DOS EXCLUÍDOS ÀS RAZÕES DA EXCLUSÃO DIGITAL Resumo: O presente artigo discute inclusão digital via ambiente escolar como estratégia do estado neoliberal para alinhar os programas educacionais às demandas econômicas. Segundo orientações das políticas públicas para inclusão digital, as tecnologias de informação e de comunicação adentram a escola como recursos para promover a ascensão social e melhoria da qualidade de vida por gerar inovação, motivação e mudanças pedagógicas. Na vertente dialética para análise do conceito de inclusão digital, fazemos a crítica ao determinismo tecnológico como fundamento que procura ocultar a contradição que está em sua base, desviando o foco para o sujeito excluído e não para a exclusão das desigualdades, que culmina na alienação social. Assentadas em uma lógica de mundo excludente, as ações para inclusão digital geram as desigualdades que as políticas inclusivas procuram equacionar. Palavras-chave: tecnologias e educação; inclusão digital via ambiente escolar; tecnocentrismo. “São as desigualdades que se deve fazer recuar.” (LANGOUËT, 2014, p. 160). Adda Daniela Lima Figueiredo Echalar1 Joana Peixoto2 A questão da inclusão digital via ambiente escolar foi objeto de pesquisa e dá origem ao presente artigo3. As políticas para a inclusão digital via ambiente escolar partem do pressuposto de que a inclusão digital conduz à 1 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás; mestre em Biologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG); licenciada e bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Católica de Goiás; pesquisadora do Kadjót - grupo de estudos e pesquisas sobre as relações entre as tecnologias e a Educação - e da REPPID - Rede Goiana de Pesquisa em Políticas Públicas e Inclusão Digital. Professora adjunta do Departamento de Educação em Ciências do Instituto de Ciências Biológicas da UFG. 2 Pedagoga; mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás; doutora em Ciências da Educação pela Universidade Paris 8; professora no Mestrado em Educação para Ciências e Matemática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás; e colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. 3 Este texto se constitui em desdobramento de tese de doutorado (ECHALAR, 2015) e de pesquisa financiada pelo Edital FAPEG/Universal 005/2012 (FIGUEIREDO, 2013). Esta última desenvolvida no contexto do REPPID (Rede Goiana de Pesquisa em Políticas Públicas e Inclusão Digital) / FAPEG e do Kadjót, cadastrado no Diretório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): <https://sites.google.com/site/grupokadjotgoiania/>. rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 41 inclusão social. Esse pressuposto pode ser colocado em questão a partir de dois aspectos: o teórico e o prático-político. O primeiro coloca em questão o próprio conceito de inclusão digital, demonstrando seu caráter tecnologicamente determinista (FEENBERG, 2004, 2010; PEIXOTO, 2015). No que diz respeito ao segundo aspecto, apresentamos as políticas de inclusão digital via ambiente escolar como estratégias do estado neoliberal para alinhar os programas educacionais às demandas econômicas. O ponto de partida será o questionamento sobre a inclusão digital que só pode ser conceituada numa perspectiva dualista, em contraposição à exclusão. Observamos que o debate sobre exclusão digital adota implicitamente o padrão norte-americano de difusão das tecnologias de informação e comunicação (TIC) como modelo de referência, em relação ao qual o estado da difusão deve ser avaliado. A definição de exclusão digital é, então, marcada pela problemática do retardo, que mede o caminho a ser percorrido pela distância entre uma experiência mais avançada e as outras, necessariamente, atrasadas. Ou seja, o horizonte apresentado é de obter uma utilização das TIC tão intensiva quanto nos EUA. Inclusão digital: a debilidade de um termo De acordo com Silva et al. (2005), a ideia de information literacy surge com o advento das TIC no início dos anos 1970 e se amplia vigorosamente no século XXI, sendo que, para os autores, ela é descrita também como a competência mais essencial desse século. Eles ainda asseveram que “o movimento tornou-se tão importante que, em 1989, foi criado nos Estados Unidos o National Fórum on Information Literacy, mantido pela American Library Association’s Presidential Committee on Information