Resumo: O presente artigo discute inclusão digital via ambiente

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DOS EXCLUÍDOS ÀS RAZÕES DA EXCLUSÃO DIGITAL
Resumo: O presente artigo discute inclusão digital via ambiente escolar como
estratégia do estado neoliberal para alinhar os programas educacionais às
demandas econômicas. Segundo orientações das políticas públicas para
inclusão digital, as tecnologias de informação e de comunicação adentram a
escola como recursos para promover a ascensão social e melhoria da
qualidade de vida por gerar inovação, motivação e mudanças pedagógicas. Na
vertente dialética para análise do conceito de inclusão digital, fazemos a crítica
ao determinismo tecnológico como fundamento que procura ocultar a
contradição que está em sua base, desviando o foco para o sujeito excluído e
não para a exclusão das desigualdades, que culmina na alienação social.
Assentadas em uma lógica de mundo excludente, as ações para inclusão
digital geram as desigualdades que as políticas inclusivas procuram
equacionar.
Palavras-chave: tecnologias e educação; inclusão digital via ambiente escolar;
tecnocentrismo.
“São as desigualdades que se deve fazer recuar.”
(LANGOUËT, 2014, p. 160).
Adda Daniela Lima Figueiredo Echalar1
Joana Peixoto2
A questão da inclusão digital via ambiente escolar foi objeto de
pesquisa e dá origem ao presente artigo3. As políticas para a inclusão digital
via ambiente escolar partem do pressuposto de que a inclusão digital conduz à
1
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás; mestre em Biologia
pela Universidade Federal de Goiás (UFG); licenciada e bacharel em Ciências Biológicas pela
Universidade Católica de Goiás; pesquisadora do Kadjót - grupo de estudos e pesquisas sobre
as relações entre as tecnologias e a Educação - e da REPPID - Rede Goiana de Pesquisa em
Políticas Públicas e Inclusão Digital. Professora adjunta do Departamento de Educação em
Ciências do Instituto de Ciências Biológicas da UFG.
2 Pedagoga; mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás; doutora em Ciências
da Educação pela Universidade Paris 8; professora no Mestrado em Educação para Ciências e
Matemática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás; e colaboradora
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
3 Este texto se constitui em desdobramento de tese de doutorado (ECHALAR, 2015) e de
pesquisa financiada pelo Edital FAPEG/Universal 005/2012 (FIGUEIREDO, 2013). Esta última
desenvolvida no contexto do REPPID (Rede Goiana de Pesquisa em Políticas Públicas e
Inclusão Digital) / FAPEG e do Kadjót, cadastrado no Diretório do Conselho Nacional de
Desenvolvimento
Científico
e
Tecnológico
(CNPq):
<https://sites.google.com/site/grupokadjotgoiania/>.
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inclusão social. Esse pressuposto pode ser colocado em questão a partir de
dois aspectos: o teórico e o prático-político. O primeiro coloca em questão o
próprio
conceito
de
inclusão
digital,
demonstrando
seu
caráter
tecnologicamente determinista (FEENBERG, 2004, 2010; PEIXOTO, 2015). No
que diz respeito ao segundo aspecto, apresentamos as políticas de inclusão
digital via ambiente escolar como estratégias do estado neoliberal para alinhar
os programas educacionais às demandas econômicas.
O ponto de partida será o questionamento sobre a inclusão digital que
só pode ser conceituada numa perspectiva dualista, em contraposição à
exclusão.
Observamos
que
o
debate
sobre
exclusão
digital
adota
implicitamente o padrão norte-americano de difusão das tecnologias de
informação e comunicação (TIC) como modelo de referência, em relação ao
qual o estado da difusão deve ser avaliado. A definição de exclusão digital é,
então, marcada pela problemática do retardo, que mede o caminho a ser
percorrido pela distância entre uma experiência mais avançada e as outras,
necessariamente, atrasadas. Ou seja, o horizonte apresentado é de obter uma
utilização das TIC tão intensiva quanto nos EUA.
Inclusão digital: a debilidade de um termo
De acordo com Silva et al. (2005), a ideia de information literacy surge
com o advento das TIC no início dos anos 1970 e se amplia vigorosamente no
século XXI, sendo que, para os autores, ela é descrita também como a
competência mais essencial desse século. Eles ainda asseveram que “o
movimento tornou-se tão importante que, em 1989, foi criado nos Estados
Unidos o National Fórum on Information Literacy, mantido pela American
Library Association’s Presidential Committee on Information Literacy” (p. 34).
