se expressou sobre sua relação com Heidegger”29, como a seguir: Gostaria [...] de dizer que Heidegger, o filósofo propriamente dito de 1934-1936, era bem diferente do Heidegger mais tardio. O Heidegger que freqüentei era o de Sein und Zeit, o do apelo ao combate, talvez até mesmo o da metafísica. Era um Heidegger com o qual aprendi um pouco a pensar, e sou-lhe muito grato por isso. Em minha teologia, na medida em que ela é filosófica, certamente não poderia falar de uma influência sistemática de sua parte que chegue até o conteúdo, mas sim de uma vontade e de uma capacidade de pensar que Heidegger realmente nos 26 J. B. METZ. K. Rahner, Le courage du théologien, Paris: Ed. du Cerf. 1985, 170, apud B. SESBOÜE, K. Rahner: itinerário teológico, São Paulo: Loyola, 2004, 10. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura ITT. 27 O pólo da dissidência civil do nazismo estava constituído em Berlim pelos adeptos do chamado Círculo de Kreisau, que se reuniam em torno de algumas figuras de alto calibre moral e religioso. Faziam parte intelectuais, socialistas, teólogos e membros da Igreja Luterana, e alguns jesuítas, como o padre Alfred Delp, redator da revista Stimmen der Zeit, o padre Augustinus Rösch, provincial da Baviera, com seu secretário, padre Lothar König, além de ex-sindicalistas e ex-expoentes do Zentrum, o velho partido de centro de inspiração cristã. Com a tentativa de golpe de Estado de 20 de julho de 1944, quase todos os membros do Círculo e seus simpatizantes foram detidos, torturados e punidos. O primeiro foi o conde Peter Yorck, pendurado em ganchos de açougue em 8 de agosto de 1944. O mesmo coube ao teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer em 9 de abril de 1945. Padre Alfred Delp subiu ao patíbulo em 23 de janeiro daquele ano, ao lado do conde Von Moltke. Cf. em http://www.30giorni.it/br/articolo.asp?id=7981. Acesso em 23.01.2008. 28 Cf. ITT 15. 29 ITT 16. 23 inspirava. Naquela época estudei até certo ponto o que é chamado de modo vago e geral de filosofia existencial e a teologia existencial, o que, em sentido estrito, não tem necessariamente relação com Heidegger – o que eu já havia feito devido à minha origem marechaliana. Devo dizer que Martin Heidegger foi o único professor pelo qual experimentei o respeito de um aluno diante do grande mestre30. Era uma época em que seria impensável que um religioso fosse orientado num doutorado por Heidegger. Rahner trabalhou, então, com o professor Martin Honecker (1988-1941)31. A questão central de sua tese é a de saber quais são, segundo Tomás de Aquino, as condições a priori, isto é, a estrutura fundamental do espírito humano. A tese foi recusada pela universidade de Friburgo e, como afirmou o próprio Rahner, “a rejeição se deu porque, segundo Honecker, a dissertação se inspirava demasiado em Heidegger”. Mas Rahner assim se justificará: Talvez se diga: “Mas você oferece uma interpretação de Santo Tomás embebida na filosofia moderna!”. Longe de considerar essa apreciação como uma crítica, o autor a aceita como um elogio. Pois, afinal de contas, eu pergunto: Santo Tomás pode me interessar se não for em função das questões que se agitam em meu espírito e que agitam a filosofia de hoje?32 Em 1936, Rahner vai para Innsbruck onde publica esta tese de doutorado em filosofia com o título: O espírito no mundo: a metafísica do conhecimento finito segundo Santo Tomás de Aquino, reconhecidamente a sua primeira grande obra. Mais tarde, em 1957, no prefácio à segunda edição organizada por seu discípulo J. B. Metz, o teólogo esclarece que o que “visava era principalmente isto: deixar de lado em grande parte o que se chama „neo-escolástica‟ para voltar ao próprio Santo Tomás, aproximando-me justamente dos problemas formulados à filosofia do nosso tempo”33. Em 1974, ao completar 70 anos, na oportunidade em que é conferido a Karl Rahner o título de Doutor honoris causa pela Universidad Pontifícia Comillas, o professor Alvarez Bolado, que traduzira a obra para a língua espanhola, assim dá seu testemunho: Não se há de buscar a unidade da obra de Rahner em obras sistemáticas, mas precisamente no desenvolvimento incessante desta intuição germinal, O espírito no mundo, em cujo horizonte ele empreende a tarefa não interrompida [...] de reinterpretar os dogmas cristãos. Esta interpretação contínua fez de Rahner um teólogo incômodo, porque a sua vida e o seu pensamento têm sempre apelado à Igreja para que ela não se enclaustre em si mesma, e nem forme uma imagem ideal do que significa ser cristão. A menos que ajude aos homens aqui e agora, na 30 J. B. METZ, op. cit., 37 (apud ITT 17). M. Honecker era um tradicional historiador da filosofia católica, identificado com Tomás de Aquino. Ele exercia, então, o que se chamava Cátedra do Acordo, acordo esse feito entre o Vaticano para difusão da filosofia cristã na região de Baden. 32 H. MULLER; H. VORGRIMLER, K. Rahner, Paris: Fleurus, 1965, p. 16. 33 RAHNER, Spirito nel mondo (2a ed. 1957), XXIII, apud R. GIBELLINI, A teologia do século XX. SP: Loyola, 2002, 224. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura ATS. 31 24 diáspora não sistematizável da realidade, a encontrar Deus que ama o mundo e o transcende de dentro dele34. Com a ida para Innsbruck vem nova tese de doutorado, em teologia, que leva o título: O pensamento patrístico sobre o Coração traspassado do Salvador como fonte da Igreja35. 2.2 – Caminhos 2.2.1 – do professor que marca com a sua teologia Rahner inicia, então, sua carreira acadêmica na Faculdade de teologia de Innsbruck, onde leciona de 1937 a 1964, com exceção ao parêntese da guerra. Seu primeiro curso é sobre a graça. A faculdade estava empenhada na elaboração de um projeto de teologia querigmática, que estivesse a serviço da pregação e da pastoral, formalmente distinta da teologia científica. Rahner, então jovem docente, não concorda com tal orientação e, mais tarde se encarrega da instância pastoral, inserindoa num projeto mais amplo de renovação da teologia católica, em que, quanto mais aderente ao seu tema é a teologia, tanto mais é querigmática36, como ele sustenta no programático artigo: Tentativa de esboço para uma Dogmática e seu conseqüente Esboço de uma Dogmática37: O mal entendido prático mais importante da chamada “teologia da pregação” – ou fomentado ao menos por ela – foi precisamente a opinião, nascida como suposto, de que a teologia científica podia continuar como estava, e que a única coisa que restava a fazer consistia em constituir “ao lado” uma teologia “querigmática”. Tal teologia consistiria, essencialmente, em dizer “o mesmo” que a teologia científica escolástica já tinha elaborado, porém de maneira um tanto distinta, “mais querigmaticamente”, e em dispô-la de modo mais prático. Na realidade, a teologia mais rigorosa, entregue de maneira apaixonada e única ao seu objeto, num interrogar-se constante sempre novo, a teologia mais científica é a mais querigmática38. 34 A. VARGAS-MACHUCA, Teologia y mundo contemporaneo: homenaje a K. Rahner em su 70 cumpleaños, Madrid: Ed. Cristiandad, 1975, 32. Nessa oportunidade (p. 35), K. Rahner confirma o comentário: meu primeiro livro foi dedicado à metafísica do conhecimento em Santo Tomás. [...] Os pontos de vista que ali defendo marcaram a orientação e ainda dão frutos em todo o meu trabalho teológico posterior, ainda que eu mantenha a esperança de que a aventura teológica de minha vida não se tenha encerrado com este primeiro livro. 35 Esta tese não foi publicada na época, somente vindo a público postumamente em RAHNER, Sämtliche Werke, III, Friburgo: Herder, 1999, 3-84 (apud ITT 19, nota 22). 36 Cf. ATS 223-4. 37 K. RAHNER. Tentativa de esboço para uma dogmática, in O dogma repensado, SP: Paulinas, 1970, 106-152. Publicado originalmente sob o título Ueber den Versuch eines Aufrisses einer Dogmatik, em SZT, I, 9-47 e no THI, I, 137. As próximas referências ao artigo se farão pela abreviatura TED e a O dogma repensado pela abreviatura ODR. 38 TED 113-114. 25 Como mestre, o nosso teólogo era tido por seus alunos como um professor carismático, que lhes inspirava lealdade e afeto, e como um pensador altamente questionador que ia de uma questão a outra, sempre procurando o sentido, a plenitude e o propósito da vida. 2.2.2 – do pastor marcado na guerra por sua teologia Em 1938, a ocupação dos edifícios dos jesuítas pela Gestapo faz fechar a faculdade de teologia de Innsbruck e leva Rahner a residir em Viena onde trabalha em um instituto pastoral. Aí ele se interessa pela formação teológica dos leigos e lhes dá cursos. Aos 37, em 1941, Rahner publica O ouvinte da palavra recolhendo, assim, as 15 conferências por ele realizadas nas Semanas universitárias de Salzburg no verão de 1937. Aí ele retoma a sua intuição básica de Espírito no Mundo e aprofunda Maréchal, no que o parafraseia numa nova terminologia, parcialmente tomada de Heidegger39. Ouvinte da palavra completa o discurso iniciado por Espírito no mundo: o homem como espírito no mundo é o ouvinte de uma possível revelação histórica de Deus. Rahner deixa Viena e, em 1944, pela primeira vez em sua vida exerce um ministério pastoral no meio rural, junto aos refugiados. Na época da capitulação alemã, vive o drama de seu povo. De 1945 a 1948, permanece em Munique e ensina em Pullach, em meio a uma intensa atividade pastoral. Com a reconstituição da faculdade de teologia em Innsbruck, em 1948 ele lá retoma o ensino da teologia, oferecendo cursos sobre a criação, o pecado original, a graça e a justificação, as virtudes teologais, os sacramentos da penitência, da ordem e da extrema-unção. Entre 1954 e 1984, Rahner reúne os principais artigos e ensaios que havia escrito e dá início à série de seus Escritos Teológicos que, mesmo em sua variedade e descontinuidade, representam uma biblioteca teológica que alinhou dezesseis volumes com mais de 8.000 páginas40. 2.2.3 – do teólogo que marca o Concílio Vaticano II Na vida de Rahner, um telefonema, no início da década de 60, vira história. Franz König, então arcebispo de Viena, 30 anos depois recordava esse telefonema em que dizia que o Papa João 39 RAHNER. Hearer of the Word. Laying the Foundation for a Philosophy of Religion. Traduzido por Joseph Donceel, da primeira edição, publicada em Munich, 1941, sob o título original de Zur Grundlegung einer Religiosphilosophie. NY, 1994. Em 1963, o Ouvinte da Palavra, revisto por J. B. Metz é, com ele, reeditado. Nessa publicação, Rahner desenvolve as linhas de uma filosofia da religião numa perspectiva teológica como antropologia teológica fundamental. 40 ATS 224-5. 26 XXIII anunciara sua intenção de convocar um novo Concílio. Surge o Vaticano II. Cada arcebispo podia contar com um assessor e König convida Rahner, que responde com a seguinte frase: Como você pode imaginar uma coisa dessas? Eu nunca fui a Roma na minha vida. Lá, eles suspeitam do que eu ensino e do que escrevo. O que os romanos dirão se eu, de repente, apareço como um teólogo conciliar?”41. Rahner estava certo. Ele tinha críticos, mas também tinha admiradores. Quando em junho de 1962, o Geral da Companhia de Jesus foi informado de que Rahner teria que submeter seus escritos futuros à censura prévia do chamado Santo Ofício, que era, depois do papa, a instância suprema da fé e dos costumes, seus admiradores tanto na hierarquia da Igreja quanto na academia protestaram diretamente ao papa pelo “insulto à ortodoxia de Rahner”42. O papa João interveio pessoalmente e não houve, assim, censura prévia ao trabalho de Rahner pelo restante de sua vida. Nesse meio tempo, o arcebispo König entregou a Rahner as primeiras pilhas de documentos, ainda na fase preparatória ao Concílio. Entre janeiro e setembro de 1962 Rahner oferece um informe contendo sete respostas ou tomadas de postura de sua teologia diante dos documentos recebidos. Segundo Vorgrimler, estas respostas até hoje não foram publicadas na íntegra. Em seu testemunho, revela que Rahner se viu horrorizado ante o tom escolar e magisterial dos esquemas das comissões, totalmente alijados da vida real, além de já condenar teólogos e filósofos assim como de antemão já propunha novos dogmas. Diz que o primeiro conselho de Rahner foi: “fazer todo o possível para evitar o pior”43. Mas João XXIII abre o Vaticano II com um discurso que eletrizou os bispos, entrevendo um concílio pastoral que substituísse a severidade e a condenação de erros do passado por uma medicina de misericórdia. Rahner foi nomeado pelo Papa peritus do Concílio e membro da influente Comissão Teológica. De suma importância foram as conferências que ele dava de tarde a variado grupo de bispos sobre os diversos tópicos da agenda conciliar. Apesar de pouco aparecer nas sessões gerais do concílio, Rahner foi considerado o mais poderoso homem no Concílio, mas sua influência foi exercida por detrás das cortinas. No que respeita a sua participação, ele afirmou que: 41 R. MODRAS. op. cit., 230. Como nem o Geral dos jesuítas nem Rahner foram informados das razões para essa atitude, Rahner ameaçou nada mais publicar dali em diante e numerosas personalidades, entre elas os então cardeais König, Döpfner e Frings (Presidente da Conferência Episcopal Alemã à época), além de 250 figuras da ciência e da política, se dirigiram ao papa e lhe solicitaram que retirasse essa medida. In EDV 109. 43 EDV 109. 42 27 Quando aqui e ali se afirmou – sem o meu consentimento – que eu teria sido um dos teólogos mais influentes do Concílio Vaticano II, essas coisas são, naturalmente, um mero exagero, que não encontra na realidade qualquer fundamento real44. Contudo, é inegável que no Concílio Vaticano II, Rahner deixou marcas na preparação das Constituições Lumen gentium45, Dei Verbum e Gaudium et spes, afora os decretos sobre a vida religiosa, sobre a formação dos presbíteros e sobre as missões. Decorrido algum tempo, Rahner afirmou que via o Vaticano II apenas como “o começo de um começo”46, que marcou pela primeira vez a Igreja católica como uma igreja para o mundo, por assumir a multiplicidade de culturas e, conseqüentemente, de teologias. 2.3 – Marcas da caminhada Em 1964, “a chamada para lecionar em Munique representava para Rahner uma passagem da teologia dogmática à filosofia da religião, mas ele continuava a ser um teólogo, que a heterogênea assistência daquela universidade considerava muito difícil, cansativo, pouco atual e abstrato”47. Decorridos três anos, Rahner retoma a teologia dogmática na universidade de Münster, onde encerra sua carreira acadêmica (1967-1971). Os anos que se seguiram vieram com uma crescente frustração. Em 1969, o Sínodo de Bispos Alemães foi particularmente desapontador para Rahner, quando apenas dois bispos apoiaram sua sugestão de ordenar homens casados. Para ele, a Igreja oficial não estava colocando nem a letra nem o espírito do Concílio na prática. Em seus últimos anos, Rahner descreve a sua vida como inseparável do seu trabalho. Recusando-se a escrever suas memórias, o máximo que ele concedia eram entrevistas nas quais retomava um ou outro evento ou influência da sua vida pessoal e, desse contexto, extraía algum aspecto para explicar a sua teologia. Nesse período, “Rahner se queixava dos jesuítas não refletirem suficientemente sobre as implicações das intuições espirituais de santo Inácio, o que ele tomava como uma falta que não tolerou em si e no seu trabalho”48. Sabedor de que Inácio dedica 85% do tempo dos EE à contemplação dos mistérios da vida de Cristo, ele questionou: 44 EDV 110. A influência de Rahner se refere à teologia do sacramento e da penitência, à colegialidade dos bispos e o significado das igrejas locais, assim como na reinstauração do diaconato permanente e na incorporação do texto sobre Maria nesta constituição, ao invés de criar um documento mariológico distinto. In EDV 112. 46 EDV 113. 47 H. VORGRIMLER. Comprendere K. Rahner (1985), 139 (apud ATS, 225). 48 R. MODRAS. op. cit, 208. 45 28 Onde existem trabalhos teológicos sobre os mistérios da vida de Cristo? Em espanhol e em francês, existe grosso volume a respeito da ascensão do Senhor, livro completamente cego para todo problema que não caiba dentro da crítica de textos ou da apologética histórica do acontecimento. O próprio Dictionnaire de Théologie Catholique, apesar de sua enorme amplitude, não tem um artigo sobre este problema. E é maior ainda, na teologia atual, a falta de uma reflexão radical acerca do ser e da significação dos mistérios da vida de Cristo, em geral. Da vida de Cristo, os únicos acontecimentos que interessam à dogmática atual são a encarnação, a fundação da Igreja, sua doutrina, a última ceia e morte. A apologética trata ainda da ressurreição a partir do ponto de vista da teologia fundamental. Tudo o mais sobre os mistérios da vida de Cristo não se encontra mais na dogmática, e sim na literatura piedosa49. Registre-se que, em sua caminhada, estiveram perto de Rahner, especialmente seu irmão Hugo, o atual Cardeal K. Lehmann, H. Vorgrimler, J. B. Metz, K. H. Neufeld, A. Raffelt50, além teólogos B. Sesboüe, I. Sanna. 3 - O espírito de Rahner na teologia e o Curso fundamental da fé 3.1 – O autor desafiante Ler Karl Rahner é desafiar-se diante de um autor que, ao invés de colocar a questão de Deus longínqua e abstratamente, traz Deus para tão próximo de nós que O coloca como mistério santo no coração do próprio homem. Acredito que para o teólogo cristão, interessado no maior conhecimento de sua fé, ainda é imprescindível o contato com o pensamento de Karl Rahner e penso que isto se dê inicialmente pelo estudo do seu Curso fundamental da fé, contra o que ele mesmo desaconselhou certa vez, advertindo que primeiro “proporia a leitura de alguns de seus escritos espirituais”51. Diante disso, parece que aí estaria o mapa da mina do seu pensamento. Mas não basta porque o seu pensamento se esparrama pelas questões que seu tempo e que seu mundo lhe propuseram, em cuja inquieta busca de resposta encontramos os textos que constituem hoje os seus Escritos Teológicos, lastimavelmente sem tradução para o português. Mas ainda mais. Esta marca está também nos quatro volumes do manual de teologia pastoral, o Sacramentum mundi, no 49 TED 119-120. O grupo organiza na Alemanha uma edição crítica das obras de Rahner, prevista em 32 volumes, a serem publicados num período de dez a quinze anos (apud I. SANNA, in Teologia come esperienza di Dio. La prospecttiva cristológica di Karl Rahner. Brescia: Queriniana, 1997, 5). 51 M. MAIER. La theólogie des Exercices de K. Rahner, RSR 74 (1991), 536 (apud ITT 31). 50 29 Dicionário de teologia querigmática52, na colaboração para a publicação do Mysterium Salutis: dogmática da história da salvação53, além das bases da revista Concilium54. Além de conferencista, este incansável escritor se desloca por toda Europa participando das primeiras reuniões entre católicos e protestantes, dá retiros espirituais, participa de programas de rádio e da ainda incipiente televisão. Cuidou do diálogo entre teólogos e cientistas, da relação do cristianismo com as religiões não-cristãs55, sem deixar de dialogar também com o marxismo. Com o testemunho de B. Sesboüe, sabemos que Rahner, além da atividade intelectual, era uma força da natureza, com uma vitalidade inacreditável. Seu pensamento estava sempre em movimento, como seu corpo, aliás. [...] Era um incansável lançador de idéias, mas também um guia incômodo. Ao visitar o escolasticado de Pullach disse: “Vim aqui para lançar pedras nas águas estagnadas e provocar ondas nessa lagoa tranqüila demais!”56. 3.2 – Um olhar desafiado Esse gigante do pensamento teológico do século passado, por volta dos anos 50, na maturidade de sua reflexão, diagnostica três elementos característicos da situação cultural e teológica de então. Este diagnóstico é síntese de dezenas de artigos que seriam publicados em seus Escritos Teológicos, além de estarem esparçamente tratados por todo o CFF. a) vivemos numa sociedade secular e pluralista, na qual os enunciados de fé perderam sua obviedade, e na qual, no pluralismo das convicções e das mundividências, próprio de uma sociedade aberta, torna-se mais difícil transmitir a verdade cristã; b) relacionado com o pluralismo, é preciso registrar um aumento dos conhecimentos em todos os campos do saber, que torna difícil fazer sínteses, embora o teólogo sistemático deva tentar a síntese a propósito das questões últimas e fundamentais de toda a teologia; e c) a essas dificuldades do anúncio cristão e do fazer teologia deve-se acrescentar, por outro lado, uma espécie de endurecimento e de incrustação dos conceitos teológicos, que, permanecendo 52 Elaborado em colaboração com J. Daniélou, J. Alfaro e C. Colombo, o, então, teólogo do papa (apud ITT 25). Publicado por J. Freiner e M. Löhrer, edição em 4 tomos e 6 volumes, Einsiedeln: Benziger Verlag, 1965. 54 Rahner lança as bases da revista com E. Schillebeeckx, tendo Y. Congar, H. Küng e C. Colombo como integrantes do comitê diretor inicial (apud ITT 25). 55 Cf. ITT 22. 56 ITT 29. 53 30 imutáveis ao longo dos séculos, não correspondem mais à situação completamente mudada da vida e da cultura do homem moderno57. 3.3 – Um método desafiador e o desafio da síntese Diante desse quadro, Rahner admite como insuficiente o tradicional método escolástico praticado na teologia-de-escola – que procede do alto das formulações e opera por doutrinação – e propõe o método antropológico – que procede de baixo e possibilita uma correspondência entre vida e verdade, entre experiência e conceito. Como defende R. Gibellini58, o teólogo alemão propõe que se pratique em teologia uma “abordagem antropológica”, que parta da experiência pessoal do homem, tratando-se de um “processo metodológico” que não subordina a fé à experiência e não comporta uma redução subjetivista da fé, mas que se torna necessário para superar o fosso entre a revelação e experiência humana. No método antropológico-transcendental, Rahner propugna que o dado da fé não seja simplesmente transmitido em seus conteúdos, mas seja posto em correspondência com a experiência que o homem tem de si. Isto é mais do que saber sobre a fé, implica compreender a vida a partir da história do homem considerado como um sujeito espiritual, que se auto-explica na experiência transcendental, numa experiência que é humana e que, portanto, não ocorre à margem dos acontecimentos, mas no seio da vida histórica. Essa auto-explicação categorial do que o homem é acontece não só nos enunciados antropológicos, mas em toda a história do homem, no agir e sofrer da vida individual, no que chamamos de história da cultura, da socialização, do Estado, da arte, da religião, do domínio técnico e econômico da natureza59. Resume Gibellini que Rahner passa a praticar o “método antropológico-transcendental”, que parte de que na experiência do homem é preciso distinguir entre um a priori e um a posteriori. Esse mundo da experiência humana é a posteriori, é adquirido e categorial, ou seja, é refletido, tematizado e passível de diferentes classificações; mas esse mesmo mundo da experiência humana se mostra subentendido por um a priori, não adquirido, mas sempre dado com a existência humana, e transcendental, ou seja, dado de maneira irrefletida e atemática, e é o que torna possível a realidade categorial, isto é, o conhecimento, a liberdade, a ação e demais experiências humanas. O transcendental diz respeito justamente “à condição de possibilidade” do conhecimento, da ação e das outras experiências humanas, ou seja, à condição da 57 RAHNER. La Grazia come centro dell‟esistenza umana. Intervista (1974), 24 (apud ATS 226). Cf. ATS 226. 59 Cf. ATS 226-227. 58 31 possibilidade da experiência categorial. O conteúdo da experiência humana é a posteriori e categorial; a condição da possibilidade de tais experiências é a dimensão a priori e transcendental e é constituída pela estrutura do espírito finito no mundo60. Daí decorre que a dimensão transcendental da experiência humana – no exercício do conhecimento e da liberdade – é a abertura do espírito finito ao infinito. Para Rahner a experiência humana não é apenas experiência disto ou daquilo, mas é, ao mesmo tempo, experiência da finitude, que remete a um horizonte infinito; experiência da absolutidade da verdade e da responsabilidade, que remete ao absoluto; experiência da radicalidade do amor e da fidelidade, que remete ao incondicionado. Desse modo, em suas insubstituíveis palavras, Para a pessoa que tomou consciência de suas profundidades, o que temática ou atematicamente pode ser mais familiar e evidente do que o perguntar silencioso pelo mais além do já conquistado e dominado, do que a sobrecarga de perguntas a que não foram dadas respostas, aceitas com humildade e amor, que aliás é a única coisa que torna sábio? Nas profundidades últimas do seu ser que nada sabe, o homem com mais exatidão do que o seu saber, [...] não passa de pequenina ilha no vasto mar ainda não percorrido, ilha flutuante, que pode ser para nós mais familiar do que o oceano, mas que em último termo é carregada e somente assim nos carrega por sua vez. E, em conseqüência, a pergunta existencial àquele que conhece é se ele ama mais a pequena ilha do seu assim chamado saber ou o mar do mistério infinito; se a pequenina luz, chamada ciência, com que ele ilumina essa ilha, há de ser para ele uma luz eterna, que para ele brilhe eternamente61. Todo esse pano de fundo espelha os porquês de o nosso autor ter uma obra que alcança quatro mil trabalhos escritos62, sem que se tenha podido deter numa só obra a síntese de seu pensamento que voou para onde as questões despontavam em seu mundo e a que o seu incansável espírito buscou responder com o rigor de sua fé qualificada, mesmo sabedor de que “o homem de hoje sente-se desconfortável perante toda e qualquer afirmação metafísica e religiosa em geral” 63. Em 1964, em seu primeiro curso sucedendo Romano Guardini na cátedra de Filosofia da religião, em Munique, Rahner tem a oportunidade de tentar uma síntese de seu itinerário teológico, cujo primeiro esboço desenvolveu numa Introdução ao conceito de cristianismo que, depois de inúmeros retoques sai publicado com o título de Curso fundamental sobre a fé (1976). Segundo R. Gibellini, “a obra continua sendo um dos textos mais significativos da teologia católica de nosso 60 ATS 227. CFF 35. 62 TCF xi. 63 CFF 217. 61 32 século”64. Na mesma linha, o teólogo Sesboüe testemunha a experiência que a teologia de Karl Rahner faz viver quando ministrou seminários consagrados à leitura do CFF e afirma: Este difícil livro, sem dúvida, estimulava vigorosamente os estudantes a estruturarem teologicamente a sua própria reflexão. Porém, mais que toda técnica teológica, a obra lhes colocava a questão de seu compromisso concreto com os paradoxos da fé cristã, às vezes os chacoalhava ao atrair sua atenção para um determinado dado que não haviam “percebido” nem integrado à sua própria experiência. Na verdade, ela os ajudava a crer não apenas dando-lhes razões para crer, mas também produzindo neles uma experiência de fé65. O próprio autor reconhece que, “em livro tão breve, de apenas quinhentas páginas, aproximadamente”66, o CFF não contém uma espécie de resumo de sua teologia, e vai dar a seu livro da maturidade várias definições: diz que é para leitores com certa cultura e que não têm medo de debater conceitos (p. 5); que constitui tentativa de apresentar uma primeira introdução a um tema vasto como a totalidade do conceito de cristianismo (p. 8/11); afirma que é introdução no quadro da reflexão intelectual (p. 11); que pressupõe a fé (p. 11); e tem o propósito de oferecer uma primeira reflexão sobre a existência pessoal cristã e sua justificação (p. 21); que pretende refletir primeiramente sobre o homem como a questão universal que ele é para si mesmo (p. 22); e criar condições para que, a partir dos próprios conteúdos do dogma, as pessoas tenham confiança de que podem crer com honradez intelectual (p. 23); ressalva que o curso fundamental não é uma introdução à Sagrada Escritura (p. 25) e que não quer fazer iniciação mistagógica, mas insiste no conceito e não de imediato a coisa mesma (p. 26). Este livro é a base deste estudo67. A fim de não suscitar dúvida sobre o porquê de uma opção aparentemente empobrecedora, registra-se que o estudo o apontou como um livro atípico, que não se enquadra na formatação dos manuais de dogmática, mas que se define a partir do “interesse e da paixão de seu autor pela realidade”. Por tocar assim a realidade, o livro trata os problemas de seu tempo e alcança, também, os nossos, ou seja, encara os problemas da fé, com toda a coerência exigida pela teologia e, com isso, Rahner consegue superar a sua própria crítica do que hoje encontramos tão raramente: “trabalhos [...] especiais com coragem de colocar problemas nos 64 ATS 223/225. ITT 10. 66 CFF 8. 67 Ressalte-se que ao afirmar o CFF como livro base desta dissertação, não se está aprisionando o trabalho a seu conteúdo, por duas razões básicas: a primeira se refere ao gigantismo da obra de Rahner que em muitos artigos tratou de um mesmo tema, conforme um ou outro enfoque específico e, por essa característica, inúmeras vezes optou-se por segui-lo em um ou outro artigo ao invés de caminhar com o texto do CFF, principalmente quando o tema está lá muito sinteticamente abordado. A segunda razão diz respeito ao próprio tema da dissertação e, por isso, surgirão alguns escritos em que Rahner o aborda especificamente. 65 33 múltiplos aspectos da dogmática, nos quais atualmente reina – em maior ou em menor grau – a calma de uma construção abandonada pela metade”68. 68 TEC 122-123. 34 II O amor em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo: Credere in Deum 35 Primeira parte A liberdade que fundamenta a nossa relação com Deus Pai 36 O núcleo deste trabalho é composto por três Partes. A Primeira Parte tem por meta dar significado em meio ao mundo teológico de Rahner à essência de sua Teologia da Criação. Este aparente isolamento de um aspecto, do todo coerente de sua teologia, incorreria num desrespeito reducionista ao autor, a menos que tal parte de sua obra seja de valia ao homem de hoje, em sua existência, ou seja, agora, como é nossa pretensão apontar. Nesse sentido, a proposta da Primeira Parte é maior do que recolher da teologia de Rahner um remendo de alívio como uma “palavrinha solta” diante de uma dificuldade momentânea. O desafio que nos move é “despertar” do pensar rahneriano respostas que, decorridos 23 anos de seu falecimento, para nossa admiração, já haviam sido apontadas por seu gênio incessantemente perscrutador que logrou perceber a beleza da realidade do cristianismo diante da totalidade da existência humana. Para o cristão, a existência cristã é em última análise a totalidade de sua existência. E essa totalidade abre-se para os obscuros abismos do deserto daquele que chamamos Deus. A pessoa, quando empreende algo dessa natureza, coloca-se perante os grandes pensadores, os santos, e finalmente Jesus Cristo. Os abismos da existência se abrem à sua frente. E vem a saber que não pensou o bastante, que não amou o bastante, que não sofreu o bastante69. Se observarmos o título da Primeira Parte, vemos que ele se inicia com a palavra liberdade, que é o centro catalisador que dinamiza toda a relação do homem com Deus Pai, ou seja, da relação do homem com o Criador e da conseqüente relação do homem com o restante da realidade criada. Desde aqui, o título já antecipa a liberdade como fundamental, porque é ela o próprio fundamento da nossa relação com Deus Pai. Saltamos, então, à última palavra do título – Pai. Isto porque a palavra Pai se agiganta em significação para a totalidade da vida cristã. Se partíssemos de outro caminho, correríamos o risco de o significado de “Deus Pai” nos escapar desde o início, o que numa escalada poderia fazer, adiante, escapar a percepção de Deus, do homem, de como e no quê se dá essa relação em que nos é comunicada a real essência e vocação do homem ao Amor. Assim, buscamos na palavra Pai o significado do que primeiro proclamamos de Deus nos Símbolos da fé: “Deus é Pai”. Se ao proclamar que Deus é Pai já temos o Deus trino confessado, retomamos o ponto de vista de Rahner, que percorre do Antigo até o Novo Testamento, para afirmar o que significa a unidade do Deus cristão: um Deus pessoal – que é Pai, que se expressa como Filho e como Espírito. 69 CFF 12. 37 Ao final, este caminho encontra no querer de Deus a manifestação da Sua liberdade que é absoluta e que proclamamos na fé como o primeiro artigo do Credo Niceno-Constantinopolitano: “um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. 38 Capítulo I - Concepção de Deus Pai Proclamar a fé cristã, afirmar que eu “Creio em Deus Pai” seria impossível sem o Novo Testamento. Mas também seria impossível sem o Antigo Testamento. Isto porque diante do Primeiro Testamento somente teríamos uma compreensão “obscura” dessa afirmação já que nos faltaria do Segundo Testamento a clareza do Deus cristão que professamos como o Pai de Jesus Cristo. Acompanhando uma sentença de Agostinho, Rahner defende a idéia de que "o Novo Testamento está latente no Antigo e o Antigo está patente no Novo"70. Esta sentença implica que, desde a primeira Palavra pronunciada por Deus, já está nela contida a boa nova, embora a sua compreensão seja necessariamente obscura, posto que o Novo Testamento está presente no Antigo de um modo “profético”, o que vale dizer que o Antigo Testamento possui uma orientação teleologicamente apontada à Palavra final em Deus que se revela Pai por Seu Filho, Jesus Cristo. Mas não basta analisarmos apenas esse modo “profético”, porque a Palavra do Antigo Testamento exige mais: ela é, a um só tempo, “histórica” – com respeito aos eventos a ela contemporâneos – e “profética” – com respeito a eventos futuros. Esta tensão permanentemente existente entre esses modos - histórico e profético - faz com que o Antigo Testamento somente se revele plenamente no Novo71 e, por isso, não se pode desatrelar a sua leitura de sua plena compreensão, já que ambos os Testamentos estão mutuamente implicados. Nesse sentido, Rahner alerta que o cristão não se pode deixar levar pela leitura exclusiva do Antigo Testamento porque é quase impossível evitar o perigo de se ver muito mais ou muito menos do que de fato há no texto: não devemos nem transformar a continuidade do Antigo e do Novo numa presença já manifesta do Novo, ou permitir enrijecer o Antigo, tornando-o um inflexível bloco totalmente contido em si mesmo72. 70 RAHNER. Theos in the New Testament, in THI I, 79-148. Aqui, 88. As próximas referências a este artigo se farão pela sigla TNT. Este artigo é fruto de uma conferência e sua primeira publicação data de 1954, no original alemão. Observa-se na Constitução dogmática sobre a Revelação Divina “Dei Verbum” uma estreita relação entre o texto aprovado pelo Concílio Vaticano II e as idéias aqui desenvolvidas por Rahner. Tradução brasileira: Theós em o Novo Testamento. SP: Paulinas, 1972, 5-200. 71 TNT 88-9. 72 TNT 89. 39 1 - O significado do monoteísmo cristão do AT ao NT Introdução O que dizer de Deus no Antigo e no Novo Testamento, diante dessas considerações? Para Rahner, a idéia de Deus do Novo Testamento não pode ser colocada ao largo da idéia de Deus do Antigo, como se tratasse de uma idéia simplesmente nova, “surgida por generatio aequivoca. A idéia de Deus tem que estar ativa no Antigo Testamento, embora escondida em profecias que, por sua própria natureza, como já afirmado, são obscuras”73. Por isso, a concepção do Deus cristão, a concepção do Deus que é Pai e Pai de nosso senhor Jesus Cristo, deve partir da palavra que Deus mesmo nos permite “descobrir” a partir do Antigo Testamento e que se vai “revelar “ em plenitude no Novo Testamento. Rahner reduz o que foi dito nos seguintes termos: a fórmula básica do monoteísmo do Antigo Testamento não é “Existe um Deus”, o que seria afirmar que há uma única e primária causa do mundo, mas é “Yahweh é o único Deus”74. Sucederia, então, a pergunta por uma fórmula básica para, também, afirmar o monoteísmo no Novo Testamento? É o que se vai perseguir nas próximas linhas. 1.1 – O novo conhecimento de Deus Neste ponto, devemos voltar o olhar para o homem do Novo Testamento. Segundo Rahner, aí, o que primeiro nos surpreende é descobrir como o homem do Novo Testamento pensava Deus, porque a “inquestionável certeza” de Deus é o que caracterizava a consciência do homem daquele tempo. Em suas palavras, jamais ocorreu ao homem do Novo Testamento levantar a questão da existência de Deus, posto que ele nada sabia das principais características da moderna consciência de Deus: do sentimento angustiante do homem de nosso tempo, para quem questionar tem sempre que anteceder qualquer sentir, um sentir que exige em primeiro lugar uma lenta reflexão buscando plantar um fundamento firme diante de qualquer tipo de insinuação que admita o reconhecimento de Deus, por medo de que Deus possa ser um nada, além de uma monstruosa projeção das necessidades subjetivas do homem75. 73 TNT 89. TNT 94. 75 Cf. TNT 94. 74 40 Mas este é o drama do homem moderno. Sempre seguindo o raciocínio de Rahner, voltamos ao homem Novo Testamento, para quem Deus é, em primeiro lugar, aquele que “está lá”. “Ele está lá” não obstante toda a sua incompreensibilidade, indisponibilidade e sublimidade, tão simples quanto o mais evidente de todos os fatos, assim é Deus para o homem do Novo Testamento: Aquele que realmente “está lá” e não ao alcance do homem, mas ao contrário, é “lá”, é sob o Seu poder que o homem descobre a sua própria realidade e a realidade do mundo de forma compreensível76. Assim, para o homem que assume sem questionamentos a existência de Deus, a questão não é se a realidade do mundo - que eles podem ver e tocar - aponta para além de si, para o abismo infinito de um todo Outro; o que importa é como este Deus, que lhe foi sempre auto-evidente, de fato age, a fim de que se possa saber como as coisas e o próprio homem se sustentam no mundo. Para este homem, não é a realidade e a visível magnitude do mundo que serve como uma base pela qual Deus vai se tornar alcançável pelo homem (de baixo), mas é exatamente o contrário: é apenas (do alto), “sob” o poder de Deus, que o homem se entende e ao mundo como realidades da criação. Desse modo, tal como no monoteísmo profético do Antigo Testamento, o homem do Novo é também aquele que conhece Deus por sua ação na história da salvação. Mas não só, porque se Deus se autocomunicou no “passado” da história de seu Povo, “agora”, no Novo Testamento, Deus permite ao homem experimentar a Sua realidade como “Pai” que, num gesto de inusitada gratuidade, assim “desce” e Se diz por seu Filho, Jesus Cristo. O Deus que ninguém antes havia visto, “agora” se revela ao homem por Seu próprio Filho (Hb 1, 1-2). “Agora”, o homem viu este Filho, o ouviu e o tocou com suas próprias mãos (1 Jo 1, 1). Para o homem do Novo Testamento, a razão final da conversão ao Deus vivo residirá na atividade histórica de Deus em si, que Se revela a partir do mundo77, na loucura da cruz (1 Cor 1, 18) e na Ressurreição (At 17, 31). Arrebatado pela força tangível do Cristo, por sua realidade, por seus sinais e pela experiência da Ressurreição, o homem passa a dar testemunho: de que “lá” é onde o homem encontra Deus Pai em suas vidas, porque foi “lá” que viram a ação do Cristo no meio dos homens. O importante para este homem não é, pois, uma cuidada concepção de Deus, mas a concreta autocomunicação de Deus Pai a eles, por seu Filho, Jesus Cristo. É em Cristo, na face resplandecida do Filho, que Deus faz brilhar no coração do homem a glória (2 Cor 4, 6) de Deus, que Jesus ousou chamar Pai. 76 77 Cf. TNT 94. Cf. TNT 94-5. 41 Com Cristo, o conhecimento de Deus que leva a um real relacionamento com o Deus vivo dá um salto e faz o homem “re-conhecer” Deus Pai, em Jesus Cristo, como O Salvador. Daí o homem do Novo Testamento se ver diante da tomada de uma decisão porque doravante, aquele que não tinha o Filho, não teria, também, conhecimento do Deus Pai, do Deus de toda misericórdia, do Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. No plano da salvação, há uma indissolúvel ligação entre a experiência que o homem vive diante da realidade do Cristo e o conhecimento de Deus. As expressões Cristo e Deus se associam de um modo tal que as realidades, Cristo e Deus, “agora”, passam a ser conectadas de modo a que a experiência do crente que abandona a fé em um, faz abandonar, junto, a fé no outro (1 Jo, 2, 23). Por isso, Rahner lembra a definição de Jesus: “vida eterna é que os homens conheçam a Deus, o único verdadeiro Deus” (João 17, 3), porque a partir dela o monoteísmo cristão passa a ser mais do que um fragmento da tradição do Antigo Testamento, eis que se liga a um dos mais essenciais elementos da Palavra de Cristo: a confissão que resume o significado de vida eterna: “conhecer a Deus, o único e verdadeiro Deus”78. 1.2 – A fórmula monoteísta do AT e do NT perpassa a idéia de typos da economia basiliana Assim retornamos à busca de uma fórmula para o monoteísmo cristão, recordando que no Antigo Testamento Rahner a apresenta como “Yahweh é o único Deus”. Vimos que, ao homem do Novo Testamento, é nAquele que Se manifestou ativamente em Cristo e na realidade pneumática da salvação que reside a distinção do monoteísmo do Novo Testamento, ou seja: a fórmula para o monoteísmo cristão se resume em que “o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo é o único Deus”79. Mas não é só. Durante o estudo e a realização deste trabalho, desenvolveu-se uma pesquisa na obra de um dos padres capadócios, São Basílio Magno80, por sua inspiração na teologia trinitária rahneriana, como se aponta aqui e ali neste texto. Registre-se que o elo entre o pensamento de Basílio e sua influência em Rahner despontou do estudo de dois textos exemplares: de Basílio, o Tratado sobre o Espírito Santo e, de Rahner, o texto ora sob análise, encontrando-se a ponte da fórmula entre o Antigo e o Novo Testamento onde Basílio trata dos typos. 78 Cf. TNT 101. O sublinhado é nosso. Cf. TNT 102. 80 Rahner acompanha a certeza de muitos de que a patrologia grega oriental alcançou o seu ponto mais elevado com os chamados Padres capadócios. Basílio Magno, Gregório de Nissa, seu irmão, e Gregório de Nazianzo. Basílio é tido como o mais importante dos três, devido à sua personalidade fértil, ativa na reflexão e na produção literária assim como na organização e administração das comunidades de sua diocese. A história eclesiástica o consagrou como o “Grande”, pai e doutor da Igreja. 79 42 Em seu Tratado, Basílio, ao responder à quarta objeção contra o Espírito Santo, explica a significância de typos para se defender da alegação de que em Moisés alguns foram batizados e nele creram (Ex 14, 31). Que responderemos? Que se tem fé no Espírito, da mesma forma que no Pai e no Filho. Igualmente sucede do batismo. Quanto a Moisés, batiza-se nele e na nuvem, enquanto são sombra e tipo. No entanto, se as realidades divinas são prefiguradas por pequenos sinais humanos, nem por isso é insignificante a natureza divina, que os tipos freqüentemente de antemão desenharam com luzes e sombras. De fato, o tipo revela através de uma imitação o que se espera; deixando entrever o futuro, com propriedade o indica81. (grifamos) Desse modo, em Basílio lemos que a Escritura alia Moisés a Deus, e não ao Espírito; por que Moisés era “tipo” de Jesus Cristo e não do Espírito. O que Moisés prenunciava, no ministério da Lei, era a mediação entre Deus e os homens (1 Tm 2,5). “A fé depositada nele refere-se, portanto, ao Senhor, ao mediador entre Deus e os homens, que disse: “Se crêsseis em Moisés, haveríeis de crer em mim” (Jo 5, 46). Seria, pois, coisa pequena a fé no Senhor, pelo fato de haver sido prefigurada por Moisés?”82. Desse outro modo, em Rahner, expressa-se a “mesma realidade” quando nosso teólogo assevera que “o homem do Novo Testamento é o que confessa Deus como Deus Pai”, portanto uma pessoa, uma pessoa viva, que trabalhou na história da salvação do Antigo Testamento, e que Se revelou definitivamente como Pai, por seu Filho Jesus Cristo. Rahner ressalta que esse homem que nomeia o seu único e verdadeiro Deus pelas antigas expressões “Deus dos Pais”, “Deus de Israel”, “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”, também o diz “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. Por isso, quem confesse o único Deus e não confesse também aí o “Deus dos Pais” e o “Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, [...] não se está referindo ao monoteísmo professado pela Igreja primitiva, que é de onde se diz que: “para nós só há um Deus, o Pai, de quem tudo procede, e para o qual nós vamos, e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe e pelo qual nós existimos” (1 Cor 8, 6)83. 1.3 – A “volta do religioso” como idolatria que ameaça o monoteísmo cristão Para os nossos dias, perceber o que Rahner tem a dizer do monoteísmo cristão é muito importante, porque atual. Dizer da “unidade” de Deus com o olhar cravado na tradição dos Testamentos permite tratar questões que ultrapassaram a vida do teólogo, quer para trás, pelo que a 81 BASÍLIO DE CESARÉIA. Tratado sobre o Espírito Santo. SP:Paulus. 1999, 124-128. As próximas referências a esta obra se farão pela sigla TES. 82 TES 126-127. 83 Cf. TNT 102. 43 história da teologia nos conta e ensina, quer para além da vida de Rahner (1984), posto que são questões que latejam forte no cerne do cristianismo, agora diante do chamado fenômeno da volta do religioso. É nesse fenômeno que se esconde a exacerbação do individualismo, que traz junto de si um perverso imediatismo. Tudo somado, o risco é estarmos assistindo o esfacelamento da idéia de Deus do monoteísmo cristão, a tão duras penas defendido das heresias dos primeiros séculos pelos Pais da Igreja. Hoje, o contexto faz saltar aos nossos olhos a desesperança do homem. Não somente a desesperança individual, porque esta mesma situação tem reflexos comunitários, na vida nas Igrejas já que, todos, em busca de imediatez de resultados, culminam por perder o horizonte do Deus cristão e, assim, deixam de reunir homens que efetivamente se constituam, em Cristo, verdadeiros homens da Esperança. Em vista desse arrazoado, crescem em importância as lições da Igreja primitiva na experiência do trato com o diferente, crente ou não. Agora e sempre é imperioso manter o olhar no que efetivamente constitui o monoteísmo cristão, o que aqui se intenta fazer pela perspectiva da teologia rahneriana, posto que carrega ensinamentos para o embate que o cristianismo não poderá se esquivar diante do grande ídolo da nossa era que vem de superar a idolatria ao dinheiro, com tudo que dele se extrai. Teme-se, nos dias que correm, que um novo ídolo suba ao pódio da mais terrível forma de idolatria, qual seja, o homem fazer de si o seu próprio ídolo, o que traz no seu bojo não o risco de o homem “matar” a (palavra) Deus, mas de o homem matar a sua própria humanidade porque assim: O homem teria esquecido o todo e o seu fundamento, e ao mesmo tempo teria esquecido [...] que se esqueceu. Que seria então? Só poderíamos dizer: ele deixaria de ser homem. Ter-se-ia reduzido a um animal engenhoso. Não podemos mais dizer tão facilmente hoje que já existe homem quando um vivente terrestre anda em posição ereta, acende fogo e transforma uma pedra em picareta. Só podemos dizer que existe homem quando um ser vivo, pensando, usando da palavra e agindo livremente, confronta-se com a totalidade do mundo e da existência como pergunta e problema, mesmo que, ao fazê-lo possa vir a se manter mudo e desconcertado perante esta pergunta sobre a unidade e a totalidade84. Conclusão Nesse sentido, como repetidamente afirmado por Rahner por toda a sua vasta obra, o imperativo é deixar “Deus ser Deus”85. Para tal, é mister clarear posições identificando o que “é” de 84 85 CFF 65. CFF 155-156. 