Variação lingüística no italiano do séc. XVI: consoantes vozeadas x

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Variação lingüística no italiano do séc. XVI: consoantes
vozeadas x não-vozeadas no Livro de Isaac
Cynthia Elias de Leles Vilaça
Faculdade de Letras – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Av. Antônio Carlos, 6627 Campus Pampulha – MG – www.ufmg.br
Abstract. In order to contribute to the knowledge of the Italian language of the
XVI century, it was researched, in this article, the variation between voiced and
voiceless consonants into the enviroment of the “interhighsonority” [between
vowels, glides and liquids (r,l)]. It was researched in the text inserted in the
princeps italian edition from Isaac’s Book (Il Libro de l’Abate Isaac de Syria de la
Perfectione de la Vita Contemplativa), publicized in Venice by Bonetum
Locatellum Presbyterum in 1500. Although, the text of the princeps edition from
Isaac’s Book has been publicized in Venice, it can not be assured that the
translation from latim to italian has taken place in this same town. From the
studying of the quoted variation, it was possible to better locate the italian dialect
used to translate this text.
Keywords. Linguistic variation, Italian XVI century, sonorization into the
enviroment “interhighsonority”
Resumo. Com o objetivo de contribuir para o conhecimento da língua italiana do
século XVI, investigou-se, neste trabalho, a variação entre consoantes vozeadas e
não-vozeadas em contexto de interaltassonoridade [entre vogais, glides, e
líquidas (r,l)] no texto da edição princeps italiana do Livro de Isaac (Il Libro de
l’Abate Isaac de Syria de la Perfectione de la Vita Contemplativa), publicado em
Veneza por Bonetum Locatellum Presbyterum em 1500. Embora o texto da edição
princeps do Livro de Isaac tenha sido publicado em Veneza, não há segurança de
que a tradução do latim para o italiano tenha sido realizada nessa mesma cidade.
A partir do estudo da variação em questão, foi possível situar melhor o dialeto
italiano empregado na tradução desse texto.
Palavras-chave. Variação lingüística; italiano do século XVI; vozeamento em
contexto de interaltassonoridade.
1. Introdução
Com o intuito de contribuir para o conhecimento da língua italiana do século XVI,
investigou-se a variação entre consoantes vozeadas e não-vozeadas em contexto de
interaltassonoridade [entre vogais, glides, e líquidas (r,l)] no texto da edição princeps italiana do
Livro de Isaac (Il Libro de l’Abate Isaac de Syria de la Perfectione de la Vita Contemplativa), de
1
autoria de Isaac de Nínive, publicado em Veneza por Bonetum Locatellum Presbyterum em 1500.
Apesar de o texto da edição princeps do Livro de Isaac ter sido publicado em
Veneza, não há segurança de que a tradução do latim para o italiano tenha ocorrido nessa
Estudos Lingüísticos XXXVI(2), maio-agosto, 2007. p. 283 / 292
mesma cidade. A propósito, o manuscrito italiano mais antigo do Livro de Isaac encontrado
até o presente momento foi copiado em Florença no século XIV.
PATOTA (2002:79) define a sonorização como o processo de enfraquecimento
articulatório pelo qual uma consoante surda se transforma na sonora correspondente, como
[p]>[b], [t]>[d], [k]>[g]. De acordo com WARTBURG (1971: 42), desde o século III
podem ser observadas grafias com a forma sonorizada: pudore por putore, lebra por lepra,
migat por micat. O autor constata que a sonorização ocorreu na Gália, nos países alpinos,
na alta Itália até a linha La Spezia-Rimini e na península ibérica. Em contrapartida, a região
balcano-românica, a Itália central e meridional, os dialetos do interior da Sardenha e os
dialetos da Córsega, desconhecem a sonorização. WARTBURG (1971) afirma, no entanto,
em nota, que o italiano literário e parte dos dialetos toscanos mostram-se não-homogêneos
a esse respeito, devido à presença de formas como cantata e strada nesses dialetos. A esse
respeito, o autor legitima a hipótese de ROHLFS (1966) de que os casos de sonorização
seriam resultantes da influência do norte da Itália, embora acredite que essa influência não
possa ser demonstrada com exatidão em todos os casos.
