A POLÍTICA: QUESTÃO TÉCNICA OU PROBLEMA MORAL

Propaganda
A POLÍTICA:
QUESTÃO TÉCNICA
OU PROBLEMA MORAL?
ressurreição de uma questão nos rumos
do estado contemporâneo
Leno Francisco Danner1
Resumo: O presente texto objetiva refletir, em primeiro lugar, sobre a mudança
paradigmática que se dá no pensamento e na realpolitik contemporâneos e, em
segundo lugar, tendo presente esta mudança, ocupa-se da questão do Estado de
bem-estar social, a partir da posição de autores como Hayek, Friedman e Nozick, de um lado, e Rawls e Habermas, de outro. E, ao realizar estas reflexões,
parte da abordagem moderna acerca da questão do Estado e da política para
mostrar como a questão do horizonte do Estado e do campo do político apresentam uma continuidade nos autores citados.
Palavras-Chave: Estado de Bem-Estar Social. Política. Justiça.
No que se segue gostaria de refletir sobre a formulação moderna – mais
especificamente de Hobbes e Locke, de um lado, e de Kant e Hegel, de outro
– no que diz respeito à compreensão do conceito de política, o que tem por
conseqüência uma determinada maneira de se conceber o Estado, a justiça e o
1
Doutorando em filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 91
91
16/4/2009 10:42:29
social. E refletir sobre elas ressaltando a especificidade de cada fundamentação,
porque penso que esta questão é reafirmada contemporaneamente em autores
como Friedrich Hayek, Milton Friedman e Robert Nozick, de um lado, e John
Rawls e Jürgen Habermas, de outro.
Trata-se, então, de ver em que medida, ainda que de maneira geral, primeiro em cada autor e, em segundo lugar, em nosso contexto, cada compreensão e mesmo fundamentação do Estado converge para – e dá origem a – uma
determinada maneira de conceber as relações sociais, a atividade econômica
e as responsabilidades que o Estado tem para com os indivíduos e para com a
sociedade, e mesmo sobre o papel do Estado, seu âmbito de ação legítima e suas
finalidades. Vamos às reflexões.
1. A compreensão da política: uma questão dos modernos
A tradição da ciência política clássica, que se inicia com Maquiavel
(1469-1527) e que se desenvolve com Hobbes (1588-1679), com Locke (16321704) e com Montesquieu (1688-1755), entende a política como uma técnica de conquista e de manutenção do poder (Cf. MAQUIAVEL, 2001, p. 4347), como uma técnica de administração e de regulação individual e social
(HOBBES, 1983, p. 103-106; LOCKE, 2005, p. 08-36). Por isso, fundamentalmente, o Estado adquire uma função policial, mas também uma função formativa, talvez até – mesmo correndo o risco de se ser anacrônico – ideológica:
sua função é manter o controle estatal e a confiança das massas (Maquiavel)
ou defender a propriedade e garantir a estabilidade social (Hobbes e Locke).
Já Kant (1724-1804), e depois Hegel (1770-1831), a entendem como um problema moral: o primeiro no sentido de que o objetivo da política é a realização
de um ideal moral, política como pedagogia (voltada sempre à formação de
um determinado tipo de homem e à instauração de um determinado tipo de
sociabilidade, por assim dizer); o segundo no sentido de entender o Estado
como totalidade ética e, portanto, no sentido de conceber a política e o campo
do político ligados a um ethos que não poderia ser reduzido à mera técnica de
regulação social (nesse caso, o fundamento da política é o ethos do povo em
questão). Hegel estabelece a precedência ontológica do social ao individual, o
que equivale a dizer que o indivíduo só pode ser entendido enquanto tal na sociabilidade – trata-se de uma tentativa de integração do individual e do social.
92
filosofazer_33.indd 92
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:29
No caso de Hobbes e de Locke, para o que aqui me interessa, convém
perceber a especificidade com que fundamentam a sociedade política, porque
ali se desenha uma compreensão do social, do Estado e mesmo da justiça que,
de uma ou de outra maneira, é fundamental no que diz respeito aos rumos do
pensamento político posterior. Isso porque, contrariamente à tradição do pensamento greco-latina e medieval, que estabelecia a precedência ontológica
do social ao indivíduo (ou do todo às partes), Hobbes e Locke estabelecem a
precedência ontológica do indivíduo à sociedade. A formulação hobbesianolockeana do estado de natureza tem justamente por objetivo explicitar a idéia de
que, antes da fundação da sociedade, existiam os indivíduos enquanto mônadas
(ou vivendo por si mesmos, bastando-se a si mesmos), cada um buscando seu
interesse pessoal, sendo detentor de um determinado status quo. Ora, em tal
caso, o objetivo que justifica ou que exige a instauração da sociedade é simplesmente garantir a manutenção daquele status quo prévio, disso que Locke chama
propriedade (vida, liberdade e bens), propriedade que, sem a regulação estatal,
sem a regulação legal (por outras palavras, sem a força cingida à categoria do
direito) não estaria garantida. Então, percebam, desenha-se, com o tipo de fundamentação da sociedade política por eles (Hobbes e Locke) estabelecida (precedência ontológica do indivíduo à sociedade) uma determinada compreensão
da política (como uma técnica de regulação e de administração individual e
social), do Estado (entendido como pura força elevada à categoria de direito e,
portanto, como força legítima), do social (entendido como relação puramente
técnica entre mônadas, entre indivíduos que se bastam a si mesmos, simbolizada pelo contrato) e, surpreendentemente, da justiça (como justiça punitiva).
Trata-se, em última instância, da afirmação de que a política não é um problema moral e, nesse sentido, de uma redução da questão da justiça a uma questão, por assim dizer, de “caso de polícia”, na exata medida em que o objetivo do
Estado está absolutamente claro: defender o status quo adquirido (o contrato),
controlar as massas. Essa idéia de política como pura técnica de regulação e
de administração individual e social é levada à radicalização pelo positivismo,
que concebia a sociologia como uma física social (portanto, como uma técnica
de objetivação das leis que regulam os fenômenos sociais) e que, além disso,
estabelecia a ditadura dos intelectuais (que tinham a prerrogativa no que diz
respeito ao poder espiritual) e dos industriais (que tinham a prerrogativa no que
diz respeito ao poder temporal) como a única forma legítima de governo.
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 93
93
16/4/2009 10:42:29
Há outro ponto em Hobbes e Locke que é importante para definir sua
compreensão das relações sociais e, por conseguinte, do tamanho e dos fins do
Estado. Trata-se da importantíssima idéia de um caráter eminentemente privado
tanto da propriedade quanto da relação de apropriação-expropriação da riqueza social, dos bens sociais. Quer dizer, há, nesses autores, uma negação do caráter
social dos meios de produção e mesmo, como disse, das relações econômicas
que possibilitam a produção da riqueza e dos bens (relações econômicas que
são relações sociais e políticas, na medida em que partem de uma determinada
compreensão de ser humano, de relações sociais, e que erigem um determinado
status quo). Fica claro que a aquisição da propriedade e da riqueza diz respeito
unicamente à capacidade laboral e cognitiva do sujeito (pelo menos o estado
de natureza mostra cada homem como já possuindo sua propriedade e, justamente por faltar o poder legal do Estado, como sofrendo constante ameaça de
terceiros). Ora, mas é justamente esse caráter eminentemente privado, subjetivo, da propriedade e da produção da riqueza que conduz à idéia de um Estado meramente punitivo ou repressor, regulador e administrador dos indivíduos
e das relações sociais, portanto, que conduz à negação da política enquanto
problema moral: porque, sendo a propriedade e a produção e a aquisição da
riqueza atividades meramente privadas, não há como estabelecer uma responsabilidade do Estado no que diz respeito às reivindicações de justiça social,
para utilizarmos um termo atual (ainda que correndo novamente o risco de
anacronismo), à formulação de um Estado de bem-estar social. A justiça estatal
refere-se única e exclusivamente, como dizia Hobbes, à garantia do respeito e
do cumprimento dos pactos.