Literacy” (p. 34). Os autores ressaltam em seu texto que o principal desafio desse fórum é a exclusão digital, visto que, para eles, na sociedade da informação, todos os grupos sociais têm direito de acesso à informação e à alfabetização digital que devem propiciar melhoria da qualidade de vida. O discurso sobre a exclusão digital se amplifica na década de 1990, com a segregação entre inforricos (information have) e infopobres (information non have), conforme conceitos apresentados por diferentes relatórios da rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 42 Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo a qual [...] o termo exclusão digital refere-se à diferença entre indivíduos, famílias, empresas e áreas geográficas em diferentes níveis sócioeconômicos tanto em relação às suas oportunidades de acesso a tecnologias de informação e comunicação (TIC) quanto à utilização que fazem da Internet para uma ampla variedade de atividades. A exclusão digital reflete várias diferenças entre países e dentro deles. A capacidade que indivíduos e empresas possuem de tirar proveito da Internet varia significativamente em toda a área da OCDE, bem como entre a OCDE e os países terceiros. O acesso às infraestruturas de telecomunicações de base é fundamental para qualquer consideração sobre a questão. (OCDE, 2001, p. 5) A expressão digital divide foi propagada nos EUA, na década de 1995, evidenciando os riscos da exclusão do acesso às TIC por parte dos mais pobres e das minorias comunitárias. No ano seguinte, em razão das mudanças tecnológicas no setor das telecomunicações, a problemática mais geral de acesso universal centra-se sobre as desigualdades do acesso à internet nesse país, assim como sobre o papel da educação para combater essa exclusão (TRÉMENBERT, 2010). Na Europa, essa discussão se inicia para assumir seu atraso em relação aos EUA, sendo, em seguida, se insere no processo de apresentação do projeto de construção da chamada “sociedade europeia da informação”. Esse projeto foi iniciado pelo relatório Bangemann (EUROPEAN COUNCIL, 1994) com o qual se alinha o programa “Sociedade da Informação para Todos” (BRASIL, 2000), lançado em 1999. Ao longo dessas discussões, os EUA e a Europa apresentam ganhos em produtividade, o que ocasiona uma discussão também em outros países que desejam evitar o agravamento de seu atraso econômico. Estes países começam a adotar medidas como a provisão de equipamentos de acesso à internet, a liberação do setor de telecomunicações e a formação de sua população para uso das novas tecnologias. A ideia de exclusão digital se refere às desigualdades criadas pela difusão das TIC numa sociedade centrada no tratamento e na transmissão da informação (CASTELLS, 2005), contudo trata-se de uma noção vaga que envolve situações diversas. Ela é utilizada para se fazer referência tanto à implantação de infraestrutura de telecomunicação, como à ampliação de rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 43 serviços universais (por exemplo, a internet banda larga) ou à liberação das redes de comunicação, servindo também de justificativa para projetos educacionais como é o caso do Programa Um Computador por Aluno (PROUCA). A exclusão social não é um fenômeno novo, mas a tentativa de transformá-la numa categoria que explique todos os males sociais de nosso tempo, sim. Desde o surgimento do capitalismo, em diferentes lugares e em diferentes épocas, a forma clássica de exclusão social, que é o desenraizamento e a expulsão dos camponeses da terra, constitui o primeiro anúncio do advento de uma era de novas relações sociais, dominadas pelo dinheiro e pelo mercado. (MARTINS, 2012, p. 20) Assim, para Martins (2012, p. 26), a exclusão não é o contraponto da inclusão. Ela se refere ao conjunto de dificuldades, aos modos e problemas de uma inclusão excludente ou, como apresentado pelo autor, uma “inclusão precária e instável, marginal”. Há autores que associam o efeito nocivo das desigualdades sociais e econômicas ao desenvolvimento humano, confirmando inclusive as teorias da herança cultural e da reprodução social (LANGOUËT, 2014). Dwyer et al. (2007), por exemplo, apontam como mito a relação entre a eficácia da aprendizagem e o uso do computador em sala de aula, bem como a relação entre o acesso às tecnologias digitais e a redução da desigualdade social. Nossos resultados indicam que a criação de maior ‘igualdade digital’ pode levar não a simples reprodução da desigualdade social pelo sistema escolar, identificada há mais de 30 anos na França [...], mas a um efeito ainda mais perverso: a ampliação das desigualdades! Seria uma triste ironia, resultado de políticas mal pensadas e também da fragilidade das investigações científicas críticas no campo em questão. (DWYER et al., 2007, p. 1.326, grifo do autor) Esse tipo de inclusão excludente, apresentada por Dwyer et al. (2007), é resultado do modelo econômico baseado na concentração de renda. As TIC são, ao mesmo tempo e paradoxalmente, criadoras e destruidoras de vínculo social. A adoção do conceito de inclusão digital geminado àquele de exclusão concorre para que essa contradição seja oculta, pois qualquer sistema classificatório baseado numa lógica binária produz a exclusão. Como poderia ocorrer a inclusão no bojo de relações socioeconômicas, elas próprias, as primeiras responsáveis pela exclusão? Daí rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 44 rejeitarmos tal conceito e prosseguirmos no questionamento quanto à associação entre exclusão digital, inclusão digital e inserção social. A inclusão digital é frequentemente expressa como sinônimo de inclusão social, com a suposição determinista de que um processo pode levar ao outro. Esse aspecto será discutido a seguir. As TIC nos (des)contextos da inclusão: os limites e condicionantes das políticas públicas de inclusão digital As premissas econômicas neoliberais se estendem à dominação política e cultural global, fortalecidas por meio de princípios como liberalização, privatização, desregulamentação, minimalismo e bem-estar social, que orientam as políticas das instituições financeiras internacionais e as regras da OCDE. É nesse contexto que precisamos considerar como a associação automática entre os conceitos de inclusão social e de exclusão social dificultam, na verdade, o desenvolvimento de ações que poderiam diminuir as diferenças na qualidade de vida das pessoas, demarcando comunidades e nações. Dados do Comitê Gestor de Internet no Brasil (CGI.BR), por meio do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e Comunicação (CETIC), coletados entre setembro de 2013 e fevereiro de 2014, comprovam que grande parte da população ainda não se encontra incluída digitalmente (Figura 1). rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 45 Fonte: CGI.BR (2014). Figura 1 - Proporção de domicílios com acesso à internet, no Brasil Até o início de 2014, menos de 50% da população brasileira teve acesso ao computador com internet em casa; sendo que 39% das pessoas que constituem a classe social C4, e 8% dos indivíduos da classe D e E possuem esse recurso em casa. A exclusão se acentua mais ainda quando observamos o acesso à internet no país, já que identificamos que mais de 85% da população rural declara não possuir acesso à internet em sua residência. No que tange à idade, ao se pesquisar a proporção de indivíduos que nunca usaram a internet, os usuários que possuem o maior índice pertencem à faixa etária de 45 a 59 anos, isso é, 62% dos entrevistados. Já para a faixa etária de 35 a 44 anos, esse índice cai para 44%, e, para a faixa etária de 25 a 34 anos, 25% (CGI.BR, 2014). A quinta edição do Anuário ARede de Inclusão Digital5, anos 20132014 (DIAS, 2013), apresenta dados para a inclusão digital no Brasil, por meio de projetos da sociedade civil (empresas e organizações não governamentais). 4 De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as classes sociais, quando definidas pela renda familiar, ficam assim seccionadas: classe A - acima de 20 salários mínimos (SM); classe B – entre 10 e 20 SM; classe C – entre 4 e 10 SM; classe D – entre 2 e 4 SM; e classe E – até 2 SM. 5 ARede é um projeto mantido pela Bit Social, organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que tem como proposta difundir e estimular as boas práticas de inclusão social por meio do uso das tecnologias da informação e das comunicações (TIC). O projeto abrange o portal ARede On-line, a revista impressa ARede, o Anuário ARede de Inclusão Digital e o Prêmio ARede de Inclusão Digital. Disponível na íntegra em: <http://www.arede.inf.br/quem-somos>. Acesso em: 14 dez. 2013. rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 46 Nessa edição, o Anuário foca a desaceleração ou extinção de alguns programas de inclusão digital, como