A variação é um fenômeno inerente às línguas humanas e constitui pressuposto
básico para a caracterização de qualquer mudança lingüística. Embora o modelo teóricometodológico variacionista de LABOV (1972b) se limite ao vernáculo, é possível descrever
fenômenos em variação a partir de textos escritos do passado, uma vez que se considera que
esses textos se tratavam, em sua maioria, de cópias, e que os copistas faziam intervenções,
intencionais e/ou não-intencionais, no texto. De acordo com CAMBRAIA (2005:80), parte
dessas intervenções se devia à diferença entre a língua a ser copiada e a língua do copista,
fenômeno conhecido como aloglossia e atribuído ao momento do “ditado interior” (uma das
operações básicas do processo de cópia). Isso justifica o estudo de um fenômeno de
natureza fonológica a partir de um texto escrito2. Além disso, tendo em conta que a
primeira gramática italiana (Prose della volgar lingua, de Pietro Bembo) data de 1525,
acredita-se que, à época da edição que serviu de corpus a este trabalho, o copista não fazia
uso rigoroso de normas gramaticais e ortográficas. A relação entre gradualidade fonética,
percepção sonora e representação gráfica também contribuiu para justificar o estudo da
variação entre consoantes vozeadas e não-vozeadas no italiano do século XVI, a partir de
um texto escrito.
Assim sendo, no decorrer desta pesquisa, buscou-se responder ao seguinte
questionamento: a que se teria devido a alternância entre consoantes vozeadas e nãovozeadas em contexto de interaltassonoridade no texto da edição princeps do Livro de
Isaac?
Na primeira parte deste trabalho procurou-se localizar e apresentar o problema das
consoantes vozeadas e não-vozeadas em contexto de interaltassonoridade nos dialetos da
Itália neolatina, com destaque para o florentino e para o veneziano. Na segunda parte,
expôs-se os procedimentos metodológicos utilizados na seleção dos dados, que, também
nesta parte, foram analisados quantitativa e qualitativamente. Por fim, foram feitas algumas
considerações a respeito da possível implicância do fenômeno em variação na localização
dialetal do texto da edição princeps do Livro de Isaac. Ademais, nesta última parte, foram
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sugeridos alguns caminhos para futuras investigações acerca do fenômeno lingüístico
abordado neste trabalho.
2. Consoantes vozeadas x não-vozeadas nos dialetos da Itália neolatina
No período em estudo (século XVI), o dialeto italiano de prestígio, que tem por base
o dialeto florentino, contava com pouco mais de dois séculos e meio e, até então, havia tido
uma difusão extremamente limitada, devido ao analfabetismo da população e ao caráter
independente dos dialetos da Itália neolatina, que funcionavam (e ainda funcionam)
perfeitamente como língua oral.3 Tendo em vista essa situação, é válido apresentar aqui a
classificação dos dialetos italianos realizada por BERTONI (Profilo Linguistico d’Italia,
1940), e retomada por ELIA (1979:152). BERTONI classifica os dialetos italianos de forma
correspondente a arrumações étnicas da Itália antiga4:
Dialetos Setentrionais:
 galo-itálicos: lombardo, piemontês, lígure e emilianoromanholo;

vênetos: veneziano, paduano, veronês e ístrio.
Dialetos Centrais e Meridionais: umbro-romano, marquesano,
abruzo-molissano, lucano, campânio, apuliano, siciliano e sardo do
norte;
Dialetos Toscanos: florentino, pisano, luquês, pistoiês, senês e
arentino.
(grifos nossos)
Sabe-se que a oposição entre consoantes vozeadas e não-vozeadas constitui um
critério importante para a distinção entre os domínios lingüísticos da România Ocidental e
da România Oriental (segundo Walther von Wartburg – Ausgliederung, 1971). De acordo
com esse critério, os dialetos setentrionais italianos — incluso o veneziano — comporiam a
România Ocidental (norte-oeste da linha La Spezia-Rimini), caracterizada pelo vozeamento
(ou sonorização) das consoantes latinas não-vozeadas em contexto de interaltassonoridade;
e os demais dialetos — incluso o florentino —, a România Oriental (sul-leste da linha La
Spezia-Rimini), caracterizada pela manutenção dessas consoantes nesse contexto.