Os autores ressaltam em seu texto que o principal desafio desse fórum é a
exclusão digital, visto que, para eles, na sociedade da informação, todos os
grupos sociais têm direito de acesso à informação e à alfabetização digital que
devem propiciar melhoria da qualidade de vida.
O discurso sobre a exclusão digital se amplifica na década de 1990,
com a segregação entre inforricos (information have) e infopobres (information
non have), conforme conceitos apresentados por diferentes relatórios da
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Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
segundo a qual
[...] o termo exclusão digital refere-se à diferença entre indivíduos,
famílias, empresas e áreas geográficas em diferentes níveis sócioeconômicos tanto em relação às suas oportunidades de acesso a
tecnologias de informação e comunicação (TIC) quanto à utilização
que fazem da Internet para uma ampla variedade de atividades. A
exclusão digital reflete várias diferenças entre países e dentro deles.
A capacidade que indivíduos e empresas possuem de tirar proveito
da Internet varia significativamente em toda a área da OCDE, bem
como entre a OCDE e os países terceiros. O acesso às infraestruturas de telecomunicações de base é fundamental para qualquer
consideração sobre a questão. (OCDE, 2001, p. 5)
A expressão digital divide foi propagada nos EUA, na década de 1995,
evidenciando os riscos da exclusão do acesso às TIC por parte dos mais
pobres e das minorias comunitárias. No ano seguinte, em razão das mudanças
tecnológicas no setor das telecomunicações, a problemática mais geral de
acesso universal centra-se sobre as desigualdades do acesso à internet nesse
país, assim como sobre o papel da educação para combater essa exclusão
(TRÉMENBERT, 2010).
Na Europa, essa discussão se inicia para assumir seu atraso em
relação aos EUA, sendo, em seguida, se insere no processo de apresentação
do projeto de construção da chamada “sociedade europeia da informação”.
Esse projeto foi iniciado pelo relatório Bangemann (EUROPEAN COUNCIL,
1994) com o qual se alinha o programa “Sociedade da Informação para Todos”
(BRASIL, 2000), lançado em 1999.
Ao longo dessas discussões, os EUA e a Europa apresentam ganhos
em produtividade, o que ocasiona uma discussão também em outros países
que desejam evitar o agravamento de seu atraso econômico. Estes países
começam a adotar medidas como a provisão de equipamentos de acesso à
internet, a liberação do setor de telecomunicações e a formação de sua
população para uso das novas tecnologias.
A ideia de exclusão digital se refere às desigualdades criadas pela
difusão das TIC numa sociedade centrada no tratamento e na transmissão da
informação (CASTELLS, 2005), contudo trata-se de uma noção vaga que
envolve situações diversas. Ela é utilizada para se fazer referência tanto à
implantação de infraestrutura de telecomunicação, como à ampliação de
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serviços universais (por exemplo, a internet banda larga) ou à liberação das
redes de comunicação, servindo também de justificativa para projetos
educacionais como é o caso do Programa Um Computador por Aluno
(PROUCA).
A exclusão social não é um fenômeno novo, mas a tentativa de
transformá-la numa categoria que explique todos os males sociais de
nosso tempo, sim. Desde o surgimento do capitalismo, em diferentes
lugares e em diferentes épocas, a forma clássica de exclusão social,
que é o desenraizamento e a expulsão dos camponeses da terra,
constitui o primeiro anúncio do advento de uma era de novas relações
sociais, dominadas pelo dinheiro e pelo mercado. (MARTINS, 2012,
p. 20)
Assim, para Martins (2012, p. 26), a exclusão não é o contraponto da
inclusão. Ela se refere ao conjunto de dificuldades, aos modos e problemas de
uma inclusão excludente ou, como apresentado pelo autor, uma “inclusão
precária e instável, marginal”.
Há autores que associam o efeito nocivo das desigualdades sociais e
econômicas ao desenvolvimento humano, confirmando inclusive as teorias da
herança cultural e da reprodução social (LANGOUËT, 2014). Dwyer et al.