44 Deus e o que é “distinto” de Deus. Aí reside uma chance de o homem, angustiado com a desesperança de seu isolamento, poder compreender a si mesmo e encontrar, na sua própria realidade criatural, a esperança que dá sentido à sua existência. Por isso, o válido alerta de que o que é decisivo na mensagem do Novo Testamento é, antes, que o círculo dos poderes e forças intramundanos foi estourado por ação do único Deus vivo, que é Deus, e não algum poder numinoso, e ele o estourou para abri-lo para a real imediatez para consigo mesmo. Ele está presente para nós em imediatez no Espírito Santo que nos foi dado e no que é chamado de “Filho” em sentido absoluto porque estava com Deus no princípio e é Deus ele próprio86. 2 - o significado de um Deus pessoal que é Pai, Filho e Espírito Santo Introdução A unidade que espelha a mesma idéia de Deus não pode ser interpretada por um reducionismo que tome a palavra “Deus” como uma essência comum e imutável, já que este tipo de crença não está em questão na fé monoteísta, porque a causa última do mundo poderia até ser conhecida, mas nunca crida, tal como cremos, na fé, em uma „Pessoa‟ viva e ativa na história87. 2.1 – O homem que experiencia a pessoa de Deus Pai Agora vemos o porquê de no Antigo e no Novo Testamento a concepção de Deus partir da “experiência” em que o homem se relaciona com Deus como uma realidade viva, ou seja, uma “Pessoa” a quem o homem chama de “Tu” no silêncio da oração, uma “Pessoa” que age livremente por meio do mundo em que generosamente quis Se revelar88. Essa “experiência” do homem encontra razão no próprio homem. Se atrelarmos o olhar à Encarnação percebemos que a humanidade de Cristo não é o instrumento extrínseco pelo qual um Deus invisível se faz conhecer. A razão está escondida no que Deus em si se transforma – apesar de se manter Deus – ao Se exteriorizar no que é distinto de si, no que não é divino. Para Rahner, 86 CFF 155. Cf. TNT 104. 88 Cf. TNT 104-5. 87 45 a última palavra sobre “o homem é que ele é o modo possível da existência de Deus se Deus se exterioriza no que é distinto de Si; o homem é irmão potencial de Cristo”89. Nesse ponto, voltamos ao propósito de agora que é dar significado a um Deus pessoal que é Pai, Filho e Espírito Santo. Dar significado passa pela barreira da tematização de uma realidade que nos impede em sua originária experiência de expressá-la em sua real magnitude, o que é próprio de toda a experiência transcendental. 2.2 – O homem que nomeia Deus A primeira dificuldade ao falar de Deus é nomear Deus. Por isso, a idéia do “fundamento absoluto de todas as coisas” é tão ilustrativa do desafio de uma adequada nomeação de Deus. Imaginar o “Absoluto” contido numa palavra denota, per se, o que se impõe à linguagem. Em um artigo clássico, que integra o CFF, Rahner enfrenta essa questão e diz que se o chamarmos “Deus Pai”, a palavra “Deus” ganha expressão na realidade significada pela palavra “pai” em nossas experiências e relações mais pessoais, íntimas e de contornos mais fortes. Ocorre que, isoladamente, a palavra “Deus”, “se apresenta [...] como se [...] nos mirasse como um rosto cego, porque não fala nada sobre o que significa ou sobre a realidade significada”. Contudo, Rahner afirma que é pela ausência mesma de contornos que a palavra “reflete aquilo a que se refere: o Inefável, o Sem-nome, o Silencioso e, porque significa o todo em unidade e totalidade, pode ser descurado como um absurdo”90. Assim, o teólogo culmina defendendo o uso da própria palavra “Deus” porque aquele que se tornou sem rosto, a saber, a palavra “Deus”, que não mais se refere por si mesma a uma experiência singular definida, está em condições de nos falar corretamente de Deus, porquanto é a última palavra antes do calar em que, pelo desaparecimento de todo particular denominável, temos de haver-nos com o todo fundante como tal91. Aqui, voltamos a distinguir o que os cristãos afirmamos do Deus pessoal - que se autocomunica ao homem -, da idéia de que o fundamento absoluto de todas as coisas possa ser impessoal e, portanto, incapaz de se comunicar, como uma lei cósmica, uma estrutura inconsciente, uma fonte que a si mesma se esvazia sem se possuir, mas que dá origem ao espírito e à liberdade 89 RAHNER. Man, in: K. RAHNER (Ed.), Encyclopedia of Theology: The concise Sacramentum Mundi, NY: Crossroad, 1975, 893. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura CSM. 90 Cf. CFF 63. 91 Cf. CFF 63. 46 sem que seja, ela mesma, espírito e liberdade. Isto apenas espelharia a idéia de um fundamento originário, como na metáfora de Rahner, cego. É cego porque não passa da representação tomada do mundo das coisas e que não provém da experiência livre e subjetiva que um espírito faz de si mesmo e se percebe com origem em outro; outro, portanto, que ele não pode interpretar como se fora uma coisa. 2.3 – “Pessoa e personalidade” de Deus na teologia trinitária grega Uma vez percebida a dificuldade de apreensão na linguagem da palavra “Deus”, passamos a outra dificuldade, ou seja, pensar Deus como um Deus pessoal e agora o desafio é definir a palavra “Pessoa”. Essa dificuldade nos foi trazida pelo tempo, uma vez que a sua significação originária não acompanhou na vida da cultura o mesmo sentido. Não vamos já adentrar nas alternativas de utilização de outra expressão92 para substituir a palavra, posto que como Rahner ao final se rende, De fato, a palavra pessoa aí está. Foi sancionada por um uso de mais de quinze séculos. [...] Devemos preservá-la, sabendo que ela não convém a todos os ângulos daquilo que desejaríamos que ela dissesse, e que não apresenta “apenas” vantagens93. Diante do exposto, cabe uma breve reflexão sobre a origem da adequação da palavra “pessoa” no que ela quer dizer dos atributos do Deus cristão. Para isso, não traria qualquer benefício estender-nos sobre a etimologia da palavra. Basta ter claro que a palavra, “persona”, em sua origem latina deriva do verbo “personare”, que significa ressoar, ressoar por toda parte. A moderna filologia a relaciona com a palavra etrusca “persu”, encontrada escrita ao lado de uma representação de duas figuras mascaradas. Esta palavra era usada para traduzir máscara, face, do grego ππόσωπον, que, inicialmente usada no sentido da máscara do ator, designava o seu papel na peça 94. O conceito “pessoa” vai surgir como um termo técnico usado no cristianismo primitivo, na teologia trinitária e da encarnação95. Em síntese, poder-se-ia tomar uma definição para a palavra 92 Rahner critica a expressão “maneiras de ser” utilizada por K. Barth em substituição à palavra “pessoa”, sob o argumento de que “ao se falar da realidade concreta do Pai, Filho e Espírito, inclui-se a essência divina (absoluta) e neste sentido não se pode falar sem mais de puras “maneiras de ser”. O que Rahner defende é que “formalissimamente, aquilo que a hipóstase exprime em oposição à essência divina a substantialitas, poder-se-ia dizer, se substantia não fosse já um conceito relativamente abstrato. De resto, isso vale também de hipóstase, que originariamente não exprime o subsistente, mas o subsistir. Daí para o nosso autor dever-se usar a expressão “maneira de existência (ou de ser) ao subsistir”. Cf. ODT, nota 26, 326. 93 RAHNER. Observações sobre o Tratado “De trinitate”, in ODR 252. As próximas referências a este artigo se farão pela abreviatura TDT. 94 Cf. M. MÜLLER; A. HALDER. Person, in CSM 1206-7. 95 Cf. TERTULIANO. Adversus Praxean, 12; 27. 47 “pessoa” como a que não significa essência ou natureza, mas a realidade única e efetiva de um ser espiritual, de um todo indivisível com existência independente e não intercambiável com qualquer outro. Esta realidade é a realidade de um ser que pertence a si mesmo e que, portanto, tem a própria finalidade em si mesma. É a forma concreta assumida pela liberdade de um ser espiritual, na qual se fundamenta a sua inviolável dignidade96. Se a afirmação do Deus pessoal é fundamental para a convicção cristã, o seu enunciado inegavelmente cria uma perplexidade ao que pressupomos em nossas orações e em nossa referência a Deus pela fé, esperança e caridade97. Rahner reconhece a dificuldade, mas O reafirma como pessoa, porque ele é pessoa absoluta que se situa em absoluta liberdade perante tudo o que ele estabelece como diferente de si mesmo, o que vale afirmar que Deus é o ser absoluto, o fundamento absoluto, o mistério absoluto, o bem absoluto, o horizonte definitivo e absoluto, em cujo interior se realiza a existência humana na liberdade, no conhecimento e no agir98. Como este trabalho não se propõe a ousadia de encontrar definições ou formulações científicas, mas busca o significado de um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo na sua relação pessoal com o homem, voltamos à perspectiva de Rahner que, na mesma busca, parte do entendimento do que é mais evidente ao homem ao afirmar que é claro que a subjetividade e a personalidade que experimentamos como nossa, a unicidade individual e limitada pela qual nos distinguimos dos demais, a liberdade que se deve exercer sob milhares de condicionamentos e necessidades, tudo isto implica uma subjetividade finita marcada por limitações que, com tais limitações, não podemos afirmar o mesmo do seu fundamento, ou seja, de Deus99. Diz o teólogo que a personalidade individual, como a que o homem experimenta, não pode “convir a Deus, que é o fundamento absoluto de tudo”. Porém, adiante, ele esclarece que Deus, o fundamento de nossa personalidade racional, anuncia-se sempre, ao mesmo tempo que se esquiva, precisamente na constituição transcendental de nossa pessoa e, com isso Ele já Se revelou a nós como “pessoa”. Se permitimos que este enunciado formal receba seu conteúdo de nossa experiência histórica, permitiremos que Deus seja pessoa precisamente da forma em que de fato quer encontrar-se conosco e se tem encontrado conosco em nossas 96 M. MÜLLER; A. HALDER. Person, in CSM 1207. Cf. CFF 94. 98 Cf. CFF 94. 99 Cf. CFF 94-5. 97 48 histórias individuais, na profundeza de nossas consciências, e na totalidade da história humana100. Hodiernamente, é no estudo do Direito que se percebe com clareza tanto a dificuldade de expressar a palavra pessoa em um conceito, como as dificuldades decorrentes de até hoje no corpo do nosso direito pátrio não se haver ousado definir a palavra. Mas, é de se ressaltar que há uma palavra que nos socorre tanto na teologia quanto nos enfrentamentos jurídicos: “personalidade”. Num sentido ético, personalidade é o conjunto de atributos presentes no ser humano que, por sua livre decisão aceita de fato que ele é “pessoa”: aceita o caráter dialógico da vida direcionada ao mistério, aceita a liberdade, aceita o dever, aceita a responsabilidade, a inefável alteridade do seu próximo, a dor e a morte. A personalidade completa está enraizada no coração e não no intelecto101. Se no que diz do homem o desafio permanece, no que respeita Deus, Rahner diz que devemos reconhecer que a teologia grega em seu apogeu (capadócios), [...] dava impressão de ser uma doutrina trinitária, quase ainda mais formalista que a de Agostinho. Como se explica isto? Os gregos compreendiam a Trindade tão naturalmente no quadro da “economia da salvação”, que podiam com razão compreender toda a sua teologia como uma doutrina da Trindade. [...] Nesse caso, esta não teria de falar nada sobre cada uma das Pessoas divinas, mas não buscaria senão resolver o problema (ulterior para os gregos) da unidade das três Pessoas que se encontram, distintas e individuais, na teologia e na economia102. A compreensão da teologia trinitária grega - que parte da maneira como Deus Pai se manifesta a si próprio na economia da salvação, pela mediação da Palavra e no Espírito - é retomada por Rahner para esclarecer que a diferença do que é “Deus para nós” é aquela de “Deus em si”. Ele afirma que poderíamos declarar muito simplesmente que esta “trindade de Deus em si” é chamada “tripersonalidade”, e que, neste contexto não se pode pensar no conteúdo de “pessoa”, senão pelo que se depreende do testemunho da Escritura, nosso ponto de partida103. Tornamos citar Basílio, que em seu Tratado ironiza a doutrina da “monarquia”, ao afirmar que quando o Senhor nos transmitiu o Pai, o Filho e o Espírito Santo (Mt 28, 19), não os mostrou com um número. De fato, não disse: no primeiro, e no segundo e no terceiro; nem em um, e em dois e em três, mas através dos santos nomes concedeu-nos o conhecimento da fé que conduz à salvação. 100 Cf. CFF 95. K. RAHNER; H. VORGRIMLER. Personality. Dictionary of Theology, 2nd. Ed., NY: Crossroad, 1985, 381. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura DTH. 102 TDT, nota 12, p. 227-8. 103 TDT 252. 101 49 Aqueles [...] que utilizam contra a fé a numeração [...], cuidam de aplicar um número à natureza divina, para deste modo não honrarem o Paráclito além de certa medida. Mas, ó ilustres sábios, é preferível que o Inacessível esteja acima da numeração. A antiga piedade dos hebreus empregava sinais particulares para assinalar o nome inefável de Deus, demonstrando assim a sua superioridade sobre todos os seres. E se importa contar, ao menos não se falsifique a verdade: ou, com o silêncio se venerem as coisas inefáveis, ou que se enumerem piedosamente as coisas santas. Há um só Deus Pai, um só Filho Unigênito, um só Espírito Santo. Anunciamos cada uma das hipóstases singularmente. E se fosse conveniente “coenumerar”, não nos deixaríamos levar por rude enumeração a uma idéia politeísta104. Conclusão Seguindo essa linha de raciocínio, Rahner recoloca a questão da relação entre os dois tratados: De Deo uno e De Deo trino, para recordar que não é tão fácil separá-los, “como se admite desde santo Tomás e outros a seu exemplo”. Se se toma a sério a palavra De Deo uno, procura-se não somente a essência de Deus e sua unicidade, mas a unidade das três Pessoas divinas e não somente a unicidade da divindade; a unidade mediatizada, da qual a Trindade é a perfeição verdadeira, e não da unicidade não-mediatizada da natureza divina, que pensada numericamente una, está longe de poder ser, por si só, o fundamento da triunidade de Deus. Mas se é o tratado De Deo uno que se fala e não o De divinitate una, então trata-se do Pai, princípio sem princípio do Filho e do Espírito. E neste caso se torna realmente impossível fazer sucederem-se dois tratados sem ligação entre eles, como até hoje se faz105. Com isso, não se pretendeu adentrar nas diversas controvérsias havidas ao longo dos séculos sobre a adequação do uso da palavra “pessoa” ao que se quer significar quanto ao Deus cristão, o único e mesmo „Deus dos Pais‟ e „Deus Pai de nosso Senhor Jesus Cristo‟, que se revela na história da salvação como Trindade econômica. 3 - o significado de um Deus que “quer” agir Introdução Retomando brevemente o que até aqui se apontou, ressaltamos que a questão da unidade de Deus somente se resolve de modo existencial, posto que deve ser operativa no mundo e na história, como nas palavras do nosso teólogo, 104 105 TES 142-143. TDT 253. O sublinhado é nosso. 50 ao confessar um único Deus, o homem não confessa um fato, mas a sua própria aceitação de uma tarefa, posta por um Deus que é pessoal, que age na história e pretende, precisamente através deste meio, estender o seu Reino, a sua Basiléia, a compreensão da sua divina unicidade, o que se dá num lento processo que se arrastará até o final dos tempos106. Na seqüência, vimos que Deus, por sua liberdade absoluta se manifesta como uma “pessoa” ao se relacionar com o homem num “diálogo” histórico, por meio do qual Ele convida a sua criatura pessoal a ser sua parceira, no uso da liberdade que a mensagem cristã diz ser contingente, ou seja, marcada pela finitude e criaturidade do homem. 3.1 – O Deus que quer Estas linhas não buscam resumir o que a inteligência de quase dois milênios produziu sobre os atributos de Deus, mas apontar a Sua própria realidade que, misteriosamente nos atrai. Essa atração permite que o homem, mesmo em seu caráter finito e passageiro na história, possa compreender Deus não somente como uma pessoa que esconde a dimensão completa de Sua liberdade perfeita, mas como o que somente se revela em Sua liberdade absoluta na experiência de amar. Vale aqui insistir em outra concepção de Deus para, por contraste, tirar conseqüências para a identidade da vida cristã. Ter Deus como princípio e fim de toda a realidade, significa dizer que Deus age como o que porta toda a realidade. Essa idéia implica toda a atividade de Deus que, assim, permaneceria absolutamente transcendente. Por isto, tal modo de pensar a realidade contrariaria a experiência do agir de Deus no Novo Testamento que, ao afirmar que tudo é, move e tem vida Nele, vê Deus agindo na história da humanidade como um todo, pela sucessão de períodos históricos e pela renovação dos homens sobre a terra (At 17, 26-9). Como pontua Rahner sobre a primeira hipótese, não há um Aqui e Agora no mundo de tal modo que este Aqui e Agora possa ser experimentado em contraposição a tudo que este Aqui e Agora não é. E porque tudo seria agir de Deus, esse agir esmaece como se adentrasse no anonimato do Sempre e em Todo lugar. Para o Novo Testamento, a autocomunicação de Deus não pode ser uma qualidade que adira uniformemente a toda a realidade no mundo – por causa da soberana liberdade de Deus que permite ao seu “querer” manifestar-se num agir que “escolhe um povo para si, o faz o seu Povo” (At 13, 17), firmando com ele uma Aliança (Rm 9, 4). No momento em que, no uso de sua liberdade 106 Cf. TNT 103. 51 absoluta e amor infinito, Deus envia seu Filho, faz com que deste evento histórico único dependa a inteira salvação do homem e a transfiguração de todo o mundo107. 3.2 – O Deus que quer um único milagre: autocomunicar-se Sobre esse agir de Deus, Rahner ensina que todas as coisas que se reconhecem como presença e anúncio de Deus na história são presença real de Deus em si mesmo e, assim sendo, constituem verdadeiros fundamentos da religião, [...] na medida em que todas essas manifestações de Deus em nosso espaço e em nosso tempo constituem realizações históricas e concretas da autocomunicação transcendental de Deus que, de outra forma seria mero portento e não o milagre da revelação histórica de Deus108. Dizer que Deus quis agir em nosso espaço e em nosso tempo e que seu agir se constitui em manifestações históricas e concretas implica lembrar, com Rahner, a expressão de Tomás de Aquino, para afirmar que Deus age através de causas segundas. Rahner toma essa sentença de Santo Tomás e diz que “Deus opera o mundo e não propriamente opera no mundo, que ele sustenta a cadeia das causalidades, mas não que por sua atividade se insira nessa cadeia das causas como um elo, como se fosse uma causa entre as outras”. Dito de outro modo, A própria cadeia como todo, ou seja, o mundo no inter-relacionamento de suas partes e não somente em sua unidade abstrata e formal [...], constitui a autorevelação do seu fundamento. E este fundamento mesmo não se pode encontrar como tal imediatamente nessa totalidade. Pois que o fundamento não aparece no seio do que é fundado, se ele é realmente o fundamento radical e, portanto, divino 3.3 – O Deus que é Pai é em si o Amor e quer amar criando Deus - que os Testamentos confessam Criador do mundo - apresenta a sua criação como obra de seu querer que, por sua absoluta liberdade, quis criar. Este agir de Deus se expressa com meridiana clareza se pensarmos que a sua liberdade absoluta manifesta o seu agir em uma criação contínua, fruto de uma liberdade que, como nas palavras do parágrafo acima, é “o fundamento que não aparece no seio do que é fundado”. Não aparece porque esta liberdade absoluta é o misterioso fundamento da relação amorosa que Deus, o Mistério que Rahner chama Santo, quis estabelecer com a sua criatura. É bonito perceber que a ação de Deus no curso na história da salvação não se resume a um monólogo que Deus conduza por si só. Ao contrário, é uma relação que implica “um diálogo longo 107 108 Cf. TNT 106. CFF 109. Também aqui exsurge a força dos EE de Inácio, em que Rahner coloca a CAA nos termos de sua teologia. 52 e dramático entre Deus e a sua criatura, pelo qual Deus confere ao homem o poder de dar uma genuína resposta à sua própria Palavra, valendo-se do dom de sua liberdade que, ao longo de toda a existência humana, é dom que incessantemente nos abastece”109. Por isso, na boa expressão de Rahner, a História não é um mero teatro no qual Deus se coloca no palco onde as suas criaturas vão desempenhar papéis previamente determinados. Diferentemente, o homem é co-autor deste drama que é a um só tempo divino e humano e que tem seu desenrolar na história110. Decorre como lição ao cristão que a História tem uma seriedade real, porque é a seriedade de uma decisão eterna, de uma decisão absoluta que não pode ser relativizada pela idéia – ao mesmo tempo falsa e verdadeira – de que tudo brota da vontade de Deus, a quem nada é capaz de resistir. O cristão sabe que o poder de dar uma real resposta a Deus estará sempre condicionado à última palavra, que é sempre a de Deus. Deus age de modo a que nenhuma reação do homem pode seguir-se à ação última de Deus, que é sempre última porque o homem não tem poder para sobrepor-se ao último agir de Deus que é amar criando. Conclusão Neste ponto lembramos que até aqui o que se buscou foi dar significado ao Deus cristão: como pessoa, como uma pessoa que age livremente. Se assim não o fizéssemos estaríamos enfrentando a questão equivocada para o homem, que estaria se questionando sobre “o que é Deus”. Isto cresce em importância porque sabemos que a pergunta do cristão é outra. A pergunta cristã deve passar a ser “quem é Deus”, com quem e como me relaciono? Para isso, passamos a pensar quem é o homem e como ele vai, também, se relacionar com Deus. 109 110 Cf. TNT 111. Cf. TNT 111. 53 Capítulo II – Concepção de homem: uma doutrina da criação A afirmação de que o homem é a criatura de Deus é conexa à afirmação da criação do mundo em geral. Partindo, então, do termo criação é que podemos expressar a realidade do homem e também a do mundo, como tendo seu princípio, fundamento e destino final em Deus ou, em outro modo de dizer, criação, ativamente, é a ação criadora de Deus e, passivamente, criação é a totalidade do mundo. Assim como proposto, o título está buscando a concepção de homem aos olhos cristãos, o que não se presta a uma concepção fragmentada do homem, como quando é objeto de uma miríade de ciências que se alimentam com frações do conhecimento que a teologia cristã soma, com boa vontade, mas constata que a totalidade da concepção cristã de homem é outra. A fim de exemplificar o que é tão exaustivamente defendido por Rahner, tomamos da zoologia, que exagera mas não desmente a visão fragmentada, uma porção do que lhe é possível corretamente afirmar: Existem atualmente cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas têm o corpo coberto de pelos. A única exceção é um símio pelado que a si próprio se cognominou Homo sapiens. Esta insólita e próspera espécie passa grande parte do tempo a examinar as suas mais elevadas motivações, enquanto se aplica diligentemente a ignorar as motivações fundamentais111. Este trabalho, por óbvio, não pretende conceber o homem a partir da sua diferenciação evolutiva única – dentre cento e noventa e duas outras espécies de macacos e símios (sic.) mas, tal como o CFF, busca mais que a evolução do símio, busca encontrar uma concepção de homem que não “ignore as suas motivações fundamentais”. Assim, buscamos a concepção de homem inserida na doutrina da criação como aquele que se sabe criado por Deus, como um homem diferenciado de todas as outras espécies pela esperança que deflui de sua fé. Buscamos o que é o próprio da teologia, ou seja, uma visão total do ser que é humano. Por isso Rahner tem motivação na mensagem de Pedro "estai sempre dispostos a justificar vossa esperança perante aqueles que dela vos pedem conta" (1Pe 3, 15)112. Com essa disposição, ele aponta o destinatário da teologia nos seus dias, ou seja, o homem “que não se sente seguro em uma fé que seja tida como coisa óbvia”113, visto que a fé experimentada na história, ao longo da cristandade, já não mais justifica as (des)esperanças do homem. Eis aí seu desafio de chegar a uma concepção de homem para hoje. Eis aí, ainda e sempre, o desafio da fé cristã que como não pode 111 D. MORRIS, O macaco nu, SP: Círculo do Livro S.A, 2ª ed., 1974, 7. CFF 12. 113 CFF 15-16. 112 54 chegar à concepção de um homem isolado de seus semelhantes, torna-se para Rahner “a motivação fundamental” sonhar uma igreja que reúna em Cristo os homens nEle criados, o que Rahner chama de a Igreja do futuro. 1 – O significado da relação de Deus com o homem Introdução É nessa perspectiva que a doutrina da criação passa a ser, então, a primeira consideração de uma teologia que conceba o homem e o fundamento de sua esperança, o que somente pode ser encontrado na Trindade econômica. Porque, se assim não for, arrasa mais do que a esperança para hoje, arrasa a mais evidente realidade que carrega o homem e o cristianismo por quase dois milênios: a revelação de um Deus pessoal que quer livre e criadoramente se autocomunicar. Se assim é, e assim o cremos, o homem de fé, que encontra nosso Senhor Jesus Cristo e se toma por seu seguidor se depara com a grandeza irredutível de ter diante de si a “totalidade de sua própria existência”, vale dizer ter-se por todo diante de si. O desafio de gerir uma experiência dessa natureza é o que caracteriza o homem como tal. Nesse passo, a teologia de Rahner pretende ser este saber que é salvífico e que diz respeito a todos. Daí sua advertência de que “uma atividade salvífica sem fé é impossível, e fé sem encontro com Deus que se revela pessoalmente a si mesmo é contradição nos termos”114. 1.1 – Vaticano I: a questão do Deus da razão natural e o Deus da Revelação Com este propósito, Rahner sempre retomando a história, lembra que na teologia escolástica surge a questão da doutrina do Concílio Vaticano I115, segundo a qual se pode conhecer a Deus pela chamada luz da razão natural116. A questão que ele persegue é se há oposição entre o Deus da “razão” e o Deus da revelação, ou seja: se esse “conhecimento” também se refere a Deus - não só enquanto fundamento originário do mundo - como criador do mundo em sentido estrito, ou se a nossa condição de criatura também é parte dos dados que se podem conhecer pela luz da razão natural. Esta questão toca no cerne da teologia rahneriana porque põe em questão a autocomunicação de Deus. O Concílio Vaticano I não responde a essa questão, 114 CFF 187. Cf. Constituição Dei Filius. 116 H. DENZINGER, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, traduzido com base na 40ª ed. alemã, aos cuidados de P. Hünermann, por J. Marino Luz e J. Konings, SP: Loyola, 2007, 644. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura DH. 115 55 na verdade ensina que Deus é criador de todas as coisas, que ele as criou e continua criando do nada. Mas nada diz sobre se esta afirmação é meramente filosófica ou se somente pode ser feita no interior da revelação e, portanto, da autocomunicação pessoal de Deus117. 1.2 – Vaticano II: a questão do ecumenismo no Deus da Revelação Esta questão foi superada no Concílio Vaticano II, com a Constituição dogmática sobre a Revelação divina Dei verbum, que assim aclarou, em seu Cap. I, 6: Pela revelação divina quis Deus manifestar e comunicar a si mesmo e aos decretos eternos de sua vontade acerca da salvação dos homens, “para fazê-los participar dos bens divinos, que superam inteiramente a capacidade da mente humana”118. (grifamos) É importante acompanhar a alta relevância da questão levantada por Rahner porque ela se coloca dogmaticamente diante do que é fundamental para o que se possa pretender quanto à união dos cristãos. Segundo testemunha o teólogo jesuíta B. Sesboüe, Antes da abertura do Concílio, a revelação já era considerada tema central, tanto na doutrina católica como no movimento ecumênico. [...] A relação entre Escritura e Tradição constituía o objeto principal do desentendimento de católicos e protestantes. [...] O “esquema” preparado antes do Concílio dividiu a assembléia. [...] Foi o momento de maior crise no Concílio. Uma verdadeira guerra. E começaram a circular contra-projetos assinados por teólogos de proa, como K. Rahner e Y. Congar. [...] Em abril de 1964 o esquema ganhou nova redação, com tonalidade mais bíblica. A revelação era focalizada mais como um ato de comunicação de Deus por ele mesmo, mediante, sobretudo, Jesus Cristo do que um conjunto de verdades transmitidas119. Esse é momento de “dizer” Rahner como batalhador ecumêmico. Para além de sua reconhecida luta no Concílio Vaticano II, este teólogo escreveu inúmeros artigos que enfrentam as dificuldades de unificação na fé com um tom comum em seu discurso, qual seja o de fundamentar um diálogo que não renuncie à “verdade”. Com isso, ele aposta na dogmática para acender a chama da “igreja do futuro”, alertando que para os cristãos de todas as Igrejas separadas se sintam à vontade como irmãos e irmãs, a igreja do futuro não pode surgir pela mera assimilação das grandes igrejas Protestantes ou Ortodoxas por parte da Igreja Católica Romana, tal como ela se encontra juridicamente organizada no Ocidente latino. A igreja do futuro terá que abrir espaço a um largo pluralismo nos aspectos práticos da vida cristã. Entretanto, 117 CFF 97. DH 983. 119 B. SESBOÜE (dir.), História dos dogmas. A palavra da salvação (sécs. XVIII – XX), v. IV, SP: Loyola, 2006, 419422. 118 56 o problema crucial do ecumenismo é o lado dogmático que reside em como a Igreja do futuro poderá sustentar e professar a mesma fé cristã. A mim parece que a liderança da Igreja católica poderia aceitar que a unificação da igrejas implica que as verdades propriamente fundamentais da revelação cristã sejam expressamente afirmadas por ambos os lados120. 1.3 – A preocupação da dogmática é a realidade da criação É marcante na personalidade de Rahner o cuidado incessante em busca de sempre mais e melhor refletir sobre as verdades fundamentais do Cristianismo, que nada mais são do que a verdade do homem. Esta preocupação deve ser a de todo teólogo e, por isso, ele nos deixou um chamado aos manuais de teologia, por sua insuficiência escolástica e científica. Seu alerta também alcança os tratados de teologia histórica porque, somadas as suas observações, ele torna a perguntar: o que estes resultados da investigação histórica significam para o conteúdo genuinamente teológico? Ao que ele mesmo responde sumariamente: praticamente nada, por sua infrutuosidade dogmática. Diz que fazer teologia histórica assim resulta num tratado dogmático tão semelhante aos tratados dogmáticos dos últimos séculos, como um ovo se assemelha a outro ovo. A finalidade do estudo da teologia histórica não é a defesa de opiniões, e sim o diálogo com um pensador antigo; não para inteirar-se, em última análise, de sua opinião, mas para aprender alguma coisa sobre a própria realidade121. Por isso a preocupação da teologia é sempre “aprender algo sobre a própria realidade”, para que a proclamação da revelação de Deus pela Igreja do futuro “possa ser como deveria, a fim de que a Palavra de Deus possa ser ouvida pelo homem e a Sua Graça possa atuar e nos glorificar”122. permanecendo (os manuais de hoje) no que pertence ao passado, não podem conservar nem o passado com a limpidez devida. Pois só pode conservar o passado, quem se sente obrigado ao futuro, quem conserva conquistando123. Para seguir o ensinamento do mestre e “aprender alguma coisa sobre a própria realidade”, deve ser esforço permanente da doutrina da criação considerar não apenas o início da realidade criada por Deus, mas considerar a criação como a base do relacionamento entre Deus e o homem. Rahner visibiliza o exposto, se valendo da experiência transcendental, assim dizendo: 120 RAHNER. Realistic possibility of a unification in faith? THI, XXII, 72-75. O sublinhado é nosso. TED 117. 122 RAHNER. Forgotten dogmatic initiatives, in THI, XXII, 105. 123 TED 114. 121 57 Em nossa experiência transcendental, que [...] nos remete ao inefável mistério santo, está dado o que venha a ser condição de criatura [...] como algo experimentado imediatamente nessa experiência. O termo “condição de criatura” interpreta correntemente essa experiência original da relação entre nós e Deus. [...] Se viéssemos a pensar que a condição de criatura não passaria da [...] relação de duas realidades categoriais [...], de início já teríamos deixado de perceber o que significa condição de criatura, que não constitui um dentre os muitos casos de nexo causal entre duas coisas que se apresentam organizadas sob uma unidade que só ocorre uma vez e, portanto, tem lugar único124. Tal entendimento não somente enriquece a resposta vinda com o Concílio Vaticano II – sobre se a afirmação de que Deus é o criador de todas as coisas somente pode ser feita no interior da revelação e, portanto, da autocomunicação pessoal de Deus –, mas cresce em atualidade, uma vez que ainda sofremos questões sobre a teoria evolucionista, que se contraporia à teoria criacionista. Rahner toma a discussão e a “encerra” nos limites de sua antropologia, afirmando que A idéia de que o homem não passaria de produto casual, constituindo assim como que um capricho da natureza, contrasta não somente com a metafísica e o cristianismo, mas também no fundo com as próprias ciências naturais. Se o homem existe, se [...] ele é o “produto” da natureza, se ele não emerge em tempo qualquer, mas em determinado momento da evolução, depois e a partir do qual pode até dirigir (ao menos parcialmente) essa evolução no seu curso objetivando-a e modificando-a, então é nele precisamente, no homem, que a natureza chega a si mesma. E, assim sendo, esta se organiza e se orienta em vista do homem, pois o “acaso” é termo sem sentido para as ciências naturais, e o representante delas, com base em seus resultados, conclui pelo menos a existência de um movimento assim orientado125. Essa página de Rahner ilustra o papel do homem diante do restante da criação, sem o quê não poderemos considerar a história do cosmos e a do homem como uma história una. O teólogo diz que nessa eventualidade, o pensamento humano culminará recaindo no que ele qualifica como “uma espécie de dualismo platônico”, porque o espírito que passe a se considerar “como estranho habitante e êxito fortuito na terra” acabará se desprezando e se excluindo como insignificante e impotente. Se o espírito não for considerado a meta da natureza, e se não se perceber que nele a natureza encontra a si própria apesar de toda a fraqueza física do homem, este com o passar do tempo somente poderá fazer-se valer e avaliar-se como contraditor díspar da natureza126. Ressalte-se que a teologia da criação em Rahner não quer tratar do “primeiro momento do tempo” em que ocorreu a criação da realidade, mas do processo que ocorre agora como ocorreu em momento anterior do tempo de nossa existência, que se estende no tempo. Assim, 124 CFF 97-8. CFF 227. 126 Cf. CFF 227-228. 125 58 criação e condição de criatura não indicam um evento dado em um momento, ou seja, o primeiro momento de um existente127 temporal, mas a constituição desse existente e de seu tempo mesmo, constituição que precisamente não entra no tempo, mas que é o fundamento do tempo. É importante anotar que Rahner diz que esse início absoluto não é o vazio infinito, o nada, mas a plenitude, a única a explicar o participado que começa a existir, que pode carregar um processo de devir, conferindo-lhe realmente a força para se mover na direção do que é mais evoluído e ao mesmo tempo mais íntimo. Nesse sentido, “o fim é o início absoluto”128. Essa significação de criação padecia diante da realidade de Rahner. Ele viu seus contemporâneos serem taxados de racionalistas por sentirem o mundo como domínio explorável de sua ciência e de sua técnica, o que o teólogo justificou ao afirmar que o homem poderá se desinteressar deste abismo (do princípio e fim de sua existência), refugiando-se na ciência como se fosse o único espaço claro e compreensível de sua existência129. A apreciação de Rahner cresce quando ele a contrasta ao paradoxo que nos salta aos olhos na atual explosão de seitas e práticas ditas místicas, que culmina apresentando o homem nem sempre tão racionalista, mas como quem, também, “pressente e venera o indizível e o inominado”. Daí o alerta à teologia dogmática hodierna: Todavia, justamente por este motivo, uma dogmática complicada parece-lhe (ao homem) demasiadamente científica, sutil e racionalista, excessivamente doutrinária e positivista, o que faz com que o homem não se convença quando, todas as vezes que não se sabe mais como prosseguir na dogmática, invoca-se um decreto misterioso de Deus e que se chamam mistérios. A questão é que o homem de hoje sente o mistério de Deus como demasiadamente imenso para que lhe seja fácil admitir inúmeros mistérios que, à primeira vista, lhe parecem mais com resultados da complicação da dialética humana que se enredou a si mesma130. A admissão de mistérios que se enveredam como um labirinto, não encontra respaldo na doutrina dogmática de Deus, que não é “um deus anônimo e longínquo”, mas aquele que nunca diz algo sobre si que seja indiferente ao homem. O Absoluto, o Deus descrito na doutrina, é o que Deus “em si” comunica a nós em sua revelação pessoal e absoluta de si. Em outras palavras, Deus se revela nas estruturas formais do “estado criatural e quem é o Deus cristão já se revela ao chamarmos a nós mesmos suas criaturas”131. Por isso Rahner não permitir que sua teologia enverede nesse labirinto de mistérios que ele vai restringir sempre a um único, qual seja, a autocomunicação de Deus. 127 “existente”. Na tradução francesa, l‟étant (p. 96) e na edição norte-americana, existent (p. 79). Cf. CFF 230. 129 Cf. CFF 231. 130 RAHNER, Conceito de mistério, in ODR 155. As próximas referências a este artigo serão abreviadas como CDM. 131 RAHNER. Creation, in CSM 325. 128 59 Para compreender esse mistério único, Rahner diz que é preciso recordar que os sujeitos espirituais significam antes de tudo liberdade e por isso a história da autoconsciência e do autodevir do cosmo é história da intercomunicação dos sujeitos espirituais, o que implica o encontro recíproco entre os sujeitos. A autocomunicação da parte de Deus é, portanto, comunicação à liberdade e intercomunicação dos muitos sujeitos cósmicos. Essa autocomunicação volta-se para a história livre da humanidade, e só pode ocorrer e realizar-se se for livremente aceita por sujeitos, no seio da história comunitária. A autocomunicação divina não é endereçada bruscamente a uma subjetividade isolada e individual. “Ela é historicamente humana e se volta para a intercomunicação entre os homens, porque somente nela e através dela pode vir a ser acolhida de maneira histórica”132. A aceitação ou recusa por parte de cada uma das liberdades não dispõe do evento da autocomunicação divina como tal, mas somente da relação que a criatura espiritual assume com referência a ela. Habitualmente falamos de autocomunicação quando essa vem a ser aceita de maneira livre e, assim sendo, beatificante, mas muitas vezes como existe necessariamente ou na forma da préexistência em si e para a liberdade, ou na forma do acolhimento (justificação) ou na forma de rejeição (incredulidade ou pecado)133. Conclusão Dito resumidamente, a condição de criatura somente tem sentido se a considerarmos na relação originária com Deus como Pai e, assim, também, Criador. Com isso entre os termos criatura e Criador coloca-se um outro. Relação. Por isso Rahner afirma que essa relação com o Criador é, em sua essência última, o que se pode caracterizar propriamente como relação que em “seus traços fundamentais últimos [...] apenas vem expressa cabalmente no conjunto de toda a mensagem cristã”134. 2 - o significado de na radical dependência de Deus estar a genuína autonomia do homem Introdução Nesse passo, temendo parecer repetitiva e temerosa de estar dando voltas no entorno do inexplicável, que não encontra na linguagem a tematização adequada, valho-me das pacientes palavras de Rahner para dizer da intencionalidade deste trabalho no que aparentemente pode parecer sempre o “mesmo”. 132 Cf. CFF 232. CFF 233. 134 CFF 96. 133 60 Quando – como ocorre na dogmática – a realidade que se deve expor é uma e, contudo inabarcavelmente múltipla, cujo último axioma é a infinita imensidade de Deus, as interferências de temas particulares são inevitáveis e é impossível estabelecer o melhor esquema, um esquema que se imponha com necessidade lógica. Não temamos tais interferências. Não é prejudicial que em cada parte se repita o todo. Na dogmática, pagam-se sempre os esquemas claros e simples demais com um empobrecimento dos ângulos de visão. E, reciprocamente, o tratar em diversos lugares o “mesmo” de maneira aparentemente dispersa e dividida, pode contribuir para aclarar a plenitude real de uma verdade e realidade da fé135. 2.1 – A ab-soluta distinção de Deus Pelo que se viu, a doutrina cristã dá um especial realce à relação entre Deus e o mundo de condição criada. O estabelecimento dessa condição por parte de Deus não pressupõe a existência de um material pré-dado. É neste sentido que a criação se dá do “nada”. Criação “do nada” significa: criação totalmente a partir de Deus, mas de tal sorte que nessa criação o mundo seja radicalmente dependente de Deus, e Deus não se torne dependente do mundo, mas, pelo contrário, permaneça livre com referência ao mundo e fundado em si mesmo136. Rahner lembra que a experiência humana intra-mundana é totalmente diversa porque em toda relação causal de natureza categorial e intra-mundana, o efeito é dependente de sua causa, mas esta causa é por sua vez dependente do seu efeito, pois não pode ser tal causa sem causar tal efeito. Isso não ocorre na relação entre Deus e a criatura, pois de outra forma Deus seria um elemento no âmbito de nossa experiência categorial, e não o horizonte infinitamente distante da transcendência, em cujo interior compreendemos a realidade finita singular137. Dada essa premissa, Rahner distingue a relação do homem que pensa e a coisa que ele pensa como seres finitos e, diferentemente, o absolutamente infinito: ou seja, é a absoluta distinção entre os objetos categoriais entre si, por um lado, e o absolutamente diverso, por outro, que nos permite entender a falsidade tanto de um panteísmo real como de um dualismo vulgar – que ocorre também no campo da religião e que situa Deus e o não-divino como duas coisas lado a lado138. Não aceitar essa premissa é tomar Deus como um objeto do conhecer conceitual, e não como O que fundamenta o conhecer. Por isso, Deus não pode prescindir da realidade finita que é o “mundo”, já que somente assim Ele é real e radicalmente distinto do mundo criado, e não apenas uma peça de um todo mais elevado, como se pensa no panteísmo. A distinção entre Deus e o mundo é de tal natureza que Deus estabelece e é a diferença do mundo para consigo mesmo. Por essa razão ele estabelece a unidade 135 TED 128. Cf. CFF 99. 137 Cf. CFF 100. 138 Cf. CFF 81. 136 61 mais estreita na diferenciação, pois se a diferença mesma provém de Deus, e, se assim podemos falar, ela própria é idêntica com Deus, então a distinção entre Deus e o mundo deve-se conceber de forma totalmente diversa do que a distinção entre realidades categoriais, às quais antecede uma distinção, porque, de certa forma, já pressupõem um espaço que as contém e as diferencia, e nenhuma dessas realidades categorialmente distintas entre si estabelece ela própria a distinção com referência às outras realidades nem essa distinção. Por isso se poderia chamar o panteísmo de sensitividade para o fato de que Deus é a realidade absoluta, o fundamento original, o Aonde último onde se volta a transcendência. Essa é a dimensão de verdade no panteísmo139. 2.2 – A radical dependência é a genuína realidade do homem Por sua parte, o mundo deve depender radicalmente de Deus, sem tornar Deus dependente do mundo, da forma como o senhor é dependente do servo, como exemplifica Rahner. O mundo não pode trazer em si nada que seja independente de Deus. Nesse sentido, a expressão “criaturidade”, segundo Rahner, significa uma propriedade fundamental de toda realidade distinta de Deus, propriedade que precede a distinção entre natureza e graça e que só na ordem da graça sobrenatural se realiza perfeitamente, já que “criaturidade” não é uma expressão puramente negativa140. Esta dependência é livremente estabelecida por Deus e, por ser uma dependência finita que é sempre parte de um processo que se renova, não pode existir por qualquer que seja a necessidade, mas apenas pelo que ora chamamos de uma espantosa espontaneidade de Deus. Contra argumentando, por absurda que fosse tal necessidade, ela somente poderia advir de uma necessidade situada em Deus mesmo e em seu próprio ato de estabelecer o mundo, necessidade que faria o mundo ser uma necessidade de Deus e que, portanto, não permitiria a Deus ser independente do mundo, e sim carente dele. Assim, por ser Deus quem estabelece a criatura e a sua distinção com referência a si é que a criatura é realidade genuína e distinta de Deus e não mera aparência por detrás da qual se esconde Deus e sua realidade. Nesses termos Rahner coloca que a Dependência radical e genuína realidade do existente que procede de Deus crescem na mesma proporção e não em proporção inversa. Na experiência humana, quanto mais algo é dependente de nós, tanto menos é diferente de nós e tanto menos possui sua própria realidade e autonomia141. [...] Mas quando refletimos sobre a peculiar relação transcendental entre Deus e a criatura, fica claro [...] que aí genuína realidade e radical dependência constituem simplesmente aspectos de uma 139 CFF 81-82. TED 135. 141 A paradigmática relação da mãe com o recém nascido pode ser esclarecedora para o pensamento do autor. 140 62 só e mesma realidade e, em decorrência, crescem na mesma proporção e não em proporção inversa142. 2.3 – A autonomia do homem e a dependência: uma proporção divina Rahner não se cansou de advertir que o mundo livremente estabelecido por Deus não é Deus, mas o espaço que o Criador disponibiliza à criatura para que, no tempo que lhe é dado na história, exerça sua atividade criadora. Por isso, o conceito de criação só pode ser entendido pela pessoa que faz a experiência de sua própria liberdade e responsabilidade, e também a acolha no ato de sua liberdade e na reflexão143. Por isso é justo considerar o mundo não como uma “natureza sagrada”, mas como o material disponível para a atividade criadora do homem. Não é na natureza, mas é em si próprio, e no mundo apenas enquanto conhecido e administrado por ele na ilimitada abertura de seu próprio espírito, que o homem faz a experiência de sua condição criada e aí se encontra com Deus144. O que está por detrás da afirmação de Rahner é que o homem pode exercer a sua atividade criadora independentemente de Deus. Dizer isto é reforçar ao extremo a paradoxal idéia de que a independência do homem - que recebe a liberdade como dom - se funda na liberdade absoluta que o homem jamais terá, posto que a liberdade absoluta é própria de Deus. Tirar conseqüências da liberdade do homem de até dizer um “não” a Deus é admitir que ele não necessita de Deus para caminhar na sua existência, é admitir que o homem é livre até para não acolher o seu próprio fundamento, é admitir que ele se transforme até mesmo em um risco para si próprio e o restante da criação. A contrário senso, imaginar as conseqüências de uma relação amorosa do homem com o seu Criador é exigir um “sim” a Deus com tudo que daí deflui como engrandecimento para a nossa humanidade. Tirar conseqüências de uma existência humana que acolhe Deus é pensar o homem num “sim” crescente ao exercício de sua liberdade, que será exercida no mundo com a autonomia de um “administrador”, diante de escolhas que lhe permitam fazer da liberdade um crescente dom de eterna gratuidade. Por isso, Rahner dá rumo a este estudo ao afirmar que devemos refletir primeiramente sobre o homem como a questão universal que ele é para si mesmo, e, em conseqüência, fazer filosofia no sentido mais próprio do 142 Cf. CFF 100. O sublinhado é nosso. Cf. CFF 101. 