Considerando que o manuscrito italiano mais antigo do Livro de Isaac encontrado
até o presente momento foi copiado em Florença, acredita-se que tanto a tradução quanto a
edição princeps desse texto tenham sido escritas no dialeto de prestígio. No entanto, tendo
em vista que essa edição foi feita em Veneza, supõe-se que o copista era um falante do
dialeto veneziano, cuja importância é destacada por LAUSBERG (1974:38), ao sustentar
que, na Idade Média até o século XVIII, este dialeto desempenhou quase o papel de uma
língua literária do norte da Itália. Sendo assim, discutir-se-á aqui o fenômeno da
sonorização das consoantes não-vozeadas latinas nos dialetos toscanos, grupo ao qual
pertence o florentino, e nos dialetos setentrionais, grupo ao qual pertence o dialeto
veneziano.
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A respeito do desenvolvimento das consoantes não-vozeadas latinas em contexto de
interaltassonoridade na Toscana, ROHLFS (1966: 286-289) apresenta teorias postuladas
por filólogos e lingüistas. Dentre elas, pode-se citar a de MEYER-LÜBKE (1980), que
sustentava que esses sons permaneciam não-vozeados quando precedidos de vogal tônica e
se sonorizavam quando sucedidos por essas; ASCOLI (Archivio Glottologico Italiano)
postulava que a conservação das consoantes não-vozeadas em alguns vocábulos e a sua
sonorização em outros se devia à natureza das vogais vizinhas aos sons em questão — o a,
por exemplo, deveria favorecer a sonorização (como em strada, ago, em oposição a marito,
amico, rete) — ou à diferença do caso latino do qual resultou o vocábulo italiano — luogo,
por exemplo, teria se originado do acusativo, enquanto fuoco manteria o nominativo. Em
oposição a essas duas teorias, afirma-se que a manutenção das não-vozeadas represente o
resultado característico e popular dos dialetos toscanos, enquanto a sonorização seria
resultado da influência da Itália setentrional ou dos falares galo-românicos, o que ROHLFS
(1966:287) define como um “fenômeno de invasão”. Este último ponto de vista foi
defendido por PIERI (Archivio Glottologico Italiano e Studi Romanzi) e BARTOLI (Atti
della R. Accademia delle Scienze di Torino), e assumido por ROHLFS (1966). PATOTA
(2002:79) afirma que a Toscana ocupa uma posição intermediária entre as zonas em que a
sonorização é categórica e aquelas em que esse fenômeno não é produtivo. A sonorização
da velar /-k-/ atingiu aproximadamente metade dos vocábulos, a sonorização (e sucessiva
espirantização) da labial /-p-/ e a sonorização da dental /-t-/ atingiram menos da metade dos
vocábulos possíveis.
Com relação aos dialetos setentrionais, ROHLFS (1966:269) assegura que a
consoante /-k-/ intervocálica do latim vulgar passou a /-g-/ — como em veneziano
domèniga —, exceto diante de vogal palatal. A consoante /-p-/ intervocálica mudou-se em
/-v-/ — como em veneziano riva. Alguns vocábulos com a forma não-vozeada — como em
veneziano crepà —, teriam vindo da língua literária (ROHLFS, 1966:279). O mesmo
aconteceu com a consoante /-t-/, que tornou-se /-d-/ — como em veneziano fradèlo —,
tendo se mantido apenas em empréstimos da língua literária e quando seguida do ditongo
au — como em veneziano autuno — (ROHLFS, 1966:273-274). Segundo PATOTA
(2002:81), na România Ocidental, o processo de sonorização das consoantes intervocálicas
atingiu também a labiodental surda /-f-/, proveniente do grego ou de dialetos osco-umbros,
que passou a /-v-/.
Com relação à não-generalização do fenômeno da sonorização na Toscana,
PATOTA corrobora a hipótese de ROHLFS, defendendo a exitência de uma pronúncia
sonorizada da oclusiva surda por moda, imitação da pronúncia setentrional, favorecida por
comerciantes, empreendedores e artesãos que, nos primeiros séculos da Idade Média,
vieram do norte da Itália para a Toscana e regiões adjacentes (PATOTA, 2002:81).