(2007), por exemplo, apontam como mito a relação entre a eficácia da
aprendizagem e o uso do computador em sala de aula, bem como a relação
entre o acesso às tecnologias digitais e a redução da desigualdade social.
Nossos resultados indicam que a criação de maior ‘igualdade digital’
pode levar não a simples reprodução da desigualdade social pelo
sistema escolar, identificada há mais de 30 anos na França [...], mas
a um efeito ainda mais perverso: a ampliação das desigualdades!
Seria uma triste ironia, resultado de políticas mal pensadas e também
da fragilidade das investigações científicas críticas no campo em
questão. (DWYER et al., 2007, p. 1.326, grifo do autor)
Esse tipo de inclusão excludente, apresentada por Dwyer et al. (2007),
é resultado do modelo econômico baseado na concentração de renda.
As TIC são, ao mesmo tempo e paradoxalmente, criadoras e
destruidoras de vínculo social. A adoção do conceito de inclusão digital
geminado àquele de exclusão concorre para que essa contradição seja oculta,
pois qualquer sistema classificatório baseado numa lógica binária produz a
exclusão.
Como
poderia
ocorrer
a
inclusão
no
bojo
de
relações
socioeconômicas, elas próprias, as primeiras responsáveis pela exclusão? Daí
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rejeitarmos tal conceito e prosseguirmos no questionamento quanto à
associação entre exclusão digital, inclusão digital e inserção social.
A inclusão digital é frequentemente expressa como sinônimo de
inclusão social, com a suposição determinista de que um processo pode levar
ao outro. Esse aspecto será discutido a seguir.
As TIC nos (des)contextos da inclusão: os limites e condicionantes das
políticas públicas de inclusão digital
As premissas econômicas neoliberais se estendem à dominação
política e cultural global, fortalecidas por meio de princípios como liberalização,
privatização, desregulamentação, minimalismo e bem-estar social, que
orientam as políticas das instituições financeiras internacionais e as regras da
OCDE. É nesse contexto que precisamos considerar como a associação
automática entre os conceitos de inclusão social e de exclusão social
dificultam, na verdade, o desenvolvimento de ações que poderiam diminuir as
diferenças na qualidade de vida das pessoas, demarcando comunidades e
nações.
Dados do Comitê Gestor de Internet no Brasil (CGI.BR), por meio do
Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e Comunicação
(CETIC), coletados entre setembro de 2013 e fevereiro de 2014, comprovam
que grande parte da população ainda não se encontra incluída digitalmente
(Figura 1).
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Fonte: CGI.BR (2014).
Figura 1 - Proporção de domicílios com acesso à internet, no Brasil
Até o início de 2014, menos de 50% da população brasileira teve
acesso ao computador com internet em casa; sendo que 39% das pessoas que
constituem a classe social C4, e 8% dos indivíduos da classe D e E possuem
esse recurso em casa. A exclusão se acentua mais ainda quando observamos
o acesso à internet no país, já que identificamos que mais de 85% da
população rural declara não possuir acesso à internet em sua residência. No
que tange à idade, ao se pesquisar a proporção de indivíduos que nunca
usaram a internet, os usuários que possuem o maior índice pertencem à faixa
etária de 45 a 59 anos, isso é, 62% dos entrevistados. Já para a faixa etária de
35 a 44 anos, esse índice cai para 44%, e, para a faixa etária de 25 a 34 anos,
25% (CGI.BR, 2014).
A quinta edição do Anuário ARede de Inclusão Digital5, anos 20132014 (DIAS, 2013), apresenta dados para a inclusão digital no Brasil, por meio
de projetos da sociedade civil (empresas e organizações não governamentais).
4
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as classes sociais,
quando definidas pela renda familiar, ficam assim seccionadas: classe A - acima de 20 salários mínimos
(SM); classe B – entre 10 e 20 SM; classe C – entre 4 e 10 SM; classe D – entre 2 e 4 SM; e classe E – até
2 SM.
5
ARede é um projeto mantido pela Bit Social, organização da sociedade civil de interesse público (Oscip)
que tem como proposta difundir e estimular as boas práticas de inclusão social por meio do uso das
tecnologias da informação e das comunicações (TIC). O projeto abrange o portal ARede On-line, a revista
impressa ARede, o Anuário ARede de Inclusão Digital e o Prêmio ARede de Inclusão Digital. Disponível
na íntegra em: <http://www.arede.inf.br/quem-somos>. Acesso em: 14 dez. 2013.