144 Cf. CFF 102. Ver também EE 23. 143 63 termo. Essa questão, que o homem é e não só faz, deve-se considerar como a condição da possibilidade de a resposta cristã vir a ser escutada145. O todo desta reflexão significa que a procedência radical de Deus é que funda a nossa autonomia, e disso só se faz experiência quando a pessoa criada exerce a sua liberdade como proveniente e referida a Deus, e se percebe sujeito não somente livre, mas também responsável. Assumindo essa responsabilidade é que entende o que seja autonomia, é que se entende que essa autonomia não decresce, mas aumenta na proporção da dependência a Deus. Somente então é que se torna claro ao homem a condição em que ele é ao mesmo tempo autônomo e dependente do seu fundamento146. Conclusão De temas tão abstratos, a genialidade de Rahner anteviu conseqüências das quais hoje pagamos o preço no planeta pela destruição promovida. Mas não só. Corremos o risco de a própria vida no planeta extinguir-se por conta de uma compreensão equivocada de Deus, não concebido como Criador nosso para que habitássemos o mundo criado como co-criadores porque algumas vezes a pilhagem que desnutre a Terra, o desamor na distribuição dos bens tidos da Terra e com a espantosa capacidade criadora do homem encontram razão num Deus, que opera e funciona como existente individual ao lado de outros e que, assim, de certa forma, esteja presente como parte no interior da casa maior da totalidade do real. Este Deus de fato não existe realmente. A pessoa (teísta) que procurar um Deus deste tipo estará procurando um Deus falso. O ateísmo é também uma falsa noção de Deus. Só que o primeiro nega simplesmente essa noção falsa, ao passo que o segundo está persuadido de que ainda pode pensá-la logicamente. No fundo, ambos se equivocam. O teísmo vulgar, porque o Deus que se imagina não existe; e o ateísmo, porque Deus é a realidade mais radical, mais original e em certo sentido a mais evidente por si mesma147. Nisso, a incompreensão do que seja essa dependência de Deus faz tolher a autonomia do homem ou a interpreta de modo ganancioso a tal modo que ela surja devastadora do próprio homem que se isola de seus semelhantes e do restante da criação numa agressividade sem precedentes. 145 Cf. CFF 22. Cf. CFF 101. 147 CFF 82-83. 146 64 3 - o significado da afirmação de que o homem é o ser da transcendência Introdução Na seqüência de seu raciocínio, o teólogo alemão alerta o que de primeiro se deve dizer sobre o homem é que ele é pessoa e sujeito. O significado exato dessa afirmação só se conclui do todo da antropologia de Rahner que nos impele analisar o que as diversas antropologias - que ele chama regionais - nos ensinam, quando ressalvamos que a biologia, a genética, a sociologia, etc. aproximam-se do homem sob determinado ponto de vista e não pretendem sozinhas ser a única e total antropologia. Cada uma delas, porém, pretende dizer algo sobre o homem como todo. E, uma vez que o toma como todo, não pode querer perder qualquer afirmação que se possa fazer sobre esse todo uno. Cada uma dessas antropologias tenta explicar o homem a partir de dados particulares, mediante decompô-lo em seus elementos e em seguida reconstruí-lo novamente desde esses dados particulares148. Tornando a Desmond Morris, ele, na análise de um dado particular, revela que 80% das mães embalam seus filhos no braço esquerdo, “de modo a mantê-lo contra a metade esquerda do corpo”. Imaginou-se que isso se devia a um maior número de mulheres destras. Porém, verificou-se que 78% das mães canhotas têm o mesmo comportamento. Diz o zoólogo que a “única outra” hipótese provém do fato de que o coração fica do lado esquerdo e que o feto, acostumado ao (barulho) coração da mãe, quando o “reencontra”, o ruído familiar passa a ter um efeito calmante sobre o bebê. Vários grupos de recém-nascidos foram colocados em quartos onde se ouvia a transmissão do ruído do coração batendo ao ritmo normal de 72 pulsações por minuto. Verificou-se que choravam 60% do tempo em que não ouviam o ruído, enquanto que o choro se reduzia para 38% quando se voltava a ouvir o pulsar do coração. Os bebês que ouviam permanentemente o ruído engordavam mais, apesar de receberem a mesma quantidade de alimento porque não gastavam tanta energia chorando149. A mesma estatística norte-americana analisou 466 quadros representando nossa Senhora e o menino Jesus. Por se tratarem de obras produzidas há vários séculos sabe-se que seus autores representam não o comportamento materno, mas a visão (masculina) do comportamento materno. Contudo, o bebê está colocado à esquerda em 373 pinturas, ou seja, em 80% dos quadros. “Esses 148 149 CFF 41. Cf. D. MORRIS, op. cit. 92. 65 números contrastam com os referentes à forma como as fêmeas pegam embrulhos: 50% do lado esquerdo e 50% do lado direito”150. 3.1 – O homem é a pergunta para a qual não há resposta Ao se colocar sob análise, abrindo-se para “o horizonte ilimitado de questionamentos”, o homem já transcende a si mesmo, a todas as dimensões pensáveis de sua análise ou da autoreconstrução empírica de si. Nisso o homem se afirma como quem é mais do que a soma dos componentes analisáveis de sua realidade. Em seu CFF, Rahner diz que O homem não é a infinitude não questionada. Ele é a pergunta que se levanta perante ele, vazia, mas de forma real e inevitável, e que ele nunca pode superar nem dar resposta adequadamente151. Nesse sentido, Rahner contrasta a transcendência do homem com um sistema finito de elementos, que não pode se situar diante de si mesmo como um todo. É o exemplo do sistema respiratório que adquire uma relação com a operação respirar, mas não possui relação com o seu próprio ponto de partida, ou seja, os meus pulmões não percebem o sistema respiratório como um todo. Meus pulmões não se interrogam sobre si mesmos, os meus pulmões não são sujeito152. Por isso é útil voltar ao exemplo do bebê que aparentemente se acalma ao ouvir o pulsar de um coração. Alguém pode pensar como impertinente, mas não creio porque ilustra como o homem, diante desse comportamento “irrelevante” enfileira questões em busca de uma resposta que lhe satisfaça os padrões e exigências científicas. Ao cabo, se rende, ao concluir que não são apenas bebês que se acalmam diante do ritmo do coração. Sempre que nos sentimos inseguros recorremos ao reconfortante ritmo do coração como disfarce. Não é por acaso que a música folclórica em grande parte tem ritmo sincopado. Não é por acaso que os adolescentes de então chamaram rock (embalar) e beat (bater como o do coração) a sua música. Sempre que se vê um conferencista balançar-se, meça o ritmo do seu desconforto para ver se o mal estar causado pela audiência não o leva a executar os movimentos mais reconfortantes que o corpo pode proporcionar em tal circunstância: o familiar batimento uterino153. 150 Cf. D. MORRIS, ibid., 92-93. CFF 46. Sobre este tema, ver Primeira Parte 1.1.1. 152 CFF 44. 153 Cf. D. MORRIS, op. cit. 93-94. 151 66 3.2 – O homem é sujeito e pessoa Afirmar que o homem é sujeito e pessoa é também dizer que o homem é irredutível, que não se pode produzir a partir de elementos disponíveis. A principal conseqüência desse raciocínio é que o homem, então, é o ser que sempre está entregue à responsabilidade por si mesmo e pode, por isso, questionar tudo (diferentemente do pulmão que se insere em um sistema finito). Quanto à extensão da palavra “tudo”, significa dizer que tudo pode se transformar em nova pergunta para o homem que se coloca e se recoloca infinitamente em questão a cada resposta sempre parcialmente obtida. Ao experimentar a sua finitude radicalmente, o homem se percebe como um ser transcendente, como espírito. O horizonte infinito do questionar humano é experimentado como horizonte que sempre se retira para mais longe quanto mais respostas o homem é capaz de dar, do bebê ao conferencista nervoso. Por isso, certa feita, numa entrevista a um jornalista que lhe perguntou o que é o homem, Rahner fulminantemente respondeu: o homem é a pergunta para a qual não há resposta. Nesse sentido, ele assim confirma no CFF: A infinitude a que se sente exposto o homem perpassará por seu agir do dia-a-dia, porque ele permanece sempre a caminho. Toda meta que ele possa prefixar-se vem a ser sempre de novo relativizada, será sempre provisoriedade e etapa. Toda resposta sempre volta a ser o começo de uma nova pergunta154. 3.3 – O homem não pode tornar “possível o impossível” Para Rahner, o cristianismo chama a atenção do homem para a realidade de que a sua projeção para diante é e será sempre, também, uma volta do homem para dentro de si mesmo, para a tomada de consciência de sua condição de ser finito e criado. Diante disso, alerta que torna-se arriscado declarar que alguma coisa é impossível: tal declaração foi freqüentemente, na história, o começo de um esforço vitorioso para tornar possível – o impossível. [...] Contudo, o homem não é – e nunca será – o Onipotente, que cria do nada; ele é apenas o ser capaz de “criar” com elementos que encontra em si mesmo, e com as realidades preestabelecidas do seu mundo-ambiente155. Conclusão Todo empenho até aqui vem no sentido da compreensão do que seja um ser pessoal como alguém cuja liberdade somente pode ser exercitada por si mesmo. É essa experiência que possibilita a adoção do conceito de pessoa ao ser espiritual que, por sua liberdade, dispõe de si. 154 155 CFF 46. RAHNER. A caminho do “homem novo”: a fé cristã e ideologias terrenas do futuro. Petrópolis: Vozes, 1964, 7-8. 67 Daí a experiência de transcendência ser a experiência da liberdade, da vontade e também a do amor. A transcendência é constitutiva do sujeito que, dotado da faculdade de conhecer e de pensar, é livre. Esse sujeito vai confrontar a sua liberdade com a de outro, também sujeito de transcendência. Essa é a condição de o sujeito estar presente a si mesmo e também, originariamente, estar presente a outro sujeito. Para um sujeito que está presente a si mesmo e tem consciência de si, essa liberdade que afirma o outro significa amá-lo156. 156 CFF 85. 68 Capítulo III - Criador e criatura: o encontro de duas liberdades Para o cristão, Deus é e permanece do início ao fim o indisponível, o mistério absoluto e incompreensível. Deus é também quem quis, em sua liberdade absoluta, relacionar-se pessoalmente com o homem, dirigindo-se a ele, chamando-o, convidando-o a ser parceiro de Sua própria realidade viva. Assim, é por meio da aceitação da liberdade pelo homem, que Deus lhe possibilita ser Seu parceiro, num encontro em que o homem constitui-se como tal e unindo-se, solidariamente, a seu semelhante, partilha do mesmo destino final, de in-condicionada liberdade. Dizendo isso é hora de afirmarmos que toda e qualquer questão que se levante sobre a palavra “pessoa” e a sua inerente personalidade está, na verdade, referida à sua mais profunda característica, ou seja, a liberdade. Isto porque o significado profundo da palavra pessoa e o de liberdade se fundem, não se podendo separá-los sob pena de um desnaturar o outro. Tudo o que até aqui se disse da trindade das pessoas e do ser pessoal que o homem é, passará, doravante, a ser visto como intrinsecamente relacionado à liberdade que em Um é absoluta, como Ele é absoluto e que, no outro, o humano, é dom. É dom de um amor infinito que Se quis expressar, comunicando a Si mesmo, comunicando a sua própria, perfeita e libérrima realidade, por seu Filho e seu Espírito, à sua criatura. Esta é a autocomunicação de Deus que, por ser em si Amor, é a mais completa expressão da liberdade de Deus Pai, o que “significa que Deus se torna ele mesmo em sua realidade mais própria como que um constitutivo interno do homem”157, o que Rahner espetacularmente assim consagrou: Mas eis que agora atingimos o núcleo mais íntimo da compreensão cristã da existência com a afirmação de que o homem é evento de absoluta, livre, gratuita e indulgente autocomunicação de Deus158. 1 - O significado da liberdade absoluta do Criador Introdução Seguir Rahner e dar significado à liberdade absoluta de Deus exige, como mínimo, que nos detenhamos diante da “síntese da matéria relevante da Revelação”. Para ele a “história da revelação é essencialmente a história da vinda do homem à sua total herança como homem e, por conseguinte, 157 158 CFF 145. CFF 145. 69 é a história de sua liberdade”159. Desse modo, nosso autor expõe a liberdade como dado relevante da revelação e a supõe “comunicada” ao homem, num gesto permanente do Criador, para que percebamos a significância da liberdade na aceitação do mistério absoluto a que chamamos Deus. Nesse ponto tomamos a sugestão do próprio Rahner e trazemos o excerto de uma oração, síntese de todos os parágrafos acima: Deus Pai, Vós espalhais a Vossa graça segundo a Vossa santa liberdade! Exerceis a Vossa misericórdia com quem quereis, onde e quando Vos agrada. É por efeito da Vossa bondade que chamais os homens a participar da Vossa própria vida. [...] Para que se veja claramente que a salvação vem de Vós e é uma graça livre, é necessário que o homem Vos encontre precisamente onde decidistes estar presente para ele. Para cada homem, o caminho da salvação [...] passa por um desvio: [...] o desvio do Vosso Filho que se tornou um de nós. [...] Foi por ele que a Vossa graça chegou até nós. O Vosso Espírito Santo sopra onde quer, sem que eu lhe possa impor a minha vontade; o lugar da sua presença e ação não depende da vontade do homem. É necessário que eles se dirijam ao lugar preciso onde Ele decidiu estar presente para eles pela sua graça160. 1.1 – A natureza da liberdade é ser livre De novo e sempre o teólogo alemão se vale do método transcendental para falar de Deus em sua relação com o homem. De novo recorda que Deus é distinto dos demais objetos individuais que nos são dados a posteriori e para os quais temos alguma liberdade neutra de escolha, com isso querendo ressaltar a natureza da liberdade, que é outra. As escolhas que o ser humano faz no exercício de sua liberdade ele as faz porque é da natureza da liberdade ser livre e, portanto, o homem não a exerce movido por qualquer que seja o objeto da sua liberdade, mesmo que, no caso, fosse possível elencar Deus como mais um na fila de escolhas. Deus é, antes, aquele que „raia‟ como numa aurora para o homem, antes de tudo nesse absoluto ato de liberdade em que somente a natureza da própria liberdade chega à sua completa realização. Assim, no sentido teológico liberdade é a que deriva de Deus e é dirigida para Deus. [...] Em outras palavras, Deus tem de ser encontrado não de maneira reflexa, em cada ato de liberdade, mas como seu alicerce e seu termo último161. 1.2 – O mistério da liberdade que Deus nos doa Para Rahner, é assim que “desejamos” Deus. É assim que experimentamos o que significa Deus realmente, ou seja, em todo e cada ato de liberdade finita, já que “Deus, que está para além do 159 RAHNER. Teologia da Liberdade. Caxias do Sul: Paulinas, 1970, 83-85. As próximas referências a este artigo serão abreviadas como TDL. 160 RAHNER. Apelos ao Deus do silêncio. Dez meditações, Lisboa: Paulistas, 1968, 101-102. 161 TDL 87. 70 que alcança a nossa inteligência e o nosso coração, permanece essencialmente mistério da transcendência do homem”162. As implicações de a liberdade permanecer mistério da transcendência que está sempre voltado ao horizonte, como diz Rahner, é o que dá ao homem a sua qualidade específica de sujeito – que é transcendência. Se liberdade é, então, a liberdade de aceitar o mistério absoluto de Deus, aí está dado também que a liberdade é liberdade também de rejeitar Deus, como já alertado. 1.3 – O mistério da liberdade transcendental como capacidade para algo total Do ponto de vista cristão, a liberdade é constitutivo permanente da natureza humana, e é através dela que o homem pode se determinar, dispondo de si não somente como um todo, mas de uma vez por todas. Para a revelação cristã, a natureza da liberdade surge da afirmação de que ela é o fundamento da salvação ou condenação absoluta. O homem, “quando deve responder e ser capaz de responder como alguém livre, por si e por toda a sua vida, diante do julgamento de Deus, que não julga a meia superfície da vida, mas que olha o íntimo da pessoa sobre quem ele livremente dispõe: olha o coração”163. Assim, insiste-se, a liberdade não é qualidade de um ato executado, ela é a “marca” transcendental do próprio ser humano, é a capacidade para alguma coisa total. Conclusão Nesse sentido Rahner diz que o homem, que de algum modo se compreende a si mesmo, se rende ao “misterioso julgamento de Deus, que se realiza secretamente no ato irrefletido de sua liberdade”. Dito isto e posto este ponto, Rahner nos abandona diante da afirmação de que “Liberdade é mistério”164. 2 - O significado da liberdade profunda de Jesus de Nazaré Introdução Na história da auto-experiência da liberdade, torna-se gradualmente evidente ao cristão, a maneira como Deus se doa a essa liberdade. 162 TDL 87-88. TDL 96-97. 164 TDL 113. 163 71 Deus, o absoluto, exercita a sua absoluta liberdade se doando. O cristão é o homem que não evita o encontro com Deus. Por isso, deste encontro resta a confiança incondicional a Deus, na mesma aventura da liberdade que viveu Jesus Cristo, ciente de que a liberdade que lhe é oferecida como dom é, também, limitada, finita, contingente tal qual o homem. Essa história da experiência da liberdade é a que nós chamamos a história da salvação e da revelação que é a experiência realizada em Jesus Cristo165. 2.1 – A liberdade no Deus-homem A primeira questão a ser aqui esclarecida é no que respeita a liberdade que se diz profunda em Jesus de Nazaré. A “diferenciação” que marca a liberdade do Nazareno da nossa está na sua radical aceitação do dom, dom que não custa recordar jorra a todos os seres humanos na mais ampla e irrestrita manifestação do extravasamento do amor de Deus Pai. Dito isso, se observarmos o evento Jesus e retomarmos a proporção divina que aumenta a nossa autonomia na mesma razão em que cresce a nossa radical dependência de Deus, passamos a perceber porque Jesus é verdade, caminho e vida. É hoje, ainda e sempre porque assim ele foi no enfrentamento de sua verdadeira finitude e mudanidade, participando na “dimensão do espírito e da liberdade, na história que atravessa a porta estreita da morte”166. 2.2 – A liberdade como evento do eterno O homem que responde por si como um sujeito livre, entrega a si mesmo o objeto do ato de sua liberdade, que é uno em sua origem, e afeta toda sua existência. Por isso, um ato livre não pode ser (re)editado, reformado ou anulado à moda de um documento que se assine. Por isso, um ato livre tem alto grau de seriedade posto que “dura por ser eterno”, o que é radicalmente diverso do que a poesia expressou como um ato “que seja infinito enquanto dure”167. Por isso, podemos dizer que a eternidade da pessoa humana somente se pode entender como liberdade autêntica e definitiva que maturou para além do tempo. Toda outra coisa só pode ser seguida de mais tempo e não eternidade que não representa o contrário do tempo, mas antes a consumação do tempo da liberdade168. 165 Cf. CFF 120. Cf. CFF 237. 167 VINÍCIUS DE MORAES, Soneto do amor eterno. 168 CFF 55. 166 72 2.3 – A auto-realização da pessoa livre diante de Deus se chama Salvação Quando não se compreende a salvação no sujeito e na própria natureza da liberdade, diz o teólogo alemão que a salvação parece estranha e cheira mitologia. Isso porque o conceito teológico de salvação não se refere à salvação futura que se precipita inesperadamente sobre a pessoa e que a ela se atribua com base em um juízo moral, como tribunais de justiça onde se prolatam sentenças de condenação ou absolvição sobre um ato da pessoa que age na liberdade e com a responsabilidade humanamente convencionadas. Pelo contrário, a salvação refere-se ao caráter de definitividade da auto-realização da pessoa livre diante de Deus. Daqui se parte para o entendimento do que teologicamente significa salvação, que é algo lentamente constituído pela soma de todos os atos livres de uma pessoa e que, no seu conjunto, aponte (ou não), ao horizonte ilimitado. Conclusão Numa página de tremenda eloqüência, Rahner assevera que (em Jesus Cristo) Deus, na sua mais íntima divindade, entregou-se à liberdade que, por sua vez se entregou ao incontrolável mistério de Deus. Deus não é apenas o contexto remoto no qual, como algo sempre mais afastado, o homem projeta a sua livre autocompreensão. Ao contrário, Deus tornou-se o reino e o objeto desse exercício da liberdade em imediateidade absoluta169. 3 - O significado da liberdade contingente do homem Introdução Todo caráter criativo que se deu até aqui à natureza da liberdade, não retira da liberdade do homem a característica primeira de ser uma liberdade “criada”. Isto porque a liberdade humana que é dirigida para Deus e dele procede é executada na mais alta modalidade concebível, porque tem suporte na autocomunicação de Deus, num amor pessoal que abrange o próprio Deus. Daí Rahner afirmar que “o contexto e o objeto do amor, livremente conferidos, tornam-se idênticos”170. 169 170 CFF 120. CFF 121. 73 3.1 – A liberdade como a faculdade da subjetividade Rahner alerta que é um equívoco pensar a liberdade como a faculdade de fazer isto e depois fazer aquilo de modo a que a segunda alternativa seja o oposto, como que a desmanchar a primeira, de maneira tal que – se tal processo continuasse em tempo físico não interrompido por si mesmo – sua realização pudesse somente ser entendida como interrupção extrínseca dessa série de atos singulares, assim chamados livres, uma série que por si se estendesse ao infinito e apenas seria interrompida pelo fato de o campo para essa liberdade ser-lhe retirada extrinsecamente por Deus na morte. A liberdade não é a capacidade de continuar eternamente em um processo novo de dispor e redispor. Ao contrário, a liberdade comporta em si uma necessidade que não se encontra no que é fisicamente necessário, porque ela é a faculdade da subjetividade, ou seja, do sujeito que não é um ponto acidental de intersecção em uma cadeia de causas que se estenda indefinidamente, como já apontamos. 3.2 – A liberdade do sujeito constrói o que somos e o que nos tornamos Afirmamos com Rahner que o homem, por sua transcendência, se encontra em abertura total dirigida a Deus e nisso está entregue a si quando conhece e quando age. E é assim que o homem se percebe responsável e livre. Decorre disso que a liberdade não é a capacidade de fazer o que sempre possa ser revisado, mas é a capacidade de fazer algo de final e definitivo. É a faculdade de um sujeito que por essa liberdade deve atingir sua identidade final e irrevogável. Nesse sentido, e a partir daí, a liberdade é a faculdade do eterno, como dito desde o primeiro parágrafo na Introdução deste trabalho. Se quisermos saber, agora, o que é definitividade, devemos fazer a experiência daquela liberdade transcendental que é realmente eterna, porque estabelece precisamente o definitivo, que por sua natureza não pode nem quer ser diferente. E onde quer que não aja liberdade, sempre está dado apenas algo que por sua própria natureza continua a gerar-se, a transformar-se em outra coisa e a reduzir-se a algo de diverso em seus antecedentes e conseqüentes. A liberdade é o evento do eterno, evento a que, é claro, não assistimos como espectadores externos, pois somos nós próprios que estamos a acontecer na liberdade, mas sofrendo a multiplicidade do temporal, realizamos este evento da liberdade, constituindo a eternidade que nós próprios somos e nos tornamos171. 171 CFF 120-121. 74 Assim a liberdade implica o confronto com seu próprio horizonte e por ser mediada de maneira histórica é também liberdade com referência a um objeto categorial, por isso é exercida na mediação do mundo do outro e, sobretudo, através da pessoa do outro, mesmo quando ela pretende ser exercida com referência a Deus (1 Jo 4, 20)172. 3.3 – A liberdade, a responsabilidade e a culpa Desse modo, liberdade não é uma faculdade neutra que a pessoa possa ter consigo como um colar, como algo distinto de si, mas, ao contrário, a liberdade é a propriedade básica do que, no tempo e no mundo, experimenta-se na consciência originária (autopossessão), como realidade pela qual o sujeito não apenas é responsável, como também deve ser responsabilizado173. A pessoa, a partir de sua experiência transcendental, sabe que sua liberdade é una, que se objetiva em atos livres no mundo e na história e que podem redundar em uma decisão radicalmente má. Há momentos na vida em que toda pessoa se percebe pecador. Em meio à decepção de se admitir pecador, deve, também, admitir que não é o único pecador em toda a humanidade, não é a “palmatória” exclusiva da espécie humana174. Assim, a pessoa que fez essa experiência de culpa subjetiva, deve pensar e não cair na armadilha de que somente ela deu causa a algo ruim ao mundo, o que seria extremamente grave porque as conseqüências de nossos atos livres não podemos desfazer, como se fosse possível rebobinar o vídeo de nossas vidas, recomeçando ab initio. A vida nos ensina que cada ato livre nosso é eterno. Podemos remediar seus efeitos, apagá-los, nunca. As marcas, nós as carregamos, aliás, como Jesus Cristo mostrou e Tomé constatou175. Rahner conclui dessa análise que o homem não é e nem pode ser uma ilha, cuja natureza já não esteja co-determinada pela culpa de outros. E isso a um tal ponto que mesmo uma boa ação da liberdade de uma pessoa, como, por exemplo, a doação de uma casa para abrigar um asilo, pode ter surgido da manifestação de seu contrário, podendo ter sido realizada essa doação por interesses tributários ou para promoção pessoal com fins eleitoreiros menores numa cadeia infinita de possibilidades, isso porque a concretude da realização do ato de liberdade é também co-determinada pela culpa. 172 CFF 123-4. CFF 53. 174 CFF 135. 175 Jo 20, 27-28. Em seguida, disse a Tomé: aproxima o teu dedo aqui e olha as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado, deixa de ser incrédulo e torna-te um homem de fé. “Tomé lhe respondeu”: Meu Senhor e meu Deus! 173 75 Essa co-determinação da liberdade humana pela culpa é, por sua vez, de toda sociedade, e se arrasta numa corrente que perpassa o tempo, não só avançando rumo ao futuro, mas inserida, também, desde a origem da história, o que implica em que reconheçamos um “pecado original”176. Rahner recorda que, se na essência, pecado é o exercício da liberdade transcendental que diz “não” a Deus, então ele é possível como o primeiro ato do homem como homem, como um ser transcendente ou, do contrário, sequer podemos chamá-lo homem. Este “não” a Deus parte da liberdade humana não como um ato na seqüência de outros, por isso não há como se conceber o homem inocente como se tivesse vivido durante longo período de tempo num paraíso histórico, nem de rejeitar como puro mito o que realmente se quer dizer no livro do Gênesis177. Por isso, jamais saberemos se o que é objetivamente culposo em nossa ação é objetivação da liberdade em um “não” contra Deus, porque podemos estar diante de uma situação imposta, que se apresente como uma necessidade, que manipula a liberdade, o que pode fugir à nossa observação, mas que pode ter sido em essência um “sim” dito a Deus. Por isso, nunca saberemos se somos ou não pecadores. Mas temos certeza de que podemos ser, até quando a vida cotidiana parece estar rodeada de aplausos. Então e nisso mesmo, a sabedoria de “não julgueis!” (Rm 14, 13). Conclusão Como a possibilidade do pecado acompanha a totalidade da vida e da liberdade contingente do homem, a ameaça que o sujeito livre representa para si mesmo não é característica de uma fase da vida. É característica permanente e jamais superável178, que deve servir não como desestímulo, mas, ao contrário, deve permitir recordar, em cada novo amanhecer que este homem cristão, que experimenta o esforço da aspiração moral, está sempre consciente de ser aquele que falha, aquele que fica atrás com referência à sua própria obrigação, à sua própria responsabilidade e inclusive às suas próprias possibilidades reais. E, em conseqüência, ele é aquele que se sabe sempre envolvido pelo amor de Deus, e ao mesmo tempo tem sempre consciência de ser pecador. E neste sentido é uma vez mais aquele que se realiza através da história da sua existência. Sai sempre de sua própria falha e se volta para o que lhe está adiante. Na incompreensibilidade de sua liberdade cheia de trevas e escuridão, sabe-se continuamente envolvido pela graça de Deus e que sempre deve refugiarse nesta graça. É sempre aquele que não faz cálculos perante Deus, mas, pelo contrário, entrega a Deus e à sua graça todo cálculo, todo esforço moral, toda provação moral que se lhe imponha, uma vez mais sem a pretensão de fazer contas exatas perante Deus. 176 CFF 137. CFF 144. 178 CFF 131. 177 76 Crê, espera ser santificado pelo Espírito Santo de Deus, e reza, como o diz o Concílio de Cartago, não só por espírito de humildade, mas em toda verdade: “Perdoai-nos as nossas ofensas”179. 179 CFF 475, cf. Concílio de Cartago, 8, in DH 230, 87: [..] Quem afirmar que as palavras da oração do Senhor, quando dizemos “Perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 6, 12), são pronunciadas pelos santos no sentido da humildade, não da verdade, seja anátema. Pois quem poderia suportar um orante que mente, não aos homens, mas a Deus mesmo, quando com os lábios diz que quer ser perdoado, mas, com o coração, que não tem dívidas a lhe serem perdoadas? 77 Segunda Parte: A liberdade absoluta que revela ao homem o Pai, por seu Filho e nosso Redentor 78 Se a Primeira Parte teve por meta dar significado à Teologia da Criação em Rahner, a segunda vai entrelaçando-a a outros temas da dogmática porque não podemos afastar a relevância da Criação do conjunto da fé cristã. E o conjunto a que chamamos de fé cristã está centrado no evento Jesus Cristo, que merece atenção posto que, tomando a si as palavras do Apóstolo Paulo, Basílio ensina e resume a importância que Rahner vai atribuir ao “conjunto da fé no Cristo”. Todos vós, que fostes batizados em Cristo, é na sua morte que fostes batizados (Rm 6,3). Ora, nomear a Cristo é confessar a todos, pois designa a Deus que unge, o Filho que foi ungido, e a unção que é o Espírito. [...] Efetivamente, aquele que redimiu da corrupção a nossa vida, outorgou-nos uma força renovadora, cuja causa inefável encontra-se oculta no mistério, e que traz às almas sublime salvação180. Por isso, insiste-se que na Criação se perceba o “estado criatural” como o “relacionamento permanente” entre Deus e o homem, sem reduzi-la à mera origem da existência – o que, por tantas vezes, alimenta, de um lado, a inútil querela entre as teorias evolucionista e criacionista, e, de outro, deforma a Criação transformando-a na versão cristã de mais uma cosmogonia. Iluminada por este inusitado relacionamento que une o Criador à sua criatura, a doutrina da criação é o primeiro elemento a ser considerado na teologia formal e fundamental e se toma por pressuposto da doutrina dogmática de Deus (De Deo uno et trino). Essa pressuposição em Rahner se reflete na teologia da revelação, pois que aponta Deus como quem se comunica a nós em sua pessoal e absoluta revelação de si. Este caminho, corretamente percorrido, desemboca na idéia de que o “absoluto”, o “econômico” e a doutrina da trindade devem ter a mesma significância, não se devendo, portanto, afastar a doutrina dogmática De Deo uno da De Deo trino. Com isso, a Segunda Parte é a oportunidade de realçar a doutrina da graça e da ordem sobrenatural porque se a doutrina da criação se ocupa do relacionamento entre o mundo e Deus, aí já está dada a distinção que não afasta, mas relaciona propriamente natureza e graça, aqui entendida como graça do Verbum incarnatum na qualidade de Logos, ou como na eloqüência com que Rahner busca afastar a “timidez antitrinitária”: graça Verbi incarnandi181. Porque partimos de que a doutrina da criação não se encerra na origem da natureza no mundo e no homem é que esta natureza criada deve ser vista como precondição à exteriorização do livre agir do Deus trino. Dito nas palavras de Rahner, a natureza deve ser vista em conjunto com o 180 181 TES 120-1. ODT 287. 79 “existencial sobrenatural”182 e com a potentia oboedientialis183 para graça como autocomunicação de Deus. Aqui podemos avançar e perceber a doutrina da criação como também pressuposta da “aliança”, já que a criação é um aspecto do poder de Deus de se dar livremente na graça e na encarnação a um outro aspecto de si mesmo. Desse ponto de vista é possível à doutrina da criação alcançar o significado da doutrina bíblica da criação no Logos divino, sem diluí-lo a uma mera apropriação acidental184. Para abraçar o mesmo tema sobre novo ângulo, a Segunda Parte se divide em três Capítulos que avaliam a concepção rahneriana de Revelação, de Redenção e de Salvação. Assim, os temas que se costuram nesta Segunda Parte vão marcar ora o caráter tanto essencial quanto existencial da Revelação, ora o seu caráter tanto transcendental quanto histórico como condições para que o conjunto da Segunda Parte se aproxime do Evento Jesus Cristo por meio da unidade necessária entre teologia e antropologia transcendental nas cristologias que serão, por conseqüência, analisadas. A Segunda Parte, como é a proposta de todo este trabalho, retorna sempre à estrutura do pensamento teológico de Rahner. Em vista da diversidade de temas tão centrais como a fé, a encarnação e a ressurreição é importante não deixar escondido o seu “único” objetivo: trazer ao debate da “razão” a ousadia de apontar “o amor de Cristo que nos uniu”. 182 Cf. CFF 158 – Para Rahner, a tese que afirma que o homem como sujeito é evento da autocomunicação de Deus é afirmação que diz respeito a todos os homens, afirmação que expressa um existencial de toda e cada pessoa humana. Dessa maneira entende-se o conceito de sobrenatural como o que supera essencialmente o “natural”. 183 Cf. CFF 260-261 – Para Rahner, “potentia oboedientialis” significa a capacidade de a pessoa humana receber e responder à autocomunicação de Deus na liberdade e no amor. Essa expressão toma corpo na união hipostática, que implica entender a receptividade da natureza humana por parte da pessoa da Palavra de Deus e em que consiste tal receptividade; implica entender que só uma realidade pessoal-espiritual é assumível por Deus, implica saber que essa “potentia oboedientialis” não é uma capacidade ao lado de outras do ser humano, mas que objetivamente se identifica com a essência do homem. 184 Cf. RAHNER. Creation, CSM 325-328. 80 Capítulo I – Concepção de Revelação Partimos da intelecção do conceito de revelação divina que não se identifica nem com a criação do mundo, nem com o mundo, mas que é “dita por Deus ao mundo”, de tal modo que é por meio da Palavra – que não é o mundo, mas que tem lugar no mundo –, que Deus se revela. Assim é importante a Palavra. Importante, por ser insubstituível, uma vez que nada que pertença à realidade intra-mundana (do criado ou do criável) pode substituí-la como meio da auto-abertura de Deus transcendente, em sua relação com o homem185. Por outro lado, continuar pensando com Rahner a concepção de revelação exige a retomada da preocupação do teólogo quanto à distinção entre “revelação natural” e a “revelação verdadeira” de Deus, ou revelação propriamente dita186, o que ele sintetiza da seguinte forma: Quando Deus cria o outro diverso dele e, criando-o, o cria como finito, quando Deus cria o espírito e, confrontando-o com o seu próprio fundamento, o conhece como o totalmente outro, ou seja, como o mistério santo e inefável, então, com isso já está dada certa manifestação de Deus como o mistério infinito que se costuma chamar de revelação natural de Deus, que deixa Deus continuar desconhecido enquanto só é conhecido por analogia como mistério, [...] assim como também por referência mediada e não por proximidade e acesso direto a Deus que se dá a conhecer em si mesmo187. A bela “questão” aí levantada sobre a “revelação natural” apresenta a existência de Deus como uma questão, e não como resposta que identifica na essência do homem a capacidade de receber e responder à autocomunicação, ou seja, tratamos aqui da potentia oboedientialis. Assim é que da relação transcendental entre a criatura dotada de espírito e Deus, o homem infere que Deus não quer ser a infinitude silenciosa fechada em si e, portanto, distante de nossa finitude, mas a radical proximidade em sua autocomunicação. Com isso, Rahner expressa o conceito de sobrenatural como um existencial que supera o essencialmente natural em cada um e em todos os homens. 185 Cf. TED 129. O tema foi inicialmente abordado na Primeira Parte, Capítulo 2. 187 CFF 207-8. 186 81 1 – O caráter tanto transcendental quanto histórico da Revelação Introdução A seguir tentaremos observar como uma moeda pode ser uma embora apresentando um verso e um reverso absolutamente distintos. Assim é a que a revelação de Deus se nos apresenta sob duas faces: uma transcendental e outra histórica. São faces distintas e interdependentes, embora ambas sejam necessárias à compreensão da unicidade da revelação porque como reafirma Rahner, “foi assim que, de fato, Deus se revelou”188 e, a partir daí, sabemos que a revelação mediante a autocomunicação de Deus em si mesmo é possível189. 1.1 – O limite ao ilimitado questionar do homem: a ilimitada graça da autocomunicação de Deus Ao partimos da premissa da Palavra como insubstituível à revelação pessoal e histórica de Deus, devemos também perceber que ela atinge em primeiro lugar a singularidade espiritual do homem. Isto significa que, por sua transcendência, Deus nos concede a possibilidade de ouvi-lo e de acolhê-lo na fé, esperança e caridade. É por meio desse carinhoso modo de agir que Deus não “rebaixa” o homem à mera criatura finita. Ao contrário, é assim que, dirigindo-se a nós, a sua Palavra toca o homem como automanifestação do próprio Deus. Esta relação - entre Deus que se achega e o homem - é reveladora na medida em que o que Deus manifesta é a si próprio. E como esta manifestação é Deus, ela é a marca de uma doação que ocorre em absoluta e indulgente proximidade. A primeira conseqüência que tiramos desta afirmação é que ela, por si mesma, nega a idéia de um deus que seja ora a absoluta distância que rechaça o homem, ora o juízo que nos acusa – embora advertisse Rahner, pudesse ser ambos. Contudo, Deus é aquele indulgente, sempre pronto para perdoar, ou na boa expressão de Rahner, é quem, em sua indulgente proximidade se entrega ao homem como a plenitude da absoluta 188 189 DH 3004. CFF 208. 82 ilimitação transcendental, como veremos lentamente por este capítulo, que quer mostrar a imagem de Deus invisível190. Esse “aconchegar” de Deus que quer e se revela à sua criatura em palavras, só se compreende por Sua liberdade absoluta que, por si e em si mesma permite-lhe dizer-se ao homem. [...] parece relativizar-se a si mesmo, pois só o relativo se relaciona; parece sair de si, despojar-se, esvaziar-se de si, desapropriar-se e deformar-se nessa relação em que o imutável e eterno, o Logos, se faz carne191. É nesse passo que o homem, existencialmente bombardeado por sua ilimitada capacidade de questionar, percebe que alcança um “limite”. Este limite de seu ilimitado questionar é acatado pelo homem como o próprio “sentido” de sua vida. Esta afirmação que beira a contradição somente é possível porque, em seu horizonte de “ser espiritual”, o vazio de respostas àquela pergunta infinita é “preenchido” pela inefável autocomunicação divina com a confiança da fé em Deus, que responde a pergunta infinita com a resposta infinita que é ele mesmo. Daí, Rahner conclui que sempre, e em todo lugar, a história do homem é também história da Revelação de Deus como resposta àquela aterrorizante pergunta infinita que, desse modo, é ilimitadamente revelada ao homem, pelo próprio Deus, como sua resposta absoluta192. A isto, nós cristãos chamamos graça santificante e justificante, que se constitui na elevação que “diviniza” o homem, na medida em que Deus não concede ao homem nada distinto de si, mas é a si mesmo que Ele se dá, num ato que ao mesmo tempo sustente a doação divina e também a sua recepção, pelo homem. No tratado da graça santificante, mas sobretudo no tratado da escatologia quando se fala da realização plena e total do homem na visão de Deus, a mensagem cristã diz que o homem é o evento da absoluta e indulgente autocomunicação de Deus193. Essa graça, ofertada por Deus em todos os tempos a todos os homens e de maneira absoluta em Cristo, é ativa, é permanente, enquanto oferta e, segundo esperamos, um dia será “aceita” pela maioria dos homens no resultado final do ato total de liberdade de suas vidas194. Diante disso, Rahner aguçadamente crítico deixa uma questão quase como uma missão. 190 Col 1, 15. VÁZQUES MORO. A configuração do cristianismo. 370. 192 Ver Primeira Parte, Capítulo 2.3.1. 193 CFF 147. 194 CFF 208. 191 83 O tratado De gratia é tão intemporal e a-histórico, que dá a impressão de que tudo o que nele se diz vale sempre e em todo tempo. Por isto, mal se chega a apontar, brevemente, que também os justos do Antigo Testamento possuíram a graça de Cristo. [...] Isto é exato. Contudo, será que a única coisa que se pode dizer a respeito das diversas maneiras de ser dada a graça, é que a graça de Cristo não era dada antes dele com tanta “abundância”? Enfocando-se o problema a partir de uma perspectiva teológico-bíblica, não será isto demasiado pouco, se se pensa em Abraão, o pai dos crentes, [...] e não será, por outro lado, demasiado, se se leva em conta o que se diz em Jo 7, 39195 e em vários outros lugares? Porque antes de Cristo se pôde ter a graça de Cristo e não a visão beatífica como (efeito da) graça de Cristo. Onde encontrar no tratado De gratia uma investigação sobre graça e tempo (história)196? 1.2 – As historicidades da Revelação: graça de Deus e ação apostólica do homem Dissemos que a revelação de Deus tem uma história. Vimos que esta história não parte de baixo e não se conta a partir do homem como numa metafísica que defina a essência divina, mas apenas por Deus em si que, por sua liberdade absoluta, num Evento de sua livre e soberana onipotência, responde o que o homem não pode esclarecer197. A natureza desta decisão de Deus é essencialmente histórica em dois sentidos. Primeiro, no sentido da historicidade divina, que significa a decisão de Deus, livre e pessoal, como um momento no diálogo com o ser humano. Assim, tal Revelação é sempre um evento livre, não porque o homem em si é um ato da liberdade de Deus, mas porque a Palavra de Deus e seu agir salvífico são livres198. A Palavra e o agir de Deus são livres no sentido de que são dirigidos ao homem em sua existência e, por isso, são essencialmente Evento e História e não algo, uma idéia. [...] O que ocorre na história da salvação não é o resultado natural de uma lei idealmente imutável, mas o livre, o incalculável, o sempre novo Evento do agir de Deus. Nesse sentido a palavra e a ação de Deus tomam forma em um diálogo histórico e temporal199; Segundo, no sentido da historicidade humana onde se dá a real história da Revelação, o que significa dizer que Deus não estabeleceu uma e mesma coisa de uma vez por todas e para sempre, mas o que ele disse, e fez, foi dito, e feito, em locais definidos no tempo e no espaço de modo que se o tema presente é a revelação de Deus que se dá no seio da história humana, assim também no seio do cristianismo vivido faz quase dois milênios, parece importante analisar a existência do 195 Jo 7, 39: Ele designava assim o Espírito que deviam receber os que creriam nele: com efeito, ainda não havia Espírito, porque Jesus ainda não fora glorificado. 196 TED 125. 197 TNT 86 ss. 198 TNT 87. 199 TNT 87. 84 homem, segundo a visão cristã de um mundo plural. A tese fundamental de Rahner é que a redenção e a criação não se devem considerar como realidades justapostas ou coincidentes, mas como realidades que se entrelaçam. Portanto, assim ele enuncia a sua tese: A graça divina, que é fruto da redenção, realmente penetra o mundo para o curar e santificar; incorpora o mundo, considerado sob o aspecto natural que permanece, ao mistério de Cristo; e este processo de incorporação do mundo à vida de Deus por obra da graça requer, por vontade de Deus, a cooperação ativa do homem e, conseqüentemente, o que chamamos de ação apostólica do leigo200. 1.3 – A utopia intra-mundana e a escatologia cristã: unidade e diversidade Para Rahner, o cristão é alguém a quem foi confiada a tarefa religiosa de aceitação serena da existência humana em um mundo plural, no mundo da profissão, da arte, da ciência, da política etc. O cristão sabe que o homem não pode integrar a sua existência em um sistema que ele controle e domine se real e efetivamente respeita a sua frágil criaturidade. Por outro lado, o pluralismo da realidade, que tem natureza “distinta” da de Deus, não é um vazio por detrás do qual a realidade – Deus – estaria, de sorte que tudo pareceria vazio ou existiria somente o único deus absoluto. Se o cristão confessa na fé que Deus é Deus de tal maneira que faz existir o outro, que é “diverso” dele na sua pluralidade incalculável, então cristão é o que se entrega tranqüilamente a este genuíno pluralismo da existência humana201. Por expor-se a uma realidade plural, o homem constrói sua existência a partir de valores do mundo que ele experimenta e cria: se este valor é a verdade ou a força divina, o amor, a arte, diz Rahner que isto não importa: o cristão tem mais do que o direito e o dever de abandonar-se ao pluralismo de sua existência, de experimentar a contradição do amor e da morte, do sucesso e da desilusão. E, em meio a tudo, deixar-se interpelar por Deus, que quis este pluralismo a fim de que o homem perceba que tudo está envolvido pelo mistério eterno. Aqui é importante distinguir com Rahner entre “Igreja e a humanidade” possuidoras da graça, posto que as duas não significam a mesma coisa. Senão vejamos os exemplos que ele nos dá. A paciência duma mãe, a oração da criança pelos pais em seu aposento, a compreensão social de um diretor de empresa em seu posto, a decisão dum estadista em sua política em harmonia com o evangelho, etc., podem e devem certamente ser atos sobrenaturais, praticados sob o influxo da graça divina, inspirados pelas normas do evangelho [...] atos que contribuam para a salvação. 200 RAHNER. A realidade da redenção no mundo criado, in Missão e graça, 1º vol. Petrópolis: Vozes, 1964, 50. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura RMC. 201 CFF 470. 