Negar que a política é um problema moral equivale a negar o que se poderia chamar de responsabilidade social do Estado. Percebam, Hobbes e Locke
negam esse papel do Estado justamente porque, para eles, a fonte das desigualdades sociais não está nas relações de produção, na produção e na aquisição
da riqueza social, mas sim na desigualdade de talentos entre os seres humanos.
Diferentemente de Hegel, para quem as relações de produção – ou, se quiserem, a economia – são marcadas pela expropriação e, nesse sentido, conduzem, sem uma regulação conveniente, a grandes desigualdades sociais. O que
se percebe em Hobbes e em Locke é que o Estado não tem legitimidade moral
para intervir nas relações de produção, na aquisição da propriedade e mesmo
no que diz respeito às políticas inclusivas e distributivas, e não tem tal legitimidade exatamente porque isso violaria os legítimos ganhos de cada indivíduo
94
filosofazer_33.indd 94
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:29
oriundos do trabalho – mas de um trabalho, da produção da riqueza social, que
não causa miséria social. Uma posição, para mim, interessantíssima, inclusive
porque está na base de toda a discussão posterior. Kant, por exemplo, também
põe a precedência ontológica do indivíduo à sociedade, mas, diferentemente de
Hobbes e de Locke, reconhece o caráter social da propriedade, que, no estado
de natureza, é de uso comum. Então, sendo de uso comum, sua aquisição deve
ser regulada de modo que, por meio dela (isto é, da aquisição da propriedade),
ninguém fique privado de seu sustento e mesmo de seu bem-estar. Penso que
existe em Kant uma proto-idéia de que o trabalho não só dignifica o homem e
é a fonte que legitima a aquisição da propriedade e da riqueza (esta uma idéia
comum dos pensadores desse período), mas de que pode também ser fonte de
desigualdades sociais. E Hegel, como veremos mais adiante, concebe justamente as relações econômicas como fontes das desigualdades sociais, como o Estado de natureza hobbesiano em que o homem é lobo do próprio homem – Hegel
compara a sociedade civil, isto é, a esfera das atividades econômicas, com o
estado de natureza. Por isso mesmo, o Estado tem legitimidade para intervir
nas relações de produção, regulando-as, garantindo a eqüidade social a integração social fundada, por assim dizer, no reconhecimento e na promoção da
diferença. Marx, por sua vez, tem como idéia central que as relações de produção constituem a infra-estrutura da sociedade, da cultura, da vida humana de a
maneira mais geral, a partir da qual se erige toda uma superestrutura ideológica.
Claro, nesse caso, a compreensão de relações de produção não se restringe somente ao modo como os seres humanos trabalham, ao trabalho grosso modo,
mas às relações sociais que se estabelecem no e com o trabalho. Marx tem a
idéia de que as relações de produção são a base da sociedade (e, no capitalismo
em especial, a fonte das desigualdades sociais e políticas) enquanto o princípio
primeiro que justifica a revolução proletária: nesse caso, a idéia de um Estado
que “corrige” as desigualdades sociais é estranha, porque, no fim das contas, o
Estado não é só o poder de classe institucionalizado, tornado norma geral, mas
a correção dessas desigualdades não elimina, no entender de Marx, as fontes
dessas desigualdades e, portanto, sempre é um lenitivo temporário (um autor
como Rawls, por exemplo, considera que essas desigualdades sociais e políticas
sempre surgem, mesmo em sua proposta de uma sociedade justa e, portanto, o
Estado sempre deve ter um papel ativo na regulação das desigualdades sociais
e políticas. Marx tende para a idéia de que uma determinada ordem social,
política e econômica poderia acabar com essas desigualdades). Enfim, uma das
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 95
95
16/4/2009 10:42:29
idéias centrais do debate que se inicia a partir do contratualismo é justamente,
ao tratar sobre o que é legítimo ou o que é ilegítimo, sobre o poder de atuação
do Estado na fonte das desigualdades sociais e políticas – e as respostas a essa questão confluem para uma determinada visão do Estado, da justiça, da política e
do social.
Ainda uma palavra sobre Hobbes e Locke. Em relação ao primeiro, podemos perceber que toda a caracterização do estado de natureza parte de uma
determinada visão da natureza humana que determina toda uma perspectiva e
até toda uma estrutura do Estado. O homem é mau, lobo do próprio homem,
não respeita pactos e as posses do outro. Nesse sentido, um Estado forte, formador, regulador, repressor (porque pactos, sem a espada, são nulos), faz-se necessário. Percebam, é dessa condição humana que deriva o melhor dos Estados, é a
partir dela que é erigido, este é um modelo cuja forma é aquela e cujo objetivo
é a formação daquela: o Estado é repressor justamente porque o homem é mau,
mas também o Estado é formador justamente porque o homem deve ser bom,
tem uma natureza potencial para ser bom. Já Locke afirma que no estado de
natureza os homens vivem bem, cada um tem sua propriedade, enfim, um status
prévio. Entretanto, o paulatino surgimento de inimizades põe em risco aquele
modo de vida. Aqui entra o Estado enquanto corretor dessas injustiças, levando, por assim dizer, a uma volta àquele status prévio. O contratualismo de Hobbes e de Locke tem o estado de natureza não meramente como um argumento
fictício que legitima um determinado modo de conceber o Estado, o homem, a
política, o social, a justiça; o estado de natureza é perpassado por uma visão de
mundo, sendo que ela – representada por uma antropologia, por uma concepção de educação e mesmo por uma concepção de sociabilidade – está na base
da instauração e do próprio desenvolvimento dos Estados modernos, culminando, inclusive, com o nosso modo de conceber o papel do Estado enquanto
formador e regulador do indivíduo e da coletividade, num primeiro momento
amorfos ou maus. Claro que essa posição não se inicia com Hobbes e Locke, já
que é muito mais antiga (assim, por exemplo, a visão de mundo platônica via o
Estado com um papel fundamentalmente formativo e regulador do indivíduo,
da coletividade; o pensamento medieval seguia na mesma linha na medida em
que a teodicéia cristã – tornada norma geral – exigia um Estado atrelado à
Igreja e, mais ainda, um modo de vida socialmente compartilhado conforme
essa visão dominante). Mas, Hobbes e Locke poderiam ser entendidos como os
primeiros modernos a reafirmarem essa posição. Então, o Estado é concebido
96
filosofazer_33.indd 96
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:29
como a instância formativa e reguladora que se utiliza da religião, da escola,
etc., mas que é a base, o ponto de convergência, a partir do qual a função da
Igreja e da escola, apenas para citar duas instituições, adquirem sentido. Um
Estado que parte de uma determinada visão de natureza humana – o homem
é uma tabula rasa que precisa ser formada; o homem é lobo do próprio homem
que precisa ser regrado – e, a partir dela, erige toda uma série de instituições
– além da escola, pode-se citar como exemplos a prisão, o hospital, a fábrica,
o quartel – que corrigirão os defeitos do homem, que lhe darão forma. Apenas
para citar um exemplo, o trabalho foi entendido como a instância educativoformativa por excelência, de tal modo que um vagabundo, para o modo de ver
moderno, era um doente que precisava ser tratado, reeducado. O Estado moderno, penso eu, tem sua especificidade justamente em tomar para si as funções
de formação, de regulação, de controle e de repressão dos indivíduos: a formação do indivíduo e dos indivíduos, o modo como vão agir, passa a ser responsabilidade do Estado e das instituições que ele legitimar. É o Estado moderno – o
Deus-Leviatã da modernidade – que vai construir a natureza do homem, e isso
com base tanto na idéia de que a natureza do homem é amorfa (ou, no melhor
dos casos, necessitando de um guia, de orientação objetiva, porque tendente
a ser má), quanto na idéia de que há uma autoridade objetiva, representada
pelo próprio Estado e pelas instituições que ele legitimar, que tem a verdade
da formação humana. O Estado moderno será a instância moral, educativa,
reguladora e também repressora (porque também a repressão leva à formação),
por excelência. Toda uma série de saberes e de instituições produtoras desses
saberes são instauradas com o objetivo de justificar, de fundamentar e de levar
a cabo a tarefa educativo-formativa e reguladora.