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Nessa edição, o Anuário foca a desaceleração ou extinção de alguns
programas de inclusão digital, como o Programa Nacional de Banda Larga
(PNBL), que “caminha a passos lentos, mas vai indo” (DIAS, 2014, p. 11). Em
sua quarta edição, o Anuário apresentou que os projetos que trabalham na
linha da formação são predominantemente para qualificação de jovens e o
possível universo do trabalho. A maioria desses cursos prepara os usuários
para o domínio de programas computacionais mais utilizados em escritórios;
90% ensinam a usar produtos proprietários6. Poucos dão um passo à frente, ou
seja, ensinam para além do conteúdo técnico, oferecendo capacitação para
uso de aplicativos mais complexos de gestão (DIAS, 2013).
Nesse sentido, verificamos, no Brasil, o aumento de cursos
profissionalizantes como estratégia para inclusão social, via inclusão digital.
Esses dados indicam, então, que os programas relacionados à educação
atendem aos resultados e, consequentemente, às demandas de mercado. As
tecnologias digitais são apresentadas como estratégias e ferramentas de
inovação e melhoria da “qualidade” da educação, evidenciando o seguimento
das metas sugeridas pelos organismos multilaterais.
No contexto deste estudo, consideramos que a inclusão digital via
ambiente escolar para inclusão social não favorece obrigatoriamente a
melhoria da renda e o acesso à educação; a não ser que aceitemos que a
resolução das questões técnicas, como a do acesso, seja capaz de modificar o
status de construção histórica pautada nos princípios do capitalismo: domínio
do dono da produção sobre o usuário e desigualdade como força motriz do
sistema. Logo, a exclusão, e não a inclusão, ou melhor, a inclusão excludente
possui efetiva ligação com a política neoliberal.
Na realidade, a disseminação das TIC tem acentuado a desigualdade e
a marginalidade de alguns países no processo de globalização econômica:
[...] A ideia segundo a qual seria suficiente produzir mais para que a
riqueza, por si só e sem imposições, fosse repartida, é uma ideia
falsa, totalmente contestada pelos próprios fatos e pela última crise
global. Ela é, contudo, repetida pelos defensores do neoliberalismo
[...]. (LANGOUËT, 2014, p. 141)
6
Produtos proprietários são os produtos de uma atividade criada pelo intelecto humano. Para assegurar
o direito de exploração de propriedade intelectual, primeiro deve-se proceder à proteção da mesma.
Disponível em: <http://ibipi.org.br/>. Acesso em: dez. 2013.
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Dentre os estudos e as políticas públicas que adotam o conceito de
inclusão social, podemos considerar um consenso no sentido de enfatizar o
quanto isso vai além de simples questões de rendimento ou de desigualdades
materiais ou ainda de direitos humanos básicos. Como afirma Bure (2005, p.
126), “[...] estudos revelam que as pessoas podem ser incluídas relativamente
digitalmente, [...] mantendo-se excluídas socialmente”.
Argumenta-se que direitos e redistribuição de renda são condições
necessárias, mas não suficientes para a plena inclusão do indivíduo na
sociedade
(BURE,
2005;
PASSERINO,
2011;
SILVEIRA,
2011;
WARSCHAUER, 2006). Essa posição se centra nos excluídos. Eles propõem
que o caminho para a inclusão social é, na realidade, muito complexo e requer
muito mais fatores do que o acesso e uso das TIC, tais como um ambiente
socioeconômico estável e o desejo e a motivação para a mudança.
