Marketing Cultural Julia Zardo e Fabio Silveira 1. Considerações Iniciais É consenso o fato de que um dos papéis centrais das incubadoras é a orientação de empresas incubadas em relação às suas estratégias de marketing. Se o marketing constitui um alicerce fundamental à inserção de uma empresa no mercado, quando a instituição em questão atua na área cultural essa ferramenta tem a sua importância superlativizada. Isso acontece, em grande parte, pela maior dificuldade das empresas de cultura em gerar a percepção do impacto da inovação de seus produtos e serviços, uma vez que, com muita freqüência, estes são intangiveis. Essa dificuldade de conquistar a percepção do valor pelo público, por sua vez, pode ser suprida essencialmente por um planejamento de marketing. Essa não é, contudo, a única lacuna que o marketing deve ser capaz de preencher; a identificação, a conquista e a fidelização da clientela1 são, também, algumas das maiores dificuldades dos empreendedores da área cultural. Dentre todos os problemas presentes nesse setor, merecem destaque: 1) A falta de flexibilidade do empreendedor, principalmente aquele que desenvolve algum tipo de atividade de criação artística, em adaptar ou modificar o seu produto com o objetivo de aumentar sua inserção no mercado; 2) A falta de informações quanto ao comportamento do consumidor e do mercado da cultura; 3) A dificuldade de diálogo entre o produtor e o cliente, que, por sua vez, nem sempre encontra um vendedor com experiência no trato comercial; 4) O difícil estabelecimento de parâmetros de precificação dos produtos, uma situação decorrente do alto grau de intangibilidade material deles; 1 Entre outras que estão citadas e desenvolvidas no livro Incubadoras Culturais do Negócio da Cultura à Cultura dos Negócios. ZARDO, Julia e Colaboradores. Rio de Janeiro, ANPROTEC & SEBRAE, 2005. 159p. 5) A insuficiência de canais de distribuição desses produtos. É importante lembrar que o empreendedor cultural está costumeiramente ligado mais à criação do que à inovação. A diferença entre estas instâncias está no fato de que a criação é o ato de apresentar ou gerar uma coisa nova sem se preocupar com o mercado, ao passo que a inovação estabelece um vínculo biunívoco com este. Esse perfil de criação é decorrente do espírito artístico e de produção artesanal – quase exclusiva –, enquanto o espírito inovador se relaciona mais facilmente com o empreendedor, o mercado e a produção seriada. Por isso, torna-se fundamental a orientação da incubadora em relação ao posicionamento dos empreendedores e sua viabilidade mercadológica. Além da questão inovação X criação, a solução das três últimas questões pontuadas acima reside basicamente em um trabalho intenso de preparação desse empreendedor durante o período de pré-incubação. Precificação, distribuição e marketing de relacionamento são tópicos que exigem a atenção das incubadoras culturais, principalmente para suprir uma das principais demandas de empresas desse setor: a organização dos seus processos. Uma sistematização das ações nessas três linhas permite que os principais defeitos desde a produção até a comercialização apareçam claramente e sejam corrigidos de forma sistêmica. Ainda assim, o pleno sucesso de empresas culturais depende principalmente dos dois primeiros pontos citados e da percepção pelo público da inovação presente no produto ou serviço prestado. Esse capítulo representa um esforço no sentido de desenvolver essas questões e de conceituar, com base na prática e na apresentação de casos, o que é o marketing cultural e de que forma ele é capaz de impulsionar as atividades de uma empresa. 2. Problematização Quando foi aprovada, em 1991, a Lei Rouanet ou Lei de Incentivo à Cultura (Lei 8.313/91) acentuou um fenômeno que já se tornava comum no Brasil: a dependência da atividade cultural em relação aos interesses de grandes empresas. Se, por um lado, ela permitiu que os investimentos em cultura aumentassem de forma decisiva para a economia desse setor, por outro, fomentou o vício de vincular a realização de qualquer atividade de cunho social, cultural e/ou ambiental à busca de patrocínio.2 Tal conseqüência enraizou-se nas práticas comuns do mercado da cultura e, atualmente, o termo “marketing cultural” é visto por muitos como sinônimo de “toda ação de marketing que usa a cultura como veículo de comunicação para se difundir o nome, produto ou fixar imagem de uma empresa patrocinadora”. 