Kant e Hegel, ao enfatizarem o caráter moral da política, propõem outra
compreensão do social e do Estado, no sentido de afirmar (1) que o objetivo da
política é a realização de um ideal moral (política como pedagogia) e (2) que
o Estado não se caracteriza apenas pela justiça punitiva, mas também como
instância integradora dos indivíduos, portanto como instância moral (ou seja,
o Estado como responsável pelos indivíduos e pela convivência social fundada em princípios morais, Estado como totalidade ética). O estado de natureza
kantiano enfatiza justamente que o caráter primeiro da propriedade é ser propriedade social. Kant afirma explicitamente que esse é o princípio primeiro que
deve regular a aquisição da propriedade, ou seja, só posso me apropriar de algo
e numa quantidade que não prejudique e não prive os outros de uma vida digna
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 97
97
16/4/2009 10:42:30
(na medida em que, no estado de natureza, a posse da terra e de seus recursos é
comum) (KANT, 2003, p. 107). A idéia kantiana de que o homem e os homens
em sociedade devem se esforçar para agir contra a natureza (natureza humana
no sentido hobbesiano, de que o homem é lobo do próprio homem) implica a
tese de que o cerne das relações sociais é a moralidade, o respeito e até a promoção do outro (KANT, [s. d], p. 144), uma vida esclarecida no âmbito particular e no âmbito social. Por isso, segundo Kant, os princípios básicos de um
Estado republicano [o único que Kant considera legítimo, porque consoante
aos ditames da razão prática (KANT, [s. d], p. 160)], os princípios básicos da integração social, os princípios do que chama de “política moral” (KANT, [s. d],
p. 160) são a liberdade e a igualdade (KANT, [s. d], p. 161). Então, que “‘reine
a justiça e pereçam todos os velhacos deste mundo’ é um honesto princípio de
direito que corta todos os caminhos sinuosos traçados pela insídia ou pela violência” (KANT, [s. d], p. 161). Trata-se, a meu ver, da negação da política como
uma técnica que, a partir da idéia de uma natureza humana má (o homem
como lobo do próprio homem) se coloque como regulação e administração do
homem e dos homens, utilizando-se, para isso, de alguns procedimentos instrumentais (no sentido, por exemplo, da anatomopolítica e da biopolítica foucaultianas). Corrobora para isso a afirmação kantiana de que “a verdadeira política
não pode dar um passo sem antes ter rendido preito à moral” (KANT, [s. d], p.
163). Em Kant, portanto, a política é entendida enquanto um ideal moral, o
que significa: é uma práxis que suprassume (para utilizar um termo hegeliano)
a idéia de justiça punitiva em um conceito mais amplo de sociabilidade cujo fim
é justamente a efetivação da liberdade e da igualdade entre os seres humanos.
Em Hegel o conceito de eticidade (Sittlichkeit) quer significar justamente
essa idéia de que o Estado constitui uma totalidade ética, vida ética efetiva.
Em primeiro lugar é interessante perceber que, para Hegel, cada ser humano
quer realizar seu interesse privado, e o faz a partir dos outros, talvez até com os
outros. Entretanto, a satisfação dos interesses vitais de cada indivíduo só é possível em uma organização social do trabalho na qual cada indivíduo depende da
colaboração dos outros indivíduos como meios para chegar a seus fins. Estamos
na esfera da sociedade civil, considerada por Hegel como o verdadeiro estado
de natureza (HEGEL, 1997, § 245, p. 209). A sociedade civil é perpassada
pela idéia de que o homem se concretiza pelo trabalho realizado por classes
e a partir da divisão entre classes (divisão do trabalho). A divisão do trabalho se caracteriza pela produção de desigualdades legítimas, fontes de tensões
98
filosofazer_33.indd 98
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
produtivas, mas também de cisões. O fato é que a sociedade civil (chamada por
Hegel de sistema das necessidades) cria uma riqueza social inédita e crescente,
mas essa depende de contingências irredutíveis e de diferenças. Em suma, a
sociedade civil é caracterizada pelo interesse privado que aspira à universalidade
(por exemplo, o interesse específico de uma classe procura elevar-se como o
objetivo por excelência do Estado e/ou da sociabilidade). Vejam a clara crítica
a Hobbes e a Locke, para quem o interesse particular (a precedência ontológica
do indivíduo à sociedade) é o objetivo básico do Estado. “A ligação social, que
é o interesse realmente universal, não poderia decorrer de uma convenção entre
interesses particulares calculadores” (TOSEL, 2004, p. 517). Abandonado a si
mesmo, o mecanismo do sistema das necessidades – o mercado e a produção
para e pelo mercado tornado divisão de classes – fica ameaçado de dissolução,
de desagregação. As classes têm interesses opostos e o processo de acumulação
acirra a divisão e o conflito entre ricos e pobres. Forma-se, assim, uma miséria
moderna que assume a figura de uma massa de indivíduos (operários desempregados, camponeses obrigados a vagar sem destino, artesãos arruinados) que são
literalmente desclassificados, fora das classes ou estamentos sociais (Stände), e
que formam uma classe paradoxal (chamada por Hegel de Klässe), incapaz de
dialética, “resto” de naturalidade não-mediada e produzida pelo mecanismo
econômico-social (TOSEL, 2004, p. 522-523). Esse agrupamento de indivíduos está privado das condições de subsistência mais básicas, perde o sentido
do interesse comum, vê o Estado como uma máquina a serviço dos poderosos
e se entrega à delinqüência. O mecanismo da produção (isto é, o mercado),
com a população, produz o elemento que revela a potencialidade destrutiva do
mercado: é o mercado, enquanto campo de batalha dos interesses individuais,
que instaura o estado de natureza hobbesiano. Por isso, em Hegel, o mercado –
note-se aqui a crítica ao laissez-faire de Adam Smith (1723-1790) – é incapaz
de garantir tanto uma sociabilidade eqüitativa e a integração social quanto a
realização disso que poderíamos chamar justiça social. Esta é a tarefa do Estado,
ontologicamente primeiro em relação aos indivíduos ou às classes sociais. É ele
que compreende a sociedade civil e sua cisão, ao produzir instituições tais que
os particulares, tornados livres cidadãos, superem sua representação de sujeitos
eminentemente privados e encontrem no interesse comum a reconciliação efetiva de seus interesses privados opostos. Enquanto ontologicamente primeiro em
relação aos indivíduos e às classes sociais, o Estado impõe aos indivíduos e às
classes deveres específicos, assegurando seus direitos (e, dentre eles, o direito
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 99
99
16/4/2009 10:42:30
a uma vida digna pelo e no trabalho socialmente útil). Trata-se de um Estado
ético cuja função está para além da mera realização da justiça punitiva ou comutativa. Ele deve integrar os indivíduos enquanto cidadãos em uma totalidade
ética, realizando o que, a grosso modo, poderíamos chamar de justiça social.