o Programa Nacional de Banda Larga (PNBL), que “caminha a passos lentos, mas vai indo” (DIAS, 2014, p. 11). Em sua quarta edição, o Anuário apresentou que os projetos que trabalham na linha da formação são predominantemente para qualificação de jovens e o possível universo do trabalho. A maioria desses cursos prepara os usuários para o domínio de programas computacionais mais utilizados em escritórios; 90% ensinam a usar produtos proprietários6. Poucos dão um passo à frente, ou seja, ensinam para além do conteúdo técnico, oferecendo capacitação para uso de aplicativos mais complexos de gestão (DIAS, 2013). Nesse sentido, verificamos, no Brasil, o aumento de cursos profissionalizantes como estratégia para inclusão social, via inclusão digital. Esses dados indicam, então, que os programas relacionados à educação atendem aos resultados e, consequentemente, às demandas de mercado. As tecnologias digitais são apresentadas como estratégias e ferramentas de inovação e melhoria da “qualidade” da educação, evidenciando o seguimento das metas sugeridas pelos organismos multilaterais. No contexto deste estudo, consideramos que a inclusão digital via ambiente escolar para inclusão social não favorece obrigatoriamente a melhoria da renda e o acesso à educação; a não ser que aceitemos que a resolução das questões técnicas, como a do acesso, seja capaz de modificar o status de construção histórica pautada nos princípios do capitalismo: domínio do dono da produção sobre o usuário e desigualdade como força motriz do sistema. Logo, a exclusão, e não a inclusão, ou melhor, a inclusão excludente possui efetiva ligação com a política neoliberal. Na realidade, a disseminação das TIC tem acentuado a desigualdade e a marginalidade de alguns países no processo de globalização econômica: [...] A ideia segundo a qual seria suficiente produzir mais para que a riqueza, por si só e sem imposições, fosse repartida, é uma ideia falsa, totalmente contestada pelos próprios fatos e pela última crise global. Ela é, contudo, repetida pelos defensores do neoliberalismo [...]. (LANGOUËT, 2014, p. 141) 6 Produtos proprietários são os produtos de uma atividade criada pelo intelecto humano. Para assegurar o direito de exploração de propriedade intelectual, primeiro deve-se proceder à proteção da mesma. Disponível em: <http://ibipi.org.br/>. Acesso em: dez. 2013. rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 47 Dentre os estudos e as políticas públicas que adotam o conceito de inclusão social, podemos considerar um consenso no sentido de enfatizar o quanto isso vai além de simples questões de rendimento ou de desigualdades materiais ou ainda de direitos humanos básicos. Como afirma Bure (2005, p. 126), “[...] estudos revelam que as pessoas podem ser incluídas relativamente digitalmente, [...] mantendo-se excluídas socialmente”. Argumenta-se que direitos e redistribuição de renda são condições necessárias, mas não suficientes para a plena inclusão do indivíduo na sociedade (BURE, 2005; PASSERINO, 2011; SILVEIRA, 2011; WARSCHAUER, 2006). Essa posição se centra nos excluídos. Eles propõem que o caminho para a inclusão social é, na realidade, muito complexo e requer muito mais fatores do que o acesso e uso das TIC, tais como um ambiente socioeconômico estável e o desejo e a motivação para a mudança. São autores que propõem a socialização online como fator de inclusão social via TIC, indicando que não se pode limitar a inclusão digital à apropriação tecnológica, mas incluir outras dimensões nessa análise, como “[...] a produção de sentidos e significados [...] a partir de análise dos posicionamentos dos atores” (PASSERINO, 2011, p. 12). Ou ainda que as interações sociais on-line podem aumentar ou estabilizar as redes sociais de indivíduos excluídos através da criação e manutenção de contatos sociais por e-mail, redes sociais e outras ferramentas digitais em rede (BURE, 2005). Por fim, consideram que um determinado uso das tecnologias pode transcender à logica do mercado: As tecnologias mais recentes de redes de telecomunicações quebram o modelo atual da estrutura oligopolista de mercado em que se trabalha com visões de monopólio natural e de que o processo de rápida mudança tecnológica dificulta uma política não excludente. A disseminação de experiências de telecentros colocava de forma mais concreta o direito de acesso aos serviços de telecomunicações, com