Ano I No 1 Brazilian Journal for Philosophy of Religion year I, no. 1, october, 2014 out. 2014 Revista Brasileira de Filosofia da Religião Teologia, Religião e Filosofia da Religião Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins Agnaldo C. Portugal A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig Maria Cristina Mariante Guarnieri El ego amans Entre giro teológico y filosofía de la religión Germán Vargas Guillén Uma saída do dilema de Eutífron Nick Zangwill É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teses kierkegaardianas e seus desdobramentos Marcio Gimenes de Paula ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO - ABFR Revista Brasileira de Filosofia da Religião Brazilian Journal for Philosophy of Religion Brasília 2014 04 EXPEDIENTE Revista Brasileira de Filosofia da Religião Publicada pela Associação Brasileira de Filosofia da Religião – ABFR, a Revista Brasileira de Filosofia da Religião tem como objetivo a divulgação de textos de filosofia – elaborados de forma sistemática ou com base na história do pensamento – sobre o problema religioso ou a questão de Deus. Os temas incluem questões como transcendência, liberdade, mal, racionalidade da crença religiosa, volta da fé ao espaço público, ateísmo, relação entre religião e ciência, entre outros. A revista se caracteriza pela abordagem pluralista em termos de métodos de reflexão (fenomenológico, analítico, histórico, hermenêutico, etc.), fomentando o diálogo frutífero entre as diferentes perspectivas filosóficas sobre a religião. Revista Brasileira de Filosofia da Religião é uma publicação semestral da: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO Presidente: Agnaldo Cuoco Portugal (UnB) Secretária: Maria Cristina Mariante Guarnieri (PUC-SP) Tesoureiro: Hubert Jean-François Cormier (UnB) Editor: Hubert Jean-François Cormier Comissão Editorial Agnaldo Cuoco Portugal (UnB, Brasília-DF) Marcos Aurélio Fernandes (UnB, Brasília-DF) Hubert Jean-François Cormier (UnB, Brasília-DF) Márcio Gimenes de Paula (UnB, Brasília-DF) Conselho Científico Álvaro Montenegro Valls (Universidade do Vale dos Sinos, São Leopoldo-RS) Carlos João Correia (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal) Flávio Augusto Senra Ribeiro (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG) Francesco Tomasoni (Università Piemonte Orientale, Vercelli, Itália) Germán Vargas Guillén (Universidad Pedagógica Nacional de Colombia, Bogotá, Colômbia) Luís Felipe Cerqueira Pondé (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo-SP) Nelson Gonçalves Gomes (Universidade de Brasília, Brasília-DFl) Nicholas Zangwill (University of Hull, Kingston upon Hull, Reino Unido) Roberto Hofmeister Pich (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS) Scott Randall Paine (Universidade de Brasília, Brasília-DF) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Revista Brasileira de Filosofia da Religião/ Associação Brasileira de Filosofia da Religião. v. 1, n. 1 (2014). Brasília: ABFR, v. 1, n. 1, out./ 2014. Semestral ISSN - - versão eletrônica 1. Filosofia – Periódicos. I. Associação Brasileira de Filosofia da Religião CDU: 1(05) CDD: 105 REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 5 APRESENTAÇÃO A revista brasileira de filosofia da religião vem a lume em seu primeiro número, bem diversa em seus artigos, bem unida em suas metas. Publicada pela Associação Brasileira de filosofia da Religião esta revista pretende ser a expressão das reflexões sobre filosofia da religião em nosso país e em centros de estudos de pósgraduação nesta área de outros países. A revista terá dois eixos privilegiados de publicação: ? Artigos de professores brasileiros que estudam, debatam, exponham as diversas temáticas relativas à filosofia da religião: relação entre fé e razão, quadro de controvérsias nos quais se formaram ideias e sistemas de pensamento que hoje questionam ou afirmam a possibilidade da existência de Deus, por exemplo. É na pretensão de analisar visões conflitivas sobre esse e demais temas, as linhas demarcatórias entre argumentação filosófica e crença religiosa é que poderemos perceber como se articulam formas de racionalidade e em que campos elas se exercem. ? Traduções de textos de pesquisadores internacionais com relevante interesse em nossa área de pesquisa. Revista que pretende publicar pesquisa de excelência filosófica, a Revista Brasileira de Filosofia da Religião deseja receber contribuições originais de