Hegel diz:
O Estado é a realidade efetiva da Sittliche Idee, da Idéia ético-social: ele
é o Espírito ético-social enquanto vontade substancial manifesta, claramente percebida por ela mesma, que se pensa e se sabe, e que realiza o
que ela sabe e na medida mesma em que ela sabe (1997, § 257, p. 216).
Com isso, procuro defender que é clara, também em Hegel, a formulação
da política como problema moral – e problema moral no sentido de envolver
a afirmação de uma contradição intrínseca às relações sociais: de um lado, a
busca do interesse individual e, de outro, a realização do bem-estar coletivo. É
problema moral exatamente por conceber as relações econômicas e mesmo a
propriedade enquanto resultado de relações sociais e políticas, ou como relações sociais e políticas (que devem ser reguladas e conduzidas à realização do
bem comum). O Estado não é o resultado do livre acordo de uma pluralidade
de indivíduos egoístas. Ele ultrapassa o jogo dos interesses privados individuais
ou grupais que controla e no qual reserva para si mesmo o direito de intervir.
Ele tem por função aperfeiçoar a elevação ao universal dos indivíduos e de seus
interesses particulares de classe, permitir que esses homens queiram livremente se fazer cidadãos e se tornar membros do processo de formação política do
interesse geral. Enfim, a política, em Hegel, é um problema moral exatamente
porque o seu cerne é o interesse geral, o bem-estar coletivo.2
Kant e Hegel reafirmam a idéia de responsabilidade social como uma das
idéias centrais do Estado porque reconhecem que o cerne das desigualdades
sociais está nas relações de produção que, de uma ou de outra maneira, são baseadas na apropriação-expropriação da riqueza social. Nesse sentido, o Estado
aparece claramente não só como instância formativa, mas também como ins2
“A liberdade concreta consiste no fato de que os interesses particulares – devidamente reconhecidos – passem eles mesmos ao interesse do universal e que, por outro lado, eles reconheçam esse universal, o reconheçam como seu próprio espírito substancial, e ajam em vista do
universal como de sua meta final. Disso resulta que o universal não vale e não pode se realizar
sem o interesse, o saber e o querer particular, e que paralelamente os indivíduos não vivem
unicamente por seu próprio interesse como simples pessoas privadas, sem querer ao mesmo
tempo no e pelo universal, sem ter uma atividade consciente dessa meta” (HEGEL, 1997, §
260, p. 255).
100
filosofazer_33.indd 100
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
tância reguladora da aquisição da propriedade e da produção da riqueza social,
assumindo, de uma maneira geral, uma função redistributiva. Claro que isso de
uma maneira geral, porque o Estado moderno não é o Estado de bem-estar contemporâneo (esse sim marcado fortemente por políticas distributivas e inclusivas): a Revolução Francesa de 1789 colocou a educação como uma questão de
Estado e como dever do Estado, que deveria realizá-la para todos os cidadãos;
Kant e Hegel também a estabelecem como uma questão de Estado e como dever de Estado; e Hegel chega mesmo a afirmar que os estamentos sociais devem
se responsabilizar por medidas redistributivas a seus membros, de modo que nenhum deles sofra privações. O fato é que justamente por colocarem essa idéia
de responsabilidade social como o centro do Estado, Kant e Hegel alargam a
compreensão dos conceitos de Estado, de política, de justiça e de social. O Estado, então, não é mais uma instância meramente marcada pela força ou pela
administração e regulação da população (pelo menos não no sentido de Hobbes
e de Locke); sua função é a integração social e a realização de uma idéia de
justiça que promova a liberdade e também a igualdade (política e, em certa
medida, social). A justiça deixa de ser entendida meramente enquanto justiça
punitiva ou comutativa e passa a ser entendida, fundamentalmente, enquanto
um determinado modo de integração da liberdade e da igualdade, que, como
quer Hegel, suprassuma a liberdade moderna (a liberdade do indivíduo, do homem) com a liberdade antiga (a liberdade do cidadão, isonomia e isegoria). A
política passa a ser entendida como o horizonte por excelência onde se dá a
integração entre o individual e o social, entre liberdade e igualdade. O social,
por fim, deixa de ser entendido enquanto relação entre mônadas egoístas voltadas ao interesse meramente privado (que, no caso de Hegel, é específico da
sociedade civil, da esfera econômico-produtiva), para se transformar na esfera
da sociabilidade, da integração entre os indivíduos.
Por incrível que pareça, esta questão “ressuscitou” atualmente (se é que
algum dia esteve morta). É a política um problema moral ou uma questão técnica? Na verdade, as questões centrais (das quais essa primeira é sub-reptícia)
são: o que significa social? Qual é o caráter dos meios de produção? Qual o tamanho, o papel e os objetivos do Estado? Pode-se falar em responsabilidade social
do Estado? Antes, porém, de responder a estas questões (mostrando, portanto,
a ressurreição do problema), gostaria de salientar a mudança paradigmática que
se dá no pensamento e na realpolitik contemporâneos.
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 101
101
16/4/2009 10:42:30
2. Mudança paradigmática no pensamento e na realpolitik
contemporâneos: sobre a compreensão do Estado contemporâneo
As questões acima expostas, a meu ver, sintetizam o debate contemporâneo no que diz respeito ao papel do Estado em relação à sociedade, em relação
à economia, etc.; e revelam, em seu cerne, a própria compreensão sobre o que
de fato são os legítimos direitos dos cidadãos em uma democracia ocidental
(direitos que estão na base da compreensão deste Estado, conforme, claro, a
concepção que se adota). Então, ao abordar Hayek, Friedman e Nozick, de um
lado, e Rawls e Habermas, de outro, quero refletir sobre os rumos do pensamento político contemporâneo em relação ao Estado e à política. O que está
em jogo para o pensamento político contemporâneo é justamente o Estado de
bem-estar social, seu tamanho, suas funções, seus objetivos. O que está em
jogo, conseqüentemente, é uma determinada maneira de conceber a política, se como técnica de regulação e de controle social (como querem Hayek,
Friedman e Nozick, que afirmam enfaticamente que o objetivo do Estado e
da política é tão só, respectivamente, a realização da justiça comutativa e a
instituição de códigos jurídicos voltados à defesa da propriedade), se como problema moral (como querem Rawls e Habermas, para quem o ethos da política
engloba a questão da justiça distributiva e a própria integração social, e não só
a justiça comutativa). Enfim, trata-se de ver, em cada posição, quais são os direitos legítimos que os cidadãos têm e qual a configuração que esses direitos dão
ao Estado (porque estão na base deste) – trata-se de ver, então, o que significa
e como se integra liberdade e igualdade.