85 Não são, porém, atos eclesiásticos. Vivem da vida da Igreja, mas não constituem a vida mesma da Igreja. São atos cristãos, mas não eclesiásticos202. Rahner vai adiante e afirma que se o homem é realidade corpórea, histórica, espírito transcendentalmente pessoal, indivíduo e membro da humanidade a quem pertence o meio ambiente e, se essas afirmações são também pressupostos escatológicos, então essas afirmações em sua pluralidade devem ser consideradas no interior da escatologia. Por isso Rahner afirma a existência de uma escatologia individual e de uma escatologia coletiva, já que a escatologia individual não pode se apartar do homem como ser histórico, membro do mundo e da coletividade. A escatologia cristã não pode pensar que o mundo e sua história prossigam indefinidamente e o homem enquanto individuum, como existência pessoal, se desligue sozinho desta história ao atingir a sua consumação. A escatologia do homem individual concreto só pode vir a ser completa se acompanhada de escatologia coletiva. Daí, a escatologia cristã nos dizer que a história do mundo, do espírito, da salvação e da perdição em seu conjunto é uma história em uma só direção: a de sua definitividade, o que vale dizer que a história não continua de maneira indefinida203. Tratar da escatologia coletiva, para Rahner é tratar da relação entre a tarefa intra-mundana do homem, de sua ideologia do futuro e seu contraste com a espera do Reino de Deus, em que o cristão espera o futuro absoluto que é Deus, considerando a história intra-mundana como evento da autocomunicação de Deus, num elenco que para o homem significa “tudo”, inclusive o que respeita à sua salvação, pois é na história que Deus doa a si mesmo ao homem e é na história que se dá o livre acolhimento da autodoação de Deus infinito enquanto mistério, pelo homem204. É bonito perceber com o nosso teólogo que entre a utopia intra-mundana e a escatologia cristã percebemos a mesma relação de “distinção e unidade” que o cristão experimenta entre a “unidade e a diversidade” do amor a Deus e o amor ao próximo, pois em toda ação intra-mundana é propriamente o amor ao próximo que se torna concreto. E nesse sentido, é no amor ao próximo que o cristão não somente cumpre a sua missão, mas é também aí que recebe o milagre do amor, no qual Deus se doa ao homem. Assim, a utopia intra-mundana e a escatologia apresentam “unidade e distinção”, como no axioma fundamental da cristologia, onde “homem e Deus” não são a mesma coisa, mas também jamais estão separados. 202 RMC 54. CFF 513. 204 CFF 515. 203 86 A história da salvação e da condenação é ao mesmo tempo a história desta unidade a ser realizada e que corre perigo. A história desta unidade já entrou em sua fase definitiva e escatológica pela encarnação do Verbo de Deus, que já se efetuou e não se encontra apenas no decreto divino; pois Deus inseriu o mundo como um todo, com sua unidade ontológica indestrutível, em sua própria vida divina, num dos elementos do mundo do qual se apropriou pessoalmente: denominamo-lo humanidade de Cristo. [...] Na encarnação e na cruz, Deus decidiu [...] apesar da liberdade do homem, a favor de um mundo e duma natureza redimida, glorificada, destinada a ser salva pela graça vitoriosa. O drama já não está em suspenso; a história do mundo já se decidiu, no sentido de sua salvação205. Conclusão A atividade histórica de Deus no mundo tem uma conexão interna, uma teleologia interior que faz com que todo e qualquer ato só se torne compreensível e significativo como um elemento pertencente a um todo nesta história da salvação. Dito de outro modo, somente quando uma pessoa espiritual livre altera o seu comportamento – do que nos dão testemunho a aliança no Antigo e no Novo Testamento –, é que, progressivamente, vai se lhe revelando Deus, num processo que atinge o clímax de sua revelação em Cristo. 2 – O caráter tanto essencial quanto existencial no conteúdo da Revelação Introdução A par da confissão mencionada na Introdução206 em que Rahner, por sua influência marechaliana, diz sua teologia como existencialista, a estrutura de sua teologia vai além. Senão vejamos sua afirmação: Toda dogmática católica deverá ser teologia “essencial” e “existencial”; o que significa que terá de investigar e dar conta das estruturas essenciais e necessárias de suas relações. E, igualmente, do que sucedeu e como sucedeu de fato (de maneira livre e irredutível) na história da salvação. O segundo aspecto entende-se por si mesmo. Mas também o primeiro, apesar de todo o existencialismo atual, é verdadeiro. Pois teologia é pensamento. E não é possível de modo algum pensar em fatos completamente dispersos e atomizados. O ato livre possui também sua essência, suas estruturas, suas relações, suas homologias e analogias207. Assim é que a necessidade teológica exige que a natureza da realidade faça aparecerem juntas, nas dogmáticas tradicionais, tanto uma teologia essencial quanto uma teologia existencial, 205 RMC 68. Introdução, 2.1.3. 207 TED 123-124. 206 87 embora ambas merecedoras de um “método claro”. Contudo, defende Rahner, “é erro” não perceber reflexivamente essas relações fundamentais e isso ele diz que se pode observar em todas as dogmáticas porque, “sem notar, umas vezes se faz pouca teologia essencial e outras muito pouca teologia existencial”208. A implicação entre essência (ontologia teológica) e existência (narração histórica) é para Rahner inevitável. É nesta base que ele vai sustentar o Esboço para uma dogmática. É dessa base que parte a origem de sua obra O Espírito no mundo. Daí o exemplo elucidativo em que Rahner toma santo Tomás por modelo. Para Tomás, sua teologia é sua vida espiritual e sua vida espiritual é sua teologia. Nele, não se dá aquela horrível divisão que se pode observar na teologia posterior, entre teologia e vida espiritual. Ele pensa a teologia, porque dela necessita em sua vida espiritual como um de seus pressupostos mais essenciais; ele a pensa de tal maneira que possa ser realmente significativa também do ponto de vista existencial. [...] Para Tomás, teologia e vida espiritual são verdadeiramente uma mesma coisa209. Na sua lucidez o teólogo explica que junto da notícia de que aconteceu isto ou aquilo, devese dizer sempre o que é propriamente “aquilo” que “assim” aconteceu. Ele ressalva que há estruturas que se mantêm através da surpreendente novidade dos acontecimentos e alerta que se assim não fosse careceria de sentido “uma” história da salvação, segundo um plano de Deus, que a abrange e que em Deus existe invariável desde toda a eternidade, embora somente aos poucos se nos vá revelando. Não é possível tratar sempre de novo do que resta comum na ordem “essencial” em cada uma das partes em que se vá relatando a história da salvação. É necessário que se veja e que se fale do comum enquanto tal. Temos que fazer também teologia abstrata, essencial, muito embora só logremos saber algo quando o aprendemos dos acontecimentos da história da salvação210. 2.1 – O conhecimento originário de Deus Como estamos perseguindo o conteúdo da Revelação que é Deus, cuidar da essência e da existência na teologia de Rahner é afirmar que é no encontro com o mundo que ocorre a mediação do conhecimento transcendental, ou como dito por ele: é no encontro categorial com realidades concretas de coisas e pessoas - e não na fuga do mundo. 208 TED 124. In: VARGAS-MACHUCA, op. cit. 36-7. 210 TED 124. 209 88 Essa afirmação de Rahner vale para o conhecimento a posteriori de Deus que se origina do e mediante o encontro com o mundo, do qual também nós somos parte211 e é por isso que se este caráter a posteriori do conhecimento abandonar o elemento transcendental212, o homem pode desviar-se dessa transcendentalidade, focando-se no categorial, ou seja, em seu mundo concreto, seu trabalho, suas ocupações no espaço e no tempo, reagindo, principalmente, de três maneiras: A primeira, ingênua, fará o homem dizer que não vale a pena esquentar a cabeça com essas idéias de algo que possa ultrapassar os limites deste mundo. A segunda, auto-suficiente, faz o homem deixar esta questão como uma questão, na qual, no mero declarar que não se pode respondê-la, a pessoa já está admitindo que, em última análise, não a pode descartar; e a terceira, desesperada, impele o homem a um ativismo em que ele ocupa cada segundo de sua existência, como que a dizerse, já que o todo como todo carece de sentido, a pergunta correspondente do todo pelo todo, também se torna sem sentido213. O caráter a posteriori do conhecimento de Deus implica a percepção de que somos seres referidos a Deus e que essa experiência originária está sempre presente e não se deve confundir com a reflexão objetivante sobre ela, por mais necessária e significativa que nos seja. Por isso, não basta olhar o mundo para nele descobrirmos Deus direta ou indiretamente, nem imaginar que poderemos daí provar sua existência214. Nesse ponto, torna-se plausível em Rahner o conhecimento originário de Deus na transcendência porque o teólogo nos obriga de duas, uma: ou a esclarecer o que seja esse lugar para onde a transcendência sai em movimento (Aonde), ou a buscar uma mistagogia existencial que descreva e focalize a atenção de cada indivíduo em sua existência concreta, nas experiências de transcendência que fez, momento este em que tenha sido arrancado de si para o interior do mistério inefável215. Em vista da claridade e da força de persuasão das experiências dessa natureza (na angústia, na preocupação que o sujeito possa ter com o absoluto, na aceitação livre da responsabilidade no amor, na alegria...), tal mistagogia ajuda a pessoa a perceber que a experiência de transcendência ocorre repetidamente, e sem ser denominada, em seu trato com o mundo concreto216. 211 CFF 69. CFF 70. 213 CFF 47. 214 CFF 70. 215 CFF 77-8. 216 CFF 78. Cf. Moções (movimento de consolações e desolações em Inácio). 212 89 Rahner vai buscar tornar acessível a compreensão de Deus em sua essência e existência, designando Deus como o Aonde da transcendência humana e precisamente aí como o mistério permanentemente incompreensível217. Esse Aonde não se pode interpretar como idéia do pensamento humano. Esse Aonde “é o que se abre”, possibilita e deslancha o processo de transcendência, mas não o cria. Portanto, o Aonde da experiência e do conhecimento, por serem transcendentes, são, também, originários e abrangentes e se dão na experiência como o que é verdadeiramente real, por ser unidade originária de essência e existência218. Conclui o teólogo que no ato da transcendência é que se afirma a realidade do seu Aonde, porque é somente nele que se faz a experiência do que seja verdadeiramente a realidade219. 2.2 – Os nomes do inominável: o Aonde e o Donde que porta a transcendência Acompanhando o caminho pelo qual Deus quis “lidar” com o homem – a quem ele se revela pela Palavra –, é justo com as palavras que Rahner “luta” para que reflexamente possam dizer de Deus, em sua essência e existência. Na Primeira Parte, mencionamos a preocupação do teólogo com o significado da palavra Deus220, preocupação que se origina de quem sabe que o nome diz o que é. Portanto, Rahner relaciona o cuidado com a palavra deus e a ortodoxia221. Se partirmos de sua primeira afirmação, de que a palavra “deus” existe, e o seguirmos em sua luta por nomear o inominável, observamos que ele se utiliza de dezenas de expressões diferentes, embora próximas, todas complementares ao significado umas das outras, numa luta do que percebe as expressões múltiplas como quem mira pétalas soltas com um “rosto cego” que nunca viu uma rosa. Isto porque o conceito de Deus em seu fundamento originário e a realidade a que o conceito se refere conjuntamente emergem para nós ou conjuntamente se ocultam de nós 222. Desse modo, a lista de “pétalas” que Rahner utiliza em seu esplendoroso esforço de expressar o inominado – 217 CFF 524. CFF 87. 219 CFF 88. 220 Ver Primeira Parte, Capítulo 2.2.2. 221 Rahner, também aqui, soma-se a Basílio que, cerca do ano 374, registrou sua preocupação com as palavras e a doxologia, sendo que o santo torna-se inigualável em sua luta pela significância das “pré-posições” que antecedem os termos teológicos, ou seja Pai, Filho, Espírito Santo, no seu Tratado. in TES 1.3, 91: “Há pouco, estava rezando com o povo. Glorificava a Deus Pai com ambas as formas de doxologia: ora com o Filho, com o Espírito Santo; ora pelo Filho, no Espírito Santo”, como este trabalho detalha em sua Terceira Parte, Capítulo 1.1.1. 222 CFF 73. 218 90 tomando-se apenas o seu CFF223 - encontra-se ao final deste trabalho, porque se de seu conjunto não se nomeia a rosa, é de lá que emerge a “flor” possível. Em sua incansável busca por significar o que quer dizer com a palavra “deus”, ele toma as expressões Aonde e Donde que porta a transcendência para aclarar o que com elas chamamos de “Deus”, ou fundamento original, ou abismo, mesmo cientes de que esses termos estão carregados de imaginações que vão além do que significam e nada têm a ver com o que se quer dizer, posto que cada um desses conceitos carrega a marca da história224. Mas então esse inominável e indelimitável Aonde da transcendência, que só por si mesmo se delimita, distinguindo-se de toda outra realidade e diferenciando de si todo o resto, e que constitui a norma para tudo e que se situa para além de todas as normas distintas dele, esse Aonde, dizemos, torna-se o que se situa absolutamente fora de nosso alcance e disposição. Ele está sempre presente como aquele que dispõe225. Rahner descreve o conhecimento originário de Deus apontando para onde essa transcendência se volta, o que ela encontra, ou melhor, a partir de que ela se abre. Mas a denominação desse Aonde e Donde da transcendência só se pode entender pela evocação da experiência transcendental como tal que, de tão óbvia pode, como ele insiste, passar desapercebida. Na verdade, a ousadia não seria buscar nomear substantivamente, porque quer parecer que precisamos de um verbo que diga desse movimento da transcendência. Expressar esse movimento é apreender o súbito em palavras. É como o cego tateando pétalas sem conseguir dizer que o nome da flor é rosa. É apreender o que se assemelha à iluminação que emerge no fulgor de um raio na tempestade que desfalece tão subitamente quanto surgiu, como um vestígio. Na caminhada cristã, parece que o homem mais guarda desses momentos iluminadores das suas tempestades o fragor da atordoante trovoada do que a direção apontada na breve percepção da luz. 2.3 – O mistério evidente Assim é a dificuldade da nomeação do Aonde e do Donde de nossa experiência originária de transcendência que, para fugir da tradição filosófica ocidental, Rahner chama de “Mistério santo”, porque se falássemos que o Aonde de nossa transcendência é “Deus” manteríamos o mal entendido de falar de “Deus” tal como se ele já estivesse explicado. O teólogo usa, então, Mistério santo sob a 223 Contamos 70 expressões distintas nas primeiras 100 primeiras páginas do CFF. Ver Anexo. CFF 79. 225 CFF 83. 224 91 alegação de que é expressão menos corrente e menos definida, no intuito de expressar o termo a que se volta a transcendência e a origem de onde ela procede. Deus é o totalmente outro com relação ao mundo. A realidade inteira é portada por este Aonde e este Donde. O Aonde da transcendência é indelimitável porque o horizonte mesmo não pode estar presente dentro do horizonte e, assim, ser distinguido de outras coisas. A medida última escapa ela própria a toda medida. O limite que a tudo dá a sua definição, não pode ele mesmo ser definido por limite que esteja mais afastado. A amplidão infinita, que tudo abarca e pode abarcar, não pode ela mesma ser abarcada. Ele se nos apresenta na forma do auto-subtrair-se, do silêncio, da distância, do manter-se permanente em sua inexpressividade, de tal sorte que todo esse falar sobre ele – para que possa ser escutado com sentido – requer se ouça seu silêncio 226. A afirmação de que devemos nos ter com Deus em sua própria realidade, de forma absolutamente imediata, impõe que nos entreguemos incondicionalmente ao inominado, à luz inacessível que nos pode parecer como que trevas. Em outras palavras, entregamo-nos ao Mistério santo que surge e permanece tal quanto mais ele se aproxima. E, se todos os caminhos nos levam aonde não há mais caminho algum, nos levam a fundar todas as razões no abismo sem fundo, a entender todos os argumentos da incompreensibilidade, e que nunca poderemos estabelecer algum ponto em torno do qual pudéssemos organizar um sistema de coordenadas que tudo incorporasse, se o homem é ser de transcendência remetido e orientado ao mistério santo e absolutamente real, e se o Aonde e o Donde da transcendência, na qual e através da qual o homem como tal existe e que constitui sua essência originária enquanto sujeito e pessoa, é este mistério absoluto e santo, então surpreendentemente podemos e devemos acrescentar: o mistério com sua incompreensibilidade é o que existe de mais evidente. Se a transcendência não é coisa qualquer que, como que de passagem, praticamos, por assim dizer, como luxo metafísico de nossa existência intelectual, mas se essa transcendência é a condição mais simples de todo entender e compreender espiritual, então o mistério santo é propriamente a única realidade evidente por si mesma, a única realidade que está fundada em si própria, mesmo do nosso ponto de vista227. Resta ao homem entregar-se ao mistério inefável e santo e aceitá-lo na liberdade, que como tal se torna tanto mais radical para nós quanto mais ele se comunica e quanto mais nos permitimos doar essa autocomunicação no que chamamos de fé, esperança e caridade. Mas esta afirmação da absoluta autocomunicação de Deus, em que ele é doador e dom e fundamento da acolhida do dom a uma só vez, também se diz que o que se perde a si mesmo completamente encontra-se a si mesmo na presença do amor 226 227 CFF 83. CFF 34. 92 infinito, diz-se que quem toma o caminho infinito chega e sempre já chegou a seu termo, e que a pobreza absoluta e a morte, para os que se entregam a elas e a todo o seu horror, nada mais são do que o começo da vida eterna228. Conclusão Acompanhar Rahner é acompanhar a sua luta que consiste em descrever conjuntamente a experiência e o que nela é experienciado, antes de chamar de Deus o que é experienciado como o infinito, o indefinível e o inefável. Daí o horizonte infinito (o Aonde da transcendência) não se permite atribuir um nome, que o situaria na seqüência das realidades referidas a este Aonde e a partir deste Donde. Na verdade, devemos dizer que ele é algo distinto de tudo mais, por que, enquanto fundamento absoluto de todos os entes singulares não pode ser a mera soma posterior dessa multidão de seres particulares229. 3 – Deus se expressa em Jesus, portador da última e insuperável palavra Introdução Rahner é um teólogo curioso. A simplicidade com que afirma Deus como o mistério evidente é a mesma com que afirma usar de precaução ao falar de nosso senhor Jesus Cristo como o portador absoluto da salvação. Com esta aparente cautela, Rahner parte do anúncio de Jesus Cristo como o último profeta. Isto porque a auto-interpretação de Jesus, contida em sua mensagem e confirmada em sua ressurreição, o situa na linha do “profeta”, ou seja, do portador de uma palavra de Deus voltada para a existência histórica concreta. Mas ele avança e diz que Este profeta, porém, considera sua palavra como a última e insuperável. [...] Isso contrasta com qualquer outro verdadeiro profeta, que na sua palavra deve dar lugar a que Deus seja maior em suas ilimitadas possibilidades, e considerar a sua palavra essencialmente como promessa ainda aberta e não acabada. Jesus é, portanto, profeta que, com a pretensão que ressoa em sua palavra, supera a própria essência do profeta. A palavra de Jesus é a última palavra de Deus precisamente porque além dessa palavra nada mais existe a dizer, porque em Jesus, Deus se disse realmente a si mesmo em sentido estrito e rigoroso230. 228 CFF 156. CFF 80. 230 CFF 331. 229 93 Por isso Jesus é aquele que a teologia tardia do Novo Testamento e a cristologia da Igreja pretendem expressar: Ele é o Filho e a Palavra de Deus. Ele não é servo que se possa identificar com Deus mesmo. Ele é Filho. Ele é a Palavra de Deus simplesmente que nos foi dita em tudo o que ele foi, disse e que depois na ressurreição foi acolhido e confirmado definitivamente231. Se, assim, podemos perceber que Deus é aquele que fala à sua criatura no extremo máximo da comunicação admissível, vamos percorrer as próximas linhas nos admirando com a luta do homem para, também ele, expressar-se na experiência de sua existência como o ser capaz de ouvir a Palavra definitiva de Deus. 3.1 – A pobre tematização do saber originário do homem O homem fala. Tem necessidade de exprimir a experiência de sua existência, o que sabe de si, em palavras. Busca traduzir o que de mais profundo sente e vive, em conceitos. Isto resulta no que Rahner chama de “original autopresença a si do sujeito” que, em sua existência, se espreme na linguagem, na tentativa de comunicação com outro sujeito. A busca do conceito acompanha o saber originário numa relação tensa que tende ao crescimento do saber teórico sobre si. Aí o rico exemplo que Rahner oferece de que toda pessoa busca dizer a outrem, sobretudo à pessoa amada, o que ela está sofrendo 232. Aí o homem se rende em face da impossibilidade invencível de expressar-se completamente. Na dor que emerge da saudade, por exemplo, esse saber originário, se vê diante da fuga de palavras que o definam. Assim é que o conceito no seu fundamento e a realidade à qual o conceito se refere, movem-se para além de nós e entram juntos no desconhecido. E à pessoa resta a angústia de não saber e nem poder jamais expressar totalmente, “a dor” (da saudade) “que deveras sente”, como diria do fingidor, o também poeta Fernando Pessoa233. Rahner alerta que usualmente imaginamos o conhecimento como um espelho que reflete qualquer objeto. No espelho, o objeto refletido é algo que vem de fora e se imprime na capacidade receptiva do conhecimento. Assim é que eu conheço o que é uma mesa. Mas, na verdade, o conhecimento tem estrutura mais complexa, pois que o sujeito que conhece possui no conhecimento tanto de si mesmo (é sua a dor da saudade) como seu conhecimento (de saudade)234. É algo que se passa por detrás do sujeito que conhece (a dor da saudade), e que parte de si para fora, avançando 231 CFF 331-332. CFF 28. 233 FRNANDO PESSOA. Autopsicografia. 234 CFF 29. 232 94 em direção ao seu objeto (de saudade). Este ato reflexivo é um exercício permanente que não torna supérfluo o originário estar-presente-a-si-mesmo do sujeito que sabe de si (da dor da sua saudade) e do seu saber (sobre a saudade) 235. Diante deste esforço pessoal, aqui empreendido como um exercício de quem busca expressar com toda a limitação da linguagem humana o mecanismo transcendental em que se baseiam os entendimentos da teologia de Rahner, reduzo-me ao silêncio ao me perceber diante do Deus cristão, o Deus semper maior, aquele que não cabe em fórmula nenhuma projetada a partir do mundo e para quem o mundo sempre se acha aberto, sem, contudo, poder abarcá-lo, dentro desta abertura que manifesta em nós sua divindade porque “somos” e porque “chegamos a ser”236. 3.2 – O ouvinte de Deus: uma antropologia teológica Rahner coloca uma corajosa questão: quem poderá ouvir a mensagem última e mais autêntica do cristianismo? Admitindo o homem como o ouvinte da mensagem do cristianismo, a resposta se baseia no sentido ontológico-existencial do ser humano, porque Rahner frisa a maneira como se entrelaçam os pressupostos do ser humano e a mensagem cristã. Sua resposta implica em que as duas realidades pressupõem-se reciprocamente, mesmo quando explicadas de maneiras diferentes, reflexamente. Assim, a mensagem cristã situa o homem perante a verdade real e profunda do seu ser, verdade esta a que permanece preso237, ainda que tal prisão seja a infinita amplidão do incompreensível mistério de Deus, o que por si só implica entrelaçamento entre filosofia e teologia. Rahner parte da história do homem como um sujeito espiritual, que se auto-explica na experiência transcendental como algo que ocorre em meio à vida histórica e não à margem dos acontecimentos. Essa auto-explicação categorial do que o homem é acontece não só nos enunciados antropológicos, mas em toda a história do homem, no agir e sofrer da vida individual, como temos afirmado, com nosso autor. A reflexão teórica de uma antropologia metafísica ou teológica238 é por ele reconhecida como necessária e, ao mesmo tempo, porém, secundária, porque se vincula à história global da humanidade. Ressalva que essa auto-explicação não deve ser concebida como uma evolução 235 CFF 30. TED 129. 237 A palavra “preso” é usada aqui com sentido de ser um constitutivo do ser humano. 238 Essa antropologia metafísica ou teológica Rahner chama de auto-explicação e auto-interpretação do homem. 236 95 biológica e determinista, porque ela é história e, em conseqüência, é liberdade, é risco, é esperança, é voltar-se para o futuro e possibilidade de malogro239. E porque o homem somente faz a experiência transcendental na história, a autoexplicação dessa experiência na história é necessária, porque integra a própria constituição transcendental, ainda que as duas não sejam nem a mesma coisa e nem idênticas240. 3.3 – O ouvinte é Deus: a unidade da antropologia e da teologia na cristologia Decorre de tudo que até então temos visto que uma antropologia que pense o homem como existente transcendental, tem que tomá-lo, em toda e qualquer ação categorial de conhecimento e liberdade, situado para além de si e do seu objeto categorial, na subjetividade, na relação com o outro, em referência ao futuro, bem como no hiato em cada uma dessas dimensões em si e entre elas em seu conjunto, que se volta e se projeta para o mistério inabarcável que, como tal, abre e porta o ato e o objeto, mistério a que damos o nome de Deus241. Rahner quer reafirmar, com isso, que a pergunta surgida historicamente sobre o que é o homem constitui, com sua resposta – que é Deus -, uma unidade. E esta unidade é do que trata a cristologia, porque trata da unidade da essência de Deus e do homem. Daí a cristologia constituir o começo e o fim da antropologia, desta antropologia que é, por toda a eternidade, teologia. A teologia, antes de tudo dito por Deus, ao dizer a sua Palavra como nossa carne para dentro do vazio da realidade não-divina é a teologia que fazemos na fé, se não pensarmos que podemos encontrar a Deus passando por alto a Cristo e, com isto, ao homem. Podia-se dizer do criador, com o Antigo Testamento, que ele está no céu e nós na terra. Mas do Deus, que proclamamos na fé em Jesus Cristo, é preciso dizer que está exatamente onde nos achamos e somente aí pode ser achado242. Daqui vislumbra-se um ponto de partida para uma cristologia ascendente243 que parte do Jesus histórico não porque ouve de seus lábios uma teologia descendente do Logos-Filho, e a vê confirmada na sua ressurreição, mas porque faz a experiência deste homem salvado juntamente com sua pretensão dirigida a nós244. 239 CFF 189. Cf. CFF 189. 241 CFF 251 242 CFF 269 243 Ver o tema tratado na Segunda Parte, Capítulo 3.3.2. 244 CFF 333. 240 96 Conclusão A essa altura, numa primeira reflexão sobre a existência pessoal cristã, Rahner nos situa em um nível em que há unidade de filosofia e teologia245, porque estamos refletindo sobre o todo concreto da auto-realização humana. E isso Rahner reconhece que é “filosofia”. Se pensarmos sobre a existência cristã e sobre a justificação intelectual de uma auto-realização cristã, isto já é basicamente “teologia”, diz ele. Assim se justifica o porquê de fazermos filosofia no seio da própria teologia246. Essa unidade originária já está dada na vida concreta do cristão. Ele crê e por exigência de sua própria fé é uma pessoa que reflete sobre o todo de sua existência. Rahner formula essa unidade em seu CFF de modo distinto: Primeiramente refletindo sobre o homem como a questão universal que ele é para si mesmo e, em conseqüência, faz filosofia no sentido próprio do termo. Essa questão sobre o que o homem “é” e não só “faz”, deve ser considerada como a condição da possibilidade de a resposta cristã vir a ser escutada. Em segundo lugar, sobre as condições transcendentais e históricas que tornam possível a revelação, ele reflete de tal sorte que se veja o ponto de mediação entre pergunta e resposta, ou seja, entre filosofia e teologia. Em terceiro lugar, devemos pensar a afirmação fundamental do cristianismo como resposta à questão do que o homem é e, em conseqüência, devemos fazer teologia. Estes três momentos condicionam-se e se constituem em uma unidade diferenciada. Assim é que a questão cria a condição de ouvir, e a resposta leva a pergunta à sua existência reflexa. Este círculo é essencial e no CFF nosso autor não busca dissolvê-lo, mas refletir sobre ele247. Se, por sua absoluta liberdade, ao invés de autocomunicar-se, Deus escolhe permanecer envolto em silêncio, nós alcançaríamos o topo de nossa vida espiritual e de nossa existência religiosa ao ouvir o silêncio de Deus248. 245 CFF 13: o Decreto Optatam totius, 14 do Vaticano II pede a unidade interna entre filosofia e teologia, sendo que cabe a esta concentrar-se em torno ao mistério de Jesus Cristo. 246 CFF 21-2. 247 CFF 22. 248 RAHNER. Hearer of the Word. Laying the foundation for a Philosophy of Religion. No original, Hörer des Wortes. Zur Grundlegung einer Religionsphilosophie, Munich: Verlag Kösel-Pustet. 1941. Traduzido da primera edição alemã por Joseph Donceel, S.J. NY: The Continuum Publishing Co. 1994, 9. 97 Capítulo II – Concepção de Redenção A concepção de Redenção não se aparta da concepção de Deus. Rahner frisa que a experiência de Deus, que implica na experiência de transcendência, não se faz em primeiro lugar e originariamente numa reflexão teórica, mas, ao contrário, na atuação originária do conhecimento e da liberdade cotidiana e, portanto, esta experiência de Deus, por um lado é inevitável e, por outro, pode ocorrer de maneira “muito anônima e preconceitual”. Por isso se deve solicitar ao homem a descobrir em si, pela reflexão, e a objetivar conceitualmente esta experiência de Deus que nele em todo caso existe [...], de modo a que se perceba como se pode chegar à compreensão do que propriamente se entende ao falar de Deus. Resumidamente vimos como Rahner expressa a autocomunicação de Deus como um acontecimento ao mesmo tempo existencial e histórico, o que a teologia corrente chama de graça justificante, ao menos enquanto ofertada, ou autocomunicação existencial de Deus no Espírito Santo. Também consideramos como Deus, que doa a si próprio em autocomunicação ao homem, o faz mesmo sob a pressuposição de que o homem seja pecador, ou seja, doa-se em um amor indulgente. Por isso chamamos história da salvação e revelação à automediação histórica, a objetivação histórica e historicamente progressiva da autocomunicação de Deus na graça, inserida como fundamento permanente da história, ao menos como oferta. O que, dito de outro modo, retoma o aforisma rahneriano. Em suas palavras: Com essa afirmação da dupla autocomunicação de Deus ao mundo, a saber, as duas missões histórico-salvíficas – a existencial no Espírito (Santo) e a histórica no Logos (Filho) – e levando em conta que já falamos do mistério inabrangível de Deus enquanto permanentemente tal (Pai), está dada de imediato a Trindade econômico-salvífica e com isso, também, já, a imanente, porque se não existisse essa, não haveria nenhuma real e verdadeira autocomunicação de Deus249. Nos próximos parágrafos tentaremos apontar que a vida humana pode ser resumida numa progressão, ou, como chamamos acima, na história da salvação. Para tal, é fundamental entender Redenção e Criação como conceitos que formam uma só unidade. Isto porque é daí que perceberemos a unidade do todo criado como uma hierarquia, em que, carreado pela Graça, o homem liberta a sua própria liberdade numa progressão a caminho do Deus-homem, nosso Senhor Jesus Cristo. 249 Cf. CFF 23. 98 1 – A unidade entre Redenção e Criação Introdução Com extrema brevidade vimos que a antropologia, a teologia e a cristologia afinal se constituem em uma unidade diferenciada. O caminho que ora percorreremos tem na sua partida a explicação para a origem desta “unidade”. O uso de conceitos correlativos é recorrente em Rahner que, ao opor uns aos outros, na verdade constitui pares de realidades. Nosso objetivo é tratar um desses pares: a redenção e a criação, em busca de compreensão da unidade que se estabelece entre estas duas grandezas que, embora não sendo uma e mesma coisa, refletem-se na existência cristã que surge desta unidade e se empenha em realizá-la. 1.1 – Os pares de realidades: a unidade no mundo Para relacionar redenção e criação é preciso tratar o mundo como a “realidade da criação”, o que Rahner confessa que “na linguagem teológica é expressão nada fácil de compreender”250. Por isso, listamos outros tantos pares de “realidades” em que não é possível tratá-los igualmente em seus propósitos e conceitos, valendo o alerta de Rahner de que “é sumamente perigoso tomar essas oposições como equivalentes”251. Senão vejamos: Pares de realidades Graça Natureza Redenção Criação Entre graça e natureza, Rahner diz que a linha de separação difere totalmente da que separa a redenção da criação. A graça é uma grandeza realmente distinta da natureza, gratuitamente concedida à natureza por Deus. [...] Graça e natureza guardam entre si a relação de grandezas adequadamente distintas. [...] Graça é essencialmente uma determinação, elevação e divinização da natureza. [...] Só existe graça real no homem agraciado, na natureza agraciada, sob a forma de divinização desta mesma natureza. A graça não se assemelha, pois, a um andar superior, edificado cuidadosamente sobre o andar térreo da natureza pelo arquiteto divino, e isso, de tal maneira que 250 251 RMC 49. RMC 51. 99 esta última se conserva o mais intacta e no seu estado natural, servindo apenas como uma espécie de suporte ao andar superior e podendo alguém demorar-se num e noutro, sem que isso os afete mutuamente252. Entre redenção e graça, falamos explicitamente de tudo que pertence à existência concreta e à atuação real da graça como realização eficaz da redenção. Nisso a “ordem da redenção” inclui a ordem da criação como elemento essencial que lhe é intrínseco. Elementos intrínsecos Redenção Graça Criação Com isso, não se identificam simplesmente ambas as ordens, mas tampouco se distinguem adequadamente entre si, antes se relacionam entre si como o todo com a parte, como o que se supõe e o que faz a suposição se relacionam com a suposição mesma253. Assim, devemos ser prudentes e não tomar os dois pares de conceitos “graça e natureza” e “ordem da redenção e ordem da criação”, inteiramente no mesmo sentido. A luta aqui é pela precisão terminológica para se evitar dificuldades com o uso de terminologia inadequada. Precisão terminológica Graça Natureza Redenção Criação 1.2 – A unidade da realidade é plural e hierárquica Nesse passo, estamos diante do fato de haver realidades que são efetivamente uma coisa só, mas que nessa “unidade perfeitamente intacta, encerram-se elementos verdadeiramente distintos entre si”254. Há nessa afirmação um problema de ordem lógica e ontológica porque os diversos elementos distinguem-se no seio da realidade e, não obstante, constituem uma unidade real e verdadeira. Diz Rahner que deve haver um princípio unificador da pluralidade, que permita compreender cada um dos diversos elementos em sua diversidade, bem como as correlações mútuas entre os mesmos. Unidade plural Corpo Alma Espírito Várias potências 252 RMC 52. RMC 53. 254 RMC 56. 253 100 A unidade resultante do homem composto de corpo e alma, a unidade do espírito com suas várias potências, são exemplos diversos em que encontramos de maneira diferente e análoga este mistério ontológico da unidade plural255. Com isso, Rahner vai tirar conseqüências de suas afirmações para a doutrina católica que compreende a alma como o princípio que confere atualidade e forma ao corpo, e que, por si, plasma essa corporeidade distinta da alma, unindo-a a si, apesar de lhe conservar o caráter distinto. Diz que a corporeidade não é condição fortuita, mas essencial que a alma cria para si como entidade distinta, mantendo-a unida a si desde o momento da origem. Unidade substancial Matéria Espírito Espírito na Matéria No homem estão unidos matéria e espírito numa unidade verdadeiramente substancial e, em face do dogma da ressurreição da carne, definitiva, é dogma de fé, puro e simples. Deste dogma se depreende que o homem não pode desenvolver sua vida espiritual, e mesmo sua vida sobrenatural, a não ser pela incorporação deste desenvolvimento na realidade material, pelo recurso ao mundo, pela inserção do espírito na matéria. O mundo, portanto, é de fato uma unidade, um todo unido256. Daí Rahner avança e apresenta o próprio conjunto da criação como um todo. Um todo que não existiria se Deus não quisesse cada parte e, portanto, cada uma das partes somente encontra razão para sua existência em outra. Diz que como Deus quis este todo segundo certa ordem, “o inferior existe para o superior, e tudo na criação existe para a realidade suprema deste mundo. Assim ele assevera que Deus quer a totalidade da criação por amor ao que há de mais elevado na criação e, com isso, se pressupõe a adoção de uma visão evolutiva de mundo o que, sob esse ponto de vista, equivale a dizer que a unidade do mundo é uma unidade hierárquica257. Portanto, é da unidade – e não da identidade - existente entre espírito e matéria que podemos passar a entender o homem como o existente no qual a tendência fundamental da matéria a se encontrar a si mesma no espírito chega à sua irrupção definitiva mediante a autotranscendência, de forma que, a priori a natureza do homem se veja inserida no interior de uma concepção complexiva e integral do mundo258. A natureza do homem, por meio de sua sublime, livre e plena autotranscendência para Deus - e por Deus gratuitamente possibilitada em seu exercício pela autocomunicação -, “‟está na 255 RMC 57. RMC 59-60. 257 Cf. RMC 60-61. 258 CFF 218. 256 101 expectativa‟ da sua consumação e da consumação do mundo àquele nível que, em termos cristãos, chamamos graça e glória”259. Graça e Glória Unidade hierárquica Visão evolutiva de mundo Totalidade da Criação Autotranscendência Unidade entre Espírito e Matéria 1.3 – O homem e o êxito do Deus-homem Rahner – tendo diante de si o desafio de Jesus Cristo – interroga-se sobre o nexo desta imagem evolutiva - que se dá entre espírito e matéria -, ou seja, sobre a unidade do mundo, da história da natureza e da história do homem para que, adiante, alcance o enunciado de que o Logos “se fez carne”. Nesse processo de se interrogar, Rahner descarta de pronto o entendimento do dogma fundamental do cristianismo como mitológico, por reconhecer o argumento como insustentável ao homem de hoje. Seu esforço é buscar o que “qualquer teólogo poderia dizer ao se confrontar com a necessidade de atualizar sua teologia sob o impacto das questões colocadas pela visão evolutiva do mundo”260. Já tratamos, na Primeira Parte deste trabalho, do significado de criação “do nada” e de que o cristão professa na fé que tudo o que existe, o céu e a terra, toda realidade material e espiritual constitui criação de um só e único Deus. Agora, repito, o desafio do teólogo diante do Evento Jesus Cristo obriga perceber que a obra criadora de Deus se efetua neste mundo “por milagre do amor divino”, na comunicação sobrenatural de Deus mesmo à criatura, de tal maneira que Deus, saindo pessoalmente de si, assume como própria uma realidade criada, aniquilando-se, ao se tornar criatura. O início duradouro e a absoluta garantia de que essa última autotranscendência – que em linha de princípio é insuperável – terá êxito e já começou é aquela realidade que chamamos de “união hipostática”261. Em suas palavras, Rahner sublinha que o “Deus-homem é o início primeiro do êxito definitivo do movimento de autotranscendência do mundo para o interior da proximidade absoluta do mistério de Deus”. Essa união hipostática não deve considerar Jesus Cristo distinto de nós, os 259 Cf. CFF 218. CFF 217-8. 261 CFF 219. 260 102 outros homens, mas, antes, como o Evento que deve ocorrer uma vez e somente uma vez ao começar o mundo a entrar em sua fase última (o que Rahner adverte que não significa dizer a mais breve), na qual deve realizar sua concentração definitiva, atingindo seu ponto alto definitivo e sua radical proximidade ao mistério absoluto chamado Deus262. Assim é que Rahner argumenta que se entendermos por criação tudo que existe fora da vida íntima de Deus, temos também que entender a expressão “Deus dá de si mesmo pela encarnação de seu próprio Verbo, numa realidade distinta de Deus”, como o ato supremo da criação divina. E, portanto, tirando conseqüências deste arrazoado, podemos e devemos afirmar que “tudo o mais existe por causa dele, neste mundo que é uno e ordenado hierarquicamente”263. Na mesma linha de raciocínio, diz Rahner fulminantemente que é “supérfluo saber se Deus se teria tornado homem, ainda que não tivesse havido pecado. É nesse sentido que brilha a seguinte afirmação: O mundo concreto que Deus quis, e que ele quis como um só, sem que tenhamos de imaginar de maneira antropomórfica uma série de decretos divinos que, da parte de Deus, guardam entre si uma relação de dependência, este mundo é um mundo tal em que Deus permitiu o pecado e, por isso, um mundo em que a encarnação do Verbo de Deus se efetuou necessariamente por causa do pecado e por causa de nossa salvação. Mas é também um mundo, em que esta encarnação é o ato supremo de Deus, ao qual se relacionam essencialmente todas as outras realidades e, por causa do qual tudo o mais, conseqüentemente também a natureza, o profano e o puramente material, foi criado por Deus264. Nesse ponto, o teólogo alemão vai tomar por ilustração o amor, para expressá-lo tal qual Jesus Cristo, como “ato supremo de Deus”. Diz ele que o homem concreto experimenta o seu amor a outro ser humano como dotado de um valor, de um sentido eterno e de uma profundidade indizível, que não existiriam se esse amor não fosse destinado a ser uma forma de amor a Deus, amor que é obra do próprio Deus que atua no homem. Assim, Rahner elucida e relaciona as grandes questões da existência humana, ao tratá-las unificada e paralelamente: vida e morte, pecado e redenção, e amor, atribuindo a morte que o homem concretamente sofre “unicamente ao fato de que Adão morreu como pecador e Cristo morreu na cruz”265. 262 CFF 219. RMC 61. 264 RMC 61-62. 265 RMC 64. 263 103 Temos tanta consideração para com o homem e devemos e podemos tê-la, unicamente porque Deus, na encarnação do Verbo divino, teve consideração tão absoluta para com o homem, de sorte que só podemos considerar a Deus tal qual é, se o respeitamos como homem e o homem nele. Todas as realidades humanas têm um cunho cristão, objetivo, anônimo, talvez apenas potencial, mas real. A todas as realidades terrenas se pode aplicar a palavra de são Paulo aos atenienses: “O que vós adorais sem o conhecer, isso vos anuncio a vós, a saber, o Deus, no qual tudo tem o ser e a vida e que, precisamente como o Deus da criação, é o Deus da redenção, e vice-versa”266. Conclusão Assim é que ao contemplarmos a palavra criação “contemplamos” a humanidade e sua história com o mundo material e espiritual, como criação concebida originariamente por Deus em uma unidade, de tal modo que cada parcela é de importância para o todo, e vice-versa. Esta interdependência mútua, que fundamenta a unidade da criação, admite variações, visto que dentro da “unidade” da criação há realidades diversas, essencialmente distintas e cujas funções não podem, em decorrência, ser as mesmas. Nestes termos, Rahner diz que se impõe um princípio. O cristianismo não conhece muitas criações, senão uma só. As coisas criadas por Deus estão relacionadas entre si, não só por terem a mesma origem, mas também por estarem em comunicação mútua todas elas267. Desse arrazoado que aponta a unidade entre redenção e criação o mais importante é inferir que a realidade criada integra a realidade da redenção, no dom que Deus faz de si mesmo na encarnação de seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo divino. Por isso, a redenção inunda de graça precisamente esta realidade criada, abre-a para si mesma em todas as suas dimensões e possibilidades e confere a tudo um sentido último sobrenatural. Mas a graça também confirma a criação em seu caráter genuinamente natural e permanente e procura saná-la, onde foi lesada268. 2 – O locus cristão, numa visão evolutiva do mundo Introdução Neste passo, voltamos mais uma vez à Trindade divina - que se manifesta “revelando” a “redenção” -, porque parece ser momento de este trabalho incorporar a teologia da graça à doutrina 266 RMC 64-65. RMC 59. 268 RMC 62. 267 104 da Trindade, já que para Rahner o vazio da doutrina atual trinitária somente pode ser superado unindo estreitamente ambas doutrinas: a da graça e da Trindade269. 2.1 – A graça e a glória: meta da autocomunicação de Deus Segundo o que nos ensina o cristianismo - com simplicidade ao afirmar que “vim de Deus e volto a Deus”-, e não poderia deixar de ser reafirmado por nosso autor, também o cosmos direcionase para a sua própria totalidade e o seu fundamento, de modo tal que essa autotranscendência só chega real e inteiramente à sua plenitude quando o cosmos na criatura espiritual, que é a sua meta e o seu vértice, não é somente o que foi tirado de seu próprio fundamento, ou seja, que foi criado, mas o que recebe a autocomunicação imediata do seu fundamento mesmo. Esta autocomunicação de Deus à criatura espiritual acontece no que denominamos “graça”- no período histórico dessa autocomunicação e “glória”- em sua consumação final. [...] Neste sentido, o fim é o início absoluto. Este início não é o vazio infinito, o nada, mas a plenitude, a única a explicar que Deus não apenas cria a realidade diversa dele, mas se doa a si mesmo a essa realidade diversa270. Aqui Rahner toca no coração de todo este trabalho, ao afirmar que Nesta história unidirecional, que sucede em liberdade e ação, existe mais realidade no fim do que o início criatural contém enquanto tal em si mesmo, início que todavia há de se distinguir daquele início absoluto que é o próprio Deus absoluto na sua glória271. Dentro desta visão evolutiva do mundo, Rahner pressupõe que a meta do mundo é a autocomunicação de Deus a ele e que a dinâmica que Deus inseriu no devir do mundo em processo de autotranscendência está sempre orientada para tal autocomunicação por parte de Deus e sua aceitação por parte do mundo. Para compreender essa autocomunicação de Deus à criatura espiritual é preciso recordar que tais sujeitos espirituais do cosmos significam antes de tudo liberdade272. Aqui o teólogo brilha ao afirmar que a história da autoconsciência e do autodevir do cosmos é sempre e necessariamente história da intercomunicação dos sujeitos espirituais, porque o vir-a-simesmo do cosmos nos sujeitos espirituais deve significar sobretudo e necessariamente também um encontro recíproco entre os sujeitos nos quais o todo, cada vez de maneira própria, está junto-de-si, pois do contrário o chegar-se-a-si-mesmo dividiria e não uniria. 269 Cf. TED nota 28, 140-141. Cf. CFF 230. 271 CFF 230. 272 CFF 232. 270 105 A autocomunicação da parte de Deus é, portanto, comunicação à liberdade e intercomunicação dos muitos sujeitos cósmicos. A autocomunicação divina não é endereçada, de maneira bruscamente acósmica, somente a uma subjetividade isolada e individual. Ela é historicamente humana e se volta para a intercomunicação entre os homens, porque somente nela e através dela pode vir a ser acolhida de maneira histórica273. 