XIII Congresso Brasileiro de Sociologia 29 de maio a 01 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE) GT23: Sociedade e Ambiente Coordenação: Horácio A.de Sant'ana Júnior (UFMA), Neide Esterci (UFRJ), Maria José da Silva Aquino (UFPA) Título do trabalho SOCIOLOGIA AMBIENTAL E A CONTROVÉRSIA SOBRE OS CLÁSSICOS Autor: Cristiano Luis Lenzi Email: [email protected] Universidade de São Paulo (USP) Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) 1 SOCIOLOGIA AMBIENTAL E A CONTROVÉRSIA SOBRE OS CLÁSSICOS Autor: Prof. Cristiano Luis Lenzi 1 - INTRODUÇÃO A proposta de criação de uma Sociologia ambiental nasceu de uma forte crítica às sociologias clássica e contemporânea. Essa crítica emergiu ao final da década de 70, quando os cientistas sociais americanos Catton e Dunlap (1978) criticaram justamente a ausência de qualquer preocupação com as pré-condições ecológicas da sociedade nos estudos sociológicos. Segundo estes autores, esta ausência não era apenas casual, mas indicava a existência de um paradigma antropocêntrico existente na Sociologia que teria emergido com o nascimento da Sociologia moderna. A idéia de que os clássicos da Sociologia não nos legaram uma sensibilidade ecológica não está restrita ao trabalho de Catton e Dunlap (1978), mas tende a receber um apoio nas avaliações de cientistas sociais contemporâneos1. No presente trabalho, repassamos essa discussão tomando para análise algumas idéias de Durkheim, Weber e Marx, buscando identificar os limites e possibilidades que as obras desses autores podem oferecer para a Sociologia ambiental. Argumentaremos que a herança deixada por estes clássicos da Sociologia é marcada por uma ambivalência com relação à problemática ambiental e, como procuraremos indicar, isso está relacionado com a forma pela qual a Sociologia veio a ser definida em suas obras. A parte final do texto é dedicada para algumas breves considerações sobre os problemas associados com a herança sociológica clássica e suas implicações para pensar a condição teórica da própria Sociologia ambiental. 2) EMILE DURKHEIM E OS ARTEFATOS MATERIAIS COMO FATOS SOCIAIS Para examinar o pensamento de Durkheim com relação ao tema ambiental, podemos iniciar tomando para análise suas considerações sobre o método sociológico. Em Durkheim, a Sociologia foi definida como o estudo dos fatos sociais. Em As Regras do Método Sociológico, Durkheim (1987) busca deixar clara a separação dos “fatos sociais” com os fenômenos associados à psicologia e biologia. Os fatos sociais, diz ele, “consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção, em virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte, não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, pois consistem em representações e em ações” (DURKHEIM, 1987: 03). A concepção de fato social em 2 Durkheim separa de uma forma clara os fenômenos sociais daqueles de ordem biológica, embora isso não o tenha impedido de dar à Sociologia, segundo seus críticos, um viés “naturalista”. Isso não significa que os fatos sociais não apresentavam qualidades semelhantes aos fatos da natureza. Embora estes fatos não pudessem ser reduzidos uns aos outros, eles apresentavam características bastante parecidas. Parte dessa semelhança ocorria em razão da condição coercitiva e externa que poderia ser associada tanto aos fatos sociais como naturais. Era justamente por existir essa semelhança que Durkheim defendia uma proximidade metodológica entre as ciências naturais e humanas. A partir desse encontro, Durkheim buscava atribuir uma cientificidade ao objeto da Sociologia, imprimindo a esta última o mesmo status científico associado às ciências naturais2. Por isso, os fatos sociais e naturais apresentariam características parecidas em razão das próprias semelhanças que poderiam ser estabelecidas entre sociedade e natureza. Em As Regras do Método Sociológico, Durkheim nos diz, então, que a “vida na natureza é una e, por conseguinte, não pode ter sede senão a substância viva em sua totalidade. Ela existe no todo e não nas partes (...)”. Por isso, ele conclui que, o ”que afirmamos a respeito da vida poderia ser reproduzido para todas as sínteses possíveis. Apliquemos o mesmo princípio à Sociologia”. [grifo nosso] (DURKHEIM,1987: XXV). Os fenômenos naturais e sociais se expressariam, então, de forma semelhante. Tanto num caso como no outro, tais fenômenos se apresentariam na forma de “sínteses”. O que indica também que a sociedade não estaria num nível distante ou separado da natureza, mas simplesmente num nível distinto da realidade3. A visão de Durkheim sobre sociedade e natureza passou por algumas alterações ao longo de sua obra. Fatores ambientais externos que, em Da Divisão do Trabalho Social, se apresentavam como importantes para a sua explicação, tendem a ser desconsiderados em trabalhos posteriores como o Suicídio (1996). Em Da Divisão do Trabalho Social, por exemplo, Durkheim se utilizou de argumentos ecológicos que sugeriam que o aumento da população ao longo da história teria suscitado uma tensão entre população e oferta de recursos. Como indica Gross (2000), “Este é, obviamente, um tipo de explicação ambiental (seres humanos dependem dos recursos naturais) antes do que um tipo de explicação sociológica”. No entanto, no Suicídio, obra posterior, a hipótese sobre a influência dos fatores ambientais externos