Gostaria de mostrar que esta discussão se centra em uma mudança paradigmática na realpolitik ocidental que o neoliberalismo de Thatcher, na Inglaterra, de Reagan, nos Estados Unidos, e todo o movimento conseqüente (que
foi uma constante a partir da década de 1990 na América do Sul, por exemplo)
encarna exemplarmente. A meu ver, não poderíamos entender o desenvolvimento conceitual dos autores acima citados sem tomar em conta a mudança
paradigmática que se processa nas sociedades democráticas ocidentais, a paulatina superação da dicotomia capitalismo versus comunismo (enquanto base
de fundamentação das discussões teóricas e das políticas estatais) e a conseqüente afirmação do reformismo político. Ou seja, com esta mudança trata-se
de entender a ênfase na análise e na fundamentação normativa do Estado de
102
filosofazer_33.indd 102
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
bem-estar social, seu tamanho, suas funções e seus objetivos. Eu digo análise e
fundamentação normativa pelo fato de que, em cada um destes autores, temos
a utilização tanto de estudos sociológicos, econômicos, históricos e mesmo de
psicologia moral, quanto de desenvolvimentos normativos em relação ao papel
do Estado, e reflexões normativas que partem de uma determinada compreensão dos conceitos de liberdade e de igualdade que levam a uma determinada
maneira de conceber as noções de direitos e de deveres, bem como a uma determinada maneira de conceber o Estado de bem-estar social, seu tamanho, sua
função, seus fins, enfim, seu âmbito de atuação legítima.
Antes de responder às questões acima apresentadas, gostaria de salientar esta mudança paradigmática que se dá no pensamento e na realpolitik contemporâneos. Marx e o marxismo subseqüente levaram a efeito a instauração
de uma dicotomia que marcou profundamente os primeiros setenta anos do
século XX: a dicotomia revolução versus reformismo político, respectivamente comunismo (ou socialismo, como queiram) versus capitalismo (percebam,
nesse sentido, como esses primeiros setenta anos do século XX são marcados
pelo confronto entre, de um lado, Hegel, defensor do reformismo político, da
“paciência do conceito” contra a “impaciência da opinião” e, de outro, Marx,
defensor da revolução, da derrubada prática da infra-estrutura político-econômica capitalista). A dicotomia se agudizou com a revolução russa e com
a ascensão da URSS ao status de potência mundial (porque o comunismo se
tornou uma realidade) – a Guerra Fria é o claro resultado dessa dicotomia, sua
principal manifestação. Durante esse período, o que temos é uma clara ideologização de ambos os lados: cada um destes modos de produção atendia-se como
o melhor e afirmava que o outro era causador das piores barbaridades, basicamente. Do lado comunista e/ou como comunistas, movimentos revolucionários
estudavam a melhor forma de levar a efeito a tão sonhada revolução e; do lado
capitalista, Hollywood construía uma imagem da América como reino da liberdade, da igualdade e da justiça social (não tenho dúvidas de que o verdadeiro
vencedor da Guerra Fria foi Hollywood).3 Entretanto, já a partir da década de
1930, a elaboração do Estado de bem-estar keynesiano, pós Crack da bolsa de
valores de Nova Iorque (1929), procurou superar o capitalismo de laissez-faire
3
Poderíamos, inclusive, lembrar do apoio norte-americano a inúmeros golpes militares realizados na América Latina, ou mesmo a própria intervenção norte-americana na Coréia e no
Vietnã, além da repressão soviética à Hungria, entre tantas ações de política internacional
totalitária.
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 103
103
16/4/2009 10:42:30
a partir da instauração do Welfare State. As duas principais medidas levadas a
efeito pelo Estado de bem-estar social consistiram (1) na forte intervenção estatal na esfera econômica (seja no sentido de investir maciçamente na infra-estrutura econômica, seja no sentido de regular a concentração da propriedade e
da riqueza) e (2) na elaboração disso que poderíamos chamar de direitos sociais
de cidadania, com a garantia de um padrão mínimo de riqueza material para
cada cidadão (educação, assistência médica, um mínimo social, etc.) abaixo do
qual ninguém poderia cair. O Estado de bem-estar social, a meu ver, marca a
gênese e o desenvolvimento de um mercado de massas, fundado nisso que já a
partir da década de 1930 a Escola de Frankfurt chamou de cultura de massas.
Após a Segunda Guerra Mundial muitos países da Europa ocidental se
organizaram como democracias sociais, com base no Estado de bem-estar social
(é o caso da Alemanha, da Inglaterra e da França) e têm um relativo desenvolvimento econômico e social, sintetizado pelo american way of life. Ora, a partir
daqui a dicotomia revolução versus reformismo político vai sendo deixada de
lado na Europa e nos Estados Unidos (mas não, por exemplo, na América Latina, pelo menos não no ritmo da Europa ocidental e dos Estados Unidos, já
que quase todos os países da América Latina eram marcados por ditaduras) e
deixada de lado justamente pela afirmação do reformismo político (pois o capitalismo provava, contra as acusações socialistas, que poderia levar ao bem-estar
social e ao desenvolvimento econômico, concomitantemente). A recusa da
perspectiva socialista e a afirmação do reformismo político enquanto tendência
hegemônica do pensamento e da prática política ocidentais, a meu ver, se dá
definitivamente a partir da década de 1970.4 É dessa época, entre outros fatos
importantes, a publicação de Uma Teoria da Justiça, de John Rawls (que parte
da afirmação do reformismo político como, por assim dizer, um fato do pensamento e da prática política nas democracias liberais ocidentais, principalmente
da democracia liberal norte-americana), a ênfase no neoliberalismo, o repensar
da teoria crítica por parte de Habermas (1929) e o abandono, por parte do
Partido Comunista Francês, da tese marxiana da revolução proletário-socialista
(com a afirmação da luta pela radicalização do Welfare State). Particularmente
importante para o que aqui me interessa é o grande papel que o pensamen4
Isso com respeito à Europa ocidental e aos Estados Unidos (mas também, ainda que em menor
medida, em relação à América Latina). As relações internacionais deixam de ser marcadas por
essa dicotomia apenas a partir da queda da URSS, a partir de 1989 (sem, em grande medida,
deixarem de ser imperialistas e colonialistas).
104
filosofazer_33.indd 104
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
to neoliberal de Friedrich Hayek (1899-1992), Milton Friedman (1912-2006),
Robert Nozick (1938-2002) adquire no espaço público ocidental, a partir de
então. As reformas neoliberais na Inglaterra (por Margaret Thatcher, 1925-2007)
e nos Estados Unidos (por Ronald Reagan, 1911-2004) levaram a uma avalanche de reformas neoliberais nas democracias ocidentais (que estavam atreladas,
enquanto periferias, ao FMI, ao Banco Mundial, ao Consenso de Washington),
ressuscitaram aquela velha discussão sobre o tamanho, os objetivos e os fins
do Estado, sobre a compreensão do social e sobre o caráter da propriedade,
enfim, sobre o sentido da política e do campo do político. Com a queda da
URSS, em 1989, há o golpe de morte no socialismo real e o enfraquecimento
dos movimentos socialistas: portanto, a queda da velha dicotomia revolução
versus reformismo político, já que o ideal socialista de revolução, o próprio socialismo e o comunismo estavam por terra. Dá-se, então, a afirmação, por enquanto definitiva, do reformismo político enquanto a tendência hegemônica
do pensamento e da prática política contemporâneos, o que equivale a dizer: a
democracia liberal é considerada a base paradigmática das sociedades ocidentais (em muitos casos, extremamente ideológica5), uma base que não pode ser
ultrapassada, mas que admite, sim, reformulações, reformas, naquelas instituições deficitárias. O debate, agora, diz respeito ao tamanho e aos fins do Estado
de bem-estar social, e isto traz implícita uma compreensão da política, do social
e da propriedade que é fundamental tanto no debate que se trava quanto nas
reformas neoliberais levadas a cabo nas democracias ocidentais.