2.2 – A graça pressupõe a natureza: uma ontologia teológica Rahner se utiliza de categorias filosóficas para afirmar o que se vem descrevendo acima, ao reconhecer como difícil a uma ontologia e uma lógica formais aclarar o que seja a unidade de uma realidade plural. Ele parte da constatação de que é certo que o espírito criado se acha diante do fato de haver realidades que efetivamente são uma só coisa, mas que, essa unidade, que ele qualifica por “uma unidade perfeitamente intacta”, encerra elementos verdadeiramente distintos entre si. E assim, Rahner elenca as dificuldades: Os diversos elementos são realmente distintos no seio da realidade em questão; não se deduzem um do outro; a existência de um não é dada por si mesma e evidentemente com a existência do outro, pois neste caso um seria necessariamente idêntico com o outro. E, não obstante, estes vários elementos devem constituir uma unidade real. Por conseguinte, nesta realidade una e única existe forçosamente um princípio último que constitui a unidade, um princípio que, por forma igual, mantém a distinção do múltiplo dentro da unidade e transforma o múltiplo em unidade real e verdadeira274. Nesse passo, nosso autor que se vale, para esclarecer seu pensamento, de uma formulação “assaz abstrata”, qual seja a unidade plural, em que uma coisa, para poder ser ela mesma, produz uma realidade distinta de si, que lhe serve de pressuposto; opõe-se a ela, sem deixar de formar uma só unidade juntamente com essa realidade distinta. Então, se a formulação acima é, de fato, assaz abstrata, ele mesmo a esmiúça de tal forma a que não fiquemos sem a concretude de seu pensamento. Assim é que ele dá, por exemplo, o elemento corporal concreto que é, por óbvio, distinto do elemento espiritual do homem. Aí diz Rahner que quem compreende “acertadamente” a doutrina católica que considera a alma como o princípio que confere atualidade e forma ao corpo, sabe o que se trata ao afirmarmos que A alma por si mesma, plasma essa corporeidade, distinta da alma, unido-a a si, apesar de lhe conservar o caráter distinto; destarte, a alma se realiza a si mesma, atinge sua plena realidade de espírito; a corporeidade não é condição fortuita, mas 273 274 CFF 232 RMC 56-57. 106 essencial, que a alma cria para si como entidade distinta, mantendo-a unida a si desde o momento da origem275. Assim Rahner estende seu pensamento ao mundo, reconhecendo-o como de fato se constituindo em uma unidade, “um todo unido”276, em que a interdependência real de cada coisa com o todo nasce da vontade originária do Criador e se objetiva nas relações recíprocas entre os seres particulares, baseadas na natureza de cada uma. Ademais, diz o teólogo que para além dessas relações, neste mundo, também, descobrimos uma ordem, uma escala objetiva de valores ontológicos, de dignidade, de poder de ação, nos seres particulares deste mundo que forma uma unidade. Esta unidade procede igualmente da vontade de Deus, pois do contrário não existiria. Com esse caminho, Rahner quer alcançar a realidade criada, mesmo considerada na ordem natural, como parte da realidade da redenção, do dom que Deus faz de si mesmo na encarnação do Verbo divino, pela graça. De início, isto significa que toda a criação natural dos anjos e dos homens representa uma “potentia oboedientialis” para a graça, ou seja, trata-se de um sujeito apto a receber a graça sobrenatural, se Deus a quiser comunicar. Indo além, Rahner diz que cada realidade natural da criação está, de tal modo, ordenada para a graça que não pode conservar sua integridade própria nem atingir plenamente seu destino natural, a não ser integrada na ordem sobrenatural da graça277. A autonomia dos domínios próprios da natureza e da cultura não se estende absolutamente sendo, por isso, uma autonomia relativa, uma vez que não podem alcançar adequadamente o seu sentido próprio e imanente, sem a graça de Deus em Jesus Cristo. Desta afirmação que é a afirmação genuína da doutrina católica, diz Rahner que quem deixa de realizar sua salvação sobrenatural, deixa de realizar a da natureza. Com isso o teólogo não significa que o natural perca suas próprias leis imanentes ou que ao cristão seja lícito sobrepor-se a essas leis naturais a favor de um fim diretamente sobrenatural e religioso. Não é disso que se cogita, mas de que a ordem da redenção pressupõe como seu condicionamento próprio, precisamente, o natural em sua estrutura também natural e lhe confirma a validez natural. Daí a afirmação de que o natural é a condição da possibilidade do sobrenatural, condição que o sobrenatural cria como distinta de si mesmo278. 275 RMC 57-58. RMC 60. 277 RMC 62. 278 RMC 63. 276 107 2.3 – A graça e a natureza: uma unidade histórica inacabada, periclitante e oculta Como na expressão de nosso autor, acima tratamos da unidade diferenciada de redenção e criação, do ponto de vista de uma ontologia teológica que é “quase estática”, restando observar esta unidade como determinação de um mundo histórico, com suas características próprias. Diz Rahner, em primeiro lugar, que esta unidade é real e sempre válida por ser objeto da vontade criadora incondicional e todo-poderosa de Deus e que não pode existir mundo algum ao qual falte inteiramente tal unidade, pois esta se funda ultimamente na decisão absoluta de Deus de se aniquilar, tornando-se criatura em seu próprio Verbo. E tal decisão não pode ser revogada pela liberdade criada, embora esta unidade se destine a ser determinação de uma realidade criada, querida por Deus que se desenrolasse num processo histórico279. Destarte, a unidade do mundo, constituída pela natureza e pela graça, embora seja perpétua e irrevogável, tem, contudo, sua história. É uma unidade a ser realizada; cabe também ao homem a tarefa de participar em sua realização280. Esclarece o teólogo, então, que a unidade tem a sua história, que está incompleta em duas dimensões: em nós e no mundo em que vivemos. Incompleta em nós, porque estamos ainda a caminho da integração plena de todo o nosso ser à graça e ao amor de Deus e porque aguardamos a glória de filhos de Deus; e incompleta no mundo, porque ele tampouco está integrado, em seus domínios naturais à graça de Deus em Jesus Cristo, de maneira definitiva, visto que ainda ostenta a perturbação introduzida pelo pecado e não representa a corporificação transfigurada da graça. Esta falta de acabamento, embora só se possa remediar pela vinda de Deus no retorno de Cristo, vinda essa que o mundo é incapaz de obter à força, constitui contudo uma tarefa para nós. Se o homem só é capaz de assumir suas derradeiras atitudes espirituais numa ação física no mundo, porque é um ser essencialmente ligado ao mundo281, sua fé encarnacionista no acontecimento passado, mas ainda oculto, da salvação definitiva do mundo pela encarnação e ressurreição de Cristo, somente se pode realizar verdadeiramente numa ação do homem sobre o mundo, e não numa mentalidade puramente idealista do homem todo ou do homem interior282. 279 Cf. RMC 66. RMC 66. 281 Rahner refere-se à expressão ser-no-mundo, de Heidegger que, considerando as categorias Aristotélicas de substância, qualidade, quantidade etc., entende que elas se aplicam a todos os entes, mas que Dasein existe de um modo diferente dos outros entes, razão pela qual Heidegger distingue suas características essenciais chamando-as de Existenzialien, “existenciárias, existenciais”, em vez de “categorias”. Ser-no-mundo é um existencial de Dasein, bastante diferente de ser-dentro-do-mundo, como são as pedras e os utensílios (ST 44). Cf. M. Inwood. Dicionário Heidegger, RJ: Jorge Zahar Ed., 2002, 59. 282 RMC 70. 280 108 Esta unidade do mundo da redenção e da criação, que é incompleta e nos é confiada como tarefa a ser cumprida por um ato de fé, em forma de ascese ou de aquiescência ao mundo, corre constante perigo pelo fato de ser inacabada283. Como, por um lado, cabe ao homem a missão de estabelecer a ordem da criação e a da redenção, o homem corre o risco permanente de se equivocar acerca desta missão, entregando-se a um pessimismo que foge o mundo ou a um otimismo que se apega ao mundo e, por isso, o cumprimento desta missão se acha permanentemente ameaçado. Verdade é que este perigo já foi conjurado e superado pelo triunfo escatológico da graça de Deus, que representa uma aceitação irrevogável e perpétua do mundo; contudo, dentro do lapso de tempo que se estende desde o início desta vitória, na encarnação e na ressurreição de Cristo, até à manifestação deste triunfo na parusia, vivem os homem, os povos e a Igreja, numa história que aguarda sua livre decisão; em conseqüência disso, dentro desta história ainda são possíveis vitórias e derrotas, na missão de estabelecer a unidade de que falamos284. Por fim, trata-se de uma unidade oculta. A uma, porque a própria ordem da salvação como um todo é objeto da fé, que crê que essa realidade não se apreende pela simples experiência, por ser oculta, embora a ordem da redenção se anuncie por prodígios e sinais da força do Espírito. A duas, esta unidade é oculta porque a graça pode ser erroneamente tomada por uma força e potencialidade própria do mundo, como se vê das utopias intra-mundanas geradas pelas ideologias que se sucedem com o desenrolar da história do homem. A três, a unidade é oculta visto que deve cada vez de novo passar pelo escândalo da cruz, isto é, constantemente é desmentida pelo fato de que o mundo não se cura, pelo fato de que todos os esforços heróicos para melhorar o mundo sempre se reduzem, como parece, ao absurdo e incessantemente geram, eles mesmos, os elementos que destroem o seu êxito. Como conseqüência, o mundo parece apresentar-se como a aventura absurda e irrealizável, que tem um único fim que se possa demonstrar de maneira realística: a morte. Em outras palavras: A própria ordem da redenção acha-se envolta na obscuridade da fé; seu poder sobre o mundo se pode interpretar erroneamente como sendo uma força imanente ao próprio mundo e, nada de definitivo consegue realizar no mundo, mas sucumbe à lei prepotente do mundo, à lei da ruína e da morte. A unidade entre ordem da criação e da redenção está envolta em trevas e esta condição constitui novo perigo para sua própria consumação. 283 284 RMC 71. RMC 72. 109 Conclusão A unidade entre natureza e graça exige - com Cristo, por Cristo e em Cristo -, que não se possa mais descaracterizá-la. Por isso é exigido do cristão diante do mundo uma “sobriedade realista em face do próprio mundo, tal como fundamentalmente somente o cristão pode ter, quer por ter conhecimento explícito de seu cristianismo, quer seja apenas um cristão anônimo, ou seja, um homem justificado pela graça de Deus”285. Por conta do mesmo fundamento de seriedade quer com a natureza, quer com a graça, o locus cristão não permite que o mundo seja divinizado. O cristão sabe que não é numinoso, mas uma criatura de Deus, “sustentada por ele acima do nada”. O cristão sabe, também, que a consumação definitiva do mundo lhe é dada unicamente pela ação divina, ou seja, vem do alto e não é produto de uma evolução que tenha sua fonte no mundo e na história. O cristão sabe que esta consumação, que confere o sentido último a tudo o mais, não pode ser forjada pelo homem, mas se atinge naquele ponto, em que o homem chega à profundeza última de sua impotência. Assim é o homem que, inspirado pela fé, conhece e ama a expectativa na esperança, cujo cumprimento se espera unicamente de Deus286. 3 - Graça e liberdade: a tensão de uma doutrina Introdução A palavra “graça” (χάπιϛ), no Novo Testamento, encontra-se quase que exclusivamente em Lucas e na literatura paulina (ou próxima a Paulo), o que demonstra que “graça” como conceito fundamental para definir a salvação trazida por Jesus Cristo somente surgiu em determinados círculos do cristianismo primitivo287. Rahner, considerando que em comparação com o entorno greco-judaico o termo graça é até bastante freqüente, o toma por uma expressão de uma escola de direção missionária. Nessa linha, 285 RMC 74. RMC 75. 287 Na tradição sinótica χάπιϛ aparece, embora não ofereça ponto de apoio terminológico para o desenvolvimento de uma doutrina da graça, enquanto que em Lc 6, 32 ss aparece a linguagem pré-lucana da fonte Q, em que χάπιϛ é a recompensa celestial, ou seja, uma salvação futura. Também em João (1, 17), de maneira semelhante a Paulo, a χάπιϛ é contraposta à lei e em 1, 16 descobrimos o tema da plenitude da graça, que nos v. 14 e 17 é interpretada pelo bem salvífico da verdade, o que é mais típico de João. Cf. K. BERGER. Gracia. SAC 313-314. 286 110 ele sustenta que a palavra χάπιϛ foi desenvolvida por Paulo, mormente a partir da fórmula epistolar “graça e paz”, que tem sua origem em uma saudação judaica288. É curioso notar que o conceito neotestamentário de χάπιϛ289 designa global e indiferenciadamente a salvação que Deus outorgou em Cristo, por pura bondade e não se refere, como teologicamente, à história da salvação, mas à idéia de que Deus sana, ou seja, cura a relação com o homem por um amor livremente outorgado. A vinculação da palavra χάπιϛ à salvação, na pessoa de Jesus Cristo, só encontramos em Atos 15, 11290, também aí de modo geral, porque para Lucas, a graça do Senhor reside “Nele”. Em Paulo, na carta aos Romanos, temos o primeiro momento de uma ampla reflexão sobre a palavra χάπιϛ, em que o autor ressalta o aspecto da gratuidade. Rahner observa que, na segunda carta aos Coríntios (1, 12)291, não se trata de mero jogo de palavras, mas de que a χάπιϛ é a conduta dirigida “ao outro” em uma relação de amorosa misericórdia. Esta relação é constituída pela misericórdia de Deus na ação salvífica em Jesus Cristo. Aí está a razão e o modelo da misericórdia mútua entre os homens que ao invés da razão usam a gratuidade. Por conseguinte, o uso de χάπιϛ mostra que a gratuidade é exatamente a ação que corresponde à graça nesta relação. Passando à doutrina da graça, percebemos que nela se manifesta o mais íntimo da fé cristã como um problema teológico, pois nela está implicada a concepção humana de Deus, de mundo e do próprio homem, como, aliás, temos visto, vagarosamente por todo este trabalho. Como nosso teólogo adverte, a doutrina da graça exige a doutrina trinitária, já que ambas compreendem a vida humana como missão histórica no mundo, com suas tensões polarizantes, ou seja: é a vida como vocação que abarca a responsabilidade humana pela ordem do mundo suportado pela onipresente bondade e santidade de Deus. A doutrina sobre a obra salvífica de Jesus, Deus e homem e do Espírito divino na Igreja, assegura a ação do Deus trino, no que a realiza Jesus Cristo, Deus e homem e o Espírito divino no perdão da culpa, na cura do enfermo abatido pelo pecado e 288 Misericórdia e paz para convosco, Cf. K. BERGER. ibid 309. Observe-se que em grego profano o conceito de χάπιϛ indica tanto a condescendência de um quanto a gratidão do outro, e igualmente a graça, a formosura, e também a mútua abertura livre e espontânea, outorgada com alegria e, por isso, na relação com Deus, indica simultaneamente a salvação dada por Deus e a gratidão do homem. A gratuidade da χάπιϛ em contraposição à retribuição é ressaltada desde Aristóteles. Cf. K. BERGER. ibid 310. 290 At 15, 10-11: Portanto, porque tentais a Deus, impondo ao pescoço dos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós fomos capazes de suportar? Pois cremos ter sido salvos, e eles também, pela graça do Senhor Jesus. 291 2Cor 1, 12: Nosso orgulho consiste no testemunho da consciência. Ou seja, que pela graça de Deus, e não por prudência humana, me comportei com todos, e em particular convosco, com a simplicidade e sinceridade que Deus pede. 289 111 na santificação do homem natural pela benevolência e pelo dom do amor de Deus. Tanto a natureza quanto a liberdade de decisão pessoal do homem retornam novamente ao espaço de Deus, nosso criador, Senhor e Pai292. 3.1 – A graça sem a liberdade: uma heresia A história nos conta que na revelação, sobretudo no Novo Testamento, o que se afirma com categorias judaicas sobre a história universal da salvação – nos sinóticos e em Atos -, ou sobre uma mística escatológica – como em João – ou de uma teologia da redenção ou da salvação – como em Paulo -, teve que ser mantido e desenvolver-se, posteriormente na Igreja primitiva num contexto de excessiva acentuação de questões éticas, provenientes de um espírito farisaico e estóico, assim também diante de uma espiritualização platônica293. Nos séculos II e III, a luta ao redor dos mistérios da fé cristã travou-se contra as influências do gnosticismo (judaico, pagão e intraeclesiástico). Diante de uma doutrina de autoredenção do ser humano por meio de um especial saber salvífico, e a decorrente falsa interpretação de Cristo como demiurgo, os primeiros grandes teólogos da Igreja, Irineu de Lyón, Tertuliano e Orígenes, anunciaram a Cristo, o crucificado, como o único redentor. É um longo período em que o cristianismo passa da defesa do que lhe é central, à afirmação que se constituirá, posteriormente, na soma dos Concílios de Nicéia e Constantinopla, no Símbolo cristão da fé, que crê no Deus trino: Pai, Filho e Espírito Santo294. Pela ordem, estas questões culminaram nas heresias cristológicas, que tiveram “resposta” em Nicéia e que foram seguidas por heresias pneumatológicas, como bem nos deu conta Basílio que expirou antes do Concílio de Constantinopla, mas, ainda assim, em seu Tratado sobre o Espírito Santo, tantas vezes citado, inspirou o texto final do Símbolo até hoje professado pelos cristãos, desde o texto final dos Concílios Niceno-constantinopolitano. A doutrina da interna filiação divina (1Jo 3, 1 ss) aprofundou-se teologicamente pelo desenvolvimento do dogma eclesiástico de Cristo, Deus e homem, e do Deus trino dos séculos IV e V. Dentre os capadócios, tão profundamente estudados por Rahner, destacam-se Atanásio e Gregório Nazianzeno; Dídimo o Cego, a respeito do Cristo, e Basílio, quanto à inabitação do Espírito de Deus; além de Cirilo de Alexandria na inabitação do Deus trino. 292 Cf. K. BERGER. ibid 308-314. Cf. J. AUER. Historia de la doctrina de la gracia. SAC 314. 294 Concílio de Nicéia, 325; Concílio de Constantinopla, 380; Concílio de Éfeso, 431; Concílio de Calcedônia, 450. 293 112 Sob a influência da filosofia neoplatônica (Plotino), surgiu uma mística cristã, fundada por Orígenes, hoje “reconhecido entre os escritores eclesiásticos da antiguidade como o mais lido depois de Agostinho” que ensinava a possibilidade de uma consumação terrestre da vida da graça na base de uma sobrenatural e extática contemplação de Deus e do concomitante amor a ele no marco da piedade eclesial. Esta teologia da graça continua sendo normativa até hoje na Igreja oriental grega295. Enquanto isso, na Igreja romana ocidental, Agostinho elaborou a doutrina da graça em um peculiar tratado teológico, polemizando contra a doutrina exteriorizada do pecado e da graça no pelagianismo. Fundamentando-se em Paulo, Agostinho ressaltava a causalidade total de Deus na justificação, santificação e predestinação do homem a si mesmo. Sem dúvida, conforme diz nosso teólogo, Agostinho substituiu a visão histórico-salvífica de Paulo ancorada no judaísmo, por um enfoque antropológico, acomodado ao pensamento romano (da parte de Agostinho) e germânico (da parte de Pelágio). Sua doutrina, elaborada entre o ano 412 e 430 em numerosos, amplos e polêmicos escritos contra Pelágio, obteve a aprovação da Igreja de Roma296. Teólogos do século V já não entendiam a graça como Agostinho (expressão do amor), mas como expressão da onipotência de Deus. Ensinavam equivocadamente a falta de liberdade do homem diante da predestinação e reprovação divina, o que gerou o chamado semipelagianismo no qual ao menos o inicio da fé e a perseverança final são obra do homem e não da graça. Ambos os erros foram condenados em numerosos concílios, particularmente no segundo de Orange, no ano 529 (Dz 178-200), e a doutrina de Agostinho recebeu, com limitação no que se refere à predestinação, sua definitiva aprovação eclesiástica297. A doutrina católica da graça adquiriu um tom abertamente antropológico quando na alta Idade Média a metafísica, a ética e a psicologia de Aristóteles passaram a ser a base para o desenvolvimento dos problemas teológicos, primeiramente entre os dominicanos (Tomás de Aquino e sua escola), mas desde 1280, aproximadamente, em especial, desde João Duns Escoto também os franciscanos expuseram a teologia de tendência agostiniana com categorias e princípios aristotélicos. Tomás desenvolveu sua definição da graça como um estado (habitus) sobrenatural da alma humana, enquanto que os franciscanos - Duns Escoto e seguidores -, identificaram a graça com a virtude sobrenatural da caridade. Os reformadores reagiram contra esta doutrina da graça na Idade Média posterior, sobretudo por verem nela uma fuga do temor de Deus para refugiar-se na santidade das obras. Lutero ensinou que a justiça de Deus (Rom 1, 17) imputa ao crente (Rom 3, 22) sem a 295 J. AUER. Gracia. SAC 315. Cf. também em H. CROUZEL. Origenismo. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. Petrópolis: Vozes. 2002, 1052. 296 J. AUER. ibid 315-316. 297 J. AUER. ibid 316. 113 sua colaboração, posto que o crente é pecador (Gal 3, 13) a obra redentora de Cristo. Calvino, junto a esta justificação pela fé, volta a ressaltar a transformação do homem pela penitência e o renascimento, assim como a vida cristã que brota da fé. O Concílio de Trento (Dz 792ª-843), em 1547, posicionou-se contra estas doutrinas a base de uma mentalidade escolástica, que se desenvolveu ulteriormente, sobretudo na Espanha. Com o mesmo espírito procedeu a grande disputa entre a escola dos Dominicanos (tomismo) e a dos Jesuítas (molinismo) em torno à ação da graça e da liberdade humana nas obras meritórias. Se o tomismo pretendia deixar a causalidade total do Deus criador como causa primeira (praemotio physica) na ação das criaturas, o propósito do molinismo era defender tanto a liberdade do homem como a de Deus (concursus simultaneus). A disputa terminou em 1607, sem que se elucidasse, por intervenção da autoridade eclesiástica, embora tenha voltado à tona no século XX298. 3.2 – A graça e a liberdade: a causalidade salvífica O problema da relação entre graça e liberdade é uma questão interna da teologia católica. A questão surge da dificuldade de salvar simultaneamente dois dados reais: o homem é realmente livre ao decidir-se por um “ato salvífico” podendo, portanto, recusar a graça oferecida para tal ato; ou o homem, para esse ato salvífico, necessita absolutamente da interna graça divina? Além disso, há que se considerar que “esta graça não alcança seu efeito pelo consentimento do homem, a não ser que de antemão tenha em si a virtude de produzir, de fato, tal consentimento”299. O problema se amplia especulativamente na teologia, formulado na seguinte questão: como se comporta a ação de Deus (em sua cooperação) com o ato livre do homem (e assim com o ato naturalmente bom e com o ato moralmente mau)? Aqui se encaixa o que tratamos exaustivamente nestas páginas sobre a distinção ente Deus e a criatura, e qualquer outra dependência causal intramundana. A característica da autonomia da criatura e a sua dependência de Deus não estão em uma proporção inversa, mas, ao contrário, estão em proporção direta. Isto porque a causalidade de Deus é a que produz a verdadeira diferença entre ele e a criatura, a que cria a autonomia com o seu próprio ser. Esta relação de índole transcendental, e não categorial, alcança o seu ponto culminante na relação entre Deus e o ser livre junto com os seus atos livres. A origem transcendental do ato livre em Deus implica precisamente sua posição como tal ato livre, sua entrega a criatura para que o receba sob sua responsabilidade. Este radicalismo da mais autêntica criação, em que toda a 298 299 Cf. J. AUER. ibid 314-319. RAHNER. Gracia. SAC 334. 114 criação alcança o seu sentido, é o mistério da coexistência entre Deus e criatura livre, mistério que não pode desentranhar-se300. Para Rahner, algo parecido deve ser dito sobre a ação moralmente má, ou seja, sobre o pecado e a culpa, já que ineludivelmente se trata de ação nossa. O ato bom e o ato mau, o bem e o mal, nem no plano ontológico nem no plano moral, equivalem a duas possibilidades completamente iguais da liberdade. O mal, tanto na origem de sua liberdade como em sua objetivação, é menos ser e menos liberdade. Nesse sentido, podemos e devemos dizer que o mal, em sua deficiência como tal, não requer nenhuma procedência de Deus301. Esta observação não resolve o problema da relação entre Deus e o mau uso da liberdade, mas aponta a possibilidade de reservar à criatura algo que, nem pode derivar-se de Deus, como a boa ação, nem há de devolver-se a Ele com gratidão, como graça Sua302. 3.3 – A graça da liberdade libertada: a Redenção e a justificação O tratado da graça é parte de uma antropologia da graça que se ocupa do homem redimido e justificado. Por isso Rahner defende que este tratado não deve tratar da graça em abstrato, mas do homem agraciado, pois se a realidade do homem não contempla todas as suas dimensões, a noção de graça se restringe à abstração formal de uma “experiência” da essência do homem, ou de uma ajuda moral para a sua vida ética. Esta parte relativa ao homem redimido e justificado deve encontrar o seu lugar depois da cristologia e da eclesiologia, pois nestes tratados se descrevem a causa, a condição prévia e a situação do homem santificado. O tratado deve ser uma doutrina sobre a graça que diviniza e perdoa o homem em todas as dimensões de sua vida, incluindo, pois, a doutrina sobre as virtudes teologais como componente necessário que, em seu conjunto, constitui a base dogmática essencial a uma originária teologia moral dogmática, conforme a caracterização de uma teologia moral no Concílio Vaticano II (Optatam totius, 16)303. Considerando que, ao fim, a graça é a comunicação de Deus absoluto à criatura e esta comunicação tem também uma história que alcança seu ponto culminante escatológico e irreversível em Jesus Cristo, como vimos insistindo junto com Rahner, segue-se que, na teologia do homem redimido e justificado (santificado) pela graça, entra também a doutrina do homem 300 RAHNER. Gracia y Libertad. SAC 335. Cf. RAHNER. ibid 339-340. 302 RAHNER. ibid 340. 303 RAHNER. Tratado teológico sobre la gracia. SAC 341. 301 115 justificado antes de Cristo (ainda que justificado por ele) ou fora do âmbito de onde chegou a mensagem histórica do cristianismo sobre a salvação eterna304. Assim o tratado sobre a graça não pode abster-se de tratar, primeiramente, da comunicação trinitária de Deus ao homem na sua estrutura essencial, a qual, como ato fundamental de Deus sobre o que não é divino, inclui e distingue a criação e a graça, a ordem supralapsária305 e a infralapsária306. Partindo desse fundamento, o tratado da graça deve explicar a noção de graça sobrenatural da justificação como graça incriada. Mas isso também não se há de fazer mediante uma mera abstração formal e a redução à intimidade subjetiva de cada indivíduo, mas há de se ressaltar o caráter cristológico dessa graça, como dinamismo para participar nos mistérios e na morte de Cristo e sua natureza infralapsária, que constitui uma permanente ameaça para a graça que, não obstante, esta ameaça, vence sempre e de novo, cada vez mais e mais. Esta graça da justificação relaciona-se como divinização e redenção (libertação) de todas as dimensões da existência humana, o que implica ter que elaborar o caráter individual e coletivo - ou eclesiológico -, o antropológico e o cósmico (graça como transfiguração do mundo) da graça. Temos que pensar a graça de acordo com as dimensões transcendentais do homem, como verdade, amor e beleza. Diz Rahner que, se assim o fizermos, entrelaçamos a doutrina sobre a atualização da graça sobrenatural na relação dialógica entre Deus e o homem, relação esta que é livre de ambas as partes e, portanto, novamente livre por parte de Deus (graça eficaz), assim compreendendo a doutrina sobre a graça atual, em sua essência formal e em sua relação com a graça da justificação; a vida justificada em Cristo sob seus aspectos formais, ou seja, a gratuidade da graça e, inclusive, o desenvolvimento dinâmico da justificação; o caráter oculto da graça e experiência da liberdade sobre a graça que é a libertação da liberdade pela graça. Conclusão Para entender realmente o problema “graça e liberdade”, ao final de tanta tinta gasta na história da humanidade, como brevemente aqui tentamos apontar, diz Rahner, bela e surpreendentemente, que é preciso deixá-lo (o problema !) de lado e aceitá-lo: é preciso voltar à atitude orante. 304 RAHNER. ibid 341. Supralapsária: graça de Deus no estado original, ou seja, cristocêntrica. 306 Infralapsário: após o pecado (original), que a graça somente permitiu em vista de sua vitória incondicional. 305 116 O orante “recebe” o que ele é e o devolve a Deus, tomando a aceitação como momento do dom mesmo. Por adotar esta posição orante, com a qual se aceita a “solução” do problema, não se cai em nenhuma petitio principii307 nem se empreende uma fuga. Com isso se aceita simplesmente o que é ineludível: a unidade do real e o originário, quer dizer, a criatura, que crê com liberdade, e no ato de crer é criada como graça308. 307 petitio principii. (raciocínio, argumento circular), em geral, a falácia de assumir como premissa uma declaração que tem o mesmo significado que a conclusão. Cf. http://philosophy.lander.edu/logic/circular.html. Acesso em 09.11.2007. 308 RAHNER. Gracia y Libertad. SAC 340. 117 Capítulo III – Concepção de Salvação Salvação apesar de ser um conceito básico para a religião e para a teologia, não é um termo técnico teológico. O problema fundamental é que a palavra salvação não significa primariamente uma conquista “objetiva”, como nas utopias seculares, mas, ao invés disso, a cura “subjetiva” existencial e a realização da vida. Rahner nos faz lembrar que, de acordo com o testemunho das escrituras, a vontade salvífica de Deus não é um atributo de Deus, mas a atitude livre e pessoal que se revelou pela primeira vez, definitiva e irrevogavelmente em Jesus Cristo. Por conseguinte, nosso autor defende que não se pode compreender o termo salvação apenas identificado com a graça, mas numa visão complementada pelo conceito de visão beatífica e da ressurreição da carne. Nessa linha, ele diz que a salvação que se aplica à totalidade do ser, e não é dada neste mundo por uma redenção objetiva, permanecendo como o objeto essencial da esperança cristã. E porque a esperança é suportada pelo (escatológico) evento salvífico Jesus Cristo, a salvação não é uma dentre duas possibilidades, com a perdição como a outra metade a dividir um status equivalente, e entre as duas, a liberdade humana podendo fazer uma escolha autônoma. Por meio de sua soberana e efetiva graça, Deus já determinou a inteira história da liberdade em favor da redenção do mundo em Jesus Cristo309. Em razão disso, a salvação tem uma história. Esta história parte de Deus, e, é história que, em cada indivíduo e na humanidade, se funda na livre autocomunicação pessoal de Deus. Dito com Rahner, é uma história livre a partir de Deus no sentido de que o seu desenlace é evento da liberdade de Deus, que doa a si mesmo ou se subtrai. A historicidade da história da salvação a partir de Deus e não só a partir do homem vem a ser experimentada e aparece com maior clareza no dogma fundamental do cristianismo, que afirma a encarnação do Logos eterno em Jesus Cristo. Mas esta história é também contada a partir da liberdade do homem, uma vez que a autocomunicação pessoal de Deus enquanto fundamento dessa história dirige-se precisamente à pessoa criada em sua liberdade310. Toda ação salvífica de Deus no homem é também e sempre uma ação salvífica do homem. A revelação somente pode ocorrer na fé do homem, que é o ouvinte desta revelação. Nesse sentido a história da salvação e revelação é sempre síntese simultânea da ação histórica de Deus e da ação histórica do homem, porque a história da salvação de Deus e humana não podem ser pensadas como uma colaboração de tipo sinergético. Deus é o fundamento do ato de liberdade do 309 310 DTH 458-459. CFF 175. 118 homem e, em seu próprio agir, enche o homem da graça e da responsabilidade por seu próprio e irrecusável agir. Por isso a história divina da salvação aparece sempre na história humana da salvação, a revelação aparece na fé, e, vice versa311. 1 – A Tua fé nos Salvou Introdução “A tua fé te salvou, vá em paz”. Estas são das palavras mais repetidas por Jesus que, apesar de ter a fé perfeita, nunca falou de sua própria fé, mas da nossa, como Salvação. Nesse sentido, passamos analisar esta fé que nos salva e a do Filho de Deus, que nos salvou, Jesus Cristo. A existência cristã é plasmada na fé. Numa fé que preludia o Deus Trino. Este trabalho não se permite tomá-la por uma premissa cega, tal qual na doce fé do carvoeiro. O que aqui se cuida é de uma fé sempre crua, exposta ao desafio em que Rahner luta para justificá-la “com honradez intelectual”312. Para tanto, não pensamos a fé sem restringi-la ao seu primordial adjetivo: cristã. A fé que é cristã, a fé vivida pelo cristão, “que sabe que toda a realidade terrena está envolvida por aquele Uno, Incompreensível que chamamos Deus e que confessamos na fé como o Pai do amor eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”313. Pode parecer suficiente afirmar que já encontramos a fé, há quase dois milênios, condensada no que cremos, nas fórmulas sintetizadas nos símbolos professados pelos cristãos. Sabe-se que não. O tempo muda o sentido das expressões. As expressões perdem em significância para uma ou outra cultura. Esse é o desafio que torna constante a busca de atualizar o conteúdo do que se professa e, principalmente, o melhor modo de dizer o que vive o cristão. Ademais disso, considerando a profundidade e a incompreensibilidade do mistério a que o cristianismo se refere, não podemos dizer algo sobre seu conceito a todos ao mesmo tempo314. Se assim é, e assim o cremos, o homem de fé, que conhece nosso Senhor Jesus Cristo e se toma por seu seguidor se depara com uma grandeza irredutível, qual seja, ter diante de si a “totalidade de sua própria existência”, vale dizer ter-se por todo diante de si. 311 RAHNER. Traité fundamental de la foi: introduction au concept du christianisme. Paris: Éditions du Centurion, 1983, 167-168. Cf. CFF 175-176. A presente citação foi colhida da versão em francês. 312 Cf. CFF 6, 16, 17, 20, 23. O autor insiste por toda a sua vida em dar à fé honradez intelectual. 313 CFF 470. 314 CFF 5. Note-se que por conceito, Rahner segue Hegel e refere-se a um “esforço conceitual”. 119 Os desafios de gerir uma experiência dessa natureza é do que passamos a tratar. Assim, levantando a pergunta sobre se o Jesus histórico será o Cristo da fé, como se usa colocar na teologia fundamental católica, esta pergunta, além da credibilidade da nossa fé em Jesus como o Cristo, implica também o “estado objetivo das coisas”. Diz Rahner que a pergunta, por sua própria natureza, apela e diz respeito ao todo da existência humana, não se podendo de antemão colocá-la sem que as dimensões concretas da existência do sujeito que interroga possam ser excluídas. Se levanto uma pergunta, que, realmente, me atinge como todo, nada posso deixar em mim de lado como irrelevante ao colocar essa pergunta. Se me interrogo por uma salvação para mim, necessariamente me interrogo por mim como todo, pois isto implica precisamente a idéia de salvação315. 1.1 – A unidade da experiência apostólica da ressurreição e a nossa própria ressurreição Somente através do testemunho apostólico, ou seja, é na dependência do testemunho dos que viram o Senhor ressuscitado que cremos na ressurreição: nossa fé permanece vinculada ao testemunho dos apóstolos, negando-se a aplicação a esse testemunho, do que se entende como testemunho jurídico, porque ouvimos a mensagem da ressurreição que cremos, mediante a graça de Deus, sob influência do testemunho interior da experiência do Espírito. De novo, para Rahner é importante afastar a suspeita do mito. Por isso mesmo ele afirma que a fé pascal expressa o seguinte: na fé e esperança em nossa própria ressurreição, fazemos a experiência da coragem de nos situar acima da morte. Isso tendo em vista o Ressuscitado que se apresenta no testemunho apostólico e o Espírito Santo em quem fazemos a experiência de Jesus e de sua causa como vivos e vitoriosos. A nossa esperança (transcendental) na ressurreição está sempre em busca de sua apreensibilidade (atestação categorial), por ser imperioso para quem crê na possibilidade salvífica cristã para todos. Essa esperança (transcendental) somente pode dar ao seu fundamento e objeto o seu nome (categorial) pelo testemunho apostólico sobre Jesus ressuscitado. Rahner cita são Paulo para realçar a mútua relação de condicionamento entre a experiência do Espírito e a fé na ressurreição, assim afirmando que o que alcançamos historicamente não é a ressurreição de Jesus, mas a convicção dos discípulos de que “Ele vive”. É este Jesus, com sua história concreta, dotado de permanente valor e aceito por Deus, que percebemos na “experiência” da ressurreição. 315 CFF 274. 120 A marca de toda a teologia rahneriana remete e introduz à “experiência” de fé316. Não de uma fé preconcebida, mas uma fé despertada em um movimento de entrega à própria vida317. Sua teologia não se restringe a um conhecimento salvífico, mas pretende continuar sendo este saber salvífico que diz respeito a todos. Daí a importância de lembrar agora sua advertência de que “uma atividade salvífica sem fé é impossível, e fé sem encontro com Deus que se revela pessoalmente a si mesmo é contradição nos termos”318. Para Rahner o acontecimento (histórico) fundante da fé e a fé mesma constituem uma relação que se dá no interior da própria fé. Rahner torna esta afirmação válida com respeito não apenas às primeiras testemunhas, mas também a nós que viemos a crer posteriormente. Para a nossa fé, a fé dos primeiros discípulos, bem como a das gerações de fé dos que se situam entre aqueles e nós, significa não só a transmissão do material histórico, que depois transformamos para nós – dentro do nosso ato de fé absolutamente novo, autônomo e original – em motivo e objeto da fé. [...] Na medida em que somos estimulados pela fé dos primeiros e dos testemunhos dos que nos antecederam, entramos nós próprios na estrutura da sua fé e podemos com toda razão com eles dizer, por exemplo: porque Cristo ressuscitou, eu creio319. Este espetacular e ousado pressuposto metodológico de Rahner suscita a pergunta sobre se o homem que não crê em Jesus como o Cristo pode aceder a esta fé, de dentro ou de fora do campo de influência do Cristianismo. Diz Rahner que existe um saber em cujo círculo uma pessoa se “experimenta” introduzido sem que ele mesmo tenha construído esse círculo de maneira reflexiva. Aqui ele alerta que isso que lhe vem dado pode cessar depressa e o homem torna-se cego para o conhecimento que lhe é oferecido na “experiência”, ainda que não produzido propriamente por ele mesmo. Por isso a doutrina cristã postula que tal círculo não é produzido em reflexão posterior, é algo que se deduz da gratuidade da fé. E por isso, é nosso convencimento de que o “título” da principal obra de Rahner, o Curso fundamental da fé, nos obriga a essa lenta e prévia análise para compreensão posterior do que seja Salvação. 316 Seu discípulo J. B. Metz (1928-), certa vez, qualificou Rahner “Não apenas mestre de minha teologia, mas pai de minha fé”. In B. SESBOÜE, Karl Rahner. Itinerário teológico. SP: Loyola. 2004, 9. 317 Ibid. 318 CFF 187. 319 CFF 287-288. 121 1.2 – Relação de fé existente de fato Do ponto de vista humano e, por isso, do ponto de vista da teologia fundamental, é legítimo que a cristologia parta da relação de fato existente entre o fiel e o Cristo. Por mais que o que crê tenha que dar razões [...] a si e aos outros, do fundamento pelo qual está convencido de encontrar o portador absoluto da salvação precisamente em Jesus, ele não tem necessidade de se comportar como se estabelecesse ou devesse estabelecer pela primeira vez essa relação através de tais reflexões. Ainda que o crente deva dar razão de sua fé em Jesus Cristo, pode, contudo, principiar por refletir primeiramente sobre sua fé dada de fato e sobre a natureza dessa. Pode e deve fazê-lo, pois a fé precede a teologia, e não precisa ser de opinião que uma reflexão teológica possa edificar sua fé como que desde o nada, ou que deva alcançar em seus fundamentos a fé, que afinal se baseia na graça e na livre decisão, a fim de tornar supérfluas a graça e a decisão livre320. A nossa relação com Jesus, que Rahner admite como algo dado, somente pode ser compreendida como é entendida e vivida nas Igrejas cristãs, sendo irrelevante para sua reflexão a determinação da natureza dessa relação, como ele explicita, acima, bastando o pressuposto que ela se distinga de relação puramente histórica ou puramente “humana” para com Jesus Cristo, tal como pode ter todo indivíduo a quem já chegou alguma notícia sobre Jesus de Nazaré. Ao descrever esta relação cristã, não precisamos (pelo menos de início) distinguir entre o que Jesus é “em si” na fé dos cristãos e o que ele significa “para nós”. Pois estes dois aspectos não se podem distinguir adequadamente em sua unidade. De um lado, não poderíamos nos interessar nem nos interessaríamos por Jesus, se ele não tivesse nenhuma “importância para nós”, e, por outro lado, toda afirmação acerca dessa importância para nós é afirmação referente a um “em si”, pois de outra forma, contrariamente à convicção da fé cristã, seríamos nós próprios que por nossa própria iniciativa e responsabilidade lhe atribuiríamos tal importância321. 1.3 – Relação com Jesus como absoluto portador da salvação Na afirmação de Rahner acima, encontra-se mais um desafio para a sua teologia filosófica porque aqui “subjaz outra questão”. Outra questão que se pergunta se é dado ao homem – ou se o homem tem a capacidade – de perceber uma idéia, ou uma forma, um ato ou um evento absolutos. [...] O que certamente se impõe ao pensamento teológico cristão é a 320 321 CFF 244. CFF 245. 122 necessidade de mostrar de que maneira a particularidade da fé em Jesus Cristo tem um caráter universal e absoluto322. A grande marca da teologia de Rahner vem apontando neste trabalho o papel da liberdade dentro do que mais profundamente crê nosso teólogo ao dizer que o movimento inteiro da autocomunicação de Deus vive do seu chegar ao seu próprio fim, ao seu vértice, ao evento de sua própria irreversibilidade, precisamente, portanto, do que chamamos de portador absoluto da salvação. Este movimento teimosamente ascendente produz um efeito único: universalizar a salvação que nessa “caminhada” encontra destino em Seu verdadeiro e irreversível fim, ou, seja, encontra caminho, verdade e vida (eterna) naquele que é, naquele que porta em si e que nos transporta ao nosso irreversível destino. Em conseqüência, este portador absoluto da salvação, que constitui o vértice da autocomunicação de Deus ao mundo, deve ser ao mesmo tempo o apelo absoluto de Deus à criatura espiritual em seu conjunto e o acolhimento da autocomunicação, pois de outra forma a história não poderia chegar à sua irreversibilidade. Somente então é dada a autocomunicação de maneira simplesmente irrevogável de ambas as partes e presente no mundo de forma histórica e comunicativa323, e de onde se pode valorar a liberdade absoluta e a liberdade criada como indispensáveis a este movimento. De acordo com a convicção da fé cristã, Jesus é aquele que – através de sua obediência, sua oração e livre aceitação de seu destino de morte – realizou também o acolhimento da graça dada a ele por Deus e a imediatez com referência a Deus, graça e imediatez de que goza enquanto homem324. Jesus Cristo, o portador absoluto da salvação – ou seja, a irreversibilidade da história da liberdade como autocomunicação exitosa de Deus, é de início ele próprio e, por sua vez, momento histórico do agir salvífico de Deus para com o mundo de tal sorte que ao mesmo tempo é parcela da história do próprio cosmos. Ele não pode ser simplesmente o próprio Deus agindo no mundo, mas precisa ser parcela do mundo, momento em sua história e precisamente em seu climax. É isso que se afirma no dogma cristológico: Jesus é verdadeiramente homem, 322 VÁZQUEZ MORO. A configuração do cristianismo, 365. Ressalto que neste texto o autor faz uma distinção importante ao usar o verbo “mostrar”. Em suas palavras: Digo mostrar, não demonstrar. O que se impõe aos olhos da fé que o teólogo estuda na Escritura e na tradição viva da Igreja, ou simplesmente, aos olhos da fé do cristão que tem fome de compreender as dimensões da graça daquilo que crê, não é algo que se possa impor a outras pessoas por razões demonstrativas. 323 CFF 234-235. 324 CFF 235. 123 verdadeiramente parcela da terra, verdadeiramente momento no devir biológico deste mundo, momento da história natural humana, pois “ele nasceu de uma mulher” (Gl 4,4)325. Com este arrazoado não queremos distanciar de nossa fé que o Messias, o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo seja um homem que, em sua subjetividade espiritual humana e finita, é, da mesma forma que nós, receptor da graciosa autocomunicação de Deus que afirmamos com Rahner como universalmente destinada a todos os homens e, portanto, também ao cosmos, como sendo o ponto mais alto da evolução, no qual o mundo chega de forma absoluta a si mesmo e à absoluta imediatez com referência a Deus. Conclusão Crer em Jesus Cristo, o nosso Senhor, é afirmá-lo como critério de discernimento. Diante da grandeza dessa afirmação, Rahner a sustenta dizendo que somente no evento pleno e insuperável da auto-objetivação histórica da autocomunicação de Deus ao mundo em Jesus Cristo é que temos o evento que, por ser escatológico, está em princípio excluído de eventuais depravações históricas e de explicações perversas que possam surgir na ulterior história da relação categorial e da deformação da religião (sic.). Em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado temos um critério para discernir [...], entre o que é mal-entendido humano da experiência transcendental de Deus e o que é legítima explicação dela. Somente partindo de Jesus, é possível realizar em última análise semelhante discernimento dos espíritos326. 2 – Cristologia transcendental Introdução Este trabalho persegue a liberdade, na visão trinitária da obra de Rahner. Alguma vez, a tentação de enveredar pela multiplicidade de temas que nosso autor comentou obriga afunilar o estudo para não perder o foco. Tal não é o caso com as cristologias que passamos a defender porque o estudo atento as mostrou como peças importantes na compreensão do objeto central perseguido. Nesse sentido, nos detemos no pensamento transcendental de Rahner por ser uma marca cada vez mais forte em toda a sua teologia. Este pensamento transcendental é a fonte da formulação 325 326 CFF 235. CFF 193. 124 de infinitas questões do “último” Rahner, no período de 1964-1979, por exemplo, no objeto que ora estudamos, ou seja, a cristologia transcendental, que ele vem tratar sem abordar estreitamente suas considerações filosóficas básicas, ou seja, do ponto de vista do teólogo, na abalizada avaliação de K. Lehmann, aqui desponta em Rahner a dimensão missionária e pastoral que “isola” as considerações filosóficas básicas de seu filosófico ponto de partida, em seus começos327. A motivação de nosso autor é singular: a fé não pode depender de conceitos filosóficos sob pena de perder seu próprio poder explosivo, único, o qual pode ser visível por meio de muitas filosofias e, ainda assim, transcendê-las todas. Feita a ressalva, voltamos a Rahner, para quem não podemos eliminar a necessidade de uma cristologia transcendental sob o argumento de que o surgimento histórico de Jesus, portador absoluto da salvação, a encarnação do Logos divino em nossa história, constitui o milagre absoluto que se nos impõe sem que o possamos deduzir e, em conseqüência, sem que possa ser especulativamente explicado e intuído. O que surge na história inesperada e miraculosamente deve achar vias para “chegar” a nós. Por isso deve ser-nos possível perguntar pelas condições de possibilidade deste “poder chegar” a nós, sobretudo desde o momento em que nos demos conta de que não devemos pressupor que tais condições se devam buscar no que, em terminologia teológica tradicional, chamamos de “natureza pura”, mas está implicado na elevação “sobrenatural” da “natureza humana, que obviamente (uma vez que essa elevação não se situa para além da consciência e uma vez que é ofertada a todos) pode ser invocada também por uma cristologia transcendental328. Hodiernamente, além da antropologia que constata de modo meramente empírico e descreve de maneira aposteriorística, existe, também, uma antropologia transcendental, que justifica uma cristologia transcendental explícita que se interrogue pelas possibilidades apriorísticas no homem para que a mensagem de Cristo chegue a ele. Sua ausência na teologia tradicional acarreta o risco de avaliar os seus enunciados simplesmente como exageradas hipérboles mitológicas (no mau sentido do termo) elaboradas sobre acontecimentos históricos, e, daí, não se possuir nenhum critério para que se possa distinguir na cristologia tradicional entre genuína realidade da fé e interpretação da fé, interpretação que não mais está em condições de mediar para nós hoje o que se entende pela fé329. 