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Mundo das Aves
O gavião que (quase)
ninguém conhecia
O Gavião-de-Pescoço-Branco é uma das aves brasileiras mais ameaçadas de
extinção. São conhecidos menos de 60 indivíduos, os quais vivem isolados
em pequenas áreas de floresta em Pernambuco e Alagoas
s gaviões, símbolos do domínio pleno da
arte de voar, estão entre as aves mais
admiradas e retratadas pelo Homem,
numa relação de contemplação que data dos
tempos mais antigos. Respeitados ainda por
sua astúcia e maestria na caça, os gaviões
fazem também parte do imaginário popular,
por simbolizarem a realeza e o poder.
Entretanto, infelizmente, estão entre as aves
mais perseguidas pelos mesmos Homens
que as admiram, e várias espécies de grande
porte, em todo o mundo, se encontram severamente ameaçadas de extinção.
Pertencentes à família Accipitridae, os
gaviões fazem parte de uma das ordens de
aves mais características, os Falconiformes,
que incluem, no Brasil, os falcões (família
Falconidae), a Águia-Pescadora (família
Pandionidae) e os urubus (família Cathartidae). A maioria das espécies dessa ordem
com as suas garras bichos-preguiça e macacos que ultrapassam facilmente os seis quilos, enquanto que o gaviãozinho (Gampsonyx
swainsoni) consome pequenos passarinhos e
insetos, como grilos e gafanhotos.
Boa parte das 47 espécies de gaviões
que ocorre no Brasil é naturalmente esquiva e
de hábitos discretos. Seus exemplares são
mais facilmente observados quando estão
voando alto, geralmente em correntes térmicas. A densidade populacional dessas aves é
Alex Thomson
O
consome alimentos de origem animal (algumas espécies ocasionalmente consomem frutos, como o da palmeira-dendê). Várias delas
podem ocorrer juntas, em uma mesma área,
cada uma consumindo preferencialmente animais de determinado porte, evitando a competição direta por recursos.
As espécies de maior porte consomem
animais maiores; uma harpia (Harpya harpyja), a ave de rapina mais possante de todo o
planeta (mas não a maior), pode capturar
Ciro Albano
Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA
Gavião-de-Cabeça-Cinza
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Gavião-de-Pescoço-Branco
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diminuição de seus alimentos pelo Homem.
Peça de museu
Eduardo Brettas, www.avesdobrasil.com.br
Uma das espécies mais
comuns, e curiosamente uma das menos conhecidas,
é o Gavião-de-Cabeça-Cinza (Leptodon cayanensis).
Mede cerca de 50 cm de
comprimento total e habita
as florestas de quase toda a
América do Sul e Central. Apesar da ampla distribuição,
muito pouco se sabe sobre
a biologia dele. O Gaviãode-Cabeça-Cinza apresenta
também a característica, úMapa da região leste dos Estados de Pernambuco e Alagoas, com as localinica entre as espécies bradades de registro de Leptodon forbesi (preto e branco). Manchas coloridas
sileiras,
de seus filhotes porepresentam remanescentes de vegetação nativa na região: Mata Atlântica
derem abandonar o ninho
(verde), Restinga (vermelho) e Mangues (azul).
portando duas fases de
naturalmente pequena. Algumas espécies plumagem completamente distintas, uma
precisam de dezenas, às vezes de centenas branca e outra estriada. Essas plumagens são
de hectares para que apenas um casal possa trocadas depois de um ano para a plumagem
sobreviver. Isso faz com que muitas espécies definitiva (veja ilustrações das aves). A ampla
sejam extremamente sensíveis à destruição variação de plumagem tem uma implicação
dos hábitats naturais ou à captura ou direta sobre o conhecimento da espécie-irmã
do Gavião-de-Cabeça-Cinza,
o Gavião-de-Pescoço-Branco, uma das aves mais ameaçadas de extinção em todo o
Brasil e seguramente um dos
gaviões mais ameaçados de
todo o planeta.