São autores que propõem a socialização online como fator de inclusão
social via TIC, indicando que não se pode limitar a inclusão digital à
apropriação tecnológica, mas incluir outras dimensões nessa análise, como
“[...] a produção de sentidos e significados [...] a partir de análise dos
posicionamentos dos atores” (PASSERINO, 2011, p. 12). Ou ainda que as
interações sociais on-line podem aumentar ou estabilizar as redes sociais de
indivíduos excluídos através da criação e manutenção de contatos sociais por
e-mail, redes sociais e outras ferramentas digitais em rede (BURE, 2005). Por
fim, consideram que um determinado uso das tecnologias pode transcender à
logica do mercado:
As tecnologias mais recentes de redes de telecomunicações quebram
o modelo atual da estrutura oligopolista de mercado em que se
trabalha com visões de monopólio natural e de que o processo de
rápida mudança tecnológica dificulta uma política não excludente. A
disseminação de experiências de telecentros colocava de forma mais
concreta o direito de acesso aos serviços de telecomunicações, com
padrões de qualidade e regularidade adequados à sua natureza, em
qualquer ponto do território nacional, contrapondo-se a uma
regulação meramente voltada para a estrutura competitiva de
mercado. (COELHO, 2010, p. 191)
Para estes autores, a internet favorece o estabelecimento de vínculos
não apenas com as pessoas mais próximas, mas com a “sociedade da
informação”. Esses estudos se baseiam numa perspectiva tecnocêntrica
(FEENBERG, 2004, 2010; PEIXOTO, 2015), no sentido de que atribuem à
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tecnologia uma certa autonomia em relação ao contexto e, por conseguinte, às
formas de uso. Ou seja, consideram que o uso de recursos tecnológicos
poderá aproximar as pessoas e melhorar sua condição de vida, propagando a
ideologia
de
uma
mudança
de
atitude
com
vistas
à
correção
de
comportamentos que colocam as pessoas em condição de marginalidade.
Propõem, por exemplo, que a configuração de softwares pode trazer
consequências significativas “[...] à percepção que as pessoas têm de si
mesmas e à sua capacidade de entrar na vida pública” (WINNER, 2010, p. 39).
Em consonância a uma perspectiva neoliberal, desconsideram os
condicionantes materiais e objetivos, focando no esforço individual, e
consideram que houve uma mudança socioestrutural com a expansão do
ambiente de informação em rede e que essa manifestação do progresso
econômico, via desenvolvimento tecnológico, pode representar um progresso
social que transcende as diferenças de classe, conforme ilustrado nos excertos
a seguir:
A inovação tecnológica e a própria tecnologia, entendidas como
conhecimento humano aplicado, devem estar voltadas para o
desenvolvimento social. Devem encontrar caminhos que signifiquem
a apropriação social e contribuam para a superação das
desigualdades. Apropriação esta que pode ser distinta da economia
e do mercado das TIC, preocupado com a ampliação da produção ou
a competitividade entre empresas. Devem garantir redes de
comunicação locais, por exemplo, com a transmissão de voz e de
dados disponibilizando serviços de multimídia de qualidade a toda
população. (COELHO, 2010, p. 191, grifo nosso)
Torna-se fundamental, portanto, compreender a partir da perspectiva
de um país em desenvolvimento, como as tecnologias de informação
e de comunicação (TIC), principalmente a internet e as redes de
relacionamento e de comunicação possibilitadas pela Web 2.0, criam
novos direitos e deveres ao cidadão. (ROSSINI, 2010, p. 213, grifo
nosso)
Esses argumentos, no entanto, são tecnologicamente deterministas
(FEENBERG, 2004, 2010; PEIXOTO, 2015), decorrentes de uma percepção de
que a aplicação de tecnologias vai levar a usos e resultados específicos. Nessa
perspectiva, a inclusão digital é, então, tratada em dois níveis: de um lado, o
acesso às TIC e à informação que circula em rede; e, de outro, os saberes e
saber-fazer necessários para se utilizarem essas tecnologias e se tratar essa
informação. Ou seja, adota os argumentos referentes ao desenvolvimento de
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conteúdos e competências libertadoras por meio do uso de ferramentas
tecnológicas. Apresentado como o vetor de uma nova economia na qual o
saber constitui a primeira fonte de riqueza, o impacto das TIC diz respeito à
manipulação do conhecimento e dos mecanismos de geração do saber. É
assim que “a informática e as telecomunicações, ao se tornarem acessíveis a
mais pessoas, favore[ceriam] a difusão do saber, as trocas e a partilha de
conhecimentos” (RIZZA, 2000, p. 26, tradução nossa).