327 Cf. TCF 25. CFF 248-249. 329 CFF 249. 328 125 2.1 – O que significa ser Filho Eterno de Deus Rahner conclui que uma cristologia transcendental tenderá por sua própria natureza a um “portador absoluto da salvação”, ressalvado que, na fé, o conceito de portador da salvação pode se encontrar e na verdade foi encontrado pelo cristianismo precisamente em Jesus de Nazaré e unicamente nele. Mas este incansável teólogo diz que “ainda assim” não se terá respondido à nova questão: A partir desse conceito, o portador absoluto da salvação pode ser identificado com o Verbo e Filho Eterno do Pai, que o cristianismo já no Novo Testamento confessa ser este Jesus, ou a afirmação do Logos encarnado do Deus não passa de afirmação acessória e superável que se acrescenta ao enunciado de Jesus como o portador absoluto da salvação? Se com isso já se começa a escrever uma cristologia transcendental (e, sendo assim, “essencial”), não pode carecer de sentido levar avante semelhante cristologia essencial e, antecedentemente à questão acerca do encontro com o Jesus historicamente concreto, perguntar-nos o que propriamente se entende quando o cristianismo fala de encarnação de Deus330. Nós não partimos da premissa de que só conheceríamos algo de Jesus por pesquisa ou curiosidade histórica, mas, ao contrário, pressupomos existir a fé do cristianismo, ainda que esta fé venha a ser mais tarde legitimada por uma reflexão histórica elaborada para contribuir com a teologia fundamental. Este caminho, para Rahner, não implica um circulus vitiosus de argumentação e, por isso, torna legítima a pergunta sobre o que propriamente significa encarnação de Deus, sem que a pergunta se restrinja e se vincule ao sentido de portador absoluto da salvação331. Para Rahner, a questão sobre o sentido da encarnação ou do fazer-se homem da parte de Deus move-se no interior de uma cristologia essencial, ou seja, não inclui ainda a pergunta sobre se o portador da salvação assim entendido já existe na história e quem é ele. Nesta questão está o centro da realidade de que vivemos os cristãos, nós, os que cremos. É somente a partir daí que o mistério da Trindade divina nos atribui de forma definitiva e historicamente tangível o mistério de nossa participação na natureza divina. Este mistério é inesgotável e, em comparação com ele, a maioria das coisas sobre o que refletimos são relativamente sem importância. A verdade da fé somente se pode salvaguardar fazendo teologia sobre Jesus Cristo e fazendo-a sempre de maneira nova. Pois também nesse ponto vale que só possui o passado quem o conquista como seu presente332. 330 CFF 254. Cf. CFF 254-255. 332 CFF 255. 331 126 Com isso, Rahner não busca demonstrar o sentido de “encarnação de Deus” como consta nos documentos da Igreja, mas tratá-lo enquanto tal. Esclarecido que estas reflexões se referem ao “sentido” de encarnação de Deus, observe-se que estamos tratando de cristologia essencial de descida, ainda que não seja possível elaborar cristologia desta natureza sem contínua referência a reflexões de antropologia transcendental, posto que aqui, sempre e novamente está se tratando da universalidade da salvação. 2.2 - O que significa Deus se fez homem A fé cristã, no Prólogo do Evangelho de João, nos diz que a “Palavra de Deus” se fez carne, ou seja, homem (Jo 1, 14). Rahner aponta o risco de se renunciar a dizer algo sobre a proposição da “Palavra de Deus”, pois poderíamos não compreender a “encarnação” da Palavra de Deus, se a expressão “Palavra de Deus” representasse algo muito confuso. Desde Agostinho, a teologia escolástica se habituara a pensar como coisa óbvia que qualquer daqueles Três infinitos - pessoas da única divindade -, poderia ter-se feito homem, bastando que a respectiva pessoa divina o quisesse. Sob tal pressuposto, o termo “Palavra de Deus” significaria qualquer sujeito divino, qualquer hipóstase divina. Se assim fosse, esta proposição significaria o seguinte “um da Trindade se fez homem”. Porém, se nos voltarmos à outra tradição, à patrística grega, podemos entender o predicado a partir do sujeito da sentença porque, se no sentido e na essência da Palavra de Deus, está implicado que só ela pode e de fato inicia a história humana, de sorte a que este mundo se torne não só a obra posta por Deus, mas também a realidade própria de Deus. Então, só entenderá o que seja encarnação quem souber o que seja propriamente a “Palavra” de Deus, assim como também só entenderá o que seja “Palavra” de Deus quem souber o que seja encarnação, o que Rahner assim sentencia. Deus se fez homem. Pois somente aí é que entendemos o que significa propriamente a Palavra de Deus. Não porque qualquer das pessoas divinas possa se tornar homem, mas antes porque – desde a sentença de que Deus se auto-expressou para nós imediatamente precisamente em uma história como homem – torna-se inteligível que Deus, o princípio originário indevassável – que chamamos de Pai – possui realmente um Logos, isto é, a possibilidade de expressar-se historicamente a si mesmo e em si mesmo para nós, que este Deus é a fidelidade histórica e, neste sentido, é o Verdadeiro, o Logos. Rahner se põe a pensar sobre a palavra “homem” diante da proposição “Deus se fez homem” por admitir que (“homem”) é o que somos, e o que melhor deveríamos com-preender e apreender. Mas ele nota que o que se dá é justamente o inverso, porque “definir, circunscrever 127 mediante fórmula que enumere adequadamente a soma dos elementos de determinada essência, só se pode fazer quando se tem presente um objeto ou coisa que seja composta de parcelas originais constitutivas últimas”. No que respeita ao homem, é impossível uma definição deste tipo, como visto por toda a Primeira Parte deste trabalho. Assim, em sua genialidade, Rahner diz que podemos cabalmente defini-lo “homem” como a in-definibilidade chegada a si mesma333. O homem é, pois, em sua essência, em sua própria natureza, o mistério, não porque seja em si a plenitude infinita, que é inexaurível, do Mistério para o qual tende, mas antes porque ele, em sua essência autêntica, em seu fundo originário, em sua natureza é a referência – pobre, mas chegada a si mesma a essa plenitude334. Cabalmente definida a essência do homem, o teólogo parte em busca da compreensão de “encarnação”. Ele alerta que a cristologia não se constitui em uma espécie de “cristologia da consciência” em contraposição a uma cristologia ontológica da unidade substancial do Logos com a sua natureza humana, mas se constrói com base na intuição metafísica de autêntica onto-logia, segundo a qual o verdadeiro ser do espírito é, ele mesmo, espírito. Pode-se, então, retirar das afirmações tradicionais da dogmática aquela impressão mitológica de que Deus se teria revestido da roupagem de natureza humana, a ele aderente apenas de forma exterior, a fim de vir cuidar da boa ordem na terra, visto que dos céus não mais conseguia fazê-lo335. 2.3 – O que significa ressurreição Rahner nos apresenta dois belos pressupostos. Primeiramente, a unidade entre a morte que se apresenta de tal maneira que se supera na ressurreição, “como que morrendo ao entrar nela”. Afirma, assim, que a ressurreição significa o começo de novo período da vida de Jesus, um período continuado na ordem do tempo, e, em segundo lugar, o sentido de “ressurreição” em geral e da de Jesus não é o de revificação de um cadáver físico-material, mas o de salvação definitiva perante Deus. Para o teólogo, a ressurreição de Jesus é a vitória escatológica da graça de Deus no mundo, não podendo vir a ser pensada sem se ter alcançado a fé nessa ressurreição, na qual somente a natureza da ressurreição chega à sua realização plena e consumada. É nesse sentido que Rahner diz que “Jesus ressuscita na fé dos seus discípulos”. Naquela fé operada por Deus e que se entende como libertação de todas as forças da finitude, da culpa e da morte, somente capacitada para tal em virtude de que essa liberdade aconteceu em Jesus e nele se nos manifestou. 333 Cf. CFF 258. CFF 259. 335 CFF 261. 334 128 A ressurreição - de que se trata na vitória de Jesus sobre a morte, à diferença das ressurreições de mortos de que se fala no Antigo e no Novo Testamento - significa a salvação da existência humana concreta definitiva perante Deus. Tirar conseqüência do pensamento aqui exposto implica entender que um sepulcro que se constate vazio, jamais poderá testemunhar, enquanto tal e por si só, a existência e o sentido de ressurreição, que é salvação definitiva operada por Deus. A palavra “ressurreição” deve evitar o falso sentido de retorno a uma vida biológica no espaço e no tempo tal qual a vivemos aqui no mundo, porque ressurreição não significa perduração salvificamente neutra da existência humana, mas o ser assumido e salvo por Deus336. Insiste Rahner que a morte e a ressurreição de Jesus significam o começo de novo período “na vida” de Jesus, preenchido com algo de novo, mas continuado na ordem do tempo. É antes precisamente “a definitividade permanente e salva da única vida singular de Jesus” que, pela morte enfrentada na liberdade e obediência, atinge a “permanente definitividade de sua vida”337. Conclusão Estas linhas são centrais para o cristianismo como pontua são Paulo ao sentenciar que se Cristo não ressuscitou, a nossa fé é vã e, por isso, o grande desafio cristão de dizer a ressurreição aos homens de cada época. Apresentamos aqui um ilustrativo parêntesis em que se perfaz o caminho desses dois milênios, por engrandecerem as conclusões do conjunto coerente do pensamento rahneriano. De início, lutava-se contra o pensamento judeu, que acreditava no roubo do corpo. Lutavase, também, contra o pensamento grego que, no exemplo de Platão acreditava que o corpo é o túmulo da alma, resultando na cena do areópago em que são Paulo não consegue levar adiante o tema da ressurreição. Na Patrística, Orígenes, Irineu e Tertuliano foram os maiores a enfrentar a questão, sendo que o primeiro tratou mais da ressurreição de Cristo e os dois últimos alargaram o tema à nossa ressurreição. No Concílio de Calcedônia articulou-se o problema das duas naturezas. Desse período em diante, a ênfase passa à encarnação, até atingir a Idade Média, no expoente Santo Tomás, para quem a paixão remove o mal, enquanto que a ressurreição acrescenta o bem. No século XVIII, a exegese encara o método histórico-crítico e no século seguinte, filosofia transcendental, com Kant. Dessa corrida pelo tempo resta, depois do horizonte histórico-crítico, uma quase 336 337 Cf. CFF 317. CFF 315. 129 decepção pelo que de efetivo resultou. A questão, então, teve que ser vista em outro parâmetro, não mais espaço-temporal, mas escatológico. Da luta ao longo da história, algumas questões foram sendo trazidas como, por exemplo, se a ressurreição é um evento ou não. O esclarecimento é importante porque se chegássemos à conclusão de que a ressurreição não é um evento, culminaríamos por admiti-la como um mito. Daí resulta fundamental a não desvinculação da ressurreição da soteriologia. A ressurreição de Jesus Cristo somente pode ser entendida como evento salvífico, evento esse em que Deus é o agente. Nesta brevíssima síntese, objetivamos ressaltar a inteligente e hábil proposição de Rahner como a que melhor consegue confessar e professar a fé pascal para os nossos dias, em vista do quê deixamos sem mencionar de per si os tópicos que classicamente se relacionam à ressurreição, como kerigma, relatos do túmulo vazio e os de aparição. 338. Na análise dos relatos de infância elaborada por Rahner, eles têm a mesma dimensão histórica que a última ceia de Jesus, mas a ressurreição se constitui numa realidade particular, porque, de um lado, refere-se ao Jesus histórico concreto em si e não à nossa afirmação de fé e, de outro, afirma uma realidade que não mais pertence à nossa dimensão histórica, o que se vê pela experiência do ressuscitado só se haver comunicado aos crentes e não aos seus adversários. Rahner nos diz que a fundamentação de sua tese visa à fé em Jesus Cristo, o que só podemos tratar interpretando Jesus como o portador absoluto da salvação e isso já legitimado pela ressurreição, o que somente pode ser pensável “no interior do círculo da fé una”, posto que o conhecimento salvífico exige do homem unificação na única dimensão capaz de permitir que uma pessoa possa a-preender algo que goze de significado salvífico: a da transcendentalidade na graça. Ressaltando, com isso, que os relatos do Novo Testamento são no todo e nas partes, afirmações de fé, Rahner passa a considerar o círculo entre fundamentação da fé e a fé ao se perguntar na perspectiva histórica, o que não foi somente objeto, mas também motivo da fé, ao indagar-se: Será que Jesus teve consciência de ser o portador absoluto da salvação e será que esta pretensão pode ser afirmada, com segurança para a nossa consciência, como apreendida no conhecimento histórico? Rahner assevera que há duas teses fundamentais à cristologia quanto à fé. Primeira, Jesus não se considerou apenas como um a mais entre os muitos profetas, entendendo-se como o Profeta escatológico, como o portador absoluto e definitivo da salvação. Segunda, essa pretensão de Jesus é 338 Cf. CFF 287-336. 130 fidedigna para nós se, a partir da experiência transcendental gratuita da autocomunicação absoluta do Deus santo, considerando o acontecimento que desvela o portador da salvação em sua realidade global, ou seja, a ressurreição de Jesus. Rahner restringe os milagres de Jesus à análise da ressurreição, e de sua credibilidade histórica, posto que a ressurreição possui identidade suprema de sinal e de realidade salvífica, por nos interpelar radicalmente, apelando à nossa esperança de salvação e ressurreição que se dá por necessidade transcendental. Por outro lado, Rahner recorda que a ressurreição da “carne” que é o homem, não significa ressurreição do “corpo” que é um dos componentes que constituem o homem. Por isso, quando o homem afirma a sua existência como permanentemente válida e a ser redimida, está afirmando “na esperança” a sua ressurreição e superando um dualismo platonizante. Assim percebemos o homem tal como ele é: uno, posto que a fé veda que se excluam partes e dimensões do homem, como se fossem irrelevantes para o seu estado de definitividade. Assim, Rahner estende à cristologia da primeira experiência dos discípulos com o Jesus crucificado e ressuscitado, a metáfora de que é “desde a flor que se pode conhecer a raiz e viceversa”. Com isso, busca a revelação mais originária enquanto “evento e experiência de fé” para tratar de maneira compreensível o “círculo entre a experiência originária e a sua interpretação” sob a alegação de que se a fé vale como esperança em nossa ressurreição, então a fé crê a ressurreição primeira, do próprio Jesus. Em outras palavras, a fides qua e a fides quae, o ato de fé e o conteúdo da fé podem estar dadas juntos e de forma inseparável; toda fides qua, enquanto liberdade absoluta do sujeito procedente de Deus e em orientação para ele, já é fides quae na própria ressurreição, pelo menos implicitamente. O que Rahner apresenta é uma proposição para o entendimento de sua teologia da ressurreição que se baseia na esperança transcendental de ressurreição, que constitui o horizonte dentro do qual o homem pode compreender a experiência de fé na ressurreição de Jesus, pois essa esperança transcendental na ressurreição busca necessariamente mediação e confirmação históricas em que ela possa se exercer expressamente e, com o quê, adquire característica de esperança escatológica, que se acende na centelha da esperança do que já se realizou. Em sua inesgotável habilidade em questionar, Rahner pergunta ainda: Mas qual é a pretensão real que se percebe como válida na ressurreição de Jesus Cristo? E ele ensina que é precisamente a pretensão que Jesus teve em sua vida, a de que “com ele” ocorre a proximidade nova 131 e insuperável de Deus, proximidade que ele chama de reino de Deus, que veio e que vem, e que exige do homem a decisão explícita de aceitar ou não a este Deus, que assim se fez próximo. Este profeta Jesus considera a sua palavra como a última e insuperável, com a pretensão que ressoa em sua palavra, que supera a própria essência do profeta. E nós devemos pensar a Sua palavra como a última palavra de Deus. Não porque Deus deixará de falar, mas porque a palavra presente em Jesus é última porque para além dessa palavra nada mais existe a dizer. Em Jesus, Deus se disse a si mesmo em sentido estrito e rigoroso. 3 – Cristologia existencial Introdução Nosso autor alega que para promover uma maior unidade entre a cristologia teológicofundamental e a cristologia dogmática, devemos inserir em nossa reflexão sobre a cristologia transcendental, que examinamos acima, uma complementação que priorize a existência sobre a reflexão abstrata e formal a seu respeito. Em sua análise anterior, vimos que Rahner aponta salvação e fé como um processo que “abrange e atinge globalmente o homem uno e inteiro” e que não pode ser construído mediante reflexão pura, primeiro porque a reflexão não pode captar adequadamente o processo reflexo da existência e, segundo, porque o homem jamais vive de pura reflexão. Rahner, que toma as Escrituras como pressupostas em toda a sua teologia, diz que o cristão pode e deve aceitar a “cristologia” que pratica em sua vida, na fé una da Igreja, ou no culto prestado ao seu senhor ressuscitado, ou na oração em seu nome, ou na participação em seu destino até a morte com ele. Para esta experiência global, que não podemos submeter adequadamente à reflexão mas que paradoxalmente dá testemunho de si mesma -, continua válida a confissão de fé de Gl 1, 8 ss e é em vista dela que o cristão continua autorizado a dizer ainda hoje: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna”(Jo 6, 68)339. A reflexão sobre o que de libertador, de vivificante, e que tudo encerra em um sentido misterioso e imperscrutável, que a partir de Jesus Cristo chega ao crente, pode talvez de início (como reflexão!) entender a fé em Jesus Cristo apenas como uma entre outras possibilidades abstratamente pensáveis de haver com o problema da vida e da morte. Mas a reflexão como tal não precisa produzir mais: ela apreende essa possibilidade como dada, já realizada, salvífica; não vê outra melhor 339 CFF 347. 132 como concretamente possível; isso basta para que, para além das possibilidades da reflexão, o crente possa deixar-se apreender pela pretensão de absoluto de Jesus, a que a fé e não a reflexão, responde com um sim absoluto e exclusivo340. 3.1 – A necessidade de uma cristologia “existencial” Queixa-se Rahner que o tema da cristologia existencial não ocorre na dogmática corrente, sendo estranhamente relegado à consideração dos mestres da vida espiritual e da mística cristã. Ele justifica porque o cristianismo que não é uma teoria abstrata da realidade que possa ser pensada como uma coisa diante da qual se tomam posições pessoais. “Em sua essência mais própria, o cristianismo entende-se realmente como processo existencial, ou seja, como o que chamamos de relação pessoal com Jesus Cristo”341. Neste ponto esclarecemos que este trabalho não toma ainda a relação existencial com Deus que se dá no que Rahner cunhou de cristianismo anônimo e implícito, por ser nossa meta aqui restrita ao cristianismo pleno, consciente de si mesmo na audição crente da palavra do evangelho na profissão de fé da Igreja, nos sacramentos e no exercício expresso da vida cristã, que se sabe em referência a Jesus de Nazaré342. É deste ponto de vista que Rahner vê que “sempre somos cristãos para nos tornarmos cristãos”. E isso vale também para o que chamamos de relação pessoal com Jesus Cristo na fé, esperança e caridade que, por se tratar de uma realidade existencial, está sempre apontando o que o homem ainda deve conquistar e levar à realização radical, pelo empenho de toda a sua existência pessoal, através de toda a longitude, latitude e profundidade de sua vida: a relação pessoal com nosso Senhor, que nos torna cristãos343. Assim, no dizer bonito de nosso autor, a experiência humana é um convite ao homem para que se entregue com paciência, com abertura e fidelidade, ao desenvolvimento de sua própria existência cristã, até que essa vida, passo a passo, talvez em meio a dores e falhas, venha a se desenvolver, transformando-se na experiência de relação pessoal com Jesus Cristo. Então essa será uma experiência que expressará e confirmará por si só o que aqui podemos dizer de maneira pálida e abstrata, ainda que se trate da coisa mais 340 CFF 347-348. CFF 360. 342 CFF 361. 343 CFF 361. 341 133 concreta, e ao mesmo tempo absoluta, ou seja, de nós mesmos em nossa sempre irrepetível relação com Jesus Cristo344. 3.2 – A reflexão teológica descendente e a ascendente Do ponto de vista descendente, a fé cristã professa que Jesus Cristo é portador absoluto da salvação, a mediação histórica concreta de nossa relação imediata para com Deus em seu mistério, que se comunica a si mesmo. Assim, a fé sabe que o Deus-homem, evento da absoluta unidade de Deus e homem, não culmina com o fim da história que decorre temporalmente, porque permanece como é - e constitui momento essencial da realização plena e consumada do mundo, o que é conseqüência da verdade fundamental da ressurreição de Cristo - posto que a realidade humana de Jesus Cristo, enquanto realidade do Logos eterno, permanece eternamente345. Mas essa consumação eterna para além do tempo da humanidade de Cristo que, enquanto humanidade do Logos divino, goza da visão imediata de Deus, com certeza não se pode entender somente como consumação e recompensa individual do homem Jesus só em sua própria existência humana para ele mesmo. O Cristo “ontem, hoje e para a eternidade” da epístola aos Hebreus (Hb 13, 8) deve ter significado soteriológico para nós próprios. A realidade humana de Jesus deve sempre ser para nós a mediação permanente da proximidade imediata para com Deus346. Ao fundamentar a relação pessoal com Jesus Cristo por via ascendente, ou seja, partindo de baixo para cima, da unidade entre o amor concreto para com o próximo e o amor para com Deus, veremos que o amor pessoal para com Jesus Cristo, enquanto realização e fundamentação existencialmente mais real desse amor ao próximo resulta na mediação permanente para a proximidade imediata para com Deus. Existe, pois, significado salvífico permanente da humanidade de Cristo, ou melhor, do homem Jesus? Diz Rahner que se este homem e sua realidade humana tal como é também momento interno de nossa própria realização salvífica consumada e plena como tal e não só em sua história temporal, e se nossa salvação é sempre singular e irrepetível, então não se pode duvidar de que uma relação pessoal com Jesus Cristo em amor íntimo e pessoal seja parte essencial da existência cristã. No seu encontrar-se com Deus, no seu precipitar-se no abismo absoluto, infinito e incompreensível de todo ser, o homem não se dilui no universal, mas pelo contrário, se faz absolutamente singular e único, pois somente assim obtém relação 344 CFF 361-362. CFF 362-363. 346 CFF 363. 345 134 única com Deus, relação na qual este Deus é o seu Deus e não só uma salvação geral e igualmente válida para todos347. 3.3 – A unidade entre o amor concreto ao próximo e o amor a Jesus De acordo com a doutrina cristã acerca da unidade entre o amor a Deus e o amor ao próximo enquanto realização salvífica da existência cristã, o amor ao próximo não é apenas mandamento a ser cumprido se é que o homem deseja estar em relação salvífica com Deus, mas é a realização pura e simples do cristianismo, pressupondo-se que esse amor ao próximo tenha se desenvolvido até atingir sua essência plena e que acolha expressamente o seu fundamento e o seu “sócio” misterioso, a saber, o próprio Deus, sem o qual a intercomunicação pessoal entre os homens no amor não pode atingir sua profundidade radical e seu caráter definitivo. Todo o dito por Rahner nestas páginas se refere a quem busca e tem a coragem de amar a Jesus de maneira pessoal e se arrisca a encontrar-se com ele pessoalmente e, ao fazê-lo, recebe como graça a coragem de não temer. Esta afirmação somente é percebida quando nós cristãos não nos referimos a uma idéia abstrata de um Deus infinito. A experiência de um encontro com o Jesus concreto dos Evangelhos, em toda a concretude e irredutibilidade de sua figura história, não confina o homem que procura a infinitude incompreensível do mistério absoluto de Deus à concretude de um ídolo [...]. A experiência concreta deste encontro, ao contrário, o abre para a real infinitude de Deus348. Por isso, a vida em Cristo não é cumprimento de normas proclamadas pelo magistério da Igreja. Para além disso, é o apelo de Deus mediado pelo encontro com Jesus numa mística singular do amor - que se realiza na comunidade dos que crêem e amam, comunidade a que chamamos de Igreja. pois aí, no seu evangelho, ao seu kerigma – que para além de toda doutrinação atinge o coração do indivíduo -, no sacramento e na celebração da morte do Senhor, bem como na oração individual e na decisão última da consciência, Jesus, aí, então, como o Cristo se oferta a si mesmo e nele o próprio Deus se oferta349. Rahner lembra que lemos a biografia de Jesus, e que não é a biografia de alguém do passado. Sua biografia ganhou definitividade na sua ressurreição. Ele avança e diz que 347 CFF 363. RAHNER. Foundations of Christian faith. NY: Crossroad, 2002, 310. A presente citação foi colhida da versão em inglês. Cf. CFF 365. 349 CFF 366. 348 135 lemos a Sagrada Escritura ao modo de dois amantes que se entreolham, juntos, na vivência de seu dia-a-dia. Sentimos e experimentamos na profundeza de nossa existência o que este ser humano concreto tem a nos dizer, concretamente. Nós nos permitimos aprender com ele coisas que, de outra maneira, não conheceríamos para a nossa vida. Nós nos encontramos face a face com a síntese, o indissolúvel, entre normas que são eternamente válidas e Jesus como o único modelo do cumprimento de tais regras. O Absoluto concreto, em quem a abstração das normas e a insignificância do meramente individual e contingente, transcende e supera350. Conclusão Em 1981, já ao final de sua vida, o nosso teólogo escreve um livro em duas partes351. A primeira, cristológica, responde à pergunta: O que significa amar Jesus? A segunda, antropológica, responde à pergunta: Quem é meu próximo? São páginas em que o teólogo permite ao poeta Rahner dizer o “mesmo”, com suma sensibilidade. O que significa amar Jesus, parte de mim, ou seja, fala na experiência que todo e qualquer ser humano faz do amor. Agora, o autor dos parágrafos intrincados, toma o amor entre dois amantes e, com tinta suave, pergunta: O que acontece quando, apesar de suas diferenças, duas pessoas se apaixonam? Podemos dizer que este amor as torna uma só pessoa? Elas são diferentes, pessoas distintas. As suas respectivas existências não são dadas a priori como se jorrassem de uma mesma fonte e origem. Será que com toda proximidade física e fisiológica, os dois permanecem diversos, distintos? Sim, porque mesmo “aí” os amantes tombam, desabam de costas, separando-se, mesmo quando, no ato supremo de amor, eles parecem alcançar a unidade, a singularidade352. Diz Rahner que este é “o ponto” exato da questão: a diversidade dos amantes é sustentada pela própria base do amor existente entre eles. Isto porque nem a diversidade entre os amantes é causa de impedimento amoroso, nem a distância no espaço e no tempo entre duas pessoas que perseguem o amor, e de fato se amam, prenuncia a impossibilidade de amar. Até porque, diz ele, antes de encarar a dificuldade da separação espaço-temporal, o amor tem que encarar uma diferença muito mais radical. E a experiência mostra perfeitamente que o amor faz isso. Esta radical diferença entre os amantes é confirmada no próprio amor, já que o amante ama e afirma o 350 K. RAHNER. The love of Jesus and the love of neighbor. NY: Crossroad. 1983. Originalmente publicado sob os títulos Was heisst Jesus lieben? e Wer ist dein Bruder?, respectivamente, nos anos de 1982 e 1981. Breisgau: Verlag Herder. Aqui, 22-23. As próximas referências a esta obra se farão pela abreviatura TLJ, segundo a edição em Inglês. 351 TLJ. 352 No inglês, “oneness”. TLJ 21. 136 outro precisamente “como” outro, e não simplesmente sorvendo o amante para dentro do seu jeito peculiar de ser. Note-se que, por “ponto” exato, por alvo do seu pensamento, o que Rahner persegue é a tematização, por meio do exemplo de uma experiência amorosa entre dois seres humanos, do amor que é tanto capaz de superar a barreira inevitável da separação física quanto da separação temporal – ambas impostas pela mútua alteridade inerente aos sujeitos que se amam. Os amantes naturalmente almejam a maior proximidade possível nas trocas palpáveis de seus afetos – para alívio e expressão da intensidade de seu amor. Mas eles amam um ao outro através do tempo e do espaço. Este amor sabe que está no rumo certo, mas que ainda não alcançou a vitória da definitiva união no amor. [...] Mas dizer que este amor se contamina ou acaba pela distância no tempo e no espaço que separa os amantes, é esvaziar de sua verdadeira e genuína essência o amor353. Rahner, apaixonado por nosso Senhor Jesus Cristo, diz que também eu posso amar Jesus Cristo. Diz que eu posso amá-lo sem hesitar porque a amada que sou eu está viva com Deus, o que somente é possível ser estipulado pelo toque da fé que me faz sentir a iniciativa deste Jesus - que salta das profundezas da divindade que o preserva vivo - e toma a iniciativa neste amor por mim e, através do que chamamos graça, torna possível o meu amor por ele. Esta é a Parte central do presente trabalho. Culmina com uma espécie de desabafo de Rahner, depois de haver contado uma conversa por ele mantida com outro teólogo. Num tom informal, ele suspira e confessa: Eu acho que uma pessoa pode e deve amar Jesus, na imediaticidade e em concretude, com um amor que transcenda o espaço e o tempo, em virtude da natureza do amor em geral e pelo poder do Espírito Santo de Deus354. Amém. 353 354 TLJ 22. TLJ 23. 137 Terceira Parte: A liberdade na unidade do Espírito Santo 138 As duas Partes anteriores buscaram a liberdade em relação à totalidade da existência humana no que esta se abre à fé que confessamos, professamos e testemunhamos na Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. A validade de recordar o rumo tem o propósito de voltar ao ponto de partida cristão, confessado e proclamado em nossas assembléias e a que chamamos sumariamente “Credo”. É na hora de explicitar qual é a realidade concreta que permite ao teólogo as suas abstratas afirmações, que a linguagem da teologia deverá necessariamente reconduzir para aquela outra linguagem que sustenta como fonte toda teologia possível; deverá conduzir para a língua materna da comunidade cristã; para as palavras nas quais os cristãos professamos a nossa fé, não como proposições dogmáticas ou como enunciados ortodoxos; mas também não como devoção individual ou subjetiva, mas como confissão atual da fé que da Igreja e em Igreja todos recebemos. Essas palavras concretas, com a sua gramática, sua sintaxe e seu estilo próprios, são sempre mais originais, mais primigênias, do que qualquer teologia. Elas se proferem no tempo e no espaço originários da Sagrada Liturgia, que é o âmbito e o ambiente da socialização cristã, isto é, o espaço e o tempo onde os cristãos dizemos o que somos e somos o que fazemos: Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo355. Por isso, e acompanhando a irrefutável síntese acima, é necessário esclarecer que não colhemos textos de Rahner com objetivo de visualizá-los como a um “credo rahneriano”, à moda dos tantos já escritos por grandes teólogos356. Tal ressalva é importante porque essa pretensão seria descabida em face de Rahner, nas últimas páginas de seu Curso fundamental da fé357, analisar Breves fórmulas de fé, como conclusão de todo o seu esforço por considerar uma vez mais e de outra maneira o todo do cristianismo, o que examinaremos ao final desta Terceira e última Parte. Se, de um lado, o nosso autor não apenas defende, mas também apresenta três fórmulas breves da fé, de outro, ele reconhece que o Símbolo dos apóstolos teve semelhante função, sobretudo como profissão de fé dos batizandos adultos. Em sua argumentação, o teólogo alemão toma as fórmulas brevíssimas de fé do Novo Testamento como necessárias para a conservação do que se aprende durante o catecumenato, pela via de uma clara estruturação da “hierarquia das verdades”358, o que veio a se constituir doutrina no Vaticano II ao ensinar que nem tudo o que é verdade deve por isso mesmo ser tido por importante, a fim de que a plenitude da fé cristã não se venha tornar amorfa ou que, na prática religiosa, o fiel passe a dar valor excessivo ao que é meramente secundário. Neste sentido, irresistível aqui a eloqüência do pai e doutor da Igreja, Basílio que, em seu Tratado sobre o Espírito Santo, nos idos de 374 d.C, afirma: 355 VÁZQUEZ MORO. “O que fazem as pessoas divinas?” EE 108. Itaici: Revista de Espiritualidade Inaciana. SP: Loyola. Número 39, ano 1, 2000, 7. 356 Cf. Karl Barth, Urs Von Balthazar, B. Sesboüe, Hans Küng entre outros. 357 CFF 517-531. 358 Cf. Unitatis redintegratio 11. Mencionado no CFF 517. 139 Há pouco estava rezando com o povo. Glorificava a Deus Pai com ambas as formas de doxologia: ora “com” o Filho, “com” o Espírito Santo; ora “pelo” Filho, “no” Espírito Santo. Alguns dos presentes nos acusaram de empregar palavras estranhas e até contraditórias entre si359. Basílio, tal qual Rahner, aponta a riqueza escondida e preservada nas “palavras” da doxologia cristã. Isto significa que no processo de assemelhar-se a Deus, o homem passará pela aquisição de um “conhecimento”, que somente podemos obter pelo ensino que nos é dado no “aprendizado” das palavras da doxologia cristã. São as “palavras” que nos introduzem na fé e que, por sua vez, nos introduzem no conhecimento que busca atingir a perfeição da sabedoria. Sabedores de que no Novo Testamento a perfeição reside em “ir até o fim” (teleomai), o significado profundo da perfeição cristã é, assim, teleológico e, portanto, implica para o cristão uma caminhada orientada pelo Espírito Santo que foi derramado em nós e que em nós está presente como a chama que ilumina não o caminho, mas que nos ilumina na marcha que buscamos percorrer até o final. A beleza dessa imagem somente se revela quando o homem percebe em seu coração que é o “fim” da marcha que dá sentido ao caminho que percorremos peregrinando rumo ao Senhor. Não ouvir superficialmente os termos teológicos (Pai, Filho, Espírito Santo), mas tentar descobrir o sentido oculto de cada palavra, de cada sílaba, não é próprio dos tíbios, e sim daqueles que conhecem a finalidade de nossa vocação, pois nos é proposto assemelharmo-nos a Deus, quanto possível à natureza humana. Todavia, não há semelhança sem conhecimento (gnosis), e este conhecimento se obtém por meio de ensino (didaskalia)360. Feita esta ressalva, podemos voltar a olhar a Primeira Parte deste trabalho sob novo ângulo, como se tivéssemos partido do Pai e criador e da sua relação com o ser humano, o que se dá ao longo de nossa existência que se vai abrindo, observando no percurso deste estudo o movimento que tira o homem de si, atirando-o nos obscuros abismos do deserto daquele que chamamos Deus, numa experiência que são Paulo vai chamar de louca. Na Segunda Parte acompanhamos a experiência desse movimento que lança o coração do homem ao alto, numa altura que atinge o paradoxo das profundezas do obscuro abismo que o cristão percebe como mistério, como o mistério que é santo, em quem nos atiramos acolchoados na certeza da graça de nosso Senhor Jesus Cristo. 359 360 TES 91. TES 90. 140 Com esse novo olhar, arriscamos apostar qual fosse a afirmação que o homem mais teria repetido ao longo desses dois milênios depois de o Cristo haver dividido o tempo. Chegamos numa síntese apertada da homologia cristã. “Creio em Deus Pais todo-poderoso, criador do céu e da terra”. Mesmo considerando que aí não haja uma verbalização exata do contido nestas palavras que podem esconder ou contrariamente expor uma imagem de Deus que sabemos, nunca foi, não é, e jamais será a imagem certa, porque essa certeza nos escapa por entre os dedos como água-, a aposta é que aí está o que de mais natural e evidente é próprio do homem, daí a convicção de o homem afirmar que a sua existência não encontra origem em si mesmo, mas em Deus, nossa fonte, o criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Dizemos isto porque a significância da homologia cristã é, em certo modo, o esforço de toda a Primeira Parte, ou seja, dizer da imagem trinitária daquele que nomeamos, na fé, como nosso Criador, o Deus que é Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, em que tudo é criado e continuamente portado, pela história, no Espírito Santo. As duas Primeiras Partes cuidam também dos pressupostos de Rahner. Esses pressupostos partem da fé cristã que, como vimos, encontra-se sob permanente tensão que deriva basicamente da experiência de Deus feita pelo cristão e a luta em que se vai buscar com honradez intelectual colocá-la em palavras, assim também tateando o que se quer dizer ao dizer a palavra Deus. Portanto, vimos que a nossa fé encara desafios em vista de o cristianismo ser a religião que toma a existência do cristão como a totalidade da sua existência, e não como um adendo social às nossas rotinas semanais. É mais. E vimos que não somente é mais como também é diferente, porque ser cristão implica uma experiência de Deus que não apenas nos arrebate aos céus, mas que passe a efetivamente repercutir no chão de nossas vidas. Essa repercussão, o cristão e bem assim eu mesma, percebo como algo edificante de mim. Eu, criada de forma inacabada, portadora de um existencial permanente que permite perceber-me como um ser de transcendência remetida e orientada ao Mistério Santo, eu, o fruto da infinita liberdade desse Ser ab-soluto, eu, assim me percebendo, nesse sentido semelhantemente livre, descubro Nele, no Mistério mais querido, a liberdade que me liberta. 141 Capítulo I – Concepção trinitária de Espírito de Deus Já insistimos sobre as dificuldades do “lusco-fusco” teológico da Trindade em nosso tempo perturbado, como é notório, pela secularização da cultura ocidental. Diante disso, a terceira pessoa da Santíssima Trindade sofre os efeitos epocais na tentativa de se estabelecer não uma concepção atual de espírito, mas a do Espírito de Deus que “desceu” ao mundo para visibilizar e viabilizar o aperfeiçoamento que possibilita a “subida” do homem em seu caminho a Deus. Este trabalho, com as ressaltas efetuadas, adota a estrutura do “Símbolo dos Apóstolos”, que conjuga as verdades que constituem a fé cristã e reúne os principais enunciados da fides quæ361. Este seguimento, por si, aponta a pretensão da Terceira Parte, querendo dizer do mistério da fé do Deus uno e trino, a partir do que ousamos professar no terceiro artigo do Símbolo NicenoConstantinopolitano: Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida, E procede do Pai [e do Filho]; E com o Pai e o Filho é adorado e glorificado; Ele que falou pelos profetas. Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica. Professo um só batismo para remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir. Amém. O resultado óbvio da afirmação dos parágrafos supra é que haveremos de estabelecer parâmetros e condições para que, de uma concepção humanamente formulada do substantivo “espírito”, seja possível o salto santificador para nele crer como o Espírito de Deus, que desce ao mundo não para conosco habitar o mundo, mas para nos tornar por ele povoado, por ele ocupado, de modo divinizante, ou seja: o tempo da experiência do Antigo Testamento, em que os homens caminhavam na certeza na proximidade de um Deus que os assegurava “vou contigo”, foi superado pelo evento Jesus Cristo que toma a dianteira e diz ao homem: “vem comigo”. Agora, o Espírito de Deus, ao inabitar o homem, diz: “vou em ti”. Portanto, recebemos do Senhor Jesus o seu Espírito, o portamos no tempo como uma marca, um selo, a tatuagem permanentemente a nos recordar na história que somos o templo do Espírito de Deus que é Deus. Por isso é “sob” o significado de “causa santificadora” do Espírito que advém a consciência de que somos (pneumatophoros), portadores do Espírito que, em “si”, emana a própria luz que 361 CFF 524-531. 142 penetra o mundo pelos meus olhos a fim de que eu – e não ele – possa ser como um refletor a iluminar o caminho que, de outra forma, na escuridão, me seria invisível. E porque porto esta luz, vejo. E porque vejo, reajo em minha vida ao que vejo. Este caminho iluminado pelo Espírito Santo culmina no exercício conseqüente de um discernimento que acompanha a todos como “marca” de purificação, fruto da permanente conversão cristã. Diz Rahner que a Escritura indubitavelmente fala de conversão, de uma metanoia (Mt 3, 2; Mc 1, 15, Lc 5,32), da decisão de seguir o Cristo, o nosso “sim” ao chamado de seu discipulado, à decisão de cumprir às exigências da resposta que é Jesus à nossa infinita pergunta de como alguém pode se tornar perfeito. A pistis ou qualquer outro nome usado no Novo Testamento para esta experiência de retornar e nascer de novo, [...] pressupõe igualmente que a vida do homem inabitado pelo pneuma é capaz de crescer e de progredir [...] porque o seguimento do mandamento de Cristo nos torna mais perfeitos, embora haja uma total ausência de definição para classificar os estágios dessa progressão. Segundo são Paulo, a progressão cristã tem uma orientação predominante em direção ao conhecimento: o homem perfeito se distingue do homem menos perfeito por sua maior sophia e gnosis (1 Cor e Hb), o que não tem qualquer semelhança com algo meramente racional e intelectualista. O maior conhecimento é um dom tornado efetivo pelo Espírito Santo362. Nesta Terceira Parte, ficará mais e mais evidente o “envolvimento” trinitário, que se per-faz ou se aperfeiçoa na unidade do Espírito Santo. Daí ser nosso objetivo cada vez acentuar e estreitar o que é possível dizer do Espírito Santo e da “experiência” que cada ser humano faz em sua vida, “apesar de constantemente estarmos nos perguntando quando e como uma experiência como esta ocorre em nós”363. 1 – O significado de causa santificadora do Espírito numa doutrina sistemática da Trindade Introdução Na sombra da teologia de Rahner, tomamos as palavras do teólogo ao cobrir seu ensaio de uma Doutrina Sistemática da Trindade. Assim diz ele: “Sistemático” significa aqui algo de muito simples: Depois que se ouviu, tornandose por medida [...] o que dizem a Escritura, a história dos dogmas e o magistério eclesiástico sobre a Trindade, pretende-se tornar a dizer resumidamente o que se 362 363 THI III. Reflections on the problem of the gradual ascent to Christian perfection. Aqui, 5. THI XVIII. Experience of the Holy Spirit. As próximas referências a esta obra se farão pela sigla EHS. 190. 143 ouviu. As duas coisas não são o mesmo. É absolutamente impossível ouvir uniformemente e ter por igualmente importante tudo o que se diz: quem ouve forçosamente deixa de ouvir certas coisas. É por isso que dizer o que se ouve e dizer o que se ouviu e guardou não é o mesmo. Por isso, neste lugar deixaremos de dizer muitas coisas que se ouviram – ou poderiam ter sido ouvidas. [...] Aqui nos atribuímos a liberdade que a própria teologia tradicional das escolas tacitamente se atribuiu, a liberdade da temática explícita364. A singeleza do modelo de “sistematização” acima é acentuada no último parágrafo deste valioso texto, O Deus trino, fundamento transcendente da história da salvação, onde Rahner reconhece que “neste espaço era absolutamente impossível expor a doutrina „sistemática‟ da Trindade a não ser de modo muito a-sistemático”. Ainda assim, ele reconhece o procedimento por ele adotado como legítimo porque muitas questões de sutil conceituação escolástica são de pouca utilidade querigmática e, por outro lado, porque é isto o que decorre justamente de seu axioma fundamental – a cristologia e a doutrina da graça, a rigor são a doutrina da Trindade, os dois capítulos dessa doutrina sobre as duas processões, respectivamente missões divinas (aspecto imanente e econômico). Por conseguinte, o aqui exposto não é outra coisa senão certa antecipação formal da cristologia e da penumatologia (doutrina da graça). Não é por outra razão que esta sistematização será valorizada nas próximas linhas, nos pontos onde o estudo de uma cristologia e uma pneumatologia devem se tocar de forma a constituir “o” ponto que precisamente une e caracteriza o evento salvífico fundante de nossa fé: a autocomunicação de Deus. 1.1 – Ouvir a Escritura Cabe aqui um esclarecimento sobre o livro que “guia” este trabalho, o CFF. Folhear ou percorrer o índice desta obra revela que, dentre as nove seções em que o livro se divide nenhuma é dedicada à Terceira Pessoa da Trindade. Mais. A Trindade e o axioma raheriano são explicitamente tratadas em sumárias duas páginas. Foi somente no transcurso deste estudo que esta aparente “ausência” foi se esclarecendo. Depois de muitas dezenas de releituras deste livro base, depois de igual pesquisa em outros textos dispersos, principalmente nos vinte e três volumes da edição em língua inglesa de suas Theological Investigations e na coleção Mysterium Salutis, ouso inferir que a evolução do pensamento deste 364 ODT 331. 144 gigante explica, por sua imensa obra sobre a “graça”, em seus primórdios, a preocupação existencial que se derrama por sobre a Terceira Pessoa trinitária, como a experiência universal de Deus, o que resta amplamente comentado no tema da autocomunicação, ao menos enquanto oferta ao homem. Talvez, por isso, Rahner fulmina suas impressões sobre o Espírito Santo: “Mas a primeira coisa que devemos fazer é simplesmente dar ouvidos ao que a Escritura nos diz sobre o Espírito Santo. “Isto” aceito, crido, vivido, abraçado, e amado na profundeza de um ser – “isto” é o Espírito Santo !”365. E acrescenta que “lá” ele nos encontra tal qual ele é e não como uma mera e abstrata apropriação, posto que, em qualquer acontecimento, a nossa verdade, a nossa vida sobrenatural, consiste na comunicação do Espírito divino. O que alguém pode afirmar do conjunto da essência, glória e fim do cristão resume-se a dizer que quando o cristão recebeu o Espírito do Pai foi encharcado pela vida divina. “Isto” explica todo o resto ! Nós poderíamos somar a esta consideração que o Senhor glorificado é a fonte deste Espírito. E podemos ainda acrescer: O Senhor com seu coração transpassado pela lança !” 366. Rahner pontua que o cristão que se aproxima das Escrituras com a “cabeça aberta” pode “mesmo nos dias de hoje” meditar sobre Pentecostes na percepção do Espírito como o que (m)ora em nós e conosco de modo muito profundo para a nossa fala e, no acesso ao Pai, como o que nos dá a segurança da vida eterna367. Ele diz que “estas e outras maravilhosas e sublimes leituras (escriturísticas) que encontramos reunidas numa meditação sobre Pentecostes oferecem um auxílio corajoso à nossa fé e à nossa reflexão”368. Mas adverte que: já que as Escrituras não fazem apenas uma doutrinação sobre o Espírito que é nos dado, mas ao mesmo tempo apela à nossa própria experiência do Espírito, podemos corretamente perguntar “quando e como” tal experiência ocorre em nós369. 