sobre as comunidades humanas tende a ser posta de lado4. Na visão que Durkheim usualmente estabeleceu entre sociedade e natureza, ele viu ambas como entidades estritamente interligadas a ponto de ver a natureza como parte da sociedade e vice versa. Assim, em As Formas Elementares da Vida 3 Religiosa, ele nos diz que “uma sociedade é a combinação mais poderosa das forças físicas e morais da qual a natureza nos oferece um exemplo” (Durkheim apud GROSS, 2000, p.83). Essa interligação também se operava em sua obra pela forma como o “ambiente social” era, em sua visão, constituído. Em As Regras do Método Sociológico, Durkheim (1987) nos esclarece que: “os elementos que compõem o meio social são de duas espécies: coisas e pessoas. Entre as coisas, é preciso compreender, além dos objetos materiais incorporados à sociedade, os produtos de atividade social anterior, o direito constituído, os usos estabelecidos (...)” [grifo nosso] (DURKHEIM, 1987, p. 98). Portanto, fossem os fatos sociais um fenômeno material ou moral, todos eles representavam formas de condensações da ação humana. Eram os fatos sociais, para Durkheim “todos modos de agir” (1987, p.09). Durkheim nos mostra, então, em seu trabalho, como artefatos materiais poderiam também ser interpretados à luz de seu conceito de fato social. Em As Regras do Método Sociológico, ele nos diz que: “Não podemos escolher a forma de nossas casas, nem a de nossas roupas; pois uma é tão obrigatória quanto a outra. As vias de comunicação determinam de maneira imperiosa o sentido em que se fazem as migrações interiores e as trocas, e mesmo até a intensidade de tais trocas e tais imigrações, etc” (DURKHEIM, 1987, p.11). Desse modo, os fatos sociais, sejam eles materiais ou não, deveriam ser o foco de estudo do sociólogo, porque para Durkheim, o papel deste último deveria ser justamente a “descoberta das diferentes propriedades deste meio suscetíveis de exercer uma ação sobre o curso dos fenômenos sociais” [grifo nosso] (1987, p. 99).Embora a posição de Durkheim sobre a relação sociedade e natureza pareça ser um tanto instável, ora assumindo a importância de fatores ambientais externos (Divisão do Trabalho Social) e ora os desconsiderando por completo (Suicídio), em termos gerais sua obra tem sido vista como importante por reconhecer as relações mútuas que podem ser estabelecidas entre sociedade e natureza. Por isso, para Gross (2000), Durkheim evitou com seu trabalho uma distinção rígida entre o social e o natural, nos oferecendo assim insights e uma posição sociológica pertinente para pensar a questão ambiental. Contudo, como procuraremos indicar mais adiante, a abordagem de Durkheim (1987) tende a ser mais problemática do que sugere Gross (2000), e procuraremos indicar as razões que sustentam a nossa suspeita. 3) MAX WEBER E A SOCIOLOGIA DAS RELAÇÕES DOS HOMENS COM OS ANIMAIS Com Weber a Sociologia se transformou na ciência da ação social. Uma ação social que está imbuída de significado, mas que é moldada pela ação significativa de 4 outros agentes. Enquanto que Durkheim faz referência ao mundo natural para apresentar as semelhanças entre fatos sociais e naturais, Weber se utiliza dos processos naturais para justamente ressaltar a diferença do social. Para Weber: “Nós realmente não “compreendemos” o comportamento das células, mas simplesmente reconhecemos o seu relacionamento funcional, e, baseados nele, introduzimos uma generalização” (WEBER, 1987). Na perspectiva weberiana, a principal tarefa da Sociologia seria o desvendamento desse sentido subjetivo que é dado para a ação. Assim, Weber irá definir a Sociologia como a ciência “cujo objetivo é compreender pela interpretação (deutend verstehen) a atividade social, para em seguida explicar causalmente o desenvolvimento e os efeitos dessa atividade” (Weber apud FREUND, 1987). Embora essa orientação pareça ser diferente daquela de Durkheim, que enfatizava a externalidade da ação, é importante notarmos as semelhanças que existem entre essas abordagens. Tal como Durkheim, há um elemento de exterioridade na idéia de ação social de Weber. Afinal, o sentido que está embebido na ação é moldado, ele mesmo, também pela ação significativa de outros agentes humanos. O que indica que o processo de dar sentido ao mundo não está restrito à vontade individual. A ação social difere da ação individual, pois requer uma cultura simbólica compartilhada, que impõe limites para a forma que cada agente pode dar para a sua própria ação. Da mesma forma que para Durkheim a vida social não pode ser reduzida às consciências individuais, assim é, também, para Weber. As relações sociais não podem ser reduzidas às suas partes, os indivíduos, mas representam uma realidade sui generis. Uma relação social representa para Weber uma: “situação em que duas ou mais pessoas estão empenhadas numa conduta onde cada qual leva em conta o comportamento da outra de uma maneira significativa, estando, portanto, orientada nestes termos”. Logo, a relação social consiste “inteiramente na probabilidade de que os indivíduos comportar-se-ão de uma maneira significativamente determinável” (WEBER, 1987, p. 45). O que significava também, para Weber, que a ação social estava implicada num tipo de “consentimento mútuo”. Ao contrário do que muitos poderiam pensar, Weber (1987) não restringe essa subjetividade apenas aos humanos. Seu