É nesse contexto, como disse, que gostaria de situar autores tão diversos e até divergentes como Hayek, Friedman e Nozick, de um lado, e Rawls
e Habermas, de outro. Os primeiros, claros defensores da teoria neoliberal ou
libertarista, na análise e fundamentação do Estado, partem de uma idéia já
presente no contratualismo moderno, em especial no de Hobbes e de Locke, a
saber: a precedência ontológica do indivíduo à sociedade. Isso significa que,
para estes autores, uma determinada maneira de compreender o que significa liberdade está na base da fundação do Estado e lhe determina todo o seu
âmbito legítimo de ação, bem como determina o que é legítimo e/ou ilegítimo
5
Cito, como exemplo dessa ideologização da democracia liberal, a dicotomia democracia liberal
versus fundamentalismo (islâmico) que se faz ultimamente presente no debate público de nossas sociedades e que foi utilizada por George W. Bush para justificar a invasão norte-americana
ao Afeganistão e ao Iraque. Ou seja, para Bush, tratava-se de defender os “povos livres”, isto
é, democrático-liberais.
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 105
105
16/4/2009 10:42:30
aos demais indivíduos. Ora, essa noção de liberdade se liga fundamentalmente
à capacidade de não ser coagido em suas atividades cotidianas por uma força
exterior em relação ao próprio indivíduo. Assim, este indivíduo pode fazer e
conquistar tudo aquilo que puder, desde que, quando isso envolver outras pessoas, ele conte com o aval destas e mesmo lhes respeite a integridade física e
psicológica. Assim, se nos voltarmos à esfera econômica, veremos que, para tais
autores, não há ilegitimidade alguma no lucro, desde que seja adquirido por
meio de relações livres entre o empregador e o empregado. As diferenças de
renda e de riqueza que daí advém são igualmente legítimas, justamente porque
se fundam nessas relações entre pessoas livres.
A questão é que, para Hayek, Friedman e Nozick, a fonte das desigualdades sociais não está nas relações de produção, mas sim na desigualdade de
talentos e até no senso de iniciativa entre os indivíduos. Não se poderia condenar um indivíduo que enriquece ao extremo, nem se poderia ver na desigualdade de riqueza, o fator da desigualdade política, como queria o socialismo. Não
se poderia condenar este indivíduo porque teve senso de iniciativa, investiu
recursos, possibilitou que empregos fossem criados e impostos pagos. Investiu,
trabalhou e enriqueceu. Então, qualquer tentativa de controle sobre essa riqueza seria injusta, ilegítima, porque repressiva: ela violaria a liberdade e a
integridade deste indivíduo. A segunda questão é conseqüência da primeira e
diz que tais autores insistem na idéia de que somente um indivíduo livre pode
ser imputado moralmente. Podemos somente exigir satisfações, uma indenização ou mesmo retaliação em relação àquele indivíduo ou àqueles indivíduos
que nos causaram alguma mal – e o Estado está aí para isso, para regular a
cooperação social, para garantir o respeito à integridade física e psicológica e
aos bens de cada um. Mas, que é o Estado? Ora, o Estado não é um indivíduo,
nem um aglomerado de indivíduos. Ele é uma instituição com fins específicos,
uma instituição representativa de todos os indivíduos. Mas, representativa em
que sentido? Robert Nozick o chama de agência de proteção, querendo com isso
mostrar que se os indivíduos se reúnem para instituir o Estado, o fazem com o
fim de criar mecanismos objetivos e uma instituição portadora de tais mecanismos e realizadora dos fins para os quais esses mecanismos foram criados: entre
esses fins, fundamentalmente podemos perceber a defesa da integridade física
e psicológica de cada indivíduo, bem como de seus bens, contra a ingerência
de terceiros, inclusive do próprio Estado. Trata-se, então, de um Estado mínimo,
106
filosofazer_33.indd 106
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
restrito às funções de defesa do indivíduo e de suas posses e também de garantia do respeito e do cumprimento dos pactos. O Estado não é um indivíduo e
não pode, por isso mesmo, ser imputado moralmente. É injustificado qualquer
Estado fundado em funções redistributivas e corretivas – é injustificado um Estado amplo. Seria, no entender desses autores, como que tirar de uns para dar a
outros, ou seja, seria como violar a liberdade de alguns em vista da liberdade de
outros, seria tratar desigual e até preconceituosamente pessoas livres e iguais.
Como disse, a tese desses autores, a tese central, está em que não são as relações de produção (e relações de produção capitalistas) que levam a desigualdades sociais, políticas e econômicas e que conduzem – e que produzem – a uma
sociedade oligárquica e classista; não são as desigualdades que causam a miséria
e a violência social. Hayek chama a idéia de justiça social de miragem justamente porque abraça esta tese, justamente porque põe a liberdade de iniciativa
como o pilar a partir do qual o Estado é fundado, a partir do qual a sociedade
se desenvolve, sendo que os clamores de justiça social são resultado da inveja
que os mais pobres sentem pelos mais ricos. Não se pode justificar moralmente
a idéia de justiça social. Por que o Estado deve corrigir as desigualdades sociais?
Por que o Estado deve interferir nas relações econômicas? Por que o Estado
deve realizar a justiça social? Por que revesti-lo de um caráter normativo? São
questões que, para Hayek, apontam para uma direção: o Estado não pode realizar justiça social, se entendermos, por este termo, reivindicações de recursos
econômicos, infra-estrutura material e controle da acumulação da propriedade
e da riqueza dos indivíduos. O Estado deve promover a liberdade – e a igualdade decorrente dessa liberdade. Mas uma liberdade na qual, como disse acima,
cada indivíduo é livre para agir sem coação por parte de outros, sendo que tudo
o que tal indivíduo fizer com o consentimento livre e esclarecido dos outros
é legítimo. Em última instância, o neoliberalismo, ao mesmo tempo em que
fundamenta uma determinada maneira de conceber o Estado, e uma maneira
a meu ver muito consistente, concomitantemente elabora uma determinada
concepção de sociedade política ou, se quiserem, de política, remontando-se
novamente a Hobbes e a Locke. Para os pensadores neoliberais a política é uma
técnica, uma técnica de regulação e de controle social. De regulação na medida
em que o que está em jogo é justamente a garantia da liberdade individual; de
controle social, na medida em que a função do Estado é tão só realizar a justiça
comutativa, isto é, o respeito e a garantia dos pactos, bem como a proteção dos
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 107
107
16/4/2009 10:42:30
indivíduos e de seus bens. O próprio sentido de sociabilidade, implícito na práxis política, é reduzido, sendo entendido meramente como o lugar de luta e de
defesa dos interesses privados. A política e o Estado perdem qualquer sentido
moral. Não nego que a fundamentação do Estado e da sociedade política por
parte de Hayek e de Nozick tenha um cunho moral, no sentido de que a liberdade é o pilar, a pedra angular, para entender o indivíduo e a sociedade. Ocorre
que essa compreensão da liberdade nega a idéia de sociabilidade, isto é, as raízes
sociais do indivíduo na fundamentação do Estado e da sociedade política. No
que diz respeito à fundamentação dessas esferas, o que é central é a precedência
ontológica do indivíduo à sociedade, do individual ao social. É nesse sentido
que afirmo que, para estes autores, a política é técnica, uma questão técnica, um problema técnico, cujos mecanismos são pensados em vista da melhor
regulação e controle social. Trata-se, então, da negação do caráter moral do
Estado e da sociedade política. Por fim, há também o argumento economicista
contra o Estado de bem-estar social: com seu forte controle da economia e com
a realização dos direitos sociais de cidadania, o Estado de bem-estar social causa ineficiência econômica e leva ao coletivismo (ou seja, torna-se um Estado
paternalista e impede a livre iniciativa) (HAYEK, [s.d], p. 64-76; NOZICK,
1991, p. 20). Somente a ordem capitalista, que se funda na liberdade e na iniciativa de cada indivíduo, pode levar ao desenvolvimento e ao progresso.