1.2 – Páscoa e Pentecostes Para empreender o desafio de “dizer” o que “ouvimos” no terceiro artigo do Credo, seguimos o próprio Rahner que parte das Escrituras. Por isso é inevitável abraçar o Cristo e seu 365 The Holy Spirit as the fruit of Redemption. In TCF 355. TCF 356. 367 Sob o tema, ver Primeira Parte, Capítulo 1.1.1. 368 THI XVIII, 190. 369 THI XVIII, 190. 366 145 Espírito, no que pudermos compreender e expressar por meio da Páscoa e de Pentecostes como revelação de nossa experiência salvífica de origem. De início, é preciso reconhecer que todas as solenidades que celebramos no ano litúrgico – Natal, Páscoa e Pentecostes – são tão proximamente interconectadas que apenas representam o desenvolvimento temporal de um e mesmo evento salvífico, a estrutura temporal de uma única ação de Deus, desenvolvida na história e na humanidade370. Rahner insiste que esta única e indivisível ação de Deus é a definitiva e irrevogável aceitação da humanidade na encarnação do Logos. No que o Logos assumiu a “natureza” humana, ele necessariamente assumiu a “historicidade” humana de modo tal que esta assunção da realidade da natureza humana somente foi completada quando ele trouxe a história desta realidade à sua consumação, na sua morte. O singular e a novidade do evento histórico que assumiu a natureza e a história humana é a sua “finalidade” definitiva. Sempre e em todo lugar, onde a história humana se desenrola, ocorre um diálogo de salvação ou de perdição entre Deus e o homem. Por conseqüência, sempre e em qualquer lugar, a presença do Espírito se faz presente para nos julgar e para nos enriquecer com a graça371. Duelando com a idéia que fazemos de tempo, Rahner diz que este singular diálogo que ocorreu continuamente por toda a história da humanidade estava “aberto”. Antes da encarnação do Logos nenhuma palavra de Deus havia entrado na história do mundo como um evento, nenhuma palavra de Deus se impunha final e definitivamente, nenhuma palavra na qual Deus destinasse a si mesmo definitiva e irrevogavelmente ao mundo, nenhuma palavra que o expressasse definitiva e exaustivamente, nenhuma palavra que revelasse o último plano de Deus, nenhuma palavra que trouxesse o significado do real clímax no drama da história do mundo, nenhuma palavra que levasse esse drama ao seu fim trazia o seu esclarecimento final372. O diálogo se arrastou do início da história da humanidade até a chegada do Cristo. O importante nesse diálogo é que a última palavra ainda não foi dita e, portanto, o seu todo ainda permanece aberto, porque a história foi capaz de desenvolver-se em duas direções (bem e mal). Por isso, quando dizemos que em Pentecostes o Espírito Santo desceu sobre toda carne, é fundamental perceber que estamos nos referindo ao Espírito escatológico, o Espírito como dom irrevogável, ou seja, para sempre presente. 370 THI VII, 195-197. In TCF 359. THI VII, 195-197. In TCF 359. 372 THI VII, 195-197. In TCF 359. 371 146 “Este” é o Espírito da eterna predestinação do mundo como um todo à vida e à vitória, o Espírito invencível que foi implantado no mundo e em sua história, e está indissoluvelmente unido a ele373. 1.3 – O batismo no Espírito e a Santa Eucaristia Rahner recorda que “porque” houve a Páscoa - morte e ressurreição -, houve Pentecostes. Portanto, Pentecostes é o evento para o qual culminam todos os eventos da Páscoa, na busca de plenitude. “Este” Espírito Santo não estava lá antes de Cristo e em Pentecostes foi revelado que “este” Espírito é o Espírito de Cristo que, em sua emanação e em seu trabalho no mundo, partilha da “finalidade” de Cristo em si; é o Espírito do Cristo crucificado e ressuscitado e, por conseguinte, o Espírito que não desaparecerá do mundo e da comunidade de Cristo. Para os homens, Pentecostes é a revelação de que o Espírito é o Espírito do Cristo ressuscitado, o Espírito que fora prometido ao mundo. Esta revelação, aceita em um ato de fé por todos por sobre quem o Espírito desceu, é a resposta para a pergunta central formulada por Basílio em seu Tratado: De onde ou como nos tornamos cristãos? Pela fé, será a resposta. De que maneira seremos salvos? Pela regeneração, pela graça do batismo374. [...] Relativamente à confissão de fé, entregue na traditio simboli, quando, renunciando aos ídolos, aderimos ao Deus vivo, se alguém não a guarda sempre, e não a segura durante toda a vida, qual sólida salvaguarda, faz-se estranho às promessas de Deus, opondo-se ao documento escrito de próprio punho, entregue por ocasião da reditio simboli. Por isso lembra o teólogo alemão que Pentecostes é a solenidade da descida definitiva do Espírito Santo, na celebração do Batismo no Espírito. Pentecostes verdadeiro não é uma visita esporádica do Espírito, um êxtase místico momentâneo. Pentecostes é a vital manifestação de que o Espírito jamais se retirará do mundo até o final dos tempos375. Mas o batismo, um dentre sete sacramentos que acompanham a vida do cristão, precisa ser relacionado à sagrada eucaristia, porque se o Batismo é o sacramento de iniciação na vida cristã, a eucaristia é o sacramento no nosso crescimento diário na graça, o sacramento do nosso crescimento diário naquele amor que é derramado por nós pelo Espírito Santo; é o sacramento que pretende preservar, despertar e desenvolver em nós a vida divina em que 373 THI VII, 195-197. In TCF 360. A palavra “regeneração” é utilizada com sentido de nascimento do alto (palingenesis,palingenese). In TES 118-119. 375 TCF 362. 374 147 mergulhamos e renascemos pelas águas do Espírito Santo, na pia batismal. Pelo batismo, nós mergulhamos no ciclo vital do Cristo. De lá para cá passamos a viver de sua graça, vivemos nele e fora dele376. Conclusão Creio na Igreja Católica. Esta afirmação inclui-se no terceiro artigo do Símbolo da nossa fé por conseqüência da afirmação antecedente de que cremos no Espírito Santo de Deus. Rahner lembra que cremos na Igreja porque onde está a Igreja, “lá” também há um contínuo Pentecostes e, então, também nós podemos continuamente orar: Veni Sancte Spiritus. E porque dizemos esta oração em Igreja, então sabemos que somos ouvidos, porque o espírito de silêncio e de recolhimento que conforta os nossos corações está maduro para receber o Espírito da liberdade e do amor, que ilumina aos que cremos no Espírito Santo que é vida eterna377. Porque nós os cristãos cremos em Igreja, porque somos o Povo de Deus que se reúne em assembléia, Rahner elenca as implicações da descida do Espírito para nós que, individual e coletivamente somos orientados à santificação por meio do Espírito. – O significado de causa perfectiva378 do Espírito em dois milênios de evolução do dogma Introdução Durante todo o estudo realizado para a elaboração deste trabalho, um ponto sempre tomou a minha atenção como o argumento que mais e melhor explicita a atuação efetiva do Espírito Santo na história, onde ele é penhor da verdade e tem o ônus de portá-la até o final dos tempos. Queremos, pois, agora realçar da teologia de Rahner a delicada questão da Igreja entre a tradição da verdade eterna e a possibilidade de evolução do dogma. O tema é importante para uma sistematização que se pretenda da teologia trinitária porque faz dois milênios é na Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo e sob poder do Espírito Santo de Deus que conhecemos, preservamos e tornamos efetivas em nossas vidas as verdades de nossa fé, o que a história apontou como nem sempre tendo sido uma tarefa fácil à hierarquia da Igreja ao longo do tempo. 376 THI III, The Eucharist and suffering. 164-165. TCF 366. 378 Perfectivo. Acabamento completo; perfeição. JOSÉ PEDRO MACHADO. In Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 4º vol. Lisboa: Livros Horizonte. 8ª ed., 343. 377 148 Esta Igreja que é histórica, constituída pelo povo de Deus, cada ser humano que lhe soma na fé, esta Igreja é imediatamente fundada e para sempre influenciada pela “descida” do Espírito Santo. Senão, vejamos. Carregar uma instituição através da história não tem sido fácil a qualquer natureza de instituição. Carregar uma instituição através da história, instituição que tem por núcleo a tradição das verdades da fé é a tensão que sofre a Igreja de todas as eras, em especial depois de superado o período que chamamos cristandade. “Tradição” na história significa muito, se reconhecermos que somos fruto de escolhas, de maneiras e de modos de avaliar e julgar as situações de vida com que nos deparamos. Nossas reações são influenciadas por pessoas com quem convivemos e de quem aprendemos. Herdamos delas – e não apenas de nossos antepassados – toda uma riqueza que desemboca na idéia de que eu sou o resultado dessa herança que, em uma palavra, chamamos tradição. O homem que é assim moldado pela tradição, carrega como um “carimbo” estampado em suas reações, carimbo que remete às referências passadas, para que o homem possa assumir atitudes diante do mundo e de desafios futuros. Essa “marca” representa a bagagem que nos faz aceitar ou rejeitar o que se põe diante de nós como escolha a ser feita por um ato de liberdade. Se isso é assim para toda a experiência humana de tradição, o que seria, então, uma noção católica de “tradição” para os tempos correntes, considerando que o cristianismo é uma religião de revelação, baseada num evento histórico salvífico: a vida, o agir e a morte de Jesus de Nazaré que afirmamos, na fé, ter sido ressuscitado por Deus. Tomamos, de início, os limites da palavra “tradição” na constituição dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina, em que, na tradição da Igreja, se acrescenta a graça do Espírito Santo: A Igreja, na sua doutrina, na sua vida e no seu culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo que é e tudo em que crê, sendo nela que se desenvolve a tradição dos apóstolos, graças ao Espírito Santo379. 2.1 – A verdade e o erro: a tradição e os dogmas A primeira questão que se põe é quanto ao conteúdo da tradição, porque a fé cristã deve ser capaz de expressar o evento histórico (e salvífico) Jesus Cristo de modo tal que se torne acessível a todos os homens em todos os tempos de maneira inteligível. Foi esta questão que, no primeiro século, levou a Igreja primitiva em sua pregação apostólica a escrever os Evangelhos, o Novo Testamento. Aquele contexto diferencia o magistério hodierno da Igreja de sua função meramente 379 Dei Verbum, art. 8º, 882-882ª. 149 ouvinte e serva da tradição dessa Igreja primitiva que foi inspirada por Deus ao lhe atribuir o dever das escrituras. O espectro desse trabalho não permite relatar o progresso e o crescimento da noção católica de tradição, particularmente havidos entre os Concílios de Trento e o Vaticano II, o que não impede que se reconheça que, a partir do movimento da Reforma, a teologia católica tenha sido impelida a melhor justificar a sua Tradição380. Essa “justificação” passa pela observação de que com o decorrer do tempo as palavras podem perder ou ganhar sentidos, de acordo com a mudança do contexto381. Bastaria esse dado para que a literal repetição de doutrinas pelo magistério da Igreja não fosse suficiente para a explicitação de um fato pretérito. Eis aí o exemplo da Reforma. O ponto chave deste desafio é que a Igreja se ocupa com verdades de fé reveladas “por Deus para a nossa salvação” e a hierarquia da Igreja deve ter presente “o dever que tem de aprender a ouvir o Espírito de Deus e acatá-lo, reconhecendo o pluralismo legítimo na Igreja Católica”382. Eis aqui o preço da prudência humana na lentidão da contra-reforma. 2.2 – A tradição e a evolução do dogma Passando do entendimento de tradição ao de evolução, no que respeita os dogmas de nossa fé, Rahner toma o exemplo paradigmático do dogma da Assunção de Maria aos céus. É na base do raciocínio de uma doutrina que nem sempre esteve presente, ou seja, nem sempre nos foi claramente explicitada, mas que se torna manifesta como obrigatória, que Rahner entende o termo “evolução”. Trata-se de algo que de alguma forma “chegou a ser” dentro da história do cristianismo, uma vez que, no começo da pregação do Evangelho, não existia tal como hoje383. Rahner admite um processo evolutivo espiritual, em que ele reconhece que há uma “unidade hierárquica”384, na qual vigora a mesma lei de evolução que aplicamos aos demais seres vivos e, assim, busca diante da história que nos é reveladora do real o que, “sob a ação poderosa do Espírito, introduz o homem em toda verdade”, num processo que não é somente “único”, mas também 380 Cf. RAHNER. Invariabilidade y cambio en la inteligencia de la fe en tiempo del concilio. In Adademia Teologica, 1967, v. 1, 105-137. 381 Ver Segunda Parte, Capítulo 3.3.1. 382 WEGER, Karl-Heinz. CSM. Tradition. 383 ODR 57. 384 Ver Segunda Parte, Capítulo 2.1.2. 150 constitui um “todo unitário”, que faz do cristianismo uma religião de fundo escatológico, que tem as vistas voltadas para o futuro385. Ao mesmo tempo em que para o homem moderno o futuro “já” começou, o cristão assevera que tal futuro “ainda” não chegou, “porque se a plenitude terrena é uma plenitude finita, na verdade não pode ser uma plenitude absoluta”386. Por isso a história em que se desvela a evolução do dogma é a história da progressiva manifestação do mistério que chega ao conhecimento do homem paulatinamente, independentemente de uma grande reflexão teológica, pelo poder do Espírito Santo. Há certas leis da evolução do dogma que podem ser conhecidas a priori, considerando que essa evolução culmina como uma apelação à Igreja, como a última instância de julgamento dessa lei apriorística. Daí a permanente tensão gerada pelo perigo que se constitui em espremer esse “conhecimento” a partir do homem, ao invés de confiá-lo à “promessa do Espírito, e somente a Ele, que vela a fim de que esse perigo, sempre possível, não termine se convertendo em realidade”387. Rahner diz que podemos seguir princípios a serem respeitados num conhecimento dessa natureza. Um princípio é que se trata de “coisa óbvia”, posto que a verdade revelada é sempre a mesma. Expressa algo que a Igreja se apossa como parte da revelação a ela confiada, como objeto de sua fé incondicional, posse essa que se dá para sempre e em definitivo. Esse princípio limita o conteúdo do dogma porque exclui reflexos de objetivações de sentimentos, atitudes e mentalidades mutáveis e que se prendem a uma determinada época histórica e não a outra. O risco que existe em o homem adotar essas proposições que são frutos de uma época é o de incidir num erro que o desvie da verdade. Rahner vai chamar esse risco de que se possa adotar proposições que não sejam “adequadamente verdadeiras, de proposições “meio falsas” por não expressarem a realidade em questão e por suprimirem a diferença absoluta existente entre a “verdade e o erro”. É difícil ao homem determinar o limite entre a proposição inadequada e falsa. Contudo, devemos considerar o fato de as nossas proposições sobre a realidade infinita de Deus serem sempre limitadas. Nesse sentido, as fórmulas com que expressamos a fé podem ser superadas, mantendo-se verdadeiras, ou seja, podemos substituí-las por outra que diga o mesmo e acrescente mais alguma coisa, que ainda assim diga “o mesmo”, porém com um novo matiz, desde que articulada ao novo conhecimento no sistema de coisas que já se sabe, já se sente e já se faz na experiência histórica e total de nossa vida, o que é o sentido que todo ser humano tem de tradição. 385 RAHNER. A caminho do homem novo. Petrópolis: Vozes. 1964, 3. ibid, 14. 387 ODR 61. 386 151 2.3 – A evolução do dogma e a realidade da palavra Até aqui tratamos de exprimir a mesma realidade, de outra maneira, o que não implica no conceito que temos de progresso, ou como o diz Rahner: no aumento simultâneo de um “plus” quantitativo de conhecimento. É a Igreja trazendo no tempo a mudança do que permanece o mesmo, não significando que tal mudança seja abandono da perspectiva anterior, o que é típico das coisas materiais, mas não das coisas espirituais388. Por isso, o mistério da Trindade divina, nas expressões de fé dos Concílios de Nicéia e de Florença, não se pode tomar como ensaios teológicos, porque tais expressões não admitem contradição entre si. Para o homem em particular, há uma diferença entre uma proposição anterior e outra posterior, o que de fato existe, no que chamamos de evolução do dogma, como comprova o modo efetivo de agir da Igreja na pregação de sua doutrina. É nesse sentido que revelação é fruto de um diálogo histórico entre Deus e o homem. E a comunicação da Igreja refere-se a este acontecer, ao diálogo que se encaminha a um ponto final, no qual o acontecer e, em conseqüência, a sua comunicação, chega ao seu ponto máximo e, com ele, à sua conclusão389. Daí o núcleo central do cristianismo que afirma a revelação como acontecimento salvífico, acontecimento que implica uma comunicação de verdades que, na história da salvação, alcançou em Cristo seu ponto máximo, incapaz de ser superado. Por isso o alerta de Rahner de que o cristianismo não é uma fase da história universal substituível por outro “éon” intramundano, porque todos os tempos surgem e desaparecem, passam a uma distância infinita da eternidade autêntica que permanece no mais além. Tudo o que nasce já traz a morte em si: culturas, povos, reinos, sistemas culturais, políticos, econômicos390. Antes de Cristo, o mesmo agir no mundo do Deus que se revelara, estava “aberto”. Este agir criava tempos, planos sucessivos de salvação, todavia não se sabia como Deus responderia definitivamente ao homem, se sua última palavra seria de ira ou de amor. Agora está dada a realidade definitiva que não pode ser superada e nem substituída; o inextinguível e irrevogável presente de Deus no mundo como salvação, como amor e perdão, como comunicação ao mundo da mais íntima realidade divina e de sua vida trinitária: Jesus Cristo. 388 ODR 64-65. ODR 67. 390 ODR 69. 389 152 Com isso a revelação está “encerrada” por estar “aberta” à plenitude de Deus, que se encontra “ocultamente presente em Cristo”. A clausura da revelação, assim o diz Rahner, não é uma expressão negativa, mas positiva, posto que é puro “sim”, é a conclusão que inclui tudo e nada exclui da plenitude compreensiva. Unida no “éon” de Jesus Cristo a palavra se une ao que já está presente na mensagem e a Igreja crente possui o que crê: Cristo, seu Espírito, o penhor da vida, o vigor da eternidade, realidade esta que não pode ser apreendida “extra muros” da palavra. Isso nos leva a unir de modo indivisível a palavra e a realidade mesma: uma na outra, nenhuma sem a outra. A luz do Espírito e da fé se faz valer no próprio resultado, que é a nossa realidade391. De outro modo, é importante dizer que a luz da fé e o impulso do Espírito não se deixam objetivar de per si num olhar separado do objeto da fé, por que o objeto da fé não é mero objeto passivo, mas é o princípio mediante o qual o mesmo Espírito é captado como objeto. Daí ser possível explicar a evolução do dogma realmente acontecida e legítima, afastando o perigo de rebaixar ao nível de nossas pobres operações mentais, meramente humanas, à realidade superior e mais ampla do conhecimento da fé na dependência do inferior e secundário, na dependência da teologia científica, que também é um elemento interno do conhecimento da fé, mas de maneira alguma sua essência adequada392. Seguindo Rahner, existe uma evolução do dogma, que tem que existir e acontecer num “contato vivo com a realidade revelada”. Entre uma expressão desse conhecimento e outra expressão desse mesmo conhecimento que é dado da realidade, há a possibilidade de uma elaboração lógica mais rigorosa, ou seja: a realidade contida nesses conhecimentos (conhecimento fundante e o conhecimento fundado) está relacionada entre eles, supondo-se que “o conhecimento que evoluiu” seja uma autêntica verdade dogmática, sob a garantia do magistério de que a nova proposição reproduz exatamente o sentido da antiga, ou seja, o mesmo que a proposição original, que diz também o que Deus revelou. Conclusão Assim é que se crê devido ao testemunho do próprio Espírito de Deus, com fé divina. Isto é dogma e não apenas teologia. Com isso não se elimina uma evolução teológica, mas se afirma que 391 ODR 71. ODR 76-77. Rahner não quer sob qualquer hipótese diminuir o valor da teologia dita científica porquanto ele mesmo ressalva, na pág. 77, a honradez como virtude da Teologia. 392 153 existe uma evolução dogmática própria que não é resultado de um conhecimento novo, dedutivo, mas que parte de várias proposições de fé presentes do conhecimento “revelado” por Deus do sentido rigoroso da “fé divina”. Rahner recorda que quando um homem fala, jamais alcança plenamente as conseqüências reais que se deduzem necessariamente de suas palavras. “Nós falamos sempre “por cima de nossa própria cabeça”. Tudo o que propriamente dizemos não é a expressão plena do que realmente queremos dizer”. Mas, o grande alerta do autor é que quando Deus fala, não sucede o mesmo. Por isso Deus mesmo diz o que só na história viva do que foi dito se desvela como dito, ou seja, não é o que Deus pronunciou em seu sentido proposicional imediato, mas o que “comunicou” e, por isso, pode ser crido como saber Seu. Nessa linha, pode-se afirmar que somente é inspirado aquilo que o autor humano quis dizer, o que implica que podem ter sido comunicadas mais coisas, mesmo tendo-se Deus como autor literário da Escritura. Podemos estar diante de outros mensageiros, como os profetas, como portadores originários e não literários da revelação – que encontram nos apóstolos sua expressão inspirada na comunicação de uma mensagem de que não são os autores. Transmitem, assim, os apóstolos, uma mensagem não própria, mas simplesmente a mensagem de Deus. Por isso, sua comunicação pode superar o que eles souberam explicitamente dizer a respeito da mesma mensagem. Rahner imagina o saber consciente pleno da fé dos apóstolos e da comunidade primitiva, sem cair num anacronismo a-histórico. Diz que é pouco o que se poderia saber a respeito, o que na ocasião não era entendido e nem o poderia ser, mas também diz que se sabia “tudo” porque se apreendera vitalmente a realidade total da ação salvadora de Deus e nela se vivia espiritualmente. A herança que os apóstolos transmitem não são proposições, mas seu espírito, o Espírito Santo de Deus, a realidade verdadeira do que eles experimentaram em Cristo e por isso chamamos de perfectiva, já que nos reorienta sempre no caminho que volta ao Senhor. Essa successio apostolica, no sentido pleno e total da palavra transmite à Igreja pós-apostólica, precisamente no que se refere ao conhecimento da fé, não só um conjunto de proposições, mas a experiência viva: o Espírito Santo, o Senhor sempre presente na Igreja, com a vitalidade da verdade sem duplicidade393. Portanto, para Rahner, podemos nos dedicar à investigação e reflexão teológica, com relação à Assunção, sem que o resultado redunde em mera teologia, porque o magistério da Igreja dispõe de 393 ODR 94-95. 154 um critério superior ao do teólogo isolado. A Igreja possui o órgão para perceber o que aparece como resultado do trabalho teológico, que é mais do que mero resultado do trabalho mental humano, porque é a própria palavra de Deus, envolta noutra forma, numa nova articulação e explicação. É o magistério, assistido pelo Espírito, que tem dupla função: garantir como verdadeiro o resultado do trabalho teológico, inclusive quando tal trabalho não seja provável, podendo, ainda, garantir que o resultado não é somente verdadeiro, mas também Palavra de Deus. Nesse sentido ele acresce que os “novos dogmas marianos hão de ser vistos no conjunto da compreensão cristã da fé”. Isto vale dizer que apenas se tomarmos por substância do cristianismo o que Rahner chama de encarnação do próprio Logos eterno em nossa carne que, partindo desta fé e de acordo com o testemunho escriturístico, deve-se dizer que Maria não representa apenas episódio individual em uma biografia de Jesus Cristo, episódio carente de interesse teológico, mas que ela, nesta história da salvação, é realidade histórico-salvífica explícita. Se lermos Mateus, Lucas e João e se rezamos o símbolo apostólico, onde professamos a fé em Jesus, o Logos divino, que nasceu da Virgem Maria, com isso estamos a dizer – ainda que em fórmula muito simples – que Maria foi a mãe de Jesus não só em sentido biológico, mas como alguém que assume função bem determinada, e até mesmo única, nessa história da salvação oficial e pública. No símbolo apostólico, Maria ocupa lugar que nem sequer Lutero lhe contestou, embora ele tenha acreditado encontrar no culto mariano daquela época medieval tardia tendências que ameaçavam ou negavam o sola gratia394. Por isso, Rahner resume a essência de seu pensamento asseverando que: No dogma não se diz mais nada do que isso: Maria é a redimida de maneira radical. Partindo-se daí, torna-se, na verdade, coisa muito óbvia o conceito básico, segundo o qual Maria – como quem em sua maternidade pessoal e não apenas biológica, acolheu na fé a salvação do mundo – constitui também o caso mais alto e mais radical de realização da salvação, de fruto da salvação, da concepção da salvação. Tanto na cristandade oriental como na ocidental isso foi algo tido como sumamente óbvio, ainda que nem sempre se tenha apresentado neste grau de reflexão explícita. E, a partir daí, é relativamente fácil compreender o que queremos dizer, quando falamos de “imaculada conceição” e “assunção aos céus”, sem que se tornem dogmas que fossem de modo adventício acrescentados à substância real última do cristianismo395. 394 395 CFF 449. CFF 449-450. 155 3 – O significado de causa universalizadora do Espírito na autocomunicação divina Introdução Rahner não teria sido capaz de decifrar as teses da teologia escolástica se não fosse a sua extrema familiaridade com os escritos dos Pais da Igreja e os da teologia medieval, como estamos sempre realçando. A teologia escolástica derivava das grandes experiências teológicas fundamentais. Somente é possível compreender o alcance da teologia de Rahner se tomamos por pressuposto décadas de intensa e discreta luta com a grande tradição. Isto porque, se alguém apenas conhecer o “último” Rahner - do final da década de 50 até os anos 80 -, terá quase perdido a riqueza e maestria do seu pensamento histórico, que é o verdadeiro fundamento no qual se apóia o seu pensamento. Esta hipótese se daria, em parte, porque precisamente estes trabalhos históricos somente foram publicados posteriormente, ou jamais foram publicados de modo compreensível396. Por certo, o trabalho histórico de Rahner não tem fim em si mesmo, embora não possa ser desconsiderado porque ele nos permite “entrar em contato” com um pensador do passado, mais para aprender de um e de outro autor algo sobre a realidade, do que para glorificar o passado, o que está fora de cogitação. Nesse sentido, a tradição é importante porque pode ativar, expandir e talvez mesmo corrigir, a reflexão contemporânea sobre a fé. É importante dizer do vasto conhecimento de Rahner das Escrituras, da história do montanismo, da teoria batismal de Gregório de Nyssa, dos problemas eclesiológicos de Agostinho, das decisões sobre o semipelagianismo, da teologia negativa de Tomás de Aquino, das experiências místicas de John Ruusbroec, dos grandes da escolástica tardia, como Molina, Suarez, Ripalda397. É exatamente da familiaridade com as fontes da fé que Rahner gera a ousadia e o candor de seu pensamento teológico398. Exemplo notório de que esta cultura de Rahner é o seu próprio inesgotável apelo à verdade, pode ser constatado na leitura, em tudo recomendada, do artigo Reflexões sobre o problema da ascensão gradual à perfeição cristã399. Aqui retomamos da teologia trinitária de Rahner a compreensão pela qual Deus se relaciona conosco na graça de Cristo, de uma “tríplice maneira” para distinguir o que verdadeiro e o que resvala por herético, ou não. 396 TCF 13. TCF 13-14. 398 Cf. TCF 15. 399 O artigo está publicado em THI III, 3-23. 397 156 A tríplice maneira pela qual Deus se relaciona conosco na ordem da graça de Cristo, é a própria realidade de Deus, como ela é em si mesma: realidade “tripessoal”. Tal proposição seria sabelianismo ou modalismo, unicamente se ela considerasse a “modalidade” da relação de Deus à criatura elevada à ordem sobrenatural e agraciada com a própria realidade de Deus, em desconhecimento absoluto do caráter radical de autocomunicação desta “modalidade” (na graça incriada e na união hipostática), como sendo diferente da maneira pela qual Deus é “em si mesmo” e se se imaginasse que Deus fosse tampouco atingido por esta relação, que essa “diversidade” (como na criação e na relação natural de Deus ao mundo) não registraria nenhuma diferença em Deus, mas a diferença se encontraria unicamente por parte da criatura400. Na base de todo o exercício de Rahner está firme a idéia perseguida por ele de que, pela presença do Espírito Santo que nos inabita e por meio da aceitação pelo homem livre da autocomunicação divina que lhe é sempre ofertada, aí está o mecanismo pelo qual a universalização da mensagem cristã é tornada possível, ao menos de modo atemático. 3.1 – O ponto de partida: conceito sistemático de Trindade econômica Para Rahner, o ponto de partida de seu axioma é a necessidade de um conceito sistemático de Trindade econômica. Aqui, porém, não nos podemos contentar, no que se refere a este ponto de partida, com o que ficou dito acima. Pois agora é mister dizer mais exatamente o que seja propriamente essa Trindade econômica, que pretende ser a imanente401. O nosso teólogo crê que todos nós temos uma noção provisória de Trindade econômica. A história da salvação, a experiência da mesma e sua expressão bíblica proporcionam tal noção, que permanecerá sempre o fundamento e o ponto de partida insuperável e até mais rico do que quando reduzido a um conceito sistemático. Ele diz que esta mesma pré-noção se desenvolve na cristologia e na doutrina da graça. Rahner deixa de ocupar-se com a conveniência de tratar a doutrina da Trindade antes da cristologia e da doutrina da graça, ressalvando que não se pode simplesmente supor a pré-noção bíblica e histórico-salvífica da Trindade econômica, embora não seja seu intento desenvolvê-la em sentido bíblico-teológico, o que também se segue na metodologia deste trabalho. Metodicamente, pois, não nos resta senão tentar ousadamente reduzir a Trindade econômica a um breve conceito sistemático. Por mais problemática que seja tal tentativa, ela é inevitável a essa altura. Pois, em primeiro lugar, não é possível expor extensamente a experiência bíblica e histórico-salvífica (isto seria a 400 401 ODT 303. ODT 331. 157 cristologia e a doutrina da graça na íntegra) e contudo não devemos simplesmente omiti-la; além disso, ela deve ser formulada de tal modo (isto é, reduzida a um conceito sistemático) que sirva diretamente ao nosso propósito de exprimir teologicamente a Trindade imanente, que é o tema que propriamente nos ocupa aqui402. 3.2 – A expressão trinitária da Igreja Rahner reconhece que dificilmente a teologia católica veja claramente o problema. Ela admite a Encarnação e o envio do Espírito como dois fatos que não se relacionem entre si a não ser de modo assaz exterior. Pois, sem refletir muito, está propriamente convencida de que poderia haver Espírito sem Encarnação, que cada pessoa divina poderia tornar-se homem, portanto também o próprio Pai ou o Espírito, que poderia haver encarnação do Logos (mesmo num intuito soteriológico, por exemplo, no de uma satisfactio condigna), sem que isso fundamentalmente acarretasse o envio do Espírito. Por conseguinte, estas duas autocomunicações de Deus estão ligadas entre si tão-somente pelo vínculo dum decreto moral de Deus e já não se podem entender realmente como os “momentos internos”, correlacionados entre si, na “única” autocomunicação em que Deus (o Pai) se comunica ao mundo para uma presença absoluta. Em conseqüência, não se percebe claramente a diferença entre Encarnação e comunicação do Espírito, enquanto ambas são grandezas soteriológicas. Pois enquanto se admite, por exemplo, que o Espírito pudesse da mesma forma ter-se tornado homem e exercer a “função hipostática” em relação à natureza humana de Jesus, na Encarnação nada pode estar contido (com exceção de outras palavra de Jesus) que não estivesse também no outro caso. Enquanto se pressupõe que a comunicação do Espírito seria possível sem a Encarnação, nada pode estar contido nela, como tal, que signifique uma diferença essencial entre ela e a Encarnação do Logos, salvo que neste caso é o Logos que exerce efetivamente a função hipostática, a qual poderia da mesma forma ser exercida pelo Espírito403. O caminho trinitário que Rahner percorre supõe que se Deus sai livremente de si na autocomunicação (e não cria realidades distintas de si), é e deve ser precisamente o Filho quem aparece historicamente na carne como homem e é e deve ser precisamente o Espírito quem produz a aceitação, na fé, na esperança e no amor, desta autocomunicação por parte do mundo (como criação). Na medida em que esta única autocomunicação divina, efetuada sob estes dois aspectos complementares é livre, também a Encarnação e o envio do Espírito por parte de Deus é livre, ainda que a conexão entre estes dois momentos seja necessária. 402 403 ODT 332. ODT 333-334. 158 Em todo caso, não aparece no magistério eclesiástico nenhuma razão dogmática incontestável contra esta suposição. Já foi dito acima que a Igreja concorda com a tradição préagostiniana. A razão, quanto a Rahner, que leva a esta suposição está no fato de que de outra forma não é possível chegar a entender a doutrina da graça e a cristologia, conforme apontado exaustivamente por todo este trabalho. O fato de que justamente o Logos se tenha tornado homem e que justamente o Espírito “santifique” é um acontecimento livre, na suposição e em razão de que a autocomunicação de Deus seja livre. Se, porém, sob esta suposição, se passa a considerar “livre” a Encarnação do Logos e a santificação precisamente pelo Espírito, a própria história da salvação já não diz nada sobre Pai, Filho e Espírito. A doutrina da Trindade passa a ser um acompanhamento verbal duma história da salvação que a rigor quanto a nós (mas sem esse “quanto a nós” ela não é história da salvação) decorreria da mesma forma, se se encarnassem o Pai ou o Espírito404. Por conseguinte, diz Rahner que a questão só pode ser esta: como reduzir a um conceito, isto é, entender a Encarnação e o envio do Espírito, em suas peculiaridades atestadas pela revelação, de tal modo que apareçam como momento da única autocomunicação de Deus, portanto como uma Trindade em sentido econômico-salvífico e não como duas funções de duas hipósteses divinas que a bel-prazer se possam comutar uma pela outra405. 3.3 – A suspeita do mito Rahner alerta que o seu conceito de autocomunicação de Deus não desperta suspeita de mitologia por duas razões. A primeira, porque pressupondo-se a existência de Deus e atentando-se para a circunstância de que todo conhecimento de Deus, como quer que o mesmo se imagine em pormenores e se interprete teologicamente, coloca a questão da relação de Deus para conosco e por isso traz consigo o conceito de autocomunicação divina, ao menos como conceito “limítrofe assintótico desta relação”. A segunda, porque não exclui o “mistério”, mas o inclui e, conseqüentemente, sob esse respeito, excede a reflexão teológica. Acresce que o conceito de autocomunicação exprime (1) exatamente a presença absoluta de Deus como o incompreensível e como o mistério que permanece em sua incompreensibilidade; exprime (2) a absoluta liberdade e por conseguinte o caráter irredutível de fato desta autocomunicação, que também por essa razão 404 405 ODT 334. ODT 334. 159 permanece “mistério”, além disso, exprime (3) que a possibilidade interna da autocomunicação como tal (autocomunicação absoluta do absolutamente incompreensível) jamais será compreendida; experimenta-se por um fato puro, mas não se pode deduzir de outro ponto, de sorte que também por isso permanece mistério406. A questão decisiva com relação ao conceito esboçado pela Igreja é que ele não explica as duas maneiras de autocomunicação pelo Filho e pelo Espírito, como momentos internos, internamente relacionados e distintos entre si, da única autocomunicação de Deus, de sorte que também a distinção esteja incluída num só conceito. Para Rahner, a questão, assim colocada é difícil de resolver, especialmente porque aqui não é possível reunir, desenvolver e comentar para sua solução as indicações que naturalmente se encontram esparsas por toda a parte na tradição bíblica e teológica, como já ressalvado. Restou a Rahner a possibilidade de “uma tentativa que representa um início que se justifica por ser inevitável, se é que se deseja desfazer, na situação histórico-intelectutal de hoje, a suspeita surpreendente de que a Trindade seja um mito”407. Conclusão Rahner afirma que no tratado da Trindade podemos “despreocupadamente” procurar o acesso à doutrina da Trindade na “experiência” de Jesus e de seu Espírito em nós. A citação a seguir, remete o pensamento de Rahner à “experiência” narrada na autobiografia de Inácio de Loyola408. A Trindade para nós não é puramente uma realidade que se possa apenas exprimir doutrinariamente. A Trindade mesma ocorre em nossa existência; como tal, ela própria nos é dada, independentemente do fato de a Escritura nos comunicar sentenças a seu respeito. Estas sentenças, ao contrário, são dirigidas a nós, justamente porque nos foi concedida essa realidade mesma, acerca da qual se proferem as sentenças409. É pela comunhão e o seguimento do Cristo em que tudo foi criado que estamos, a um só tempo, unidos com o Pai, fonte e origem e com o Espírito Santo, num processo vivificante, dinâmico e eternamente criativo do todo distinto de Deus. E este todo permanece distinto de Deus porque, 406 Cf. ODT, nota 10, 335. ODT 334. 408 SAN IGNACIO. Obras de San Ignacio de Loyola. 6a ed. Madrid: BAC. 1997. Autobiografia, 29: “[…] Se não houvesse Escritura que nos ensinasse estas coisas da fé, ele se determinaria a morrer por elas, só pelo que vira”. 119. 409 ODT 304. 407 160 nossa elevação à graça e nossa glória não poderiam ser reveladas plenamente, a não ser que se declarasse este mistério, de sorte que ambos os mistérios, o de nossa graça e o de Deus em si mesmo, são um e o mesmo mistério insondável. O tratado de Trinitate nunca deve perder de vista esse fato. É dele, deste interesse existencial da salvação, que o tratado vive e recebe seu impulso e nele encontra a verdadeira via de acesso à compreensão410. A implicação lógica e existencialmente fundamental reside em que, para a vida do cristão, é do agir salvífico de cada uma e de todas as pessoas trinitárias que podemos inferir o significado mais profundo de nossa causa principiadora, de nossa causa redentora, e de nossa causa santificadora. Isto se torna essencial neste ponto do trabalho porque está na base uma compreensão lastimavelmente abstrata do tratado a ponto de causar, como na expressão de Rahner um alheamento da vida que se faz sentir em muitos tratados. Nesse caso, surgem distorções, posto que a Escritura passa a adquirir caráter de um método que sutilmente tira conclusões de umas poucas proposições isoladas e as organiza em seu sistema, diante do qual nos perguntamos se Deus realmente nos revelou coisas tão distantes e de maneira tão obscura e necessitada de tantas explicações complicadas. Se é verdade, porém, que, para se ter presente o conteúdo da doutrina da Trindade, se pode retornar sempre à experiência histórico-salvífica e histórico-sobrenatual (de Jesus e do Espírito de Deus que age em nós), porque nela realmente temos já a Trindade mesma como tal, não deveria existir nenhum tratado da Trindade em que apenas no fim se anexasse a doutrina das “missões” como sendo, na melhor das hipóteses, um corolário relativamente secundário e posterior desse tratado. [...] Poder-se-ia afirmar afoitamente: quanto menos uma teologia da Trindade receia ser histórico-salvífica, tanto maior é sua perspectiva de afirmar o essencial da Trindade imanente e de abrir de fato este essencial a uma compreensão teórica e existencial da fé411. Tudo que Rahner quer nos dizer resume-se em uma notável sentença: “Na unidade de Palavra e Espírito está presente Deus”412. Por isso, não podemos desunir como se estanque fossem os três artigos do Credo nicenoconstantinopolitano e sua interpretação nos fatos da vida que nos permitem acolher Deus Pai, como nosso criador, mas assim também o Filho em que tudo foi criado e o Espírito Santo que dá a vida. Nesta “unidade” em que se presencia Deus, é preciso reforçar as experiências que carregamos em nossa caminhada cristã, experiências estas que são profundamente marcadas pela Redenção, que não podemos segregar como missão específica do Filho, porque a nossa vida aponta 410 ODT 304 ODT 304-5. 412 ODT 305 411 161 Deus, Pai, como o Pai de toda misericórdia, do mesmo modo com que nos permite, pela presença do Espírito Santo de Deus em nós fazer da experiência da graça do perdão, num processo tal de revivimento que permite estarmos sempre renascidos do Pai, no Filho e no Espírito, renascimento este que objetiva nos galgar hierarquicamente na natureza como aqueles destinados ao uso de sua liberdade no sentido mesmo que Jesus orientou a sua liberdade que é perfeita, que é perfeita, sabemos, porque é teleologicamente apontada para a vontade do Pai e neste sentido perfazemos, no Pai, no Filho e na unidade do Espírito Santo de Deus, o caminho da santificação possível à nossa natureza, a Deus assemelhada. 162 Capítulo II – Concepção trinitária de autocomunicação e a Fé Se, no Capítulo anterior, cuidamos da concepção trinitária de Espírito de Deus, aqui apontamos, também como objetivo da Terceira Parte, o realce existencial da presença do Espírito. A qualquer leitor de Rahner, cremos que deva causar forte impressão a capacidade do teólogo de não abandonar qualquer dado. Assim é que ele nada desprezando, vai construindo a sua teologia que ao fim se imagina como numa longa trança que se vai enlaçando, como nos cabelos de uma menina, em que nem todos os fios são ali unidos, mas que, na falta de melhor exemplo, apenas se prendem aqueles que a reflexão e o amplo conhecimento histórico lhe sugerem tomar. Este trabalho fala na autocomunicação de Deus por todas as suas páginas. Este trabalho não chega ao final sem dedicar um capítulo a este tema porque sem ele, desaba o todo. A razão pela qual somente agora o tema é mais amplamente tratado se escora na evidência de que não há como dizer da automunicação de Deus, sem dizer, propriamente, a Trindade. 1 – O significado de autocomunicação “de Deus” Introdução No enfrentamento da tematização trinitária, pensar sobre Deus e seu diálogo com o homem, é falar da autocomunicação a partir da palavra “presença”, ou como defendido na conceituada Mysterium Salutis, O módulo da “presença”, que deriva definitivamente a reflexão numa direção personalista, deixando aberta a possibilidade de empregar vários esquemas de espaço. Pode-se falar do mesmo jeito de presença no encontro com o Deus vivo, como na sua imanência no mais profundo de nosso ser: Deus diante de nós, como Deus na profundeza de nosso coração413. Neste ponto, tomamos a expressividade do vocábulo presença, cientes de que a palavra é simples e extravasará por outros significados, não sendo, portanto, possível o seu uso exclusivo, mas como uma alternativa, por exemplo, à expressão inabitação que, pode vir em nossos dias carregada de uma “inércia” própria do pior sentido do imobilismo. Não devemos identificar a trindade como uma abstração desprovida de sentido para nós, como algo inatingível. Se, porém, o horizonte da existência humana que 413 P. FRANSEN. As estruturas básicas da nova entidade. In MYS IV/8, 141. 163 funda e abarca todo o conhecimento humano é um mistério, neste caso o homem possui uma afinidade dada pela graça, com aquele mistério cristão que constitui o conteúdo básico da fé. E este mistério único pode plenamente fazer-se entender pelo homem, caso este se entenda a si mesmo como alguém que está orientado e remetido ao mistério a que chamamos Deus414. Rahner chama experiência transcendental à consciência subjetiva, atemática e insuprimível do sujeito que conhece, que se faz presente conjuntamente a todo ato de conhecimento. Ele chama a esse conhecimento de experiência porque este saber atemático é condição de possibilidade de toda e qualquer experiência concreta, porque é na experiência de infinita ultrapassagem de determinado objeto ou categoria que se faz efetivamente a experiência de conhecer. Também vimos, na Segunda Parte, que a experiência de transcendência não é experiência de conhecimento categorial, mas é, também, experiência de vontade e liberdade, de tal modo que se pode, a um só tempo, perguntar pela origem e pelo destino do sujeito que conhece e é livre415. Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo416. Dando ouvidos à manifestação do Espírito na poesia de Fernando Pessoa, percebemos como ele tão bem se coloca como sabedor de si como criatura (não sou nada), como sabedor de seu saber que lhe avisa que a partir de suas próprias forças sabe que não será nada, mas se reconhece em si, como sujeito e pessoa que tem em todos os sonhos do mundo a marca transcendental do pluralismo da realidade. Daí a experiência de transcendência ser a experiência da liberdade, da vontade e também a do amor. Essa transcendência, que é constitutiva de um sujeito que, dotado da faculdade de conhecer e de pensar, é livre, para sonhar até todos os sonhos do mundo. Esse sujeito que é livre vai confrontar sua liberdade com a de outro sujeito, no que Rahner vai chamar de inter-humanidade, e também esse outro é sujeito de transcendência, e essa é condição de o sujeito estar presente a si mesmo e também estar originariamente presente a outro sujeito. Para um sujeito que está presente a si mesmo e tem consciência de si, essa liberdade que afirma o outro significa amá-lo417. 414 CFF 23-24. CFF 33. 416 FERNANDO PESSOA (Poesias de Álvaro de Campos). Tabacaria. 417 CFF 85. 415 164 Curiosamente, o mero fato de eu mencionar a experiência transcendental não a torna presente. Ela pode passar despercebida, porque vem ao nosso encontro de maneira inesperada. Daí ser tão difícil falar. Por isso, só falamos de maneira indireta do termo, do horizonte, para o qual aponta essa experiência do movimento transcendental de nosso espírito418. A transcendência – essa ultrapassagem do horizonte ilimitado de todo o movimento de nosso espírito – é a condição, o horizonte, a base e o fundamento que nos possibilitam comparar e classificar entre si os objetos singulares da experiência419. Somente no acolhimento amoroso desse mistério, deixando-nos dispor, por ele, é que se pode levar a bom termo o processo de crescimento na liberdade, perante si mesmo. À medida que o homem uno assim se experimenta, pode e deve dizer: eu sou espírito420. O movimento da transcendência consiste no irromper espontâneo do ser absoluto, o que não depende do homem, que apenas o recebe. Diz Rahner que onde o homem se experimenta em sua transcendência como inquietado por esse surgimento do ser, e exposto ao inefável, este homem não pode mais se conceber como absoluto, diante da passividade do que recebe o que, nesse sentido, já chamamos, “graça”421. Assim, sabemos de nossa liberdade subjetiva, de nossa transcendência e da abertura ilimitada de nosso espírito mesmo quando não conseguimos conceituar objetivamente este saber originário, ou quando nossa tematização é deficiente, e até mesmo quando nos recusamos inteiramente a aceitar essa tematização. Por essa razão, o conhecimento explícito de Deus na religião e na metafísica só é compreensível quando as palavras que nele usamos apontam para a experiência atemática de estar remetido ao mistério inefável422. Este esclarecimento se fez, a título de necessário enquadramento do tema da autocomunicação no restante da teologia de Rahner, com o quê, se pode agora tecer a trança. 