trabalho abre um precedente para considerar tal subjetividade como algo que transcende as relações entre seres humanos e como algo que permeia também a relação entre estes e os animais. Esse é um ponto muito pouco explorado na obra de Weber e que nem mesmo tem sido considerado por aqueles que buscam avaliar sua contribuição para a Sociologia ambiental. Embora a seguinte passagem seja caracterizada por uma indeterminação, suas palavras parecem 5 indicar que uma sociologia da relação dos homens com os animais não pode ser inteiramente descartada: “Este não é também o lugar para discutir a extensão em que o comportamento dos animais torna-se subjetivamente compreensível para nós, ou o nosso para eles; uma tal compreensão é altamente incerta, e sua aplicação muito problemática. Mas até onde tal compreensão existe, seria concebível formular uma sociologia das relações do homem com os animais, quer domésticos ou selvagens. É verdade, afinal, que muitos animais “compreendem” ordens, raiva, amor, agressividade, e não reagem apenas instintivamente e mecanicamente, mas de modo conscientemente significativo e com base em experiências prévias” [grifo nosso] (WEBER, 1987, p. 26). Nessa passagem, Weber não apenas sugere a existência de uma subjetividade que pode impregnar as relações entre seres humanos e animais, como também sugere que tais relações poderiam ser objeto de investigação da própria Sociologia. Dessa forma, Weber aponta um campo de estudo para a Sociologia, que tem sido reavivado por alguns trabalhos contemporâneos. Benton (1993), por exemplo, em seu livro Natural Relations, nos informa que: “Humanos e animais se colocam em relação social um com o outro”. Isto implica, ainda segundo este autor, “que animais não-humanos são parte constitutiva das sociedades humanas” e que “qualquer especificação de sociedades como estruturas de relações sociais ou de interações deve incluir referência aos animais não-humanos enquanto ocupantes de posições sociais e em termos de relações sociais” (BENTON, 1993, p. 69) Benton (1993) é um autor que podemos associar mais ao pensamento de Marx do que de Weber. Contudo, não é difícil encontrar nessas palavras um eco do que este último autor nos diz na passagem anterior. Para Benton (1993), o reconhecimento da dimensão social dos animais é também crucial para examinar a sua posição moral e, portanto, sua condição enquanto objetos passíveis de consideração moral pelos próprios humanos5. 4) KARL MARX, TRABALHO E A TRANSFORMAÇÃO DA NATUREZA Para Marx, o conceito de trabalho tornou-se um conceito estruturador de seu pensamento e, posteriormente, central também para o próprio marxismo. A produção foi vista em sua obra como estando na origem da sociedade e uma fonte de recriação das necessidades humanas. Os homens, segundo ele, “começam a diferenciar-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de subsistência” (Marx apud GIDDENS, 1994, p. 69). Em Marx, o trabalho se tornou não só o eixo pelo qual se fundava a relação entre os homens, mas também a relação destes com a natureza. “Na 6 produção”, nos diz ele, “os homens não só actuam sobre a natureza mas também sobre os outros homens. Só podem produzir colaborando de determinada forma e procedendo a uma troca de actividades”. (Marx apud GIDDENS, 1994, p.70). Se para Weber a sociologia deveria se debruçar sobre as relações sociais num sentido genérico, o pensamento de Marx passou a dar mais relevância às relações produtivas. As relações eram vistas como centrais porque, para Marx, elas garantiam a sobrevivência física e social de culturas ao longo da história. Segundo ele, “a produção da vida material ... é... a condição fundamental de toda a história, que se tem de cumprir, hoje como há milhares de anos atrás, para que a vida humana possa manterse” (Marx apud GIDDENS, p. 69). O trabalho, portanto, nos remete às mudanças ambientais de uma forma direta. É por meio dele que os homens, ao mesmo tempo em que estabelecem relações entre si, projetam sua ação em direção à natureza. Nesse quadro, o trabalho não é apenas um fenômeno estritamente social, mas de alguma forma interliga a natureza com a condição orgânica do homem. Para Marx, todo “trabalho é, em termos fisiológicos, um dispêndio de força de trabalho humano e, na sua qualidade de trabalho humano abstrato, cria o valor dos bens” [grifo nosso] (Marx apud GIDDENS, p. 84)6. Feito esse breve exame das idéias de Durkheim, Weber e Marx, examinemos as críticas que podemos direcionar a eles. Iniciarei, primeiramente, com a obra de Durkheim, passando posteriormente para as questões envolvendo os trabalhos de Marx e Weber. 