Habermas e Rawls alargam a compreensão do social no sentido de reconhecer (1) o caráter eminentemente social da propriedade e da produção
econômica (apropriação-expropriação capitalista), (2, como conseqüência) a
idéia de um Estado de bem-estar social forte, que regule a aquisição da propriedade e a produção e a distribuição da riqueza, (3) a afirmação, ainda como
conseqüência, de que o Estado não deve apenas realizar a justiça comutativa,
mas, fundamentalmente, a justiça política (que engloba a justiça distributiva),
(4) a recusa da mão invisível e(5) a idéia do social fundado em valores morais ou talvez cívicos compartilhados pela coletividade, sendo que o Estado
deve promover esses valores, como condição inclusive para a construção de
uma identidade coletiva (no sentido, por assim dizer, da eticidade hegeliana)
(HABERMAS, 1997, p. 210-211; RAWLS, 2003, § 16, p. 80-81; e 2000, p.
357). Trata-se da afirmação da política como um problema moral, irredutível
à mera técnica de regulação social, exatamente porque envolve tanto relações
sociais entre pessoas livres e iguais (ou seja, o social, a produção econômica,
108
filosofazer_33.indd 108
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
etc., são um resultado da cooperação social e, nesse sentido, devem realizar o
bem-estar de todos, representado por um conjunto de direitos e de liberdades
básicas) quanto o aprendizado histórico de que cada ser humano é detentor de
uma inviolabilidade fundada na justiça que, portanto, não pode ser atacada em
nenhuma hipótese e sob qualquer pretexto.
Duas idéias são muito importantes para compreendemos o desenvolvimento do pensamento de Rawls e de Habermas em relação ao Estado de bemestar social e contra o neoliberalismo. A primeira delas está em que, para estes autores, a fonte das desigualdades sociais está nas relações de produção e,
portanto, é absolutamente necessário o controle estatal no que diz respeito à
aquisição e à concentração da propriedade e da riqueza. Tanto um quanto outro
deixam clara a idéia – já presente em Marx – de que as relações de produção
capitalistas, sem uma regulação conveniente, levam a desigualdades sociais,
políticas e econômicas, exatamente porque tais relações de produção são caracterizadas pela apropriação-expropriação da riqueza social. Ora, ambos os autores constatam uma crise de legitimação e mesmo de sociabilidade e isso porque
a transnacionalização do capital (como resposta ao Estado de bem-estar social
e ao seu controle na esfera econômica) e a flexibilização das leis trabalhistas
levaram a um declínio no nível de vida das classes trabalhadoras dos países
centrais. Segundo Habermas, o capitalismo não pode nem viver com o Estado de bem-estar social (por causa do controle estatal em relação à economia)
nem sem ele (porque, nesse caso, a qualidade de vida das classes trabalhadoras
cairia sensivelmente). Rawls afirma explicitamente, na esteira dessa idéia, que
a fonte das desigualdades sociais, políticas e econômicas está nas relações de
produção, ou seja que grandes desigualdades de renda e de riqueza, grande concentração da propriedade e da riqueza levam à concentração do poder político
e tornam os mercados iníquos. Então, e isso é muito evidente em Rawls, tratase de pensar em uma estrutura básica que tenha sob seu controle a produção
da riqueza social e a aquisição dessa riqueza e da propriedade. Trata-se de um
Estado, como se pode perceber, fortemente marcado pela justiça distributiva,
pela garantia da liberdade e da igualdade dos cidadãos, um Estado que, além
da regulação da aquisição da propriedade e da riqueza social, atua na realização
de um conjunto mínimo de bens sociais primários a todos esses cidadãos. Se
o Estado neoliberal é marcado pela justiça comutativa, o Estado rawlsianohabermasiano tem como centro a justiça distributiva.
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 109
109
16/4/2009 10:42:30
Tanto Rawls quanto Habermas afirmam o caráter social da propriedade,
notadamente da propriedade dos meios de produção. Nesse sentido, uma acumulação desmedida dos mesmos é considerada nociva para a justiça social e,
portanto, injusta, a não ser que resulte no benefício, até no máximo benefício,
dos menos favorecidos. E, dado esse caráter social dos meios de produção, concebem também a produção da riqueza social como uma atividade socialmente
coordenada, como somente sendo possível por meio da cooperação entre todos
os indivíduos, sendo que nenhum deles pode ficar sem seu justo quinhão e a
distribuição eqüitativa desses benefícios é uma política de Estado.
Por fim, no caso de Rawls e de Habermas, e eu já disse isso brevemente
acima, a sociedade política e o Estado são considerados como instâncias morais. O argumento mais claro que trago para provar isso está em que ambos
vêem a estrutura político-econômica da sociedade como tendo uma função
formativo-educativa (ambos, inclusive, se utilizam dos trabalhos de Jean Piaget
e de Lawrence Kolhberg, psicólogos que defendem a idéia de que a formação
do indivíduo é determinada em grande medida pelas condições objetivas – sociais, políticas, econômicas, culturais, familiares, etc. – em que vive). Ou seja,
o modo de organização da sociedade influencia no desenvolvimento do indivíduo e na qualidade moral da vida pública: grandes desigualdades de riqueza e
corrupção política, apenas para citar dois exemplos, influenciam decisivamente
no desenvolvimento moral do indivíduo e da coletividade. Como essa função
formativo-educativa é central para compreender, para reformar ou para construir as instituições, o sistema político-econômico, a conseqüência mais clara
é que é possível e necessário pensar uma estrutura estatal justa que leve a sério
seu caráter formativo-educativo. O Estado tem um papel moral justamente pelas conseqüências de sua organização, justamente porque ele é o centro a partir
do qual se dá a sociabilidade e mesmo a formação dos indivíduos.