padrões de qualidade e regularidade adequados à sua natureza, em qualquer ponto do território nacional, contrapondo-se a uma regulação meramente voltada para a estrutura competitiva de mercado. (COELHO, 2010, p. 191) Para estes autores, a internet favorece o estabelecimento de vínculos não apenas com as pessoas mais próximas, mas com a “sociedade da informação”. Esses estudos se baseiam numa perspectiva tecnocêntrica (FEENBERG, 2004, 2010; PEIXOTO, 2015), no sentido de que atribuem à rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 48 tecnologia uma certa autonomia em relação ao contexto e, por conseguinte, às formas de uso. Ou seja, consideram que o uso de recursos tecnológicos poderá aproximar as pessoas e melhorar sua condição de vida, propagando a ideologia de uma mudança de atitude com vistas à correção de comportamentos que colocam as pessoas em condição de marginalidade. Propõem, por exemplo, que a configuração de softwares pode trazer consequências significativas “[...] à percepção que as pessoas têm de si mesmas e à sua capacidade de entrar na vida pública” (WINNER, 2010, p. 39). Em consonância a uma perspectiva neoliberal, desconsideram os condicionantes materiais e objetivos, focando no esforço individual, e consideram que houve uma mudança socioestrutural com a expansão do ambiente de informação em rede e que essa manifestação do progresso econômico, via desenvolvimento tecnológico, pode representar um progresso social que transcende as diferenças de classe, conforme ilustrado nos excertos a seguir: A inovação tecnológica e a própria tecnologia, entendidas como conhecimento humano aplicado, devem estar voltadas para o desenvolvimento social. Devem encontrar caminhos que signifiquem a apropriação social e contribuam para a superação das desigualdades. Apropriação esta que pode ser distinta da economia e do mercado das TIC, preocupado com a ampliação da produção ou a competitividade entre empresas. Devem garantir redes de comunicação locais, por exemplo, com a transmissão de voz e de dados disponibilizando serviços de multimídia de qualidade a toda população. (COELHO, 2010, p. 191, grifo nosso) Torna-se fundamental, portanto, compreender a partir da perspectiva de um país em desenvolvimento, como as tecnologias de informação e de comunicação (TIC), principalmente a internet e as redes de relacionamento e de comunicação possibilitadas pela Web 2.0, criam novos direitos e deveres ao cidadão. (ROSSINI, 2010, p. 213, grifo nosso) Esses argumentos, no entanto, são tecnologicamente deterministas (FEENBERG, 2004, 2010; PEIXOTO, 2015), decorrentes de uma percepção de que a aplicação de tecnologias vai levar a usos e resultados específicos. Nessa perspectiva, a inclusão digital é, então, tratada em dois níveis: de um lado, o acesso às TIC e à informação que circula em rede; e, de outro, os saberes e saber-fazer necessários para se utilizarem essas tecnologias e se tratar essa informação. Ou seja, adota os argumentos referentes ao desenvolvimento de rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 49 conteúdos e competências libertadoras por meio do uso de ferramentas tecnológicas. Apresentado como o vetor de uma nova economia na qual o saber constitui a primeira fonte de riqueza, o impacto das TIC diz respeito à manipulação do conhecimento e dos mecanismos de geração do saber. É assim que “a informática e as telecomunicações, ao se tornarem acessíveis a mais pessoas, favore[ceriam] a difusão do saber, as trocas e a partilha de conhecimentos” (RIZZA, 2000, p. 26, tradução nossa). Assim, autores associam a inclusão ao desenvolvimento de competências para a melhoria de vida (RIZZA, 2000; SILVA et al., 2005; TEDESCO, 2008). Tais argumentos também podem ser encontrados em documentos que regulam as políticas educacionais como: “Educação e Conhecimento” (CEPAL - UNESCO, 1995); “Sociedade da Informação no Brasil: Livro Verde” (BRASIL, 2000); e “Programa de Fomento à Elaboração e à Implantação de Projetos de Inclusão Digital: Informatização de Escolas Públicas (BRASIL, 2011). E ainda em documentos que apresentam recomendações aos países chamados em desenvolvimento: documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação Genebra (2003), “Túnis” (2005) e “Padrões de Competência em TIC para Professores” (UNESCO, 2009). Observamos a atribuição de cada vez mais importância social e cultural às TIC, de maneira