1.1 – O relacionamento interno - τάξις - entre as maneiras de autocomunicação de Deus A expressão da Trindade econômica trata de duas maneiras de autocomunicação livre e gratuita de Deus à criatura espiritual, a saber: em Jesus Cristo e no Espírito Santo. Estas duas 418 CFF 33. CFF 93. 420 CFF 221. 421 CFF 49. 422 CFF 71. 419 165 comunicações são distintas e relacionadas entre si, condicionam-se mutuamente e nesta relação de condicionamento mútuo, contudo, formam uma só τάξιρ. Ao dizermos Deus, não estamos pressupondo uma teologia trinitária latina (em oposição à grega), mas bíblica (e, se quisermos grega), como já exaustivamente afirmado. Nesse contexto, Deus é o Pai, isto é, o Deus simplesmente sem origem, que sempre se considera pressuposto e que se comunica. Precisamente se a autocomunicação, e porque a autocomunicação, por um lado não coincide simplesmente com ele em identidade morta, e ele, por outro lado, nessa autocomunicação permanece aquele que é livre, que não pode ser envolvido, que não se efunde, exatamente aquele que não tem origem. Sua carência de origem, tal como ela aparece na autocomunicação, tem nesta mesma comunicação um caráter positivo: a intangível incolumidade da autocomunicação para aquele que se comunica, tal como só pode ser própria do ser divino sem origem423. Quando acima, citamos de Rahner que Deus é o Pai, isto é, o Deus sem origem, devemos esclarecer que se poderia objetar que o autor esteja tratando de uma ausência essencial de origem de Deus, portanto efetivamente de aseidade, e ao mesmo tempo estaria insinuando tratar-se de ausência nocional de origem do Pai, o que para Rahner é uma objeção equivocada. O equívoco se dá porque na identidade do que se autocomunica desvenda-se a natureza da ausência de origem na sua forma concreta: divindade (aseidade), que pode comunicar-se a si mesma, sem com isso perder-se e sem afinal reter a si mesma, para não retirar da comunicação o caráter de autocomunicação. Ora, com isto se designa a maneira concreta da “pessoa” do Pai, o qual não é somente paternidade (portanto nocionalidade), mas o Deus concreto na unidade de aseidade essencial e paternidade nocional, a concreta ausência de origem. Se se pode afirmar que esta incolumidade também cabe ao Filho e ao Espírito, deve-se responder que esta lhes cabe precisamente como comunicada424. 1.2 – Os duplos aspectos da autocomunicação de Deus Pressupondo-se este conceito de autocomunicação de Deus, Rahner apresenta quatro aspectos duplos necessários: 1) origem-futuro; 2) história-transcendência; 3) oferecimento aceitação ; e 4) conhecimento-amor. 423 424 ODT 332. ODT nota 6, 332-333. 166 Estes quatro aspectos fundamentais resultam de nossa constituição de criaturas humanas, não sendo possível excluir deste conceito o seu destinatário, posto que o mistério da autocomunicação de Deus consiste justamente em que Deus realmente chega até ao homem, entra na situação do homem, assume esta situação e é o que ele é, íntegro, chegando realmente como aquele que é e continua sendo, sem que a situação do destinatário constitua impedimento apriorístico da chegada425. É sob a pressuposição de que o sujeito humano-pessoal seja o destinatário da autocomunicação divina, exigido necessariamente pela natureza dessa comunicação e a que ela cria como condição de sua própria possibilidade, que se pode compreender os quatro aspectos duplos. Esta comunicação, ainda em processo de comunicação, tem origem e futuro no tempo que transcorre entre esses dois momentos da comunicação: início como constituição do destinatário duma possível autocomunicação e procedente dela, como início (origem) voltado para o futuro (como autocomunicação divina consumada), sendo que este futuro não se há de imaginar como evolução progressiva do início, mas apesar da orientação do início para o futuro como algo que se defronta com essa origem como um momento distinto duma realidade radicalmente nova. A liberdade da comunicação e a historicidade do destinatário permitirão compreender o primeiro aspecto duplo no exemplo da evolução do dogma. História e transcendência são o segundo par de aspectos que a autocomunicação de Deus assume se ela há de atingir o homem todo. Já que nela Deus, como origem do homem se dá inteira e imediatamente como salvação426. Quando se efetua uma autocomunicação de Deus ao homem histórico que ainda está no devir, ela só pode ocorrer na dualidade unificadora de história e transcendência que é o homem. Se o homem é o existente na única dualidade de origem e futuro, rumo à transcendência, o existente livre, por conseguinte, a autocomunicação de Deus deve também significar a diferença de oferecimento e aceitação desta autocomunicação. Finalmente, tomamos o par conhecimento – amor, realização da verdade, realização do amor. Este aspecto caracteriza necessariamente a autocomunicação divina como tal e em sua totalidade. Por outro lado, essa dualidade no homem não pode nem ser eliminada nem completada: verum e bonum, conhecimento e amor, com toda a sua pericorese, sua unidade transcendental e única τάξιρ, são primordialmente distintos, de sorte que 425 426 ODT 335. ODT 337. 167 não se pode conceber um como simples momento do outro: nem a vontade é simples força motriz do conhecimento, simples “appetitus” de um”bonum”, único em última análise, o que seria o verum, nem o conhecimento é simples luz do amor que veria em si um momento do próprio amor427. Para Rahner essa dualidade tampouco pode ser completada, porque do contrário prejudicaria a compreensão de processões intratrinitárias, que se restringem necessariamente a duas, bem assim como já não se poderia manter o axioma fundamental da identidade entre a Trindade econômica e a imanente. Entendendo-se vontade, liberdade e bonum em sua essência verdadeira e plena, isto é, não como impulso, mas como amor para com uma pessoa, amor que não somente tende para a pessoa, mas que repousa na sua plena bondade e esplendor, neste caso não se vê porque acrescentar a essa dualidade uma terceira e ulterior faculdade. Conhecimento e amor descrevem na sua única dualidade a realidade do homem. A autocomunicação de Deus ao homem deve, portanto, constituir-se como autocomunicação da verdade absoluta e, como tal, do amor absoluto de Deus pelo homem. 1.3 – A natureza do destinatário e a unidade interna da autocomunicação A criação do Deus uno deve ser considerada como um momento (condição de possibilidade na constituição do destinatário) da autocomunicação divina, mesmo se pudesse haver tal criação sem a autocomunicação. Ocorre que a natureza humana de Cristo não é uma realidade ao lado de outras, que poderiam ter sido assumidas hipostaticamente, mas é exatamente o que resulta, quando o Logos de Deus se exprime a si mesmo externamente. Ressalve-se que porque Rahner parte “de baixo” isto não implica que ele acrescente a essa autocomunicação divina algo que a ela mesma seja externo, porquanto provém de Deus. A autocomunicação do Deus livre, que se dá como pessoa, pressupõe um receptor pessoal. Deus não somente se comunica a ele de fato, mas o destinatário da autocomunicação deve ser tal, em virtude da natureza da autocomunicação. Se Deus quer livremente sair de si, deve criar o homem. Que neste caso Deus tenha que criar um ser espiritual-pessoal e que somente este possua a potentia 427 Cf. ODT 338. 168 oboedientialis para receber a autocomunicação de Deus, não se precisa repetir aqui428. A vida espiritual não é uma série de ações indefinidamente sucessivas em busca de um objetivo espiritual. Para Rahner, o passado existe misteriosamente contido em cada momento. Assim, por sermos seres espirituais, a pessoa humana pode agir a cada momento com os recursos de seu passado inteiro, que lhe é preservado como a soma das experiências de sua vida. O exemplo de Rahner é o do tiro cuja origem no disparo pode ser determinada apenas se levarmos em conta o seu trajeto. Em ampla medida, ação presente de um ser humano incorpora todo o seu passado: o seu conhecimento obtido pelo esforço ou por sofrimento, a profundidade de sua experiência, as mudanças havidas em sua vida, suas alegrias e dores. Rahner adverte que a nossa memória pode modificar esses dados, mas, por todas estas influências, à ação presente é dada uma direção, a sua profundidade e ressonância. O passado é preservado e levado adiante pela ação presente. O indivíduo deve cercar as sucessivas oportunidades que lhe são oferecidas e, nisso, perceber o que é eterno nele. Cada momento a ser preenchido com o todo de sua história espiritual é para o indivíduo a mais rica possibilidade de presença da sua liberdade. Diz Rahner que o mais misterioso, ainda que verdadeiro, seja que na graça de uma decisão presente a pessoa humana antecipa o seu futuro, na medida em que seus atos se tornam significativos para o seu futuro. Nisso a importância do “fim cristão”, que já vimos que não carrega a conotação de que algo “acabou”, mas de que alcançou a sua finalidade, na unidade do Espírito Santo. Se já vimos que a unidade hierárquica na natureza, que caminha na direção de um processo de purificação, é na soma das experiências passadas que a presença ou a inabitação do Espírito de Deus em nós possibilita por esta autocomunicação de Deus na graça, que o processo de purificação do homem na realidade da história seja o processo de divinização ao qual somos orientados pelo próprio Espírito no sentido da santificação. Conclusão Este trabalho ressalta da obra de Rahner que a opção por uma teologia trinitária econômicosalvífica não significa que o mistério de Deus nos seja em si indiferente. Ao contrário, é importante 428 ODT 336. 169 perceber que não se está afirmando que “Deus se torne trinitário em sua obra salvífica econômica, mas apenas que nessa sua obra salvífica se dê a conhecer trinitariamente”429. Contudo, é, ainda, necessário recordar da Primeira Parte que toda a realidade cósmica tem na Trindade a sua causa principiadora. Esta afirmação feita agora, na Terceira Parte, é com o propósito de “embaralhar” os três artigos do Credo. A questão que o Capítulo presente quis responder é em que sentido é possível ao cristão afirmar que as causas principiadoras, as causas redentoras e as causas santificadoras são todas pertinentes às três pessoas do Deus do monoteísmo cristão, que se autocomunica ao homem. 2 – O significado das breves fórmulas430 Introdução Curioso que ao pretender elencar as fórmulas breves de fé que Rahner propõe nas últimas páginas de seu CFF, fui surpreendida pelo fato de haver um texto deste autor, datado de 1971, portanto anterior ao CFF, texto este publicado no volume III de seus escritos teológicos. A curiosidade se deve à percepção de que o que Rahner colocou por último em seu CFF é o que Lehmann expõe como o primeiro artigo do nosso autor, em um livro de 668 páginas sobre a obra de Rahner. Esta posição dianteira reforça a importância do tema. No particular, Rahner assim disse: As três fórmulas breves apresentadas pretendem ser apenas fórmulas possíveis, a cujo lado pode certamente haver outras, mesmo porque estas três são pensadas a nível bem determinado de abstração conceitual. Todavia talvez não seja mero jogo teológico procurar compreender estas três fórmulas, em sua justaposição e interrelação, como reflexos e conseqüências da fé cristã na Trindade ou respectivamente interpretá-las como as três vias de acesso da experiência humana para obter primeiramente certa compreensão da Trindade econômico-salvífica e, a partir daí, também da Trindade imanente431. A concepção de fé cristã é um desafio que marca o próprio cristianismo. Por sua característica duplamente milenar, o ajuste de sua concepção sujeita-se a variados elementos, dentre eles a cultura em que se está mergulhado no tempo e na história. Diante disso, a idéia de breves 429 MYS IV/8, 143. Cf. A short Formula of the Christian Faith. THI VII, 60-64. Aqui, TCF 45-49. Os textos acima, foram anunciados no CFF, livro escrito em 1976. Ocorre que em 1971, no artigo agora mencionado, Rahner apresenta uma única fórmula, assim descrita: O cristianismo é a crença da comunidade (igreja) formulada e tornada explícita por esta comunidade no mistério absoluto que exerce um poder inescapável em nossas existências, e a que chamamos Deus. É nossa crença que este mistério é o mistério do perdão que nos admite partilhar de sua própria divindade; é este mistério que comunicando-se a si mesmo a nós na história moldada por nossas decisões livres, tomadas como seres inteligentes, por sua auto doação em Jesus, manifesta-o como a vitória final e irrevogável na história. 431 CFF 530. 430 170 fórmulas fundamentais da fé, que não é originária do pensamento de Rahner, vai encontrar nele o reconhecimento da exigência de expressar a fé de maneira correspondente à sua situação cultural432. Por isso, ao apreciar os aspectos que devem ser observados numa fórmula breve, Rahner leva em conta as condições do homem contemporâneo: plural e apressado. Em vista disso, o teólogo afirma a impossibilidade de contarmos hodiernamente com uma única fórmula básica para toda cristandade católica. E é por essa via da pluralidade que sentencia: não haverá mais uma fórmula básica da fé cristã única e geral para toda a Igreja, prescrita como obrigatória pela autoridade. Nesse sentido, o símbolo apostólico não terá sucessor e, em conseqüência, permanecerá433. Nas últimas páginas de seu CFF434, Rahner desabafa ao dizer de que “em tantas páginas temos nos esforçado no sentido de conseguir na reflexão um conceito de cristianismo”. No desabafo admite que a amplidão do material utilizado ao longo das reflexões, certas dificuldades de levar a cabo o raciocínio e outras coisas ainda tenham mais obscurecido que iluminado a idéia visada, a clareza do “conceito”. Por isso, ele considera uma vez mais e de outra maneira o todo do cristianismo. De início, Rahner conta que na teologia católica tem-se discutido se hoje não deverá haver breves fórmulas fundamentais de fé com características novas para que a confissão cristã de fé venha a se expressar de maneira correspondente a seu tempo e cultura. Como já mencionamos, o Símbolo dos apóstolos teve semelhante função, mas o que se trata neste momento é de disponibilizar uma formulação do gênero, breve e centrada sobre o essencial da fé e da confissão da fé ao cristão leigo, que não precisa ser teólogo de profissão, mas que, todavia, deve responder por sua fé no seu ambiente não-cristão. Nada tão atual, embora decorrido quase um quarto de século de sua morte. Igualmente atualíssima é a urgência também apontada por Rahner da missão eficaz da Igreja com a “moderna incredulidade que exige um testemunho da mensagem cristã que a torne realmente compreensível para o homem de hoje”435. De novo, Rahner retoma o tema da hierarquia das verdades para dizer que também isso pressupõe que se separe o essencial de tudo o que é secundário. 432 CFF 517. CFF 518-519. 434 CFF 517-531. 435 CFF 518. 433 171 Pois de outra forma, o “pagão” moderno não conseguirá distinguir esta essência do cristianismo da imagem fenomênica da Igreja (na pregação, na prática religiosa, nas relações sociais etc.) que com freqüência é pouco convidativa e não atraente, e neste caso ele transfere sua oposição – em parte justificada – aos cristãos para o próprio cristianismo. A mensagem cristã deve, pois, apresentar-se de tal forma que critique os cristãos e o próprio cristianismo concreto. Esta mensagem deve, de mais a amais, dizer de forma breve e repetidamente o essencial ao homem super atarefado de hoje436. 2.1 – Uma breve fórmula teológica O aonde inabrangível da transcendência humana, que se realiza existencial e originariamente – não só de maneira teórica e meramente conceitual –, chama-se Deus e se comunica existencial e historicamente ao homem, como sua própria realização consumada, em amor indulgente. O ponto alto escatológico da autocomunicação histórica de Deus, no qual esta autocomunicação se manifesta de maneira irreversivelmente vitoriosa, chama-se Jesus Cristo437. A fórmula contém três afirmações fundamentais: a primeira se refere ao que se entende por Deus. Busca tornar acessível a compreensão de Deus (em sua essência e em sua existência), designando-se a Deus como o Aonde da transcendência humana e nisso diz que Deus deve ser reconhecido como mistério permanente incompreensível. Aí se frisa que esta experiência de Deus, implicada na experiência da transcendência, não se faz em primeiro lugar e originariamente em reflexão teórica, mas no exercício do conhecimento e da liberdade em nosso dia-a-dia. Se, portanto, esta experiência de Deus, por um lado é inevitável, por outro, pode ocorrer de modo anônimo e atemático. A primeira fórmula breve teológica não só diz da existência do Deus do qual (como Tomás de Aquino) seria claro o que ele é, mas pretende também dizer como se pode chegar à compreensão do que propriamente se entende ao falar de Deus438. A segunda afirmação diz que este Deus não é a eterna meta assintótica do homem, mas o que doa-se a si mesmo, como ele próprio, em autocomunicação ao homem como sua própria realização consumada. Diz que, em verdade o faz sob a pressuposição de que o homem seja pecador, ou seja, trata-se de doação em amor indulgente. Esta autocomunicação acontece de modo existencial e histórico, implicando o mútuo relacionamento de ambos os momentos, que chamamos graça justificante ou comunicação existencial de Deus no “Espírito Santo”. 436 CFF 518. CFF 524. 438 CFF 524. 437 172 Com esta afirmação da dupla autocomunicação de Deus ao mundo, a saber, as duas “missões” histórico-salvíficas – a existencial do Espírito e a histórica do “Logos (filho) – e levando em conta o mistério de Deus enquanto (Pai), está dada de imediato a Trindade econômico-salvífica e com isso também já a imanente, porque se não existisse essa, não haveria nenhuma real e verdadeira autocomunicação de Deus. A terceira afirmação diz que a autocomunicação histórica de Deus, tem seu ponto alto escatologicamente vitorioso em Jesus de Nazaré. Pois, quando a autocomunicação histórica de Deus chega ao seu ponto alto, na qual ela não existe apenas como dirigida e ofertada à liberdade do homem (individual e coletivamente), mas como acolhida na humanidade como todo de maneira irreversivelmente vitoriosa e definitiva, sem que com isso a história da salvação esteja determinada de maneira absoluta. Assim, a terceira afirmação confessa na fé que este ponto alto escatológico da autocomunicação histórica de Deus ao mundo já ocorreu concretamente na pessoa histórica de Jesus de Nazaré, uma vez que este evento escatológico não é pensável sem se pensar na sua permanência histórica na história da salvação, que ainda continua, esta fórmula breve oferece também um impulso para a Igreja, que só é compreensível como o sacramento permanente do agir salvífico de Deus em Cristo em favor do mundo. 2.2 – Uma breve fórmula antropológica O homem chega realmente a si mesmo em genuína auto-realização somente quando ousa colocar-se radicalmente em favor dos outros. Ao fazê-lo, acolhe (atemática ou explicitamente) o que se entende por Deus enquanto horizonte, garante a radicalidade deste amor, o qual em autocomunicação (existencial e historicamente) se faz o espaço da possibilidade desse amor. Este amor entende-se de maneira íntima e social e na radical unidade destes dois momentos, ele é o fundamento e a essência da Igreja439. Aqui também Rahner elenca três afirmações, a saber: A primeira diz que - na auto-transcendência existencial que acontece no ato do amor ao próximo - o homem faz uma experiência de Deus. Esta afirmação concretiza o que se disse sobre a atuação originária da transcendência humana ocorrer não na reflexão teórica, mas no conhecimento prático concreto e na liberdade cotidiana. Rahner chama a isso com-humanidade e interhumanidade. Esta afirmação encontra garantia na verdade da unidade do amor para com Deus e do 439 CFF 527. 173 amor para com o próximo, “pressupondo-se que não se reduza essa verdade à obviedade, segundo a qual não se pode agradar a Deus se se despreza o seu mandamento de amar ao próximo”. A segunda afirmação diz que mediante sua autocomunicação Deus cria a possibilidade da inter-humanidade de amor, que concretamente nos é possível. Esta segunda afirmação diz também que o amor entre os homens é movido pela graça sobrenatural, justificante, do Espírito Santo. Se compreendermos essa autocomunicação divina no sentido mais preciso, ou seja, na unidade, na distinção e na mútua relação de condicionamento entre autocomunicação existencial de Deus na graça e autocomunicação histórica de Deus com o seu ponto alto na encarnação do Logos Divino, então o enunciado segundo o qual Deus na autocomunicação fez-se o espaço das possibilidade dessa radical inter-humanidade, conta também o que se disse na primeira fórmula breve acerca da autocomunicação de Deus como a essência mais lídima da fé cristã. Se refletirmos sobre Mt 25, com certeza é de antemão incontestável que no amor radical para com o próximo realizado praticamente já está implicitamente data toda a relação salvífica do homem para com Deus e para com Cristo. Se nessa segunda afirmação da fórmula breve antropológica alguém notasse a falta de uma afirmação explícita da relação do homem, e do seu amor para com o próximo, com Jesus Cristo, poderia evidentemente dizê-la de maneira mais expressa: Esta autocomunicação de Deus ao homem, que sustenta o seu amor para com o próximo, tem o seu ponto alto histórico escatologicamente vitorioso em Jesus Cristo, o qual, portanto, é amado, pelo menos anonimamente, em todo outro homem440. A terceira afirmação desta segunda fórmula breve diz que esse amor, no qual no próximo ama a Deus e o próximo é amado em Deus, apresenta uma dimensão de intimidade existencial e uma dimensão de sociabilidade histórica, que corresponde ao duplo aspecto da autocomunicação de Deus. Onde este amor chega a seu ponto alto, está presente o que chamamos Igreja. Pois o que é mais próprio na Igreja consiste na união escatologicamente indissolúvel (não: identidade !) entre verdade – Espírito – amor, por um lado, e manifestação historicamente institucional dessa comunicação do Espírito como verdade e amor, por outro lado441. 440 441 CFF 528. CFF 528. 174 2.3 – Uma breve fórmula futurológica O cristianismo é a manutenção em aberto da questão do futuro absoluto, que quer doar-se precisamente com tal em autocomunicação. Fixou este seu querer de maneira escatologicamente irreversível em Jesus Cristo, e se chama Deus442. Esta fórmula brevíssima é variante da afirmação sobre a transcendentalidade do homem contida na primeira fórmula básica, interpretando-a como futuridade. Tal futuro não é a meta à qual tende assintoticamente a história sem jamais ser atingida em si -, mas que quer se doar por sua própria autocomunicação. Desta autocomunicação do futuro absoluto, a qual se encontra ainda em fase de realização histórica, diz-se o que da autocomunicação de Deus já se disse na primeira fórmula breve, que é, também, “existencial”, tendo um aspecto histórico no qual atingiu irreversibilidade escatológica em Jesus Cristo. Rahner nem precisa expor outra vez que no enfoque da divina autocomunicação ao mundo que em Jesus Cristo tornou-se escatologicamente irreversível, já está dado o que a doutrina da Trindade e a cristologia expressam e, também, que, na experiência de nosso extar-voltado-para-ofuturo-absoluto, faz-se a experiência de Deus – e precisamente do Deus da ordem sobrenatural da graça, o que também não é mais preciso expor aqui. O cristianismo, na medida em que é adoração do Deus único e verdadeiro, mantém o homem aberto para o futuro absoluto e, à medida que este futuro é e permanece o mistério absoluto, também no estado da realização plena e consumada desta autocomunicação, é a manutenção em aberto da questão sobre o futuro absoluto. Conclusão A primeira fórmula fala de Deus como o Aonde inabrangível. Se pensarmos que assim se indica o principium inprincipiatum, o princípio absolutamente não originado de toda realidade pensável, então neste Aonde da transcendência humana menciona-se realmente o “Pai” da doutrina cristã da Trindade. Na segunda fórmula breve, o foco é Deus que, em Jesus Cristo enquanto homem se faz o espaço da radical inter-humanidade, então nela se menciona o Deus feito homem, o “Filho”. O futuro absoluto do homem, que se comunica na história é de maneira especial o “Espírito de Deus”, porque ele pode ser caracterizado como amor, liberdade e novidade sempre surpreendente. 442 CFF 529. 175 Se uma fórmula de fé deve expressar a substância fundamental da realidade da fé cristã de tal forma que a partir da experiência existencial do homem se abra o acesso máximo para a compreensibilidade desta substância e, se, por outro lado, esta substância fundamental certamente se pode encontrar no voltar-se trinitário e econômico salvífico de Deus para o mundo, então não se deve descartar de início que deve haver três tipos fundamentais dessas fórmulas breves em correspondência ao dogma trinitário. Isto não exclui que cada um destes tipos básicos possa ser ainda bastante matizado, quer mediante ulterior diversificação e acentuação de seu conteúdo, quer levandose em conta a variedade daqueles aos quais se destina semelhante fórmula básica de fé443. 443 CFF 530-531. 176 III Conclusão 177 O início deste texto deu a palavra ao teólogo Rahner - que assume a sua teologia como filosófica. Com isso o que vimos é a palavra de um pensador mais afirmativo, porque é o Rahner que monta as bases de seu pensamento, que tem que ser explicitado, sob pena de algum leitor não o poder acompanhar. No curso deste trabalho o tempo também fez seu papel na apreciação da maturidade teológica de Rahner e, em razão disso, ao final, esta exposição tenta se aproximar do homem Rahner, que se achega à obstinada busca da fé no seu infinito questionar para dela dar razão, “com os braços apoiados no ombro de Jesus”444. É muito fácil tomar um aspecto da teologia do gigante Karl Rahner e considerá-la “falsa”. Basta afastá-la do conjunto de seu pensamento. Esta é a razão pela qual este trabalho configurou-se como agora se apresenta, sem temer dar tantas voltas quanto a admirável sistematização de Rahner exigiu de si, como modo de não se afastar da coerência de seu pensamento. Se a impressão a prevalecer no leitor, for a de que este trabalho aproximou-se do todo uno do pensamento de Rahner, este trabalho não terá atingido seu propósito que, com relação ao autor que o inspira, quer justamente apontar a deficiência de em tão poucas linhas poder dizer algo que efetivamente o diga. Resumir a estrutura básica do pensamento teológico desse grande e coerente pensador, nas palavras de K. Lehmann, é abordar a radical imediaticidade de Deus, ingenuidade especulativa, questões pastorais, sensibilidade à importância da tradição teológica - é preciso ser capaz de dizer tudo isto e muitas outras coisas, “ao mesmo tempo”, a fim de articular a origem e a clareza da teologia de Rahner445. Rahner nos legou uma teologia que conhece a História como poucos contemporâneos seus. Por isso, do ponto de vista da história das idéias e da política da Igreja, Rahner não teve escolha, a não ser entrar nesse milieu, o que lhe exigiu coragem. Este testemunho, que aqui é trazido nas palavras de Lehmann, é uma constante nas declarações de seus outros tantos companheiros, não bastasse o registro imortalizado em sua própria obra, por si, o maior exemplo de coragem. O chamado “primeiro” Rahner dedicou-se a problemas específicos da teologia escolástica, como o relacionamento entre Natureza e Graça, o que foi visto na Segunda Parte deste trabalho. Agora é necessário que se diga da origem de alguns de seus mais famosos e não menos questionados conceitos. Os conceitos de “existencial sobrenatural” e de 444 445 Cf. TLJ. TCF 11. 178 cristão anônimo, por exemplo, nasceram no contexto da necessidade interpretativa da Encíclica Mystici corporis, e das tensões que se lhe seguiram446. Este comentário de Lehmann é importante porque fez perceber que, se nos seus começos, Rahner é meticuloso nas explicações que dá de seu intricado modo de pensar, quando mais ele “cresce”, menos se preocupa em apontar a origem do seu pensamento e, neste sentido, toda a sua filosofia, todo o seu conhecimento se agrega ao seu pensamento e irrompe em seus escritos sem maior preocupação de estar justificando esta ou aquela forma de dizer ou a origem deste ou daquele pensar. Rahner é um autor “ensaísta”447. É considerado de difícil leitura, mas é sempre inteligível para aqueles que se esforçam no sentido de pensar “junto” com ele. Para tal, é fundamental conhecer o seu método de pensar, ou o leitor corre o risco de abandoná-lo (ao seu rico pensar), ainda nas “notas preliminares” de seus escritos. Tal metodologia pode ser assim resumida. Primeiro, o objeto a ser investigado é cuidadosamente circunscrito. Daí Rahner passa ao estado da questão, e a posição que se encontra sob questionamento. Do mesmo modo que o objeto, o questionamento é, então, cuidadosamente delineado. As categorias tradicionais e os modos de pensar a questão são testados por sua capacidade de enriquecer as informações sobre o objeto e prover respostas atuais. Ao mesmo tempo, como se fosse um “tutorial”, Rahner recorda ao seu leitor o pensamento tradicional acumulado sobre seu objeto448. O bonito na descrição do método de pensar de Rahner não é que ele tenha uma pedagogia capaz de ensinar ou convencer seus leitores. O bonito é que este método de pensar nos convida a participar do movimento vivo do seu próprio pensamento que, renovadamente encara os problemas da fé cristã, de maneira inovadora. Assim, a Palavra de Deus se torna constantemente mais e mais frutuosa nesse “conflito produtivo” do pensamento de Rahner, que jamais separa método e conteúdo. É preciso abrir outro parêntesis para dizer da importância do pensamento de nosso autor especificamente por sua reconhecida habilidade de expressão. O testemunho é também de K. 446 TCF 12-13. O ensaio sempre fala de algo já formado ou, na melhor das hipóteses de algo que já tenha existido; é parte de sua essência que ele não destaque coisas novas a partir de um nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as coisas que em algum momento já foram vivas. E como ele apenas as ordena novamente, sem dar forma a algo novo a partir do que não tem forma, encontra-se vinculado às coisas, tem de sempre dizer a “verdade” sobre elas, encontrar expressão para sua essência. Cf. G. von KÚKÁCS. A alma e as formas. No original, Die Seele und die Formen, Berlim, Egon Fleischel, 1911, 23 (apud T. W. ADORNO in Notas de literatura I. SP: Editora 34. 1a ed., 2003. 15, nota 2). 448 Segundo K. Lehmann, esta é a inconfundível marca do singular estilo experimental de pensamento de Rahner. Cf. TCF 16. 447 179 Lehmann, muito citado aqui por ser o organizador dos arquivos Rahner e o principal responsável pela equipe de cientistas encarregados de publicar a sua obra crítica, conforme já dito. Porque Rahner posicionou-se no caminho histórico do pensamento teológico, quando enfrenta questões teológicas mais próximas ao homem, seu pensamento ganha um impressionante poder de comunicar-se ao mundo, de transcender os idiomas e visões de mundo, e aparentemente superar dificuldades de expressão (sem deixar de reconhecer a alta qualidade de seus bons tradutores e, ao mesmo tempo, sem exagerar o efeito dessa influência)449. Este aparente detalhe aqui recordado tem sua razão de ser por que é de conhecimento geral que Rahner era exímio conhecedor do latim e falava francês, além de seu idioma materno. Desse modo, ao mesmo tempo em que lamento a qualidade da tradução para o português de seu CFF, devo aplaudir o comentário de Lehmann que resume a experiência que tenho tido ao tentar ingressar na porteira do mundo rahneriano, por via de boas e cuidadosas traduções, principalmente para o inglês e o francês. Que este desabafo seja estímulo à nossa capacidade editorial no sentido de mais cuidadosas e renovadas edições desse autor inesquecível a quem quer que se interesse pelo homem e seu diálogo com Deus. A conclusão deste trabalho não encontra espaço para se deter numa crítica que leve em conta os comentadores – pró e contra Rahner -, o que demandaria praticamente um novo (estimulante e desejado) estudo. Abandonamos, também, a “tentação” de tomar a crítica de um único teólogo que fosse cristão contemporâneo e que, em síntese apontasse “falhas” nos temas que buscamos tratar, da totalidade de pontos alcançados na teologia de Rahner. Este “abandono” se deveu, em parte, pela dificuldade de escolha de um só autor crítico em detrimento de outro ou da impossibilidade ideal de se analisar diversos autores. Desse modo, a presente conclusão, vem fechar este trabalho, com uma síntese que carrega as melhores observações que pude colher durante estes inesquecíveis anos de estudo. Passo a comentar o trabalho a partir do título da dissertação: A liberdade como misterioso evento salvífico da autocomunicação de Deus. 449 TCF 15. 180 Este trabalho não quis pensar sobre o conceito de liberdade. Mas se propôs a apresentar a liberdade cristã na visão de Karl Rahner. A origem do tema não se funda na curiosidade acadêmica, mas na observação pessoal da aluna de que a liberdade cristã, tal como aqui descrita, consiste numa das maiores grandezas do cristianismo. Na liberdade cristã, apresentada por Rahner, encontrei a esperança de que o cristão dos dias de hoje possam fazer dela o “marco” de uma evangelização que ainda há de cuidar, que ainda há de ofertar ao “mercado” de consumo da desesperança, a liberdade do Cristo como caminho de Salvação. Esta liberdade manifesta o humano em Rahner. Para ele, a liberdade é catalizadora de toda a sua teologia. É o fio que tece cada ramo do exemplo tolo da trança da menina e é, também, o nó que ou aperta e sustenta a trança para que ela não escorregue e solte os fios, ou não é o nó que sustenta, por isso não permite o trançado em que se sustenta o modelo. O título adverte a liberdade como “misterioso evento”. Ao longo do texto, em especial na Primeira Parte, o tema do mistério de Deus Pai é amplamente discorrido, menos por pretender um tom misterioso ao tema, o que, aliás, é condenado por Rahner em seu espetacular artigo sobre o Conceito de mistério na teologia católica450, mas por ser mistério o que de mais “evidente” podemos considerar neste dado contexto em que Rahner expõe suas idéias e preocupações com Deus Pai que se vai revelar no “evento” Jesus Cristo. Este evento, ao contrário do afirmado por alguns, é central, não só para o cristianismo, que nele se funda, mas também para que o cristianismo possa ser entendido hodiernamente, não com os riscos que Rahner aponta de parecermos outra mitologia, mas como a fé que afirma que Deus, o mistério santo que quis, em sua liberdade absoluta, revelar-se, é mistério de amor. O evento desta livre revelação explode a concepção de realidade do homem que já viu o iluminismo e vive o imediatismo, com pressa, pois que esta revelação de Deus Pai revela, também ao homem que ele mesmo, em sua vocação primeira é capaz de fazer uso de sua liberdade limitada e condicionada para, assim, trazer um pouco mais para perto de si e nesse mesmo movimento empurrar um pouco mais para longe do ordinário, em direção ao horizonte, o fruto de sua liberdade, como co-autora da criação de Deus. 450 RAHNER. Conceito de Mistério na Teologia Católica. ODR 153-216. 181 Portanto, o homem tem com o mistério uma relação que se funda na liberdade, absoluta por parte do mistério que, por ser sabedor da pequenez de nossa liberdade criada, se revela como amor, como amor indulgente. Este amor indulgente nos é por primeiro comunicado. Mas, como no dizer de santo Inácio, em sua Contemplação para alcançar o amor, o amor consiste na comunicação de duas partes, isto é, em dar e comunicar o amante ao amado o que tem ou daquilo que tem ou pode. E assim do outro lado, o amado ao amante. De tal maneira que se um tem ciência, dá àquele que não a tem; se tem honras, riquezas, e, assim, um ao outro451. Assim, sem o acolhimento espontâneo, ou livre, deste amor indulgente, o homem perde a percepção de que o misterioso evento salvífico da autocomunicação de Deus exige reciprocidade. A exigência de reciprocidade no amor é ínsita ao cristianismo como expressão de fé e, portanto, de salvação. Nada do que foi dito aqui é novo, nada do que se disse na presente conclusão tem caráter de definitividade. O que se pretende nestas linhas é dizer da descoberta. Registro que se em minha opinião o título foi perseguido por todos os três capítulos, nesse caminho surgiram dados da teologia de Rahner que são o próximo registro que passo a elencar. Primeiramente quanto à teologia da criação. Rahner tem uma maneira de abordar a criação que é de uma originalidade atordoante. Ao tempo em que é uma teologia que traz questões, ela apresenta respostas com capacidade de romper disputas inúteis que representam tormentas antigas dentro e fora do cristianismo. Refiro-me às questões que implicam o ecumenismo, o trato com o mundo secular nas querelas sobre evolucionismo e tantas mais abordadas, sendo de se registrar aqui que o grande fruto deste trabalho de Rahner é apontar o homem como criatura de Deus, uma criatura que não tem porque se forjar como inferior por suas limitações, mas que deve levantar o olhar para o que seja a efetividade de sua criaturidade. Em segundo lugar, o que se aponta exaustivamente por toda a Segunda Parte: o evento Jesus Cristo, sem o quê não há nada a dizer sobre o humano e a dignidade que se pretende sempre concedida ao homem. A partir do estudo do Filho, foi possível despertar a atenção mais e mais para a teologia trinitária de Rahner e seu axioma fundamental. 451 EE 231. A tradução é de Vázquez Moro, in A contemplação para alcançar o amor. SP: Loyola. 2005, 52. 182 Nesse ponto, ressalto a ponte que une as duas primeiras partes, quando, no cuidar do Pai se fala na teologia da criação de Rahner abre-se caminho para encontrar na segunda parte, ou seja, em Jesus, o absoluto portador da salvação. Um registro inesperado deste trabalho se encontra exatamente no encontro da Criação com a Salvação no pensamento de Rahner que como que desaba se uma não der conseqüência à outra. Aliás, o que Rahner faz é pôr luz na ponte que o cristão sabe que o leva da condição de criaturidade à esperança de Salvação contida no evento Cristo. O nome da ponte é “autocomunicação de Deus”. Por conta da limitação temporal (e espacial) fica aqui como sugestão um trabalho que persiga na sua pesquisa o axioma fundamental e o que Rahner efetivamente quer dizer com o “vice versa” de sua afirmação valorosa de que a Trindade econômica é a trindade imanente, e vice-versa. Mesmo sem adentrar a questão, é imprescindível observar que todas as linhas deste trabalho mostram o encantamento da autora pela descoberta trinitária de Rahner em nossas vidas, encantamento que merece ser partilhado entre nós, os cristãos que percebemos a experiência trinitária do ponto de vista do chão de nossa existência. Em terceiro lugar, este trabalho apontou embora discretamente a coerência de Rahner com a tipologia trinitária grega. Isto justifica as menções feitas à obra de Basílio, em especial na Terceira Parte, dedicada ao estudo da liberdade, na unidade do Espírito Santo. A parte final deste trabalho vem com o propósito unificador de todos os três capítulos. Trata-se de uma proposta paralela ao próprio tema que seguiu os artigos do Credo perseguindo a idéia de uma única τάξιρ, com o fim já explicitado de permitir uma mais simples compreensão da realidade trinitária em um sentido existencial, o que a herança cultural da palavra “pessoa” não vem permitindo à teologia, ao longo dos anos. A conclusão devida como avaliação da proposta e do projeto iniciais é muito otimista, ao menos por parte da signatária. O texto que aqui se encerra aponta a oportunidade de um caminho pessoal, no estudo de um autor, o que culminou numa experiência de discipulado inesperada. Esta experiência não se deseja que tenha aqui o ponto final, mas que possa ser ponto de partida pelo estímulo e pelo embasamento à pesquisa que se não forem possíveis à aluna que ora escreve empreender, possa vir a ser a um eventual leitor que como eu desperte, por Karl Rahner, para a prontidão do pensamento que se volta como vocação a nosso Senhor Jesus Cristo. 183 Bibliografia I - Obras Gerais ADORNO, T. W. Notas de Literatura I. SP: Editora 34, 2003. AUER, Johann. Historia de la doctrina de la gracia. Sacramentum mundi: enciclopedia teológica, v. III, Barcelona: Herder [1972?] BASÍLIO DE CESARÉIA. Tratado sobre o Espírito Santo. SP: Paulus, 1999. CROUZEL, H. Origenismo. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. Petrópolis: Vozes. 2002, 1052. DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Peter; LUZ, José Marino; KONINGS, Johan. Compêndio dos símbolos, definições de fé e moral. SP: Loyola, 2007. GIBELLINI, Rosino. A teologia do séc. XX. SP: Loyola, 2002. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 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Teologia e antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969. Graca divina em abismos humanos. SP: Herder, 1968. 452 As obras de Rahner estão ordenadas segundo o ano em que o original foi publicado. 186 RAHNER, K.; VORGRIMLER, H. Dictionary of theology. 2nd ed. NY: Crossroad, 1985. Reeditado em francês, sob o título Petit dictionnaire de théologie catholique. 7e ed. Lonrai: Éditions du Seuil, 1995. 1967 – Dieu Trinité: fondement transcendant de l‟histoire du salut. Paris: Cerf, 1971. Reeditado em português, na Mysterium Salutis II/1, cap. 5, seção I, sob o título: O Deus Trino, fundamento transcendente da história da Salvação, 1973, 283-359 e, em inglês sob o título The Trinity. NY: Crossroad, 2003. Teologia e ciência. São Paulo: Paulinas, 1971 1968 - Teologia e antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969. La gracia como libertad. Barcelona: Herder, 1972. Reflexiones en torno a la "Humanae vitae". 3a ed. Madrid: Paulinas, 1971. 1969 - Do you believe in God? NY: Newman Press, 1969. Grace in freedom. 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Baltimore: Helicon Press, 1963. 1967 – v. III: Theology of the spiritual life: NY: Crossroad, 1982. 1972 – v. IX: writings of 1965-1967, I, Londres: Darton, Longman & Todd 1977 – v. X: writings of 1965-1967, II, NY: Crossroad, 1977. 1981 – v. XVII: Jesus, man and the church. NY: Crossroad, 1981. 1983 – v. XVIII: God and revelation. NY: Crossroad, 1983. 1986 – v. XX: Concern for the church. NY: Crossroad, 1986. 1991 – v. XXII: humane society and the church of tomorrow. NY: Crossroad, 1991. 1992 – v. XXIII: final writings. NY: Crossroad, 1992. IV - Artigos de K. Rahner453 1933 - La doctrine des „sens spirituels‟ au Moyen-Age en particulier chez St. Bonaventure, Revue d‟Ascetique et de Mystique 14 (1933), 263-299. Republicado como Die Lehre von den “geistlichen Sinne” im Mittelalter: der Beitrag Bonaventuras, Schriften zur Theologie, v. XII, e como The Doctrine of the “Spiritual Senses” in the Middle Ages, Theological Investigations, v. XVI. 1942 – Theos in the New Testament. 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NY: Sheed and Ward, 1967. 1967 – O Deus Trino, fundamento transcendente da história da Salvação, Mysterium Salutis II/1, cap. 5, seção I, 1973, 283-359. Reeditado em francês sob o título Dieu Trinité: fondement transcendant de l‟histoire du salut. Paris: Cerf, 1971 e em inglês sob o título: e, em inglês sob o título The Trinity. NY: Crossroad, 2003. A doutrina do Vaticano II sobre o ateísmo: tentativa de uma interpretação. Concilium, Petrópolis, n. 3, 9-24, mar-1967. Simul iustus et peccator. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 8, no 29, 42-46, jan/mar 1969. 453 Os artigos de Rahner estão ordenados segundo o ano em que o original foi publicado. 188 1970 – The experience of God today. THI, v. XI, NY: Seabury, 1974, 149-165. 1972 – Gracia. Sacramentum mundi: enciclopedia teológica, v. III, Barcelona: Herder [1972?] Gracia y Libertad. Sacramentum mundi: enciclopedia teológica, v. III, Barcelona: Herder [1972?] Tratado teológico sobre la gracia. Sacramentum mundi: enciclopedia teológica, v. III, Barcelona: Herder [1972?] 1976 - La libertad del inferno desde el punto de vista teologico. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 15, no 60, 329-333, out/dez-1976. 1978 – Experience of the Holy Spirit. Theological Investigations, v. XVIII. 1983 - Misterio de la culpa humana y del perdon divino. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 22, no 85, jan/mar 1983. 1997 – A presença da paixão de Jesus em nós. Itaici: Revista de Espiritualidade Inaciana, Indaiatuba, v. 8, n. 28, p. 90-92, jun 2007. 189 Anexo454 Só se poderá falar de Deus de maneira indireta. K. Rahner, CFF 33. 1) Inominado (33) 2) obscuros desertos (12) 3) abismos da existência (12) 4) mistério intangível (23) 5) autocomunicação se chama Graça (24) 6) mistério único (24) 7) eternamente distante (24) 8) o todo simplesmente (32) 9) o ser como tal (32) 10) infinita amplidão (32) 11) amplidão sem fim de toda a realidade possível (33) 12) Aonde (33) 13) horizonte (33) 14) mistério santo (80) 15) absolutamente real (34) 16) Aonde e Donde da transcendência é o mistério absoluto e santo (34) 17) mistério evidente (34) 18) única realidade evidente por si mesma (34) 19) única realidade fundada em si própria (34) 20) mistério familiar (34) 21) mar do mistério infinito (35) 22) luz eterna (35) 23) infinita amplidão do incomparável mistério de Deus (37) 24) mistério incompreensível (39) 25) realidade da qual proveio o homem (41) 26) horizonte infinito (81) 27) horizonte inalcançável (46) 28) a absurdidade do que se lhe antolha (48) 29) ser puro e simples (48) 30) o inefável (49, 80) 31) origem indispensável do viver e conhecer (49) 32) infinitude indisponível e silenciosa da realidade (50) 33) ser como mistério (57) 34) abismo do mistério inefável (57) 35) rosto cego (62) 36) sem nome (63) 37) silencioso (63) 38) o todo em unidade e totalidade (63) 39) sem rosto 454 O anexo refere-se à nota de rodapé no 223. 190 40) mistério silencioso que se parece com o nada (65) 41) mistério absoluto (69) 42) a verdade mais autêntica de si mesma (71) 43) a realidade totalmente diversa (71) 44) mistério que está sempre presente e sempre se subtrai (72) 45) é o mundo que ele dá de si mesmo (73) 46) termo para o qual marcha o movimento da transcendência (76) 47) é a palavra que tudo fala ao dizer Deus (77) 48) mistério inefável (77) 49) Aonde e Donde da experiência originária de transcendência (78) 50) fundamento original (78) 51) abismo (78) 52) infinito (80) 53) indefinível (80) 54) inominável (81) 55) silêncio da experiência transcendental (81) 56) o totalmente outro com relação ao mundo (82) 57) é a realidade mais radical e evidente por si mesma (83) 58) a medida última (83) 59) o limite que a tudo dá a sua definição (83) 60) a amplidão infinita que tudo abarca e pode abarcar (83) 61) o inominado que de tudo dispõe de modo absoluto (85) 62) infinito Aonde do amor (85) 63) pessoa absoluta (94) 64) ser absoluto (98) 65) realidade absoluta e inabarcável (98) 66) horizonte ontologicamente se ocultando (99) 67) absolutamente infinito (99) 68) absoluto e infinito (99) 69) absolutamente diverso (99) 70) distância fria (108)