5) A CRÍTICA À SOCIOLOGIA CLÁSSICA: COERÇÃO, SENTIDO E FORÇAS PRODUTIVAS Em Understanding Classic Sociology, John Hughes nos fornece uma interpretação geralmente aceita dos fatos sociais. Hughes nos informa que os: “fatos sociais são coercitivos, isto é, eles são capazes de modelar o curso do comportamento humano, até mesmo se nós não estamos cientes de fazer isso. (...) Aceitamos facilmente a idéia que há muitos fatos naturais que limitam nossas atividades e nosso comportamento de maneira fundamental. O que estamos menos inclinados a aceitar é que podem existir fatos sociais que podem limitar nossas ações de maneira similar” (HUGUES, 1995; p. 162-3). Segundo a interpretação de Hugues (1995) nessa passagem, a Sociologia de Durkheim (1987) tenderia a se concentrar, tão somente, sobre as coerções sociais. Seria basicamente por este motivo que a Sociologia de Durkheim apresentaria sérios limites para uma Sociologia ambiental. Sua Sociologia volta-se, aparentemente, apenas 7 para as coerções sociais e tende a negligenciar aquelas de perfil material. Contudo, essa interpretação de Hughes (1995) não corresponde totalmente ao que Durkheim (1987) tem a nos dizer sobre essas questões. Como vimos anteriormente, na abordagem de Durkheim, artefatos materiais são também vistos como “fatos sociais” e, portanto, também poderiam ser vistos como uma fonte de coerção social. Primeiramente, devemos considerar que, em seu trabalho, Durkheim buscava indicar que a vida social poderia expressar forças coercitivas muito semelhantes àquelas provenientes da natureza. Portanto, se a moral era tão coercitiva quanto outros fenômenos da natureza, não faria sentido apelar para exemplos que se reportassem às coisas materiais para fundamentar a sua Sociologia, pois a coerção implicada nas regras morais, que tanto preocupou Durkheim (1987), não tinha uma forma física, mas essencialmente subjetiva7. No entanto, o problema no trabalho de Durkheim (1987) parece estar em outro ponto. Em sua obra, os artefatos não são coercitivos em razão de suas propriedades físicas, mas em razão de podermos encontrar neles as idéias e crenças que pertencem a todos os fatos morais. Isto é, artefatos materiais se mostravam coercitivos na medida em que as idéias e crenças coletivas poderiam ser vistas como “materializadas” nesses mesmos objetos. Portanto, para Durkheim (1987), o ambiente material apenas passou a exercer influência nos seus últimos trabalhos na medida em que incorporava a dimensão subjetiva associada aos fatos sociais e não por qualquer qualidade física intrínseca que poderia ser atribuída a eles. Assim, coisas materiais representavam apenas mais um meio indireto de se chegar à subjetividade humana e das coerções associadas a esta mesma subjetividade. É por isso que, quando Durkheim (1987) se refere aos artefatos como fatos sociais, irá buscar exemplos no ambiente onde o homem mais exercia a sua influência: a cidade (estradas, casas, vias de comunicação, etc). Seria, portanto, nas idéias e ações contidas em tais artefatos, mais do que em suas propriedade físicas, que a coerção se faria presente8. Durkheim (1987) não apenas estabeleceu uma relação íntima entre sociedade e natureza, mas, aparentemente, diluiu as coerções advindas da última na primeira. As coerções materiais, em seus últimos trabalhos, não são outra coisa senão uma versão “material” das próprias coerções advindas dos fatos morais. Os principais problemas com a Sociologia de Durkheim (1987) residem justamente aqui. É equivocado compreender coerções sociais e materiais como expressões de um mesmo fenômeno, pois como indica Giddens (1989): “a ‘sociedade’ não é manifestamente externa aos atores individuais exatamente no mesmo sentido que o meio lhes é externo”, de modo que o paralelo entre essas coerções é um tanto equivocado. Pois como nos diz Giddens (1989, p. 141) novamente: “a ‘faticidade’ do mundo social é, em certos 8 aspectos básicos, um fenômeno muito diferente da ‘generosidade’ da natureza” (GIDDENS, 1989, p. 141). Seguindo este raciocínio, podemos dizer que coerções materiais e sociais devem ser vistas como apresentando características distintas9. Tendo examinado o trabalho de Durkheim (1987), podemos nos voltar agora para o caso de Karl Marx. A ênfase que esse clássico da Sociologia deu às “forças produtivas” em sua capacidade de modelar a história parece que o fez desconsiderar as coerções ambientais de um modo diferente. As crises do processo de acumulação em Marx são sempre crises econômicas e sociais, não crises que advém dos possíveis limites que o meio ambiente poderia colocar para o sistema econômico. Na briga que Karl Marx estabeleceu com Thomas Malthus, Marx geralmente se apoiou num certo otimismo industrial para desfazer a contradição malthusiana entre crescimento populacional e a produção de alimentos, acusando o primeiro de ocultar a ideologia burguesa da propriedade privada. A questão da escassez representava, portanto, uma questão de poder: o domínio e o acesso aos meios de produção e de suas implicações para a distribuição da riqueza na sociedade. Se existia uma escassez, ela estava vinculada às relações de poder existentes entre as classes sociais e não às forças produtivas como tais10. No manifesto comunista, Marx praticamente faz um elogio à burguesia, por esta despertar as forças produtivas que, segundo ele, estavam até então adormecidas. Diz ele no Manifesto Comunista: “A burguesia, durante seu domínio de classe, de apenas cem anos, criou forças produtivas mais poderosas e colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto. A subjugação das forças da natureza pelo homem, a maquinaria, a aplicação da química na indústria e na agricultura, a navegação a vapor, (...) – que século anterior poderia prever que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social?” (MARX, 1987, p.108). Nessa passagem, Marx se mostra vislumbrado com as forças de produção desencadeadas pela burguesia, e tudo indica que, em seu trabalho, o que ele efetivamente queria é que esse poder do trabalho social refletido no capitalismo fosse