Ademais, MIGLIORINI (1989:129), ao descrever o estado dos dialetos italianos neolatinos
no século XV, afirma que as consoantes vozeadas intervocálicas setentrionais dão lugar às
não-vozeadas toscanas e dá exemplos de uma carta de 1440, escrita pelo padovano Antonio
de Rido aos florentinos. Nessa carta são encontradas as formas deliberado e deliberato.
Como se pôde observar, a relação entre o veneziano e o florentino mostra-se
bastante estreita no que diz respeito ao fenômeno da sonorização das consoantes latinas
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não-vozeadas em contexto de interaltassonoridade. Esses dialetos se interinfluenciaram,
provocando uma não-padronização no desenvolvimento dessas consoantes no contexto
mencionado. Dessa forma, na próxima seção, far-se-á uma análise dos dados encontrados
na edição princeps do Livro de Isaac, de modo a averiguar o grau de influência do dialeto
veneziano no processo de cópia desse texto.
3. Seleção e análise dos dados
Tendo em vista o exposto na seção anterior, esperou-se encontrar três grupos de
dados: (1) vocábulos em que houve manutenção das consoantes não-vozeadas latinas; (2)
vocábulos em que a sonorização das não-vozeadas latinas se mostrou em variação; e (3)
vocábulos em que as não-vozeadas latinas se sonorizaram. Assim, para a seleção dos dados
constantes da edição princeps do Livro de Isaac, composto por 44.050 palavras, procedeuse da seguinte forma:
1) localização de vocábulos que continham os grafemas <- c -> ou <-g->
precedidos por qualquer vogal, l, ou r, e seguidos de a, o, u, l ou r;
2) localização de vocábulos que continham os grafemas <- p->, <-b->, <-t-> ou
<-d-> precedidos e seguidos por qualquer vogal ou pelas consoantes líquidas
l ou r.
Realizados os procedimentos descritos, chegou-se aos dados apresentados nos
gráficos:
Freqüência de consoantes vozeadas e não-vozeadas omorgânicas em contexto de
interaltassonoridade na edição princeps do Livro de Isaac
Bilabiais
<-b->
(633)
46%
<-p-> (751)
Alveolares
<-p->
(751)
54%
<-b-> (633)
<-d->
(2138)
29%
<-t-> (5279)
Velares
<-t->
(5279)
71%
<-g->
(296)
37%
<-d-> (2138)
<-c-> (506)
<-c->
(506)
63%
<-g-> (296)
Consoantes vozeadas e não-vozeadas em contexto de interaltassonoridade
na edição princeps do Livro de Isaac
10%
88%
2%
vocábulos que mantiveram a consoante não-vozeada latina (6536 = 88%)
vocábulos que apresentaram variação entre vozeadas e não-vozeadas (181 = 2%)
vocábulos que sonorizaram a consoante não-vozeada latina (718 = 10%)
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Os gráficos mostram que as consoantes não-vozeadas predominam sobre as vozeadas
em contexto de interaltassonoridade no texto da edição princeps do Livro de Isaac.
Percebe-se um ligeiro equilíbrio apenas entre as bilabiais <-p-> (46%) e <-b-> (54%).
Entretanto, verificou-se que não há variação entre <-p-> e <-b-> nesse texto, já que os
vocábulos que possuem <-b-> em contexto de interaltassonoridade já apresentavam essa
forma no latim.
Observou-se ainda que as consoantes alveolares são as mais freqüentes, e as velares,
as menos freqüentes. Postulou-se, inicialmente, que a predominância da alveolar nãovozeada <-t-> em relação às demais não-vozeadas se devesse à sua conservação nas formas
de particípio passado (gustata, perduto, assalito). Contudo, constatou-se que somente 18%
das ocorrências de <-t-> no contexto em análise correspondiam a formas de particípio
passado. Além disso, verificou-se que, dentre os vocábulos em que ocorreu a sonorização
(10%), a maioria corresponde à passagem de <-t-> a <-d->. Daí pode-se questionar se o
ponto de articulação interferiu no processo de sonorização das não-vozeadas latinas.
Ao observar a presença das alveolares <-t-> e <-d-> nos sufixos -tade (< lat. -tāte(m))
— libertade, sanitade, infirmitade, etc — e –tude (lat. -tūte(m)) — virtute, seruitude —
presume-se que a sonorização possa ter sido, ao menos em parte, condicionada pela
tonicidade da sílaba. Assim, as não-vozeadas latinas em contexto de interaltassonoridade
teriam se sonorizado em sílabas átonas e se mantido não-vozeadas em sílabas tônicas5.