O Estado tem entre suas funções a realização da justiça distributiva exatamente porque a igualdade entre os indivíduos e/ou cidadãos não é resultado
tão só da liberdade de tais indivíduos e/ou cidadãos. Ou seja, não sou igual
porque tenho a mesma liberdade, mas sou igual porque tenho as condições para
desenvolver-me enquanto um indivíduo livre (ou ser humano, cidadão). Então,
a justiça distributiva é o único meio para realizar efetivamente as possibilidades
de desenvolvimento pessoal e social, e isso principalmente em uma sociedade
capitalista marcada pela acumulação ilimitada da propriedade e da riqueza e
110
filosofazer_33.indd 110
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
que leva a grandes desigualdades sociais, políticas e econômicas que anulam a
liberdade e a igualdade. Uma das intuições centrais dos autores – essa de que,
nas sociedades democráticas ocidentais, se deu a solidificação, no que diz respeito à cultura política pública, de uma auto-compreensão normativa fundada
na radical liberdade e igualdade entre todos os cidadãos, fundada nos direitos
humanos, no pluralismo e no cosmopolitismo – exige a radicalização do Estado
de bem-estar social, de sua função formativo-educativa, de sua intervenção da
esfera econômica e na realização da justiça distributiva.
Conclusão
A mudança paradigmática no pensamento e na realpolitik das sociedades
ocidentais que procurei, ainda que brevemente, salientar em seus matizes históricos e analisar em seus aspectos normativos, parte da recusa pela dicotomia
capitalismo versus socialismo e de toda fundamentação e/ou justificação moral,
afirmando o reformismo político como a tendência hegemônica para o pensamento e para a realpolitik de nossas sociedades. Isso se deu fundamentalmente
a partir da década de 1970 e se consolidou definitivamente a partir de 1989,
com a queda do socialismo real e com o recuo da teoria marxista. A partir de
então, o centro do debate e, mais ainda, das reformas, passou a ser o Estado
de bem-estar social, suas funções, objetivos e fins legítimos. Uma questão de
ordem econômica perpassou tais reformas e esteve na base de toda fundamentação normativa do neoliberalismo: a garantia da acumulação monetária livre
da ingerência estatal e dos direitos trabalhistas das classes trabalhadoras dos
países centrais. Podemos observar, a partir da década de 1960, grande transnacionalização do capital e, já a partir da década de 1970, o início das reformas
neoliberais na Inglaterra e nos Estados Unidos. De lá para cá o Estado de bemestar social foi submetido a um processo de solapamento e, com ele, os direitos
sociais de cidadania conquistados pelas classes trabalhadoras ao custo de muitas lutas sociais.
Enfim, a mudança paradigmática do pensamento e à realpolitik das sociedades ocidentais, tem as discussões sobre o Estado de bem-estar social como
centro. Ela implica, conseqüentemente, na afirmação da democracia liberal
como base paradigmática das sociedades ocidentais, uma base que não pode
ser ultrapassada, mas que admite reformas naquelas instituições deficitárias. A
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 111
111
16/4/2009 10:42:30
questão está, claro, em saber o que é deficitário nas instituições, que instituições são deficitárias – e isso cada posição teórico-normativa desenvolve de uma
determinada forma. Mas uma coisa é certa: a democracia liberal consolidou-se
como o modelo hegemônico de sociedade política no Ocidente e para aqueles
que querem propagar o sistema capitalista (aos moldes norte-americano) aos
quatro cantos do globo – notadamente o imperialismo norte-americano e inglês. Assim, diria que essa mudança pode ser vista por um viés ideológico. Refiro-me explicitamente à afirmação de George W. Bush, que justificou a invasão
do Afeganistão e do Iraque com base na “defesa dos povos livres” (em outras
palavras, da democracia liberal). A substituição da Guerra Fria enquanto base
das relações internacionais durante boa parte do século XX na atual conjuntura internacional tem em seu centro justamente a dicotomia democracia liberal
versus fundamentalismo: o fundamentalismo, o fundamentalismo islâmico, é
o grande inimigo do Ocidente e traz em seu bojo a ameaça de destruição da
ordem ideal promovida pela democracia liberal.
É claro que as demandas por um cosmopolitismo eqüitativo têm hoje
um eco muito maior dada a integração mundial da economia e mesmo devido
à interligação dos movimentos sociais e ao alcance dos meios de comunicação
de massa. Mas, o cosmopolitismo eqüitativo – que tem por base o respeito e a
realização dos direitos humanos, a promoção da diferença, o desenvolvimento
integrado de todos os países e a preservação ambiental – passa, sem sombra de
dúvidas, por reformulações radicais na ordem social, política e econômica que
o capitalismo transnacionalizado, monopolista e imperialista levou – e leva – a
efeito.
Reforma na democracia liberal do Welfare State? Sim, mas de que forma
e até que ponto? Esta é a discussão hegemônica no pensamento político e na
realpolitik contemporâneos. Na pauta, portanto, está uma reforma no Welfare
State: mas uma reforma que deve pender para o neoliberalismo ou para um
liberalismo mais à esquerda? A filosofia pode e deve clarificar e criticar estas
pretensões, sempre em um trabalho cooperativo com as ciências humanas e
sociais, em vista de uma práxis político-educativa ilustrada, porque a resposta
prática será decisiva para o desenvolvimento humano, social e econômico. Na
radicalidade, o que está em jogo com estas mudanças é a própria liberdade e
igualdade substantivas dos cidadãos e, por conseguinte, uma série de conquistas chamadas de direitos humanos – e sua efetividade em nossas sociedades.
112
filosofazer_33.indd 112
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
E são estas questões que devem nos fazer repensar, tanto no que diz respeito às ciências humanas e histórico-sociais, quanto por parte dos movimentos
sociais e dos cidadãos de uma maneira mais geral, uma relação teoria-práxis
que dê conta da especificidade deste momento histórico em que, de um lado, a
ênfase na revolução socialista enquanto luta armada é amplamente rechaçada
pelos procedimentos democráticos e, de outro, a idéia de uma democracia liberal representativa. Esta se constitui, em grande medida, uma ficção visto que
os meios de comunicação de massa, é que centralizam o debate público pondo
na pauta interesses elitistas, ao se constituírem no universo simbólico a partir
do qual se dão a integração social e a formação do indivíduo e da sociabilidade.
Além disso, a democracia representativa prova não dar conta dos clamores por
justiça social e de participação popular. Portanto, neste momento histórico precisamos repensar a relação teoria-práxis se quisermos uma transformação social
efetiva e inclusiva, verdadeiramente democrática.
Referências bibliográficas
HABERMAS, Jürgen. Ensayos políticos. Barcelona: Ediciones Península, 1997.
HAYEK, Friedrich. Los fundamentos de la libertad. Trad. José Vicente Torrente.
Valência: Ediciones Fomento de Cultura, [s.d]. v. 1.
HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. Trad. Orlando Vitorino. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
HOBBES, Thomas. O leviatã, ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão.
Lisboa: Edições 70, [s.d].
KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes; doutrina do direito; doutrina da
virtude. Trad. Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003.
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MAQUAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Maria Júlia Goldwasser. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
filosofazer_33.indd 113
113
16/4/2009 10:42:30
NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Trad. Ruy Jungman. Rio de
Janeiro: Zahar, 1991.
RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
RAWLS, John. Justiça e democracia. Trad. Irene Partenot. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
TOSEL, André. Hegel: o bem para além da necessidade. In: CAILLÉ, Alain;
LAZZERI, Christian; SENELLART, Michel (Orgs). História argumentada da
filosofia moral e política. Trad. Alessandro Zir. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p.
517-528.
114
filosofazer_33.indd 114
Filosofazer. Passo Fundo, n. 33, jul./dez. 2008, p. 91-114.
16/4/2009 10:42:30
Download