transferido para o poder da classe trabalhadora11. Portanto, o trabalho de Marx se preocupou centralmente com a exploração humana no capitalismo e não com a exploração ecológica do planeta. O socialismo e o comunismo, nesse caso, não significariam menos, mas um aumento ainda maior das próprias forças produtivas12. No entanto, esse otimismo industrial aparentemente impregnou todos os clássicos da Sociologia. Embora a crítica de cada um deles eventualmente apontasse os limites sociais vinculados ao industrialismo, nenhum deles se concentrou sobre o potencial destrutivo desse mesmo processo em termos ambientais. Para Giddens (1991), embora Durkheim, Weber e Marx tenham previsto as conseqüências humanas 9 degradantes do industrialismo moderno, nenhum deles “chegou a prever que o desenvolvimento das “forças produtivas” teria um potencial destrutivo de larga escala em relação ao meio ambiente” (GIDDENS, 1991, p. 17). A questão das forças produtivas se tornou o principal objeto de estudos da Sociologia no século XX e, raramente, foi criticada a partir de uma perspectiva ecológica. Passaram a ser, essas mesmas forças produtivas, um tema central tanto para marxistas como para os chamados teóricos da Sociedade pós-industrial13. A Sociologia moderna, a partir da teoria marxista e da teoria da sociedade pós-industrial, não apenas atribuiu um lugar central às “forças produtivas”, mas ajudou a criar e legitimar essa mesma centralidade, contribuindo para o ethos produtivista moderno. Até o momento, de uma perspectiva ecológica, essa centralidade atribuída às forças produtivas foi vista como apresentando nenhum problema para além daquele da formação de crises econômicas, ou da intensificação da desigualdade social. Muitas críticas de sociólogos e cientistas sociais contemporâneos ao crescimento econômico se reduzem a uma questão meramente social, ou de eficiência econômica. Isso pode ser visto, por exemplo, pela ausência da questão ambiental na literatura sobre as teorias da sociedade pós-industrial14. Portanto, o problema sociológico que se coloca para a Sociologia ambiental não pode ser mais aquele colocado por Marx e nem por Aron. Hoje, aparentemente, o problema deve ser aquele proposto pelos ambientalistas: a criação de um desenvolvimento econômico ambientalmente responsável que não destrua as bases da vida do planeta15. Em Marx, a natureza tende a ser valorizada na medida em que ela passa a estar embebida nas relações de trabalho, uma vez que é o trabalho o processo a originar o valor de todas as coisas. No entanto, na modernidade, as forças produtivas se tornaram o principal meio de instrumentalização do meio ambiente. A teoria de valor de Marx, portanto, parece pressupor que uma valorização da natureza exigiria uma instrumentalização ainda maior da natureza. Caso contrário, isso implicaria reconhecer que o trabalho não é o único meio de valorização das coisas no mundo e que, portanto, sua teoria da mais valia teria que ser revista de uma forma fundamental por razão dos limites que ela apresenta quando pensamos na “valorização” ambiental. Portanto, a visão de Foster (2005) de que “a visão de mundo de Marx era profundamente – e na verdade sistematicamente – ecológica (...)” [grifo nosso] (FOSTER, 2005, p. 09) nos parece um tanto abusiva, pois isso parece indicar que há pouco no pensamento de Marx que se coloque em tensão com o pensamento ambiental contemporâneo. Sua filosofia da história com contornos evolucionistas e as implicações sobre a adaptabilidade humana que essa visão tende a gerar. Sua teoria do valor que coloca o trabalho como o único e principal meio de valorização das coisas. 10 Sua teoria da reificação que tende a desconsiderar a capacidade de agência humana e seu materialismo que, por vezes, parece recair num tipo de economicismo bastante estreito fundado nas determinações da “base estrutural”. Afinal, será que esses pontos também não fazem parte da “ecologia de Marx”? Nesse caso, ao invés de uma sistemicidade, é bem possível encontrarmos descontinuidades e incoerências em seu trabalho. Pois, como alerta Castoriadis (1982), o trabalho de Marx está “longe de possuir a simplicidade sistemática e a coerência que alguns querem atribuir-lhe”16. Desse modo, qualquer releitura da obra de Marx sob uma perspectiva ambiental terá que levar em consideração tal inconsistência. E para reconhecer essa evidência, não é necessário ser um ambientalista ou um crítico do marxismo como Castoriadis (1982) para afirmá-lo. Até mesmo um marxista ecológico como Ted Benton compartilha dessa visão ao nos dizer que: “há um hiato crucial entre as premissas materialistas de Marx e Engels na filosofia e teoria da história, de um lado, e alguns de conceitos básicos de sua teoria econômica de outro. (...) Estes conceitos econômicos básicos marcam um distanciamento do materialismo (...) Este hiato priva o pensamento econômico histórico materialista dos meios conceituais para reconhecer e explicar a crise ecológica, e assim, de fornecer um elemento chave em qualquer crítica bem fundamentada da produção capitalista” [grifo nosso] (BENTON, 1989, p.55) [tradução do autor]. Portanto, a “ecologia de Marx” a que Foster (2005) faz referência, e a sistemicidade que ela parece encarnar, tende a desaparecer no “velho Marx”, onde, justamente, sua análise mais profunda e detalhada do capitalismo