Em 1880, o naturalista
inglês William Forbes, trabalhando em Pernambuco, coletou um gavião que foi enviado
para o Museu Britânico, em
Londres. Aquele gavião foi
identificado como Gavião-deCabeça-Cinza pelos ornitólogos da instituição, e considerado um jovem na “fase clara”
da espécie. Em 1922, enquanto trabalhava numa
grande monografia sobre os
*
gaviões, outro ornitólogo,
Swann, reparou que aquele
único exemplar pernambucano representava para ele
uma nova espécie, descrita
como Leptodon forbesi em
homenagem ao coletor original, W. Forbes.
Como aquele gavião nordestino era conhecido com
base em apenas um exemplar,
desde 1922 foi considerado
Variações da plumagem do Gavião-de-Cabeça-Cinza, exceto pela ave com asterisco que pelos ornitólogos ora como
é um Gavião-de-pescoço-branco, reconhecível pela cauda com poucas barras negras um jovem, ora como um adulCÃES & CIA • 367
to, da fase clara do Gavião-de-Cabeça-Cinza.
Nenhum estudo mais aprofundado sobre
a ave foi realizado durante mais de 60 anos.
Apenas mais três aves foram coletadas em
Alagoas no final da década de 1980,
reabrindo a questão sobre a existência de um
gavião de distribuição restrita ao nordeste
brasileiro, na estreita faixa de Mata Atlântica
ao norte do rio São Francisco.
Nova espécie
A questão só foi resolvida de maneira
definitiva a partir dos estudos do ornitólogo
Francisco Dènes, o qual analisou uma
enorme quantidade de material, em diversos
museus do Brasil e do exterior, realizando
também um grande esforço em campo nos
últimos trechos de Mata Atlântica no
Nordeste (veja mapa). Como resultado, ele
pode afirmar que o Gavião-de-PescoçoBranco era, de fato, uma espécie válida, embora aparentada ao Gavião-de-PescoçoCinza. As diferenças entre as duas espécies
podem ser notadas especialmente nas penas
axilares, brancas na ave do nordeste e negras
no Gavião-de-Pescoço-Cinza, e na coloração
cinza da cabeça, restrita a uma pequena área
nas aves do nordeste brasileiro (veja ilustrações das aves). Foi resolvido, assim, de
maneira definitiva, um enigma que perdurou
por 87 anos, o que também demonstrou o
quanto ainda temos que aprender para conhecer bem a nossa biodiversidade.
Carência de proteção
Mas há outro problema: o Gavião-dePescoço-Branco, justamente por não ser ainda
reconhecido oficialmente como espécie válida,
nunca foi objeto de proteção oficial. E, desgraçadamente, habita uma das áreas mais devastadas de toda a América do Sul. Nos trabalhos de
campo mais recentes, menos de 50 aves foram
observadas (círculos brancos do mapa), muitas
delas isoladas em pequenos fragmentos em
Alagoas e Pernambuco. O Gavião-de PescoçoBranco, por muito tempo não reconhecido como
espécie válida, exclusiva do nordeste brasileiro,
passa agora a ser uma das aves brasileiras mais
ameaçadas de extinção. São, portanto, necessários esforços urgentes para que as populações remanescentes sejam conservadas. Por
pouco, muito pouco, essa espécie de gavião de
grande porte não seria conhecida na Natureza,
mas somente por alguns exemplares submetidos
à técnica de conservação da taxidermia, depositados em museus.
Luís Fábio Silveira é professor do Departamento de Zoologia
da Universidade de São Paulo, com doutorado em Ciências
Biológicas (Zoologia); curador associado das coleções ornitológicas Museu de Zoologia da USP; editor-chefe da Revista
Brasileira de Ornitologia; membro do Comitê Brasileiro de
Registros Ornitológicos (CBRO); pesquisador associado da
World Pheasant Association (UK); autor de oito livros sobre
aves e tem dezenas de artigos científicos publicados.
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