que parece se configurar um consenso sobre a necessidade de a escola apoiar o desenvolvimento de competências digitais. Para sustentar a inclusão digital, as escolas precisam identificar as deficiências digitais e de aprendizagem e agir sobre elas: trata-se de verificar os diferentes níveis de acesso e de domínio das TIC, criando estratégias de redução dessas diferenças e dificuldades. Mas a chamada “sociedade da informação” criou novas exclusões sociais e agravou algumas já existentes. Contudo, a natureza universalista da assunção dos conhecimentos organizados e sistemáticos em níveis cada vez mais elevados encontra obstáculos difíceis de serem transpostos no interior de contextos sociais marcados pela desigualdade na apropriação dos bens socialmente produzidos [...]. Eis porque, mais recentemente, essas barreiras vêm sendo administradas pela categoria exclusão. A tal categoria, por vezes e abusivamente, atribui-se a capacidade de explicar os males de nossa sociedade. (CURY, 2008, p. 209) rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 50 Avançando nessa questão, autores indicam que não basta identificar quem são os excluídos, mas sim a razão de eles o serem (LABONTE, 2004; CURY, 2008). Algumas considerações O exame do plano conceitual e contextual das políticas públicas de inclusão digital via ambiente escolar nos permite compreender os fundamentos da apologia a uma utopia digital que privilegia o acesso à informação em detrimento de uma política social. Em outras palavras, a promessa de aquisição de TIC é uma típica utopia tecnológica favorecida pelas transformações contemporâneas do capitalismo, logo pela noção de desenvolvimento do mercado de informações e pelas “necessidades” sociais de modernização. Assim, a problemática da chamada inclusão digital pode ser analisada em duas dimensões: 1) as TIC como possibilidades da unidade dialética inclusão/exclusão, em que o processo de universalização do domínio das TIC são parte de um projeto democrático (VIEIRA PINTO, 2005); e 2) o combate ao tecnocentrismo. Trata-se, então, de considerar que os problemas sociais são complexos e articulam o local, o nacional e o global aos contextos políticos, sociais, econômicos e temporais de cada grupo, inclusive à fragmentação social vivida por seus sujeitos. Para tanto, é inviável separar sujeito e objeto, conteúdo e forma, contextos e programas, visto que essa dicotomia deflagra uma alienação em que fatos determinados são reconhecidos “[...] como aplicação prática dos sistemas de conceitos, pelos quais estes fatos são apreendidos” (HORKHEIMER, 1980, p. 131). Na vertente dialética para análise do conceito de inclusão digital, fazemos a crítica ao determinismo tecnológico como fundamento que procura ocultar a contradição que está em sua base, desviando o foco para o sujeito excluído e não para a exclusão das desigualdades, que culmina na alienação social. No âmbito escolar, este fato se fundamenta na busca da superação da racionalidade instrumental, baseada, entre outras, na centralidade da técnica (COSTA; LEME, 2014; DINIZ-PEREIRA, 2011; GATTI, 2010), em que as TIC rce – Revista Científica de Educação, Inhumas, v. 1, n. 1, p. 41-54, dez. 2016 51 que adentram a escola são fator de ascensão social e melhoria da qualidade de vida por gerar inovação, motivação e mudanças pedagógicas. No bojo dessa discussão, vemos como positivo o desvelar das contradições sobre o conceito de inclusão digital via ambiente escolar, porque é, no ato de reconhecer as contradições de cada conceito que os cidadãos podem agir de forma crítica, consciente e responsável, na busca por uma nação cujas desigualdades sejam menores e a educação se consolide no caráter público, gratuito, laico, de qualidade e com permanência de sucesso. Referências BRASIL. Sociedade da informação no Brasil: livro verde. TAKAHASHI, T. (Org.). Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000. Disponível em: <http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/18878.html>. Acesso em: 23 jul. 2012. BURE, C. Digital inclusion without social inclusion: the consumption of information and communication technologies (ICTs) within homeless subculture in Scotland. The Journal of Community Informatics, Vancouver, v. 1, n. 2, p. 116-133, 2005. CASTELLS, M. A sociedade em rede. 9 ed., São Paulo: Paz e Terra, 2005. CGI.BR. 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