foi realizada. Agora, nos voltemos para alguns problemas que surgem com a Sociologia de Weber (1987). Para isso tomarei dois trabalhos contemporâneos que fazem referência ao seu pensamento. Murphy (1994) se utiliza do conceito de racionalização de Weber para analisar a problemática ambiental contemporânea17. No âmbito técnico-científico, racionalização significa que o “desenvolvimento da ciência e da tecnologia constitui a expansão dos meios de entender e manipular a natureza”, que, por sua vez, conduz a “uma orientação intelectualizada para o mundo” (MURPHY, 1984, p. 28). Esse tipo de racionalidade se constitui num tipo de racionalidade instrumental, pois busca sempre estabelecer os melhores meios para alcançar um determinado fim. Diferente, portanto, do que Weber entendia por racionalidade substantiva, a qual estaria relacionada com a escolha dos próprios fins e resultados. Murphy (1994) sugere que o processo de racionalização não pode ser visto como um processo estático que não sofra tensões. Racionalização seria um processo que, segundo ele, “envolve escolhas e decisões, estratégias e coerções” (1994, p.41). Essas mesmas escolhas e coerções, por sua vez, 11 podem induzir, segundo ele, a uma série de irracionalidades no próprio processo de racionalização. Assim, Murphy (1994) irá nos dizer que a irracionalidade técnica só pode ser associada com as idéias de “coerções” e “limites” trazidos pelo ambientalismo moderno. Segundo ele: “Problemas ambientais começaram a estimular um crescente reconhecimento de que o objetivo do domínio da natureza e a premissa da plasticidade da relação entre humanos e seu ambiente natural são ilusões (...) Estes problemas lançaram um desafio à população para desenvolver novas concepções baseadas numa consciência das capacidades finitas do nosso planeta em sua capacidade de suportar a população humana e seus desejos de consumo” [grifo nosso] (MURPHY, 1994, p.41). A partir dessa nova percepção trazida pelo ambientalismo, Murphy (1995) então nos diz que a “plasticidade assumida entre o social e o natural tem sido uma daquelas premissas irracionais sustentando a busca do objetivo irracional do domínio da natureza através do processo de racionalização formal” (1994, p. 42). Antes de retornar a esse argumento de Murphy (1995), gostaria de contrastálo muito rapidamente com os argumentos de Macnaghten e Urry (1998). Embora esses autores não façam referência direta ao trabalho de Weber, sua proposta de Sociologia ambiental lembra em muito as idéias desse pensador. Se Weber enfatizou o sentido da ação, a qual também envolve uma dimensão cognitiva, Macnaghten e Urry (1998) se concentram no conhecimento ambiental. Essa proposta dos autores vem acompanhada de várias implicações importantes. Com essa proposta, esses autores notam que os programas de pesquisa atuais trabalham a partir de “suposições altamente modernistas com relação à fisicalidade do mundo” (MACNAGHTEN e URRY, 1998). Tais programas, segundo eles, trabalham com o pressuposto de que a natureza tende a colocar limites para as ações e aspirações humanas. Por todas essas razões, eles sugerem que a Sociologia ambiental deveria promover a desconstrução das “técnicas e metodologias que usualmente “fixam” a agenda ambiental” (1998, p. 208). Com isso, poder-se-ia descobrir os “pressupostos sociais” que estão incluídos na agenda ambiental contemporânea. Quando comparamos essa proposta de Macnaghten e Urry (1998) com aquela de Murphy (1994), surge uma aparente contradição. Ambos os trabalhos partem de pressupostos que, se não nos remetem diretamente à obra de Weber (1987), lembram em muito as idéias desse autor. No entanto, ambos chegam a conclusões bastante diferentes sobre a crítica ambiental que a Sociologia pode produzir. Em Murphy (1994), o reconhecimento dos limites e coerções ambientais torna-se um eixo crucial para examinar a irracionalidade do desenvolvimento tecno-científico e daquelas 12 premissas irracionais que, segundo ele, sustentam “a busca do objetivo irracional do domínio da natureza através do processo de racionalização formal” (MURPHY, 1994, p. 42). Por outro lado, Macnaghten e Urry (1998), por sua vez, desejam que coloquemos sob suspeição justamente esses limites que sustentam essa crítica à irracionalidade. Ambos fazem isso, inspirando-se em Weber18. No entanto, essa visão não deixa de nos trazer problemas, pois se os limites e coerções da natureza são literalmente desconsiderados, ou desconstruídos, torna-se difícil saber como a crítica à irracionalidade tecno-científica proposta por Murphy (1994) poderá ser realizada de alguma forma, uma vez que tal crítica está calcada na idéia da fragilidade e limites do próprio mundo natural. CONSIDERAÇÕES FINAIS “Clássico” é um termo restrito às ciências sociais e tende a desempenhar um papel importante na forma de teorizar e pensar a pesquisa social. O status privilegiado de que autores como Marx, Durkheim e Weber gozam nas Ciências Sociais significa que, aqueles que conduzem os estudos nessas áreas acreditam que podemos aprender a teorizar sobre as sociedades humanas, usando os textos desses autores (ALEXANDER, 1999). No presente trabalho, nos concentramos em algumas idéias centrais dos clássicos da Sociologia e de suas implicações para o debate que vem ocorrendo na Sociologia ambiental. O que esse trabalho buscou fazer foi