qualidade nos domínios acima relatados, multiplicar as perspectivas e favorecer o debate de ideias. Cada número (semestral) constará de diversos artigos que não estarão submetidos a um tema único por número, mas que pelo contrário, reflita a diversidade de questões que abrangem a filosofia da religião. Hubert Jean-François Cormier Editor REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 7 SUMÁRIO 5 Apresentação 9 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins Agnaldo C. Portugal 25 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig Maria Cristina Mariante Guarnieri 37 El ego amans Entre giro teológico y filosofía de la religión Germán Vargas Guillén 57 Uma saída do dilema de Eutífron Nick Zangwill 65 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teses kierkegaardianas e seus desdobramentos Marcio Gimenes de Paula 77 Normas para publicação REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 9 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins Teologia, Religião e Filosofia da Religião Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins Agnaldo Cuoco Portugal (*) Resumo: No presente artigo, analiso uma objeção de Richard Dawkins à tese de que a teologia pode ajudar a entender algo sobre nossas origens. Com uma crítica às posições de Dawkins, pretendo discutir o próprio conceito de teologia e sua relação com a filosofia, particularmente a filosofia da religião. Além disso, apresento também uma proposta de distinção entre a teologia, a religião e as ciências da religião. Por fim, delineio uma resposta à questão sobre o lugar da teologia no meio acadêmico-científico de hoje. Palavras chave: Richard Dawkins; teologia; religião; filosofia da religião (*) Universidade de Brasília - UnB [email protected] Abstract: In this article, I analyze a criticism by Richard Dawkins to the idea that theology may help us to understand something about our origins. With a criticism to Dawkins' view, I intend to discuss the concept of theology itself and its relationship with philosophy, particularly the philosophy of religion. In addition, I also present a proposal of distinction among theology, religion and the sciences of religion. In the end, I outline an answer to the question about the place of theology in today's academic and scientific environment. Key words: Richard Dawkins; theology; religion; philosophy of religion REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 10 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins 1. Teologia Numa famosa carta ao jornal britânico The Independent, publicada em 20 de março de 1992, o eminente biólogo da Universidade de Oxford, Professor Richard Dawkins, estabeleceu um paralelo entre ciência e teologia que pode ser útil como ponto de partida para nossa discussão. Assim diz a carta: Senhor Editor, Em seu editorial (18 de março) sombriamente fervoroso, clamando por uma reconciliação entre ciência e “teologia”, o senhor observa que “as pessoas querem saber o máximo possível acerca de suas origens”. Eu certamente espero que elas queiram, mas que diabos faz o senhor pensar que a “teologia” teria algo a dizer acerca do assunto? A ciência é responsável pelo seguinte conhecimento acerca de nossas origens. Sabemos aproximadamente quando o universo começou e porque é em grande parte hidrogênio. Sabemos por que as estrelas se formam, e o que acontece no interior delas para converter hidrogênio em outros elementos e assim dar origem à química num mundo de física. Sabemos os princípios fundamentais de como um mundo de química pode se tornar biologia por meio de moléculas autorreplicantes emergentes. Sabemos como o princípio de autorreplicação dá origem, por meio de seleção darwinista, a toda a vida, inclusive a humana. É a ciência e apenas a ciência que nos deu esse conhecimento e o deu a nós, acima de tudo, em pormenor fascinante, avassalador e mutuamente confirmatório. Em cada uma dessas questões, a teologia postulou uma visão que demonstrou ser conclusivamente errada. A ciência erradicou a varíola, pôde nos imunizar contra a maior parte dos vírus que antes eram fatais e pôde matar a maioria das bactérias que antes eram mortíferas. A teologia não fez nada a não ser falar de pestes como castigo pelo pecado. A ciência pode predizer quando um cometa qualquer vai reaparecer e, além disso, quando o próximo eclipse vai ocorrer. A ciência pôs o homem na lua e lançou foguetes de reconhecimento ao redor de Saturno e Júpiter. A