Apenas 2% dos vocábulos considerados apresentaram variação entre vozeadas e nãovozeadas. Essa variação pode ser observada nas lexias apresentadas na tabela (o número
entre parêntesis após o vocábulo corresponde ao número de ocorrências da lexia):
Tabela 1. Alternância no uso de consoantes vozeadas e não vozeadas
Cognato
1
Lexemas
Lexias forma nãovozeada
foco (1)
fuoco
10
fuogo (1)
Total
1
fuoco (9)
loco (2)
2
Lexias forma
vozeada
Total
logo (3)
2
luogo
20
luogo (17)
lachryme (33)
lacrima
lachrima (1)
3
lagrime (6)
lachrime (13)
49
6
lachrymando (1)
lacrimare
Ø
lachrymare (1)
patre (1)
4
padre (11)
1
padre
20
padri (9)
5
potentia (14)
potenza
potença (1)
68
podestade (3)
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4
Ø
potente (10)
potente
potenti (2)
omnipotente (1)
potentissimamente (1)
potentemente
Ø
potentemente (1)
potere (1) / poter (2)
potea (2)
potendo (1)
potemo (4)
potera (2)
potere
podere (1)
potesse (3)
poteua (1)
potessimo (1)
potrai (4)
potra (16)
potranno (1)
Total
130
(72%)
51
(28%)
A tabela acima permite observar uma tendência geral à manutenção da consoante nãovozeada (72%), com exceção dos vocábulos luogo/logo (mais freqüentes do que loco) e
padre (mais freqüente do que patre).
ROHLFS (1966:265) trata as ocorrências de luogo como exceções à regra de
manutenção das consoantes intervocálicas não-vozeadas no italiano literário e lembra ainda
a presença da variante loco nas rimas com poco, foco, fioco e gioco de Dante.
A forma patre é contemporaneamente entendida como variante de padre, que, por sua
vez, pode ocorrer nas seguintes acepções, dentre outras: 1) progenitor; 2) homem que
exerce as funções de guia, conselheiro, mestre; 3) Deus; 4) título reverencial de monges ou
frades. No texto da edição princeps do Livro de Isaac, a forma patre ocorre na segunda ou
quarta acepção; das 11 ocorrências da forma padre, 7 correspondem à terceira acepção, 2 à
quarta, e 2 à primeira. Já as ocorrências da forma plural padri encaixam-se na segunda
acepção. A forma padre, assim como madre, é tida como uma forma não-toscana e de
derivação não-popular (ao contrário de babbo e mamma). ROHLFS (1966:370) as classifica
como empréstimos galo-românicos. O mesmo é dito para as ocorrências da forma lagrime,
cujo desenvolvimento esperado na Toscana é a manutenção da não-vozeada (lac(h)rime)6.
No italiano contemporâneo, as formas podere e potere coexistem e consistem em
duas entradas lexicais: podere corresponde a um bem rural constituído de terrenos
cultiváveis com uma casa colonial; potere, a “poder” (verbo ou substantivo). No texto da
edição princeps do Livro de Isaac, a única ocorrência da forma podere apresenta-se como
Estudos Lingüísticos XXXVI(2), maio-agosto, 2007. p. 289 / 292
substantivo e se encaixa na segunda entrada (sentido de capacidade, domínio). Com relação
à forma podestade, ROHLFS (1966:288) a considera um empréstimo do francês, penetrado
na Itália por meio do provençal no século IX-X, quando o <-t-> intervocálico se sonorizou.
De acordo com DE MAURO (2000), as formas podestà, podestate, potestade, potestate são
variantes no italiano contemporâneo e entraram no léxico na segunda metade do século
XIII, do latim potestāte(m), derivado de potis "que pode". ROHLFS (1966:271) observa
ainda que o <-d-> não se encontra em nenhuma desinência verbal e nem nos sufixos
nominais (desconsiderando algumas poucas palavras), embora nos primeiros séculos da
língua se possa encontrar, em textos literários, algumas divergências em relação ao uso
atual.