Assim,
autores
associam
a
inclusão
ao
desenvolvimento
de
competências para a melhoria de vida (RIZZA, 2000; SILVA et al., 2005;
TEDESCO, 2008). Tais argumentos também podem ser encontrados em
documentos que regulam as políticas educacionais como: “Educação e
Conhecimento” (CEPAL - UNESCO, 1995); “Sociedade da Informação no
Brasil: Livro Verde” (BRASIL, 2000); e “Programa de Fomento à Elaboração e à
Implantação de Projetos de Inclusão Digital: Informatização de Escolas
Públicas (BRASIL, 2011). E ainda em documentos que apresentam
recomendações aos países chamados em desenvolvimento: documentos da
Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação Genebra (2003), “Túnis”
(2005) e “Padrões de Competência em TIC para Professores” (UNESCO,
2009).
Observamos a atribuição de cada vez mais importância social e cultural
às TIC, de maneira que parece se configurar um consenso sobre a
necessidade de a escola apoiar o desenvolvimento de competências digitais.
Para sustentar a inclusão digital, as escolas precisam identificar as deficiências
digitais e de aprendizagem e agir sobre elas: trata-se de verificar os diferentes
níveis de acesso e de domínio das TIC, criando estratégias de redução dessas
diferenças e dificuldades.
Mas a chamada “sociedade da informação” criou novas exclusões
sociais e agravou algumas já existentes.
Contudo, a natureza universalista da assunção dos conhecimentos
organizados e sistemáticos em níveis cada vez mais elevados
encontra obstáculos difíceis de serem transpostos no interior de
contextos sociais marcados pela desigualdade na apropriação dos
bens socialmente produzidos [...]. Eis porque, mais recentemente,
essas barreiras vêm sendo administradas pela categoria exclusão. A
tal categoria, por vezes e abusivamente, atribui-se a capacidade de
explicar os males de nossa sociedade. (CURY, 2008, p. 209)
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Avançando nessa questão, autores indicam que não basta identificar
quem são os excluídos, mas sim a razão de eles o serem (LABONTE, 2004;
CURY, 2008).
Algumas considerações
O exame do plano conceitual e contextual das políticas públicas de
inclusão digital via ambiente escolar nos permite compreender os fundamentos
da apologia a uma utopia digital que privilegia o acesso à informação em
detrimento de uma política social. Em outras palavras, a promessa de
aquisição de TIC é uma típica utopia tecnológica favorecida pelas
transformações
contemporâneas
do
capitalismo,
logo
pela
noção
de
desenvolvimento do mercado de informações e pelas “necessidades” sociais
de modernização.
Assim, a problemática da chamada inclusão digital pode ser analisada
em duas dimensões: 1) as TIC como possibilidades da unidade dialética
inclusão/exclusão, em que o processo de universalização do domínio das TIC
são parte de um projeto democrático (VIEIRA PINTO, 2005); e 2) o combate ao
tecnocentrismo. Trata-se, então, de considerar que os problemas sociais são
complexos e articulam o local, o nacional e o global aos contextos políticos,
sociais, econômicos e temporais de cada grupo, inclusive à fragmentação
social vivida por seus sujeitos.
Para tanto, é inviável separar sujeito e objeto, conteúdo e forma,
contextos e programas, visto que essa dicotomia deflagra uma alienação em
que fatos determinados são reconhecidos “[...] como aplicação prática dos
sistemas
de
conceitos,
pelos
quais
estes
fatos
são
apreendidos”
(HORKHEIMER, 1980, p. 131).
Na vertente dialética para análise do conceito de inclusão digital,
fazemos a crítica ao determinismo tecnológico como fundamento que procura
ocultar a contradição que está em sua base, desviando o foco para o sujeito
excluído e não para a exclusão das desigualdades, que culmina na alienação
social. No âmbito escolar, este fato se fundamenta na busca da superação da
racionalidade instrumental, baseada, entre outras, na centralidade da técnica
(COSTA; LEME, 2014; DINIZ-PEREIRA, 2011; GATTI, 2010), em que as TIC
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que adentram a escola são fator de ascensão social e melhoria da qualidade
de vida por gerar inovação, motivação e mudanças pedagógicas.
No bojo dessa discussão, vemos como positivo o desvelar das
contradições sobre o conceito de inclusão digital via ambiente escolar, porque
é, no ato de reconhecer as contradições de cada conceito que os cidadãos
podem agir de forma crítica, consciente e responsável, na busca por uma
nação cujas desigualdades sejam menores e a educação se consolide no
caráter público, gratuito, laico, de qualidade e com permanência de sucesso.
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