ciência pode dizer qual é a idade de um dado fóssil e que o Santo Sudário é uma fraude medieval. A ciência sabe as instruções de DNA de vários vírus e vai, ainda durante a vida de muitos leitores atuais do The Independent, fazer o mesmo acerca do genoma humano. O que a “teologia” já disse que fosse do menor uso para qualquer pessoa? Quando a “teologia” já disse qualquer coisa que fosse demonstrativamente verdadeira e não seja óbvia? Já ouvi teólogos, li-os, debati com eles. Nunca ouvi nenhum deles jamais dizer qualquer coisa que fosse minimamente útil, qualquer coisa que não fosse ou trivialmente óbvia ou plenamente falsa. Se todas as aquisições dos cientistas fossem varridas amanhã, então não haveria médicos, mas curandeiros, nenhum transporte mais rápido que um cavalo, nenhum computador, nenhum livro impresso, nenhuma agricultura além do cultivo camponês de subsistência. Se todas as realizações dos teólogos fossem varridas amanhã, alguém notaria a diferença? REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 11 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins Até as más realizações dos cientistas, as bombas e os barcos baleeiros guiados por sonar, funcionam! As realizações dos teólogos não fazem nada, não afetam nada, não realizam nada, não chegam nem a significar coisa alguma. O que faz o senhor pensar que “teologia” é sequer uma disciplina? Atenciosamente, Richard Dawkins 1. Algo que logo chama a atenção na carta de Dawkins é que uma das principais críticas dirigidas à teologia - de que ela não faz nada de útil, que se suas realizações fossem varridas amanhã, haveria pouca ressonância na vida prática da maioria das pessoas - pode facilmente ser endereçada também à filosofia, à crítica literária e até à própria carta que ele mandou para o jornal. Que utilidade tem para a vida prática da maioria das pessoas saber se a teologia deve ou não ser considerada uma área do conhecimento? Isso não ajuda a curar doença alguma nem melhora nossas condições de conforto material. Em outras palavras, as ideias discutidas pela carta de Dawkins bem como as teses sustentadas pelos filósofos e teólogos não são produtos intelectuais que tenham utilidade prática e aplicações tecnológicas. No entanto, mesmo não sendo úteis no sentido em que, por exemplo, a farmacologia é útil, as pessoas insistem em desenvolver tais atividades intelectuais. Seriam elas irracionais por essa insistência? Na verdade, se formos levar a sério o famoso dito atribuído a Aristóteles (Protréptico, fr. 51) acerca da filosofia pelo menos, essas atividades são inevitáveis. Ao se negar a importância e a necessidade de se fazer filosofia já se está fazendo filosofia, só que de muito má qualidade, pois não se está sendo capaz de manter sequer um requisito básico do que classicamente se entende por racionalidade: a coerência. Em outras palavras, está-se negando de algum modo o que se está afirmando e isso é o que mais fundamentalmente se entende como irracional. Por possuir esse vício, a crítica de Dawkins à teologia transcrita acima acaba tendo pouco valor e desmerece um texto que, de resto parece bastante informativo e instigante. Lembra o modo como Hume finaliza suas Investigações acerca do Entendimento Humano (1748), quando critica a metafísica e a teologia por não conterem nenhum raciocínio sobre números e suas relações e sobre questões de fato. Livros que não possuíssem tais conteúdos, dizia ele, deveriam ser lançados às chamas. Hume pretendia que seu próprio livro fosse uma descrição factual de como se dá o conhecimento, mas o que se tem não é uma obra sobre aspectos imediatamente observáveis do modo como adquirimos e processamos o conhecimento e sim um conjunto de proposições conceituais acerca de como se deve entender o problema. Em suma, era um livro de filosofia e não de psicologia empírica. Hume não percebia a gravidade de sua incoerência, pois um excelente candidato à sua triste fogueira era seu próprio livro. Assim, a tese de que a teologia não merece respeito porque é inútil não tem a força que pretendia ter, pois atinge outras atividades teóricas que o autor não parece estar querendo rejeitar, como a filosofia, a matemática e as críticas à teologia. Se fôssemos levar a sério essa 1 Citado em Markham (1996), p. 21-2. Tradução própria. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 12 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins ideia, de só aceitar áreas do conhecimento que fossem úteis no sentido de resolver problemas de conforto material, restaria muito pouco em nossa vida intelectual. Além disso, em que sentido se pode dizer que a filosofia é inútil? Se ela surge de um interesse por questões conceituais de fundamento, como se pode dizer que a atividade que satisfaz esse interesse seja inútil? Mesmo não resolvendo nenhum “problema concreto” da “vida prática”2, como se pode dizer que, ao tentar esclarecer as vantagens da ciência sobre a teologia, o texto de Dawkins não seja útil? E se esclarecer questões que dizem respeito a ideias e concepções é uma atividade intelectualmente útil, por que excluir a teologia desse rol? Temos aqui uma primeira aproximação do conceito de teologia: um esforço intelectual de esclarecer determinadas ideias e concepções, particularmente, aquelas de origem religiosa. Nesse sentido, dizer que “a teologia não fez nada a não ser falar de pestes como castigo pelo pecado” não é só falso, como confunde crenças de fundo religioso popular com a tentativa de reconstrução racional dessas crenças religiosas, que a teologia busca efetuar. Mas voltemos a outras críticas de Dawkins à teologia. Ele afirma, por exemplo, que as proposições da teologia são em geral ou trivialmente óbvias ou plenamente falsas. No entanto, talvez “obviedade” não seja um conceito tão óbvio assim. Quando se diz que algo é evidente ou óbvio, quer-se dizer que aquela proposição é já de amplo conhecimento comum. Dito de outro modo, para se designar uma informação como óbvia, é necessário identificar com precisão o que constitui o conhecimento de fundo partilhado por uma determinada comunidade de sujeitos de conhecimento. Assim, para se avaliar se a proposição “p é óbvio” é verdadeira, é preciso que esteja claro de que grupo de sujeitos epistêmicos se está falando, pois em geral as pessoas têm - ou se pode esperar que tenham - diferentes graus de conhecimento e acesso a diferentes tipos de informação, e se aquela dada ideia p de fato é de conhecimento comum de todos os envolvidos. Infelizmente, o Professor Dawkins não indica nenhuma das duas coisas, faz uma asserção genérica acerca do que a teologia afirma e não especifica para quem ela seria óbvia. Tudo leva a crer que temos aqui outra crítica de pouco mérito. A tese de que as afirmações da teologia são plenamente falsas, porém, parece mais interessante. Um exemplo famoso é o da hipótese criacionista, baseada numa leitura literalista do livro do Gênesis, que se pretende uma melhor explicação acerca da origem do mundo e da vida do que a fornecida pela Física, Química e, principalmente, o ramo da Biologia que trata do surgimento e desenvolvimento das espécies, iniciado com a obra de Charles Darwin. Por ser exatamente desta área, Dawkins tem bons argumentos para mostrar o quanto a biologia evolutiva é muito mais explicativa, frutífera e capaz de fornecer um programa de pesquisa muito mais abrangente e promissor do que o criacionismo. Dado o conhecimento que se tem hoje acerca do mundo físico, é realmente muito provável que, do ponto de vista científico, a explicação da origem da vida e de como chegamos a ter os seres vivos que temos hoje com base numa leitura fundamentalista e literal da Bíblia seja falsa em termos científicos. 2 A própria enunciação dessas ideias é problemática, dado o caráter altamente impreciso do senso comum para o que seja um “problema concreto” e a “vida prática”, daí as aspas. Uma das funções da filosofia é exatamente de esclarecer e dar maior clareza a essas noções, quando isso é possível. À teologia cabe algo análogo, como veremos a seguir, embora restrito a noções de uma tradição religiosa. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 13 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins A leitura literalista da Bíblia, porém, é consequência apenas de um tipo determinado de teologia cristã. Há outros tipos de teologia acerca do que diz o Gênesis nos capítulos 1 e 3. Há, por exemplo, interpretações menos preocupadas com o valor de verdade factual daquelas passagens e mais voltadas para o sentido metafísico e poético de textos que foram escritos muito antes de se conceber o que hoje se entende por uma explicação científica. Para muitos teólogos, interessados em integrar religião e ciência, o que se tem no Gênesis é a ideia de que, não importa o mecanismo que tenha sido empregado (e que é tarefa da ciência descobrir), para judeus, cristãos e muçulmanos, a razão última da existência do mundo, o