3 O foco central, portanto, não é mais aquele que a palavra “marketing” originalmente designava – “estudo do mercado que visa a planejar possíveis lançamentos de produtos (...) e que leva em consideração as necessidades existentes ou possíveis”4 – mas um outro, completamente desvirtuado e capaz de desviar a atuação dos agentes sociais para uma prática de êxito altamente duvidoso. Todos aqueles com mínima experiência na área sabem o quanto a captação de recursos constitui um processo árduo que não confere garantia alguma de sucesso, principalmente quando o agente captador em questão pertence ao grupo das Micro e Pequenas Empresas. O posicionamento do marketing cultural deve ser o exato oposto do que tem sido feito por diversos agentes hoje: uma atividade que deve estar ligada à comercialização de produtos e serviços dotados de valores agregados oriundos da cultura do seu local de origem ou do grupo social a que estão ligados. 2 Hoje, existem Legislações Federais, Estaduais e Municipais de incentivo à cultura. As Legislações Federais são: Lei Rouanet; Lei 9.874 - Altera dispositivos da Lei Rouanet; Lei do Audiovisual; Lei do Audiovisual II e Resoluções; Lei do Direito Autoral. Os Estados que possuem legislação a este respeito são: Acre, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Os Municípios que possuem legislação a este respeito são: Aracaju, Belém, Belo Horizonte, Cabedelo, Caxias do Sul, Contagem, Curitiba, Florianópolis, Goiânia, Itajaí, João Pessoa, Juiz de Fora, Londrina, Maceió, Maringá, Ponta Grossa, Porto Alegre, Rio Branco, Rio de Janeiro, Santa Maria, Santo André, São José dos Campos e São Paulo. Disponível em www.cultura.gov.br 3 www.marketingcultural.com.br 4 www.sebrae.com.br Esse capítulo tem como objeto central a discussão sobre alguns dos conceitos e caminhos necessários para a implantação de ações de marketing cultural com o intuito de desenvolver atividades economicamente sustentáveis e/ou lucrativas, que possam, inclusive, ser capazes de promover o desenvolvimento de um local ou um setor. Em um primeiro momento, é importante, contudo, apontar que tipos de produtos e serviços estão inclusos nesse processo; uma delimitação que por sua vez é determinada de forma decisiva pelo modo como se compreende o significado do termo “cultura”. 3. Definição de cultura O termo cultura é derivado do latim (“cultura”) e significa “cultivar o solo”, “cuidar”. Sua origem está diretamente ligada ao fato de que, na Antigüidade Clássica, cada povo afastado geograficamente de outros promovia o cultivo de um tipo único de semente, sendo identificado exatamente por essa cultura. Pode-se afirmar, desta forma, que a palavra teve a sua origem associada a um elemento único capaz de identificar determinado grupo social pelo que este possuía de particular diante dos outros. Para além desta definição mais imediata, existem múltiplas conceituações do significado do termo. O campo da filosofia, por exemplo, atribui à cultura o status de manifestações humanas capazes de nos distinguir dos outros animais. Já a antropologia defende que a cultura engloba todas as práticas e costumes aprendidos e desenvolvidos pelo homem. Recentemente, cultura passou a ser empregada popularmente, principalmente no Ocidente, como sinônimo de erudição, como se representasse automaticamente um modelo único de conhecimento que deveria ser idealmente adotado por todos. Essa palavra passa, ainda, por novos processos de significação à medida que é aplicada no cotidiano. Ao se abrir um caderno de cultura de qualquer jornal, por exemplo, pode-se notar que os temas em questão nas matérias estarão todos relacionados às indústrias criativas da arte e do entretenimento. A Recomendação da Década Mundial do Desenvolvimento Cultural, que resultou da Conferência do México, em 1982, conceitua, por sua vez, “Cultura como o conjunto de características espirituais e materiais, intelectuais e emocionais que definem um grupo social. (...) engloba modos de vida, os direitos fundamentais da pessoa, sistemas de valores, tradições e crenças.”5 Certamente, diversos são os conceitos empregados na interpretação do termo. Segundo Schimitt (1992) “assim como cada nação tem um conceito próprio de nação e encontra em si mesma as notas constitutivas da nacionalidade, e não nos outros, assim também toda Cultura e toda época cultural tem seu próprio conceito de Cultura”. 