justamente tentar propiciar um exame dos limites que são específicos a cada um deles, ao mesmo tempo em que procurou examinar sua possível contribuição para a Sociologia ambiental. A análise parece confirmar a nossa tese inicial. De um lado, parece ser possível encontrar nos clássicos um conjunto de idéias e argumentos que podem conduzir a uma reflexão frutífera da relação entre sociedade e natureza, mas por outro lado, parecem existir também limites claros para a forma como estes autores acabaram por abordar o problema. Isso talvez possa apontar que, mais do que um pai fundador, a Sociologia ambiental poderá se inspirar na contribuição de cada um deles, até o ponto em que isso não se mostre incompatível e impossível. A teoria social contemporânea, na qual a teoria da estruturação de Anthony Giddens (1989) pode ser vista como um exemplo, tem se apresentado a partir de uma postura eclética com relação aos clássicos da Sociologia e é possível que tal experiência, portanto, sirva de aprendizado para o desenvolvimento teórico da própria Sociologia ambiental no futuro. 13 BIBLIOGRAFIA ALEXANDER, Jefrey. A importância dos clássicos. In: A. Giddens e J. H. Turner. Teoria social hoje. São Paulo: Editora Unesp, 1999. BARRY, John. Environment and Social Theory. New York: Routledge ,1999 BELL, Daniel. O advento da sociedade pós-Industrial. São Paulo: Cultrix, 1973. BENTON, Ted. Marxism and natural limits: an ecological critique and reconstruction”, New Left Review, 178, 1989. BENTON, Ted. Social relations. Ecology, animal rights & social justice. London: Verso, 1993. BENTON, Ted. Philosophical Foudations of the Three Sociologies. London: Routledge, 1977. CASTORIADIS, Cornelius. 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Assim, ao considerar tal possibilidade, ele se faz o seguinte questionamento: “O aspecto triste que a natureza então adquire não terá como efeito predispor o indivíduo à divagação, acordar paixões tristes, mergulhá-lo na melancolia?” (DURKHEIM, 1996). No entanto, ele notará que as regularidades nas taxas de suicídio não estavam associadas ao inverno e outono, as estações que mais apresentavam o aspecto “melancólico e triste” da natureza a que ele faz referência. Para Durkheim: “Não é nem no inverno nem no Outono que o suicídio atinge o seu maximum, mas durante a primavera quando a natureza se torna mais amena e a temperatura é mais doce” (1996, p. 82). Mas nesse caso, a coincidência entre as taxas de suicídio e as estações mais quentes não estava associada às possíveis propriedades mágicas da temperatura, mas relacionadas com o fato de ser o verão o “momento em que a vida social adquire mais efervescência” (DURKHEIM, 1996: 96). 5 Esses argumentos ganham uma força com os novos estudos e pesquisas das ciências biológicas, que apontam que a vida animal é muito mais complexa do que a ciência social do século XIX veio a pensar. Como nos diz Wolfe (1990): “algumas das hipóteses que sustentavam a singularidade humana e que foram desenvolvidas pelos teóricos sociais do século XIX não são, da maneira como foram expressas, corretas: não humanos podem fazer um número surpreendente de coisas que humanos podem fazer, embora não as façam tão bem” (WOLFE, 1990, p. 617). Poderíamos, portanto, tornar nossas as palavras de Barry (1999) quando este argumenta que “poder-se-ia sugerir que a diferença entre humanos e animais não-humanos é uma diferença em tipo antes do que de grau”. 6 Em suas primeiras obras, Marx teceu muitos dos pressupostos que iriam formar as teses principais do materialismo que, hoje, inspira a tentativa de construção de uma teoria social ecológica. Para isso, ver, por exemplo, Dickens (1992). Em A Ideologia Alemã, Marx nos diz, por exemplo, que “O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza” (MARX, 1996, p. 27). Passagens que se aproximam desta visão também podem ser encontradas nos Manuscritos Econômico-Filosóficos e na Crítica do Programa de Ghota. Nestas obras a relação entre sociedade e natureza é estabelecida de tal forma, que o materialismo histórico se aproxima, segundo Benton (1989, p. 54), de algo muito próximo de uma “ecologia aplicada às populações humanas”. 7 No segundo prefácio de As Regras do Método Sociológico, Durkheim salienta, por exemplo, que a Sociologia “não podia nascer senão no dia em que se pressentiu que os fenômenos sociais, não sendo materiais, não deixavam por isso de ser coisas reais”. [grifo nosso] (DURKHEIM, 1987, p. XXXIII). Coerções sociais, portanto, permitiam dar uma autonomia ao objeto da Sociologia, que as coerções materiais não possibilitariam, pois, essas últimas, embora pudessem ser reflexo da interferência e dos valores humanos, não poderiam ser vistas como inteiramente humanas da mesma forma que as regras morais. 8 Isso se evidencia quando Durkheim (1987, p. 10) nos informa que o efeito coercitivo das vias de comunicação advém do “leito regular das trocas” ou que o “tipo de habitação a nós imposto não é senão a maneira pela qual todo o mundo, em nosso redor – e em parte as gerações anteriores – se acostumaram a construir as casas” (1987, p.10). Em nenhum desses exemplos Durkheim (1987) se refere às coerções, associando-as às propriedades físicas intrínsecas dos artefatos materiais. As coerções são vistas como sendo um resultado de “escolhas” e “modos habituais” de se viver. Isso não significa que, o que Durkheim (1987) tenha dito sobre estes pontos, não seja importante, mas nos chama a atenção para a forma como Durkheim (1987) veio a interpretar a coerção advinda do mundo material. 9 A princípio, a visão de Durkheim (1987), parece apresentar limites para uma abordagem histórica e poderia se mostrar restritiva para analisar as próprias coerções sociais. Na análise que Ponting (1995) faz dos grupos de caçadores e coletores do passado ele assinala que, para resolver a tensão existente entre densidade demográfica e o acesso aos recursos, esses grupos buscavam de alguma forma controlar o número de pessoas de modo a não perturbar os 15 ecossistemas que esses mesmos grupos utilizavam. Esse controle, segundo ele, foi realizado através de uma série de procedimentos sociais aceitos por todos. Dentre essas medidas estava a matança selecionada de determinadas categorias sociais, as quais incluíam crianças, velhos ou pessoas com alguma incapacidade física. Assim, por mais que certos grupos de caçadores e coletores desejassem aumentar sua população, não poderiam fazer isso em razão das condições ambientais que estavam dadas. O que esse exemplo nos esclarece é que certas regras sociais assimiladas por grupos humanos não podem ser dissociadas da interação que estes mesmos grupos estabelecem com o seu meio físico. Pois é em base a essa relação que certas regras (ex: infanticídio) tomam parte da vida social de um grupo. 10 Para uma análise do embate entre Marx e Malthus, ver Benton (1989). 11 A crítica à lógica produtivista vinculada ao pensamento de Marx não tem emergido apenas de pensadores ambientalistas, mas pode ser encontrada até mesmo em pensadores críticos como Kurz (1993). 12 A passagem do capitalismo ao socialismo foi uma das questões mais efervescentes na literatura marxista. A visão mais comum que se estabeleceu no marxismo contemporâneo seguiu a um determinismo econômico que pode ser encontrado no próprio trabalho de Marx. Nessa visão, o socialismo passou a ser considerado como representando um estágio produtivo mais avançado do que o próprio capitalismo. Contudo, hoje, os equívocos dessa visão se tornaram evidentes. Como indica Francisco (1988), se apoiando nas próprias palavras de Marx, o capitalismo “não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção” (Marx apud FRANCISCO, 1988, p.227). Logo, parece não existir outro sistema econômico como o capitalismo que promova de forma tão vigorosa e intensa as forças produtivas. O que indica, por sua vez, que a irracionalidade desse sistema não se encontra no ponto onde os marxistas focaram usualmente sua atenção. Pois, em termos de acumulação econômica, o capitalismo se mostra extremamente racional. Nesse caso, é possível, então, que a irracionalidade desse sistema se encontre não em suas forças produtivas, mas em suas forças destrutivas. Segundo Francisco: “se produce en el capitalismo un segundo fenómeno ausente en los anteriores “metabolismos” hombre-naturaleza, a saber, que aquí el desarrollo productivo va íntimamente ligado a la creación de fuerzas destructivas del entorno natural: destrucción de ecosistemas y agotamiento de recursos. Y en este sentido, el capitalismo es máximamente irracional” (1988, p.226). Um exame sobre as tensões que emergem entre socialismo e ambientalismo pode ser encontrado em Dobson (1990). 13 Raymond Aron, um dos principais sociólogos da França no século XX, e um dos precursores da teoria da sociedade pós-industrial, escreveu em seu livro Leituras sobre a Sociedade Industrial o quanto suas idéias estavam próximas daquelas de Marx. Para Raymond Aron, o principal problema sociológico que estruturou a sua obra foi o problema da acumulação de Capital “proposto por Marx e pelo marxismo”. Para tratar desse tema, Aron passou a situar o tema do “desenvolvimento econômico como assunto central para sua investigação”, usando, para isso, “a terminologia e os conceitos da economia moderna (...)”(Aron apud BELL, 1973). 14 Na obra de Krisan Kumar (1997), onde se busca justamente fazer uma avaliação abrangente das teorias da sociedade pós-industrial, não iremos encontrar nenhum esforço teórico de relacionar as tendências industriais modernas com a própria crise ambiental. Uma das poucas abordagens que vem buscando fazer isso atualmente nas Ciências Sociais, tomando o industrialismo como um eixo conceitual para a explicação dessa crise, é a teoria da modernização ecológica. Sobre este ponto, ver Lenzi (2006). 15 Sobre a influência do crescimento econômico na criação da crise ecológica contemporânea, ver Jacobs (1991). 16 Essa crítica também é desenvolvida por Giddens (1995) em A Contemporary Critique of Historical Materialism. 17 O próprio Murphy (1994) reconhece que Weber não tratou claramente da questão ambiental, mas nos diz, que, mesmo assim, o “trabalho de Max Weber providencia uma estrutura importante para o exame da relação entre ação social e o processo da natureza, uma relação que o próprio Weber não examinou em qualquer detalhe” (MURPHY, 1994, p. X) 18 Isso não implica que Macnaghten e Urry (1998, p. 209) rejeitem a materialidade da vida social. Segundo eles, ”em contraste com tal agenda, e sem desconsiderar a realidade de uma certa fisicalidade do mundo, natureza talvez não seja apenas limitante, mas também capacitadora” [grido nosso] (MACNAGHTEN e URRY; 1998, p. 209).