por quê de algo existir afinal, é a ação de Deus. Enquanto concepção metafísica, tal tese pode ser criticada de várias maneiras, mas não por sua inadequação às informações científicas empíricas, pois não se criticam teses metafísicas dessa maneira. Ou seja, enquanto tese metafísica, pode-se acusar o teísmo (a tese de que existe um ser pessoal que é criador e mantenedor do universo) de incorrer em problemas difíceis de resolver (como o problema do mal, por exemplo), pouco simples ou pouco frutífero para a pesquisa científica, mas não de ser inadequado aos dados de que dispõem os cientistas. Teses metafísicas são pressupostos para a atividade de pesquisa empírica. Ao defender que não há nada além da natureza, tal como descrita pelas ciências naturais (tese a que se pode chamar de “naturalismo”), Dawkins está enunciando uma tese metafísica, que não tem como ser negada pela atividade científica, mas tampouco tem como ser confirmada por esta. Na verdade, há toda uma linha de argumentação recente em favor da tese de que o naturalismo não é apenas problemático, mas autorrefutador e incapaz de sustentar a 3 atividade científica sem ser incoerente com suas teses mais básicas . Em todo caso, um grande problema da crítica de Dawkins é não perceber que há diversos modos de fazer teologia, assim como há vários modos de se fazer filosofia. Não só há vários modos de se fazer teologia, mas há também diversas áreas possíveis dentro de uma teologia, abrangendo diversos aspectos de uma dada religião. No caso mais familiar para nós, o do cristianismo, temos não só uma Teologia Sistemática, que visa dar uma forma teoricamente mais coerente e concatenada aos conteúdos da revelação religiosa, como também uma Teologia Bíblica, cujo objeto é compreender o modo como Deus e sua revelação se apresentam no texto das escrituras, interpretando-as com os recursos da hermenêutica e da teoria literária, por exemplo, ou ainda uma Teologia Moral, cujo objeto é a sistematização do conteúdo da revelação cristã com relação ao problema da conduta humana e das relações interpessoais. Nesse sentido, afirmar que são falsas as afirmações da teologia é extremamente implausível, pois se está falando de um grande número de disciplinas que se referem a vários tópicos da religião revelada e quanto maior o âmbito a que se refere uma proposição universal maior a probabilidade inicial de ela ser falsa. Assim, a teologia não é uma única disciplina, assim como “a ciência” não o é, mas um conjunto de disciplinas que buscam estudar e sistematizar o conteúdo doutrinal revelado de uma religião, um estudo que é feito, nos seus melhores exemplos, pelo menos, com sofisticados e rigorosos recursos intelectuais. 3 Não cabe desenvolver esse tema da crítica ao naturalismo aqui, mas o leitor interessado pode aprofundar seu conhecimento sobre o debate em textos como Rea (2002), Reppert (2003), Beilby (2002) ou mesmo Portugal (2013). REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 14 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins Nesse sentido, em que medida se pode dizer que uma teologia tenha algo a dizer sobre as origens? Talvez Dawkins tenha razão na sua crítica do que parece ser a ideia do autor do editorial do The Independent, ou seja, de uma teologia com pretensões de informação sobre o mundo ao modo das ciências naturais. Se a teologia tem algo a dizer sobre as origens, não o é em termos factuais, ao modo das ciências da natureza, mas, com base numa revelação específica acerca da relação do homem com o sagrado, visando apresentar uma resposta particular para o problema do sentido fundamental da existência, uma questão que não é científica, mas bastante próxima do que chamamos de “questões últimas”. Nesse sentido, a teologia se aproxima da filosofia, embora se distinga em muitos outros, como, por exemplo, a existência de uma ortodoxia teológica, medida pelo grau de fidelidade (supervisionada e guardada por uma instituição eclesiástica, muitas vezes) a um texto considerado sagrado, que é algo que não se encontra em filosofia, pela inexistência de textos propriamente sagrados nesse campo de estudos e de instituições com esse tipo de poder. Por outro lado, nisso que há de comum entre filosofia e teologia – uma abordagem do problema do sentido fundamental da existência –, é possível questionar se se trata realmente de algo que interesse a todos os filósofos, ou que a Filosofia possa dizer alguma coisa sobre “sentidos