6 Este é um pressuposto fundamental para que se compreenda a forma de trabalhar o marketing cultural e como ele sofreu alterações historicamente. De uma forma geral, a definição de Muylaert (2000) ecoa forte para uma análise contemporânea desse tipo de marketing, justamente por ser a mais abrangente, englobando todas as áreas de atuação das Micro e Pequenas Empresas tal como se observa atualmente: “A Cultura, tal qual os cientistas sociais a concebem, refere-se ao modo de vida de um povo, em toda a sua extensão e complexidade. Um conceito que procura designar uma estrutura social no campo das idéias, das crenças, costumes, artes, linguagem, moral, direito, leis, etc., e que se traduz nas formas de agir, sentir e pensar de uma coletividade que aprende, inova e renova o seu próprio modo de criar e fazer as coisas, numa dinâmica de constantes transformações.”7 4. Marketing Cultural 4.1 Histórico Da mesma forma que é importante entender como foi concebido historicamente o conceito de cultura, também é um requisito compreender de que forma o marketing 5 In: Políticas Culturais para o Desenvolvimento. UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Políticas culturais para o Desenvolvimento: uma base de dados para a cultura. Brasília: UNESCO Brasil, 2003. p. 9 6 SCHMITT, Carl. O conceito do político. Tradução de Álvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes, 1992. (Clássicos do pensamento político; 33). Original em alemão. p. 111 7 MUYLAERT, Roberto. Marketing cultural & Comunicação dirigida. 5. ed. São Paulo: Globo, 2000. p.17 cultural surgiu e foi desenvolvido. Na Antigüidade Clássica, mais especificamente na Grécia Antiga, a produção cultural estava restrita exclusivamente à criação artística de esculturas e pinturas que tinham como funcionalidade básica serem representações na Terra das divindades da religião politeísta. Tratava-se de peças que não tinham sido elaboradas para a admiração de consumidores, mas para compor templos como o Parthenon. As obras de arte passariam, então, a permanecer em segundo plano durante a Idade Média. O objetivo delas continuaria a ser o da representação/ornamentação religiosa. O Renascimento provocaria, então, uma grande mudança neste quadro. Conhecido por ser, dentre outras características, um momento de revalorização das artes e do homem, no Renascimento as obras de arte passaram a ser consumidas, apreciadas com base no conceito de beleza. Se o uso das obras para a ornamentação continuava, pelo menos era algo realizado com fins de consumo estético. É neste período que surge a figura do Mecenas, investidor cujas motivações se restringem à admiração que sente por certas obras e à vontade que manifesta de permitir que 1) o artista continue produzindo e; 2) o mundo tenha acesso à fruição destas obras. Ao contrário do patrocinador, as motivações do Mecenas passam pela identificação estética com a obra e pelo fato de não desejar em troca a publicidade em cima do seu nome. A visão mitificada do artista, tal qual fora construída durante o Renascimento, é reforçada no Iluminismo, sendo ele considerado gênio criador justamente por utilizar a razão e a imaginação. Durante o próprio Renascimento, ainda, pôde-se iniciar o processo de ampliação das atividades culturais, principalmente pela invenção da imprensa de Guttenberg. A produção mais ágil de livros e de jornais permitiu, além de melhorias de comunicação, a formação posterior de uma indústria de editoras. O final do século XIX define o desenvolvimento da gastronomia e o crescimento da indústria da moda. O século XX, por sua vez, marca o início do desenvolvimento acentuado das atividades audiovisuais. Todas essas novas atividades se juntavam a outras já existentes, como o artesanato e a pintura, e fortaleciam a economia de bens simbólicos da cultura.Todas as produções artísticas desse século, todavia, passariam por momentos de reavaliação e de crise nos padrões de consumo. As artes, por exemplo, encontravam formas menos palatáveis de fruição estética durante o Modernismo e a Contemporaneidade; logo a sua transformação em produtos comercializáveis tornava-se mais difícil. Ao mesmo tempo, a economia da cultura englobava novas atividades, com as de memória e resgate, de preservação ambiental, de eventos, de mapeamento geográfico, dentre muitas outras. A esta altura, muitas dessas atividades já eram encarnadas sob a forma de produtos (a que as últimas décadas do século passado acrescentariam com expressividade a categoria de serviços). Ao mesmo tempo, o lazer, que envolve usualmente investimentos, tornou-se um item obrigatório no cardápio de atividades sociais. Nesse sentido, uma das melhores definições sobre Marketing disponíveis e capazes de carregar o adjetivo “cultural” é a da American Marketing Association, que define o termo como “o processo de planejamento e execução da concepção, da definição de preço, da promoção e da distribuição de idéias, produtos, serviços, organizações e eventos para criar trocas que irão satisfazer os objetivos das pessoas e empresas”. 8 Como se pode observar por esta definição, as atividades do marketing cultural encontram-se profundamente subaproveitadas quando este é utilizado como sinônimo de captação de recursos. Atividades dependentes inteiramente deste tipo de ação não apresentam resultados eficazes na sua manutenção a longo prazo, além de prejudicarem gravemente a inserção sócio-econômica dos agentes, que acabam apenas reforçando as suas condições de produtores de bens secundários e descartáveis. Um marketing cultural realmente eficaz em todas as suas aspirações, sejam elas a de mera divulgação de uma marca através do apoio a uma atividade artística ou a de comercialização de produtos e serviços baseados em certos costumes e tradições, deve, antes de tudo, identificar-se com as manifestações culturais que promove. Em outras 8 www.ama.org palavras, não basta que certa atividade cultural seja desenvolvida ou apoiada com fins comerciais ou de promoção, mas que esse desenvolvimento seja pautado por uma autenticidade em relação à cultura que difunde e em que se insere. Nesse sentido, o marketing cultural deve ser considerado sinônimo de ações que possibilitem a difusão e a comercialização de determinados costumes e tradições com o intuito de promover a auto-sustentabilidade e/ou a lucratividade, permitindo, prioritariamente, o desenvolvimento contínuo da atividade em questão. Para o pleno sucesso dessa linha de atuação do marketing, devem-se considerar alguns pontos, com destaque para a brasilidade e o desenvolvimento local, além de outros valores agregados, como a autenticidade e o design exclusivo. 4.2 Global X Local Frente a rápidas mudanças tanto em âmbito econômico – com incremento dos fluxos de comércio e investimentos – quanto político – com a formação de blocos “transnacionais” – e comunicacional – com o advento das novas tecnologias de informação e Comunicação – a revisão de paradigmas produtivos e de consumo deve ser feita. Temos assistido à fragilização das fronteiras entre os territórios, a uma reconfiguração dos circuitos de produção e consumo que coloca o Marketing Cultural como um tópico de grande importância para a reflexão quanto à sua utilização. Como coloca Nadya Guimarães, “essas mudanças redefiniram o modo de vida dos cidadãos e o modo de operar das instituições” 9; e por isso a sugestão deste trabalho em pensar o papel do Marketing Cultural neste novo ambiente. Teóricos como Maffesoli (1999) já tratavam do resgate das questões locais, quando o lugar volta a servir de vínculo, como irreversível neste contexto de globalização. O retorno ao local e a importância da “tribo” em oposição ao entusiasmo bastante “integrado” de alguns quanto às inúmeras possibilidades da tecnologia de promover 9 GUIMARÃES, Nadya Araújo; MARTIN, Scott (orgs.). Competitividade e Desenvolvimento: Atores e instituições locais. São Paulo, Editora Senac, 2001. p. 3 “relações virtualizadas” retomam discussões bastante atuais como a da “identidade cultural na pós-modernidade10 (HALL, 1997)” e sobre se “é possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento de identidade coerente e integral11”. (CASTELLS, 2000) Hoje, inclusive, as discussões sobre a fragmentação das identidades apontam a cultura como um dos poucos fatores que conseguem mobilizar um grupo em função de algo, posicionamento que o marketing procura recriar. Conforme afirma Gonçalves, “é a dimensão cultural que fortalece, potencializa e pereniza valores culturais, saberes populares, códigos de relacionamento do grupo humano focalizado”. Em função disso, ações concebidas e implementadas com base nesse compromisso tendem a ser melhor assimiladas pelos beneficiários e contribuem para o fortalecimento de identidades e perfis tanto na produção quanto no consumo. O autor complementa sua afirmação citando que “são numerosos os exemplos de experiências bem-sucedidas de inclusão social e de promoção de alternativas sustentáveis de Desenvolvimento econômico local que se fundamentam em processos de resgate das identidades culturais. Programas de inclusão de jovens por meio da oferta de oportunidades de educação artística, muitas vezes no âmbito do folclore, ou esportiva, e programas de geração de renda, baseados na valorização de atividades artesanais, por sua vez apoiados em conhecimentos e técnicas dos mais idosos das localidades, têm logrado resultados efetivos e sustentáveis para o Desenvolvimento socialmente inclusivo e sustentável das localidades”. (GONÇALVES, p. 8)12 Nesse mundo de mudanças permanentes, confusas e incontroláveis, as pessoas tendem a reagrupar-se em torno de identidades primárias: religiosas, étnicas, territoriais, nacionais. “Em um mundo de fluxos globais de riqueza, poder e imagens a busca pela identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se a fonte básica de significado 10 HALL, Stuart. Identidades culturais na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 1997. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 530 p. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; 2). 12 O MUNICÍPIO e o desenvolvimento local sustentável. In: GONÇALVES, Marcos Flávio R. (Coord.). Manual do Prefeito. 12. ed. ver., aum. E atual. Rio de Janeiro: IBAM, 2005. p. 123-200. 11 social. Essa tendência não é nova, uma vez que a identidade e, em especial, a identidade religiosa e étnica tem sido a base do significado desde os primórdios da sociedade humana. No entanto, a identidade está se tornando a principal e, às vezes, única fonte de significado em um período histórico caracterizado pela ampla desestruturação das organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expressões culturais efêmeras. Cada vez mais, as pessoas organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que elas são ou acreditam que são.” (CASTELLS, p. 23)13 A questão da identidade ocupa, como se pode observar, uma posição central atualmente. Passamos por uma reafirmação destas identidades no âmbito local. Por isso, neste momento, o marketing cultural pode servir como ferramenta para tratar da busca pela afirmação de uma identidade, de elementos distintivos, de uma reputação própria, de características singulares que diferenciem o local dentro do universo da globalização. Como coloca Juarez, este pode ser “um esforço que parte da descoberta, do reconhecimento e da valorização dos ativos locais, quer dizer, das potencialidades, vocações, oportunidades, vantagens comparativas e competitivas de cada território.” (JUAREZ, 2005)14 5. Cultura como valor No contexto do Marketing Cultural, a dimensão cultural ganha grande destaque uma vez que é uma das saídas para a diferenciação de produtos de comunidades ao se articularem com um mercado global. Conforme coloca Pereira, “dentre as diversas ações que podem funcionar como catalisadoras do processo de dinamização de um aglomerado empresarial, a indução da diferenciação de produtos e serviços através da incorporação de fatores culturais de uma localidade que sejam capazes de interagir com as atividades 13 CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 530 p. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; 2). 14 O MUNICÍPIO e o desenvolvimento local sustentável. In: GONÇALVES, Marcos Flávio R. (Coord.). Manual do Prefeito. 12. ed. ver., aum. E atual. Rio de Janeiro: IBAM, 2005. p. 123-200. econômicas predominantes pode gerar efeitos dinâmicos que redundem no aumento da capacidade inovativa e associativa das empresas locais.” (PEREIRA, 2003)15 Citamos Cultura aqui como a dimensão simbólica da existência social de cada povo, como eixo construtor das identidades, como espaço privilegiado de realizações da cidadania e de inclusão social e, também, como fato econômico gerador de riquezas. (Gilberto Gil, p. 9)16 Tendo o processo de diferenciação em torno da Cultura, diversas ações têm sido realizadas tanto por grandes empresas, quanto movimentos sociais passando inclusive por órgãos de fomento à indústria brasileira. Um destes exemplos pode ser o estudo realizado em 2003 – promovido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) – pela empresa S3.Studium, cujo objetivo central era a criação de uma imagem nacional para os produtos e serviços brasileiros que fortalecesse a exportação das MPE’s do País. O Marketing cultural com foco territorial teve seu início nos Distritos Industriais da Itália e vem sendo incorporado às ações de desenvolvimento também no Brasil. A hipótese, totalmente convergente com as afirmações de nosso artigo, é a de que o marketing do país fundamentado na Cultura – tendo a valorização das identidades locais como resposta às tendências globalizantes – é um dos mecanismos econômicos hoje emergentes. Porém, existe um caminho que deve ser percorrido entre a Cultura local e os produtos baseados em sua identidade. Para o trabalho de criar territórios competitivos através de sua identidade, faz-se necessário mapear as tipicidades, ícones naturais, símbolos e as 15 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder; HERSCHMANN, Micael. Comunicação, cultura e gestão de organizações privadas e públicas na perspectiva do Desenvolvimento local sustentável. In: XXVI CONGRESSO INTERCOM, 2003. Anais eletrônicos. Disponível em: www.intercom.org.br. Acesso em: 05 jan. 2005 16 In: Políticas Culturais para o Desenvolvimento. UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Políticas culturais para o Desenvolvimento: uma base de dados para a cultura. Brasília: UNESCO Brasil, 2003. p. 9 referências culturais do local, fazendo com que essas sejam apropriadas pelas comunidades e contribuam para o reconhecimento de um território. (BRAGA, 2003)17 A questão que diz respeito ao reforço das identidades locais como estratégia de resistência e valorização individual é um dos fundamentos para as possíveis novas maneiras de enxergar o marketing cultural. Segundo Jorge Werthein, a Cultura pode ser considerada como um estímulo ao capital social de uma comunidade por fomentar “o sentimento de pertencimento a um projeto coletivo, a participação, a promoção de atitudes que favoreçam a paz e o Desenvolvimento sustentado, o respeito a direitos, enfim, a capacidade da pessoa humana e das comunidades de regerem o seu destino”. É interessante lembrar que esta característica da Cultura pode produzir os padrões de confiança, cooperação e interação social que resultam em uma economia mais vigorosa e, possivelmente, mais democrática. Outra forma de enxergar também, de percepção muitas vezes rara e difícil para muitos, e interessante para ser levantada é a possibilidade da Cultura ser encarada como uma real fonte de geração de renda em um território. Além disso, é justamente esta a postura que permite que as manifestações culturais representadas em produtos e serviços adquiram aos olhos do consumidor um elevado grau de autenticidade. Um produto dotado de uma certa identidade local – seja ela de teor exótico ou não – supre a lacuna que o cliente procura nesse produto: a experimentação do diferente. A autenticidade do produto, por sua vez, está fortemente ligada a um design próprio, capaz de conferir a ele uma imagem que, ao mesmo tempo em que ressalta o que há de diferente nele, permite uma identificação de clientes de diferentes culturas. 6. Casos Trataremos a partir de agora de casos e exemplos nos quais a cultura é a característica fundamental e primeira para a diferenciação de uma empresa ou produto e serviço. Estes 17 BRAGA, Christiano. In: UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Políticas culturais para o desenvolvimento: uma base de dados para a cultura. Brasília: UNESCO Brasil, 2003. p. 57 exemplos se colocam como uma construção social de interação entre a subjetividade do uso da cultura e as possibilidades de infra-estrutura e recursos existentes. Nós do Cinema Com intuito de formar uma Oficina de Interpretação para Cinema destinada a 200 jovens, moradores de uma comunidade de baixa renda no Rio de Janeiro, selecionados para fazerem parte do elenco do filme Cidade de Deus, foi criada uma oficina. Esta oficina, com o apoio dos cineastas Kátia Lund e Fernando Meirelles, evoluiu e tornou-se a Escola de Educação Audiovisual Nós do Cinema18. Os filmes trabalhados ou selecionados para serem exibidos pela Nós do Cinema tentam mostrar as diferentes realidades sociais do Rio de Janeiro, retratando, assim, assuntos de interesse da comunidade, gerando discussões e, conseqüentemente, o crescimento dos jovens participantes do processo. Segundo a organização da ONG, seu objetivo é “desmistificar e esclarecer dúvidas referentes ao universo das favelas, a organização comunitária, a história urbana que provocou sua eclosão, entre outros; contribuir para a diminuição de preconceitos e o abismo proveniente da falta de informação entre os diferentes ambientes culturais como, por exemplo, o asfalto e a favela; desconstruir o imaginário massificado e estereotipado projetado pela mídia, de modo geral, provocando um imaginário mais livre e a expansão dos horizontes estéticos; e despertar nos jovens o interesse pelo produto audiovisual de qualidade, estimulando a criação de um novo público para o cinema, além de valorizar as produções nacionais”19. 18 19 Empresa associada à Incubadora Cultural Gênesis da PUC-Rio. www.nosdocinema.org.br Fruto das produções da Escola, a Nós do Cinema desenvolveu uma produtora com fins comerciais, desenvolvendo, na maior parte das vezes, curtas e médias metragens. Estes, sempre com posicionamento ideológico e de defesa da identidade de seus componentes e de suas comunidades como: Vida Nova com Favela, que mostra a relação dos negros com a história das favelas e suas diferentes visões sobre esta; e O Cego, o Diabo e o Bom Pastor que, adaptado da literatura de cordel, trata da diversidade religiosa do Brasil e foi gravado na favela da Rocinha. A ONG incorporou a identidade existente nas favelas cariocas e as dificuldades vividas pelos moradores para desenvolver seus filmes, levando os produtos das discussões acerca desta realidade não só às localidades onde foram desenvolvidas as filmagens, mas também ao restante do Brasil e a alguns países como França, Peru, Estados Unidos, Portugal e Inglaterra. Zóia A identidade entre cliente e produto baseada em design exclusivo e autenticidade é uma das principais diretrizes que orientam os produtos da Zóia20. A empresa formada pelos sócios Vanessa Wagner (designer) e Laurent Alves (comercial e produção) foi constituída em 2005 e, desde então, encontra-se incubada na Incubadora de Design de Jóias Gênesis, da PUC-Rio. Como se pode observar pelo próprio nome – uma variação em torno da palavra “jóia” – a proposta da empresa é um tanto diferente e ousada. Primeiramente porque partiu da constatação de que faltava ao mercado brasileiro uma empresa de design de jóias capaz de oferecer um produto simples, diferente e acessível, dotado, ao mesmo tempo, de uma linguagem muito própria de design artístico. O 20 Para mais informações, visite o site www.zoia.com.br diferencial começa na associação à marca de uma identidade local: a palavra “Brazil”, geralmente veiculada na parte inferior da logomarca, remete imediatamente ao país; o uso da grafia com um “z”, contudo, permite uma identificação dela com um público amplo, ou seja, confere à marca um alcance internacional. O posicionamento do produto trata-se do destaque do exótico aplicado a uma estratégia de não-estranhamento por um público em geral. Nesse sentido, a empresa, inclusive, desenvolve toda a sua campanha com base no estabelecimento de um estilo de vida com o qual os seus clientes se identifiquem (através, por exemplo, de slogans como “Seja Zóia!”). As linhas de produtos da Zóia – CoreZ e FibraZ – foram pensadas de tal forma que privilegiassem matérias-primas de forte identificação com o Brasil, com destaque para fibras naturais e sementes. Outro forte aspecto da moda do brasileiro que a empresa captou e aplicou em seus produtos foi o uso de cores alegres e vibrantes. Esse é o mote da coleção CoreZ, que utiliza cerâmica plástica para criar jóias simples e, ao mesmo tempo, sofisticadas, justamente por apresentarem um design único e extremamente moderno. Ao aliar um design artístico das jóias, muito particular com matérias-primas