A variação sonora encontrada no texto da edição princeps Livro de Isaac ratifica a
teoria proposta por BYBEE (2003), segundo a qual as mudanças sonoras não são abruptas,
mas fonética e lexicalmente graduais, uma vez que afetam os vocábulos da língua em
tempo e velocidade diferentes. Dessa forma, a alternância na representação do segmento
consonantal no corpus aqui utilizado pode indicar efeitos da gradualidade fonética,
expressos pela relação entre a percepção do grau de vozeamento da consoante pelo copista,
e a representação gráfica conferida por este ao segmento.
Por fim, acredita-se que as ocorrências das consoantes vozeadas <-b->, <-d-> e <-g->
em contexto intervocálico ou interconsonântico se deva a: (1) manutenção de vozeamento
já presente no latim, como em: abate, venerabile, ebrietade, meditatione, humide, chiude,
solitudine, regola, legar, fuga; (2) sonorização das não-vozeadas latinas, como em: luogo
(< lat. lŏcu(m)), preghiamo (< lat. prĕcāri), tranquilitade (< lat. tranquillitāte(m)), virtude
(< lat. virtūte). Os casos em que houve variação na representação do segmento consonantal,
podem ser analisados como: (a) empréstimos de outras línguas/dialetos, como atestou
ROHLFS; (b) ausência de critério em relação à representação do segmento, devido a uma
possível gradualidade fonética ou estágio intermediário entre vozeamento e nãovozeamento; ou ainda, (c) influência do dialeto do copista durante o momento do “ditado
interior” (aloglossia), em que o copista, desatento, teria transcrito a forma correspondente a
sua pronúncia, no caso, a consoante vozeada.
4. Considerações finais*
Conforme proposto no início deste trabalho, examinou-se a variação entre
consoantes vozeadas e não-vozeadas em contexto de interaltassonoridade no texto da
edição princeps do Livro de Isaac. Atestou-se que as consoantes não-vozeadas predominam
sobre as vozeadas nesse contexto, e que as ocorrências de vozeadas nos vocábulos em que
houve alternância no emprego dessas consoantes se restringiram a uns poucos vocábulos,
sendo quase categórica em apenas dois deles: luogo e padre.
A partir do estudo do desenvolvimento dessas consoantes nos dialetos italianos
setentrionais e toscanos e da análise quantitativa dos dados encontrados no Livro de Isaac,
conclui-se que, para a tradução italiana desse texto, tenha sido usado o dialeto de prestígio,
cuja base é o dialeto florentino. Esse dialeto teria a tendência à manutenção das consoantes
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latinas não-vozeadas em contexto de interaltassonoridade, embora o vozeamento nesse
contexto seja observado em alguns vocábulos.
Considerando que a alternância entre vozeadas e não-vozeadas encontrada na
representação de alguns vocábulos tenha se restringido a alguns vocábulos em particular,
sugere-se que investigações a esse respeito devam ser realizadas sob uma perspectiva
morfo-fonológica e lexical, além da diacrônica. Essa sugestão vai ao encontro da atual
tendência a se conceber a palavra como unidade de representação, o que propõem os
trabalhos da Fonologia de Uso (BYBEE (2001, 2005).
5. Notas
1
Todos os autores consultados se referem ao fenômeno aqui estudado como “sonorização das surdas
intervocálicas e interconsonânticas (seguidas de l ou r)”. Todavia, optou-se por “sonorização das
consoantes não-vozeadas em contexto de interaltassonoridade” para se referir a esse problema.
2
Para este trabalho, foram selecionados somente os casos em que o fenômeno da sonorização pôde ser
percebido pela grafia dos vocábulos.
3
WARTBURG (1971:148) assegura que nenhum país latino foi tão marcado por tantos e tão profundos
limites dialetais como a Itália.
4
De acordo com LAUSBERG (1974:46), há presença de substrato ilírico em Veneza; e etrusco na Toscana,
Romagna , norte da Itália e Récia.
5
Neste trabalho, essa hipótese não foi exaustivamene testada.
6
Vale notar que, na edição de 1720 do Livro de Isaac, a forma lagrime é quase categórica, já que existe
apenas uma ocorrência da correspondente não-vozeada lacrima.
*
Agradeço aos membros do grupo de pesquisas em Linguistica Românica da FALE-UFMG pelas pertinentes
críticas a este trabalho.
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