fundamentais”. Talvez essa não seja mesmo uma questão que interesse a todos, mas será que existiria alguma questão na Filosofia que devesse interessar a todo mundo? O fato é que muitos filósofos se dedicam a essa questão, do mesmo modo que há aqueles que participam dessa variada atividade intelectual que acima chamamos “teologia” e se dedicam a assuntos que não têm relação com a filosofia, com a diferença básica de que os filósofos se baseiam em concepções e ideias de origem humana, enquanto os teólogos se reportam a fontes tomadas como sagradas por uma determinada comunidade. Em todo caso, Dawkins parece ter razão em negar que a teologia possa ter algo a dizer sobre as origens num sentido de informações sobre o que de fato aconteceu no início, mas é ainda possível que ela tenha algo a dizer - pelo menos para um conjunto de pessoas - sobre a razão, o sentido fundamental disso que aconteceu, com base num conjunto de concepções de fundo religioso. Assim, para entender melhor o que vem a ser teologia, precisamos analisar o conceito de religião, o que será tentado em seguida. 2. Religião Como vimos, enquanto a teologia diz respeito a disciplinas de estudo de certo conteúdo doutrinal ou da experiência comum de uma religião, a religião é a atividade propriamente dita a que se referem essas mesmas disciplinas. A maior dificuldade que se encontra para conceituar a religião é a variedade de fenômenos que se incluem sob esta rubrica, a ponto de darem origem a teologias incompatíveis. Um bom exemplo se configura na comparação entre cristianismo e budismo. Enquanto o primeiro postula a existência de um Deus ao mesmo tempo transcendente, pessoal e atuante na história, o segundo defende que o sentido da vida está em se buscar um estado de completa indistinção entre o eu e o REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 15 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins outro, seja este “outro” qualquer objeto ou pessoa. No budismo, não se fala de um deus ao qual o crente busque se aproximar, ao qual este louve, agradeça e ore por auxílio, mas sim a postulação de um estado no qual há completa ausência de sofrimento e da ilusão de multiplicidade, e uma busca de integração na harmonia desse todo indistinto. Trata-se de uma doutrina religiosa e não de uma teologia, pois o conceito de Deus não é central, considerando-se a concepção monoteísta clássica (judaica, cristã e muçulmana) como modelo. O problema é que não precisamos considerá-la como modelo. Por mais importante que seja essa concepção, existem várias outras maneiras de se conceber esse elemento absoluto com o qual se busca um relacionamento na religião e ao qual podemos denominar “Deus”. Assim, há várias maneiras de se conceber “Deus” e, mais que isso, várias maneiras de se ser religioso e de se ser ateu. Talvez não seja no elemento doutrinal que devamos buscar o que haja de comum entre as diversas manifestações do que chamamos de religião, pois, como vimos, a diversidade de crenças chega a casos que parecem impossibilitar encontrar um mínimo denominador comum. Uma boa sugestão seria investigar aquilo que se chama o elemento experiencial ou vivencial pré-reflexivo da religião, ou seja, o componente pelo qual o adepto de uma religião se percebe ligado ou em busca de uma realidade que transcende o seu aqui e agora, que se revela com um valor todo especial e distinto do cotidiano e que confere à sua vida e ao que acontece após a morte um sentido profundo. A religião seria, assim, fundamentalmente, a experiência de uma relação com o absoluto, com aquilo que é radicalmente diferente do que temos no dia-a-dia e que inspira por vezes terror, por vezes fascínio em graus variados e cujo relacionamento é mediado por práticas cuidadosamente elaboradas a que se chamam rituais. O complexo fenômeno religioso, assim, é, antes de tudo, uma atividade humana, que se dá como resposta à experiência de algo que é tido como totalmente outro em relação à realidade comum, “o sagrado”, voltada para o contato com esse sagrado, que é postulado como o que confere sentido último à existência4. Enquanto atividade humana, a religião pode se relacionar com diversos outros âmbitos da vida. Por exemplo, a maioria das grandes religiões globais tem um conjunto de preceitos éticos a serem seguidos por seus adeptos, a fim de que estes se conduzam da melhor forma possível segundo o referencial absoluto, tal como concebido por aquela doutrina específica. Além do aspecto ