caes-nova367:Layout 1 11/23/09 10:25 AM Page 6 Mundo das Aves O gavião que (quase) ninguém conhecia O Gavião-de-Pescoço-Branco é uma das aves brasileiras mais ameaçadas de extinção. São conhecidos menos de 60 indivíduos, os quais vivem isolados em pequenas áreas de floresta em Pernambuco e Alagoas s gaviões, símbolos do domínio pleno da arte de voar, estão entre as aves mais admiradas e retratadas pelo Homem, numa relação de contemplação que data dos tempos mais antigos. Respeitados ainda por sua astúcia e maestria na caça, os gaviões fazem também parte do imaginário popular, por simbolizarem a realeza e o poder. Entretanto, infelizmente, estão entre as aves mais perseguidas pelos mesmos Homens que as admiram, e várias espécies de grande porte, em todo o mundo, se encontram severamente ameaçadas de extinção. Pertencentes à família Accipitridae, os gaviões fazem parte de uma das ordens de aves mais características, os Falconiformes, que incluem, no Brasil, os falcões (família Falconidae), a Águia-Pescadora (família Pandionidae) e os urubus (família Cathartidae). A maioria das espécies dessa ordem com as suas garras bichos-preguiça e macacos que ultrapassam facilmente os seis quilos, enquanto que o gaviãozinho (Gampsonyx swainsoni) consome pequenos passarinhos e insetos, como grilos e gafanhotos. Boa parte das 47 espécies de gaviões que ocorre no Brasil é naturalmente esquiva e de hábitos discretos. Seus exemplares são mais facilmente observados quando estão voando alto, geralmente em correntes térmicas. A densidade populacional dessas aves é Alex Thomson O consome alimentos de origem animal (algumas espécies ocasionalmente consomem frutos, como o da palmeira-dendê). Várias delas podem ocorrer juntas, em uma mesma área, cada uma consumindo preferencialmente animais de determinado porte, evitando a competição direta por recursos. As espécies de maior porte consomem animais maiores; uma harpia (Harpya harpyja), a ave de rapina mais possante de todo o planeta (mas não a maior), pode capturar Ciro Albano Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA Gavião-de-Cabeça-Cinza 64 Gavião-de-Pescoço-Branco CÃES & CIA • 367 caes-nova367:Layout 1 11/23/09 10:25 AM Page 7 diminuição de seus alimentos pelo Homem. Peça de museu Eduardo Brettas, www.avesdobrasil.com.br Uma das espécies mais comuns, e curiosamente uma das menos conhecidas, é o Gavião-de-Cabeça-Cinza (Leptodon cayanensis). Mede cerca de 50 cm de comprimento total e habita as florestas de quase toda a América do Sul e Central. Apesar da ampla distribuição, muito pouco se sabe sobre a biologia dele. O Gaviãode-Cabeça-Cinza apresenta também a característica, úMapa da região leste dos Estados de Pernambuco e Alagoas, com as localinica entre as espécies bradades de registro de Leptodon forbesi (preto e branco). Manchas coloridas sileiras, de seus filhotes porepresentam remanescentes de vegetação nativa na região: Mata Atlântica derem abandonar o ninho (verde), Restinga (vermelho) e Mangues (azul). portando duas fases de naturalmente pequena. Algumas espécies plumagem completamente distintas, uma precisam de dezenas, às vezes de centenas branca e outra estriada. Essas plumagens são de hectares para que apenas um casal possa trocadas depois de um ano para a plumagem sobreviver. Isso faz com que muitas espécies definitiva (veja ilustrações das aves). A ampla sejam extremamente sensíveis à destruição variação de plumagem tem uma implicação dos hábitats naturais ou à captura ou direta sobre o conhecimento da espécie-irmã do Gavião-de-Cabeça-Cinza, o Gavião-de-Pescoço-Branco, uma das aves mais ameaçadas de extinção em todo o Brasil e seguramente um dos gaviões mais ameaçados de todo o planeta. Em 1880, o naturalista inglês William Forbes, trabalhando em Pernambuco, coletou um gavião que foi enviado para o Museu Britânico, em Londres. Aquele gavião foi identificado como Gavião-deCabeça-Cinza pelos ornitólogos da instituição, e considerado um jovem na “fase clara” da espécie. Em 1922, enquanto trabalhava numa grande monografia sobre os * gaviões, outro ornitólogo, Swann, reparou que aquele único exemplar pernambucano representava para ele uma nova espécie, descrita como Leptodon forbesi em homenagem ao coletor original, W. Forbes. Como aquele gavião nordestino era conhecido com base em apenas um exemplar, desde 1922 foi considerado Variações da plumagem do Gavião-de-Cabeça-Cinza, exceto pela ave com asterisco que pelos ornitólogos ora como é um Gavião-de-pescoço-branco, reconhecível pela cauda com poucas barras negras um jovem, ora como um adulCÃES & CIA • 367 to, da fase clara do Gavião-de-Cabeça-Cinza. Nenhum estudo mais aprofundado sobre a ave foi realizado durante mais de 60 anos. Apenas mais três aves foram coletadas em Alagoas no final da década de 1980, reabrindo a questão sobre a existência de um gavião de distribuição restrita ao nordeste brasileiro, na estreita faixa de Mata Atlântica ao norte do rio São Francisco. Nova espécie A questão só foi resolvida de maneira definitiva a partir dos estudos do ornitólogo Francisco Dènes, o qual analisou uma enorme quantidade de material, em diversos museus do Brasil e do exterior, realizando também um grande esforço em campo nos últimos trechos de Mata Atlântica no Nordeste (veja mapa). Como resultado, ele pode afirmar que o Gavião-de-PescoçoBranco era, de fato, uma espécie válida, embora aparentada ao Gavião-de-PescoçoCinza. As diferenças entre as duas espécies podem ser notadas especialmente nas penas axilares, brancas na ave do nordeste e negras no Gavião-de-Pescoço-Cinza, e na coloração cinza da cabeça, restrita a uma pequena área nas aves do nordeste brasileiro (veja ilustrações das aves). Foi resolvido, assim, de maneira definitiva, um enigma que perdurou por 87 anos, o que também demonstrou o quanto ainda temos que aprender para conhecer bem a nossa biodiversidade. Carência de proteção Mas há outro problema: o Gavião-dePescoço-Branco, justamente por não ser ainda reconhecido oficialmente como espécie válida, nunca foi objeto de proteção oficial. E, desgraçadamente, habita uma das áreas mais devastadas de toda a América do Sul. Nos trabalhos de campo mais recentes, menos de 50 aves foram observadas (círculos brancos do mapa), muitas delas isoladas em pequenos fragmentos em Alagoas e Pernambuco. O Gavião-de PescoçoBranco, por muito tempo não reconhecido como espécie válida, exclusiva do nordeste brasileiro, passa agora a ser uma das aves brasileiras mais ameaçadas de extinção. São, portanto, necessários esforços urgentes para que as populações remanescentes sejam conservadas. Por pouco, muito pouco, essa espécie de gavião de grande porte não seria conhecida na Natureza, mas somente por alguns exemplares submetidos à técnica de conservação da taxidermia, depositados em museus. Luís Fábio Silveira é professor do Departamento de Zoologia da Universidade de São Paulo, com doutorado em Ciências Biológicas (Zoologia); curador associado das coleções ornitológicas Museu de Zoologia da USP; editor-chefe da Revista Brasileira de Ornitologia; membro do Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO); pesquisador associado da World Pheasant Association (UK); autor de oito livros sobre aves e tem dezenas de artigos científicos publicados. 65