naturais essencialmente brasileiras, e um posicionamento de marketing que vende, antes de tudo, a identificação do cliente com um estilo de vida, a Zóia vem conquistando uma parcela significativa do mercado carioca de jóias. No dia 14 de Junho de 1962 surge a “mais simples resposta à necessidade de proteger os pés”: as Havaianas. O calçado é um produto natural e 100% nacional. Inspirado na sandália Japonesa, onde tirar os sapatos e colocar sandálias antes de entrar em casa é considerado um ato de respeito, as Havaianas traziam um diferencial: eram feitas totalmente em borracha. Desde o início as sandálias Havaianas foram um surpreendente sucesso de vendas. Sua primeira campanha nos anos 70 utilizou o slogan: "legítimas, só as havaianas" como uma tentativa para fazer com que os consumidores continuassem a usar as Havaiana e, não, as cópias, cada vez mais comuns. Anos depois, sem inovações, as sandálias perderam o interesse dos consumidores e transformou-se em um artigo popular, vendida a baixos preços e gerando uma baixa margem de lucro para o fabricante. Neste cenário, a entrada da forte concorrência dos chinelos de PVC poderia parecer o fim das Havaianas, mas surpreendentemente esta ameaça tornou a principal força da marca. Em 1994 a empresa passou a investir no design. Criou novas linhas, voltou a ter prestígio e ganhou o mundo. Foi a partir de 2001 que a empresa ganhou status “marca nacional de alta classe”. Neste ano, as exportações cresceram significativamente e a marca utilizou-se da brasilidade para expandir suas vendas. Suas peças foram inspiradas no conceito de identidade tupiniquim, utilizando-se de objetos indígenas na sua composição. Nos anos que se seguiram, a empresa abusou das cores. Remetendo a alegria brasileira buscou temas nacionalmente relevantes como a Copa do Mundo de futebol para reforçar os valores nacionais e lançou linhas de sandálias com paisagens e animais da flora e fauna do Brasil. A marca alcançou o mais alto valor de empresa nacional ao criar propagandas que colocam os brasileiros como privilegiados por terem um produto de qualidade, bonito, sofisticados e mais barato que o mesmo material na Europa. Este conceito favorece a criação de uma identidade nacional, especialmente por fortalecer a idéia de que quando se vai ao exterior, encontrar pessoas com as sandálias, significa, em certa medida, encontrar a nossa cultura. 6. Conclusão Diversas formas de marketing cultural podem ser utilizadas: Ao patrocinar um show, por exemplo, uma empresa pode não só associar sua marca àquele tipo de música e público como pode também oferecer amostras de produto (promoção); distribuir ingressos para os seus funcionários (endomarketing); eleger um dia exclusivo para convidados especiais (marketing de relacionamento); enviar mala-direta aos consumidores/clientes informando que o show está acontecendo e é patrocinado pela empresa (marketing direto); mostrar o artista consumindo o produto durante o show (merchandising); levantar informações gerais sobre o consumidor por meio de pesquisas feitas no local (database marketing); fazer uma publicação sobre o evento (marketing editorial); realizar uma campanha específica destacando a importância do patrocínio (publicidade) e muitas outras ações paralelas que têm o poder de ampliar o raio de alcance da ação de marketing cultural. Porém, o que foi discutido neste capítulo trata-se de um diferente posicionamento do marketing cultural. Todos os elementos citados acima compõem ações de marketing conhecidas, mas devemos considerá-los como ferramentas e não como posicionamento estratégico de uma marca ou empresa. Ou seja, conhecer os instrumentos e meios é importante, mas tratando-se do marketing cultural, um planejamento eficiente de inserção no mercado significa fortalecer a identificação gerada pelo produto ou serviço com o consumidor. A valorização do aspecto imaterial neste caso pode ser tão fundamental para um produto quanto a eficiência de seu processo produtivo. O marketing cultural deve valorizar a esfera local e buscar diferenciação, consciente de que isso não gera somente beneficios econômicos. Relendo seus patrimônios, grupos retomam a sensação de pertencimento ao território e à comunidade e a vontade de buscar o desenvolvimento socio-economico destas regiões.