NIETZSCHE E DOSTOIÉVSKI: CONTRAPOSIÇÕES E

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NIETZSCHE E DOSTOIÉVSKI: CONTRAPOSIÇÕES E APROXIMAÇÕES PARA
ELUCIDAR O QUE SIGNIFICA ESTAR PARA ALÉM DO BEM E DO MAL
Paulo Cesar Jakimiu Sabino
Unespar campus União da Vitória – PIBIC/Fundação Araucária
Samon Noyama
[email protected]
RESUMO
O presente trabalho busca investigar as possíveis aproximações entre o pensamento de
Nietzsche e a literatura de Doistoiévski – particularmente a obra Crime e Castigo. Para tanto,
focar-nos-emos em algumas noções centrais como super-homem, homem extraordinário,
piolho e decadente. A intenção seria demonstrar que, embora Nietzsche reconhece o russo
como um grande psicólogo e provavelmente este lhe tenha fornecido muitas inspirações, a
intenção acaba sendo outra e uma aproximação entre as noções de superação do homem – que
acarreta na superação de valores dicotômicos – pode ser temerária. Oferecemos assim uma
interpretação distinta visando demonstrar que a contraposição inicial entre decadente e piolho
pode desaparecer e, posteriormente, elucidar que no romance russo temos a descrição não da
noção de homem extraordinário, mas sim do decadente. Para tanto, tomaremos alguns
cuidados referentes às noções de estilo e como cada um procede em seus pensamentos, pois
acreditamos que nisso reside a aproximação entre ambos – a estilística acaba permitindo uma
análise profunda e consistente do elemento humano no âmbito social. A questão trata-se de
esclarecer e demonstrar que a superação de valores não seria, necessariamente, algo negativo,
mas uma espécie de condição para transformações que podem acarretar em um
desenvolvimento da cultura que, consequentemente, ultrapassa a moral estabelecida pelos
valores presentes no ocidente e que, ainda hoje, são determinantes para questões politicas e
sociais.
Palavras-chave: Dostoiévski; além do bem e do mal; décadence; ética.
Associar o pensamento de Dostoievski ao de Nietzsche não é algo incomum. O
próprio filósofo afirma ter lido Dostoievski e ter encontrado nele um profundo psicólogo.
Contudo, há uma dificuldade em saber quais teriam sido as obras lidas. O Idiota ou Memorias
do Subsolo podem ser dadas como certas, mas da obra em questão do autor russo que
tratamos aqui, Crime e Castigo, não podemos dizer o mesmo. Existe uma “menção” em
Crepúsculo dos Ídolos (Cf. NIETZSCHE, 2010a, p.95) e, claro, a ligação entre homem
extraordinário e super-homem. Nesse ponto precisamente gostaríamos de focar. Muitos são os
que aproximam ambas as ideias, porém creio que uma dissociação não parece absurda – não
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negando proximidades, a questão do estilo é o que nos permite uma maior segurança nesse
aspecto e, para tanto, gostaríamos de realizar dois enfoques no que diz respeito ao estilo que
diz respeito ao caráter interpretativo do texto e a criação e personificação de pensamentos.
Sendo assim, embora muitos aspectos pudessem ser analisados – como o momento de
cada autor em seus espaços – a estilística pode fornecer algumas possibilidades de
comparações. Mikhail Bakhtin na obra Problemas da poética de Dostoievski acaba atribuindo
ao escritor a noção de polifonia, para ele “Dostoievski é o criador do romance polifônico”
(BAKHTIN, 2002, p.05, grifo do autor). Uma qualidade importante desse tipo de romance se
encontra na caracterização do personagem/herói:
A voz do herói sobre si mesmo e o mundo tão plena como a palavra comum do
autor; não esta subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas
características mas tampouco serve de interprete da voz do autor. Ela possui
independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra
do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de
outros heróis. (Ibidem, p.05, grifo do autor).
Dostoievski permite que a personagem em seu romance não represente apenas o
pensamento do autor, atribuindo um sentido único ao texto onde a finalidade e a interpretação
acaba sendo encaminhada para determinada perspectiva. Nietzsche, por sua vez, permite, em
seus textos, interpretações diversificadas favorecendo ao que ele chama de perspectivismo e
anuncia na terceira dissertação da Genealogia da Moral onde expõe que não devemos
eliminar a vontade inteiramente e suspender os afetos na busca de conhecer algo (Cf.
NIETZSCHE, 2010b, p.101).
Claro que se tratando de uma questão de estilo o perspectivismo não seria a única
definição a ser atribuída a Nietzsche, entretanto, é essa característica que permitiu ao autor
sua pluralidade – os aforismos, a prosa, as máximas, os poemas, etc. – e, consequentemente,
chegar ao mesmo “fim” que o romance polifônico: a miscelânea de sentidos. A leitura de
Nietzsche e Dostoiévski não acarreta em uma resposta meramente racional/intelectual de seu
autor, mas diríamos que fisiológica, isto é, o despertar de curiosos sentimentos que são
permitidos a cada um, sem que os mesmos limitem a interpretação, mas ao contrario, a
enriqueçam. Nesse aspecto existem dois pontos a serem considerados: o primeiro diz respeito
à questão dialógica na obra Crime e Castigo, pois segundo Bakhtin esta é a polifonia no
romance dostoievskiano. A dialética que se constrói no livro em questão acaba sendo muito
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diferente de uma dialética socrática, por exemplo, onde temos perguntas e refutações para se
argumentar sobre determinado ponto de vista. Os diálogos entre Porfiri e Raskólnikov são
exemplos claros disso. O policial Porfiri, longe de querer obter apenas uma confissão, brinca,
joga, tortura a mente de Raskólnikov. Mas esses traços de embate psicológico não acontece
dentro do âmbito comum da psicologia. O que nos leva ao segundo ponto: a psicologia no
autor russo. Ora, pode parecer estranho, mas embora Nietzsche considere o autor um
psicólogo, o mesmo não se considerava como tal, isso porque se afasta das maneiras comuns
cujas qual a psicologia trabalhava. Ao começar por não reduzir a psicologia à mera fisiologia
– não podia conceber a coisificação da alma no homem que a mesma estabelecia1. Embora
esse possa parecer um ponto de distanciamento entre os dois autores, na verdade não é.
Ocorre que também Nietzsche criticava a psicologia de sua época por motivos peculiares e, do
mesmo modo, elabora sua própria interpretação da área, sendo que não a desvincula da moral
e da história – e isso será o que lhe permitira, posteriormente, elaborar sua crítica genealógica
dos valores. Não coisifica o homem, pois entende que em diferentes épocas, em diferentes
morais, existiram diferentes tipos de homens, a coisificação seria uma redução à mera unidade
do humano.
Embora esse caráter interpretativo permita uma aproximação sem igual dos dois
autores, o próximo acaba sendo mais peculiar e complexo. Trata-se da criação de personagens
em Dostoievski e, no caso de Nietzsche, algo que exige cautela para que qualquer análise não
se torne temerária: a tipologia.
Para Rogerio Antonio Lopes a construção de tipos ocorre através de uma heurística e
acrescenta que não devemos associar a noção de personalidade ao debate, pois não são as
determinações psicológicas de indivíduos que interessa nesse sentido, mas a configuração de
um tipo (2006, p.133).
Fazer uma análise de tipos como a do homem decadente acaba sendo mais confortável
nesse aspecto, pois poderíamos partir de um processo que decifre traços constituídos na nossa
cultura ocidental – algo que não poderia ser feito ao explorar, por exemplo, o super-homem,
1
Sobre esse respeito Cf. Bakhtin (2002, p.61-2).
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pois o mesmo trata-se não de um tipo histórico, mas de uma noção a ser perseguida2.
Identificar os tipos históricos que poderiam vir a ser o super-homem acaba sendo tarefa mais
árdua e, por esse motivo, a escolha de contrapor o pensamento dos autores a partir das figuras
antagônicas da noção central que aparece nas obras de cada um.
Não há possibilidades de identificar o tipo de Dostoiévski – isto é, do autor – a partir
de suas obras, qualquer ação heurística nesse sentido estaria fadada ao fracasso, pois o mesmo
não expõe em sua obra um sentido único – por esse motivo enfatizamos a polifonia no inicio
do trabalho. Já Nietzsche não cria personagens – com exceção do Zaratustra que iremos
retomar adiante –, na construção de tipos identifica-se com um autor literário de outro modo,
justamente por buscar a personificação de ideias. Por exemplo, determinados traços de
personagens acabam se repetindo nos romances russos: caso da figura do idiota que aparece
na obra de mesmo nome personificado pelo príncipe Míchkin e em Crime e Castigo pela
personagem Sonia. Logo, embora o método de construção de tipos possa – e nem deveria –
não serem os mesmos, ambos os autores conseguem realizar tal constituição. Tendo esses
elementos em mente podemos partir para a questão fundamental: a contraposição entre
Nietzsche e Dostoiévski existe na medida em que ambos retratam o homem extraordinário e o
super-homem, contudo, essa contraposição pode ser mais bem esclarecida pelas noções de
piolho e decadente – a décadence aparece nas obras do período final de Nietzsche,
principalmente em O Anticristo e Crepúsculo dos Ídolos.
Trata-se de um conceito muito vasto e precisaria ser explorado com cuidado,
limitamo-nos aqui, contudo, no fator fisiológico que o mesmo representa e sua relação com a
concepção moralista negativa da vida: a décadence representa um sintoma de vida que declina
(Cf. NIETZSCHE, 2010a, p.29). Em O Antricristo essa noção se liga ao homem decadente
por excelência: o cristão/moderno3. Vida declinante seria a negação da realidade – eis que
surge a dicotomia de mundos – e cujo quais valores provém. O desprezo pelo corpo leva a
aceitação desse mundo dualístico, a ignorância em relação ao modo como os sentimentos e
pensamentos – por conseguinte os ideais e os valores – são consequências de um estado
2
Embora, nesses casos, poderia ser dito que tais figuras que personificam o super-homem, ou mesmo o homem
extraordinário, existiram. Dostoievski, por exemplo, recorre ao exemplo de Napoleão (Cf. DOSTOIÉVSKI,
2004, p.269).
3
A esse respeito Cf. GIACOIA JR (1994, p.01-32).
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psíquico e físico. Por esse motivo podemos pensar no decadente como o oposto ao superhomem; em Assim Falou Zaratustra se lê: “O super-homem é o sentido da terra. [...] Eu vos
imploro, irmãos, permanecei fieis a terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças
supraterrenas! São envenenadores, saibam eles ou não” (Idem, 2011, p.14, grifo do autor). A
decadência na cultura institui tábuas de valores que precisam ser superadas.
Por fim a grande questão entre uma análise comparada do piolho e do decadente.
Enquanto esse segundo aparece muito bem elaborado, sendo uma tipologia de importância
central nas obras do ultimo período, o piolho em Crime e Castigo aparece, aparentemente, de
modo pouco efetivo e trabalhado, resumindo-se a um ser insignificante – ordinário – que não
favorece a humanidade, mas que não pode ficar no caminho dos homens extraordinários, e,
sobre tal justificativa, Raskólnikov mata a velhota apenas para saber se era ou não esse tal
piolho, como esclarece no dialogo com Sônia onde expõe seu crime, admitindo assim ser um
piolho mesmo tendo matado, o mais instigante, a confissão que faz: “Foi a mim que matei,
não a velhota. No fim das contas eu matei simultaneamente a mim mesmo, para sempre!...”
(DOISTOIÉVSKI, 2004, p.428). Esse seria o ponto a ser notado na obra. O piolho, ao ser
admitido por Raskólnikov, aparece como aquele que não consegue agir e suportar a
responsabilidade como agente, foi o que ocorrera com o herói. Ao admitir que matou a si
mesmo na ocasião ele nos remonta a segunda dissertação da Genealogia: o castigo desperta
no criminoso o sentimento de culpa onde se dá a reação psíquica que Nietzsche chama de má
consciência ou remorso (Cf. NIETZSCHE, 2010b, p.64). O criminoso então reclama o castigo
para si moralmente, não como punição física4, mas há um tormento psíquico. Ora, o piolho
que aparentemente não aparece bem desenvolvido na obra acaba por se tornar o aspecto mais
interessante, e, embora tenhamos sugerido uma interpretação antagônica, agora queremos
sugerir que fazendo tal contraposição podemos perceber que o piolho e o decadente acabam
se tornando dois tipos muito similares. Finalmente, podemos agora chegar à conclusão de
nossa interpretação: o que aparece na obra Crime e Castigo mais do que a ideia de homem
extraordinário é a ideia de décadence nietzschiana. Raskólnikov não consegue nos apresentar
uma ideia de extraordinário, na verdade, tal ideia que parece ser o motor da obra acaba sendo
pouco exposta nas linhas do romance; diferente da ideia de um ser psicologicamente
4
Interessante Cf. a nota de Paulo Bezerra na edição da editora 34 na referente passagem onde o tradutor cita uma
anotação de Dostoiévski sobre o que fora citado.
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atormentado, degenerado remoído, culpado, pecador, apavorado que é levado a matar, como
aparece na figura do herói. Desse modo, sugerir aproximação entre o super-homem
nietzschiano e o homem extraordinário é temerária e talvez até mesmo ingênua. Ora,
Raskólnikov apenas apresenta o artigo com tal ideia, mas ele mesmo não personifica essa
noção desenvolvida na obra. Falando de personagens, a personagem que personifica essa ideia
e que lhe seria permitido agir para além do bem e do mal na obra de Nietzsche é Zaratustra. O
herói russo não passa de um criminoso pálido tal como esboçado na passagem de mesmo
nome no livro Assim falou Zaratustra: “Ele era da mesma altura de seu ato, quando o
realizou; mas não lhe suportou a imagem depois de realizado” (Idem, 2011, p.38)5.
O individualismo que remonta ao herói de Dostoiévski acaba por ser distinto do
pensamento desenvolvido por Nietzsche. Não queremos sugerir aqui uma má intenção do
autor russo, mas sim intenções diferentes e que nos impedem de associar os dois dentro do
contexto de além do bem e do mal, pois esse agir visa um fortalecimento da cultura e não um
individualismo radical – embora o individualismo e mesmo o egoísmo sejam estimados por
Nietzsche. Zaratustra, por exemplo, busca companheiros para ensinar o super-homem e
afasta-los do rebanho (Cf. Ibidem, p.23). Outros que personificam a noção de super-homem
são os filósofos vindouros que aparecem na seção Nós, eruditos de Além do bem e do mal (Cf.
Idem, p.105-123). Esses, por sua vez, tem a responsabilidade de criar valores, pois isso seria o
que representa a superação da dicotomia, a criação de valores, estar para além de qualquer
moral. Busca-se assim o fortalecimento da cultura, pois a filosofia de Nietzsche, como ele
mesmo a define, não visa o individualismo, mas a hierarquia: quem seria senhor e quem seria
escravo – mas que se entenda isso referente aos valores6.
A ideia de um homem que supere a sua condição normal é algo que estava muito em
voga no século XIX. Ambos os autores fizeram sua interpretação desse momento. Estar para
além do bem e do mal representa não mero individualismo radical, mas um egoísmo que
acarreta no homem disposto a suportar tal responsabilidade e criar valores, pois são esses que
modificam a cultura. Em ambos os autores, contudo, a diversidade e mesmo as contradições
de suas posturas, mesclam no leitor sentimentos diversos. Não temos em nenhuma obra um
5
Ideia já desenvolvida por Anton Uhl, por exemplo, Cf. UHL (1981, p.43-55).
Anotação de um fragmento póstumo do ultimo período 7 [6] intitulado os bons (Cf. NIETZSCHE, 2002, p.1178).
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sistema bem acabado que nos direcione para um fim determinado, respondendo os “comos” e
“porquês” de um fortalecimento da cultura – há mais ênfase em um diagnostico cultural e
civilizatório. A superação e o diagnóstico desses valores não significam uma deturpação da
vida social, onde a crueldade imperaria, mas sim uma nova postura não repressora, mas que
compreende o animal – cruel – homem e que permita mudar a condição da vida ocidental.
Referências
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 3ª ed. Tradução notas e prefacio de
Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
DOSTOIÉVSKI, F. Crime e Castigo. 4ª ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2004.
GIACOIA JR, O. O Anticristo e o romance russo. Primeira Versão, Campinas, n. 55, p.0132, jul. 1994.
LOPES, R. A. Elementos de Retorica em Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2006.
NETZSCHE, F. Genealogia da Moral. 1ª ed. Tradução notas e posfácio de Paulo Cesar de
Souza São Paulo: Companhia de Bolso, 2010b.
____________. Além do bem e do mal. 2ª ed. Tradução notas e posfácio de Paulo Cesar de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
____________. Assim falou Zaratustra. 1ª ed. Tradução notas e posfácio de Paulo Cesar de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
____________. Crepúsculo dos Ídolos. 1ª ed. Tradução notas e posfácio de Paulo Cesar de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010a.
____________. Fragmentos finais. Seleção tradução e prefácio de Flavio Kothe. Brasília:
UnB, 2002.
UHL, A. Dor por Deus e dor pelo homem In: PENZO, G. et al. Nietzsche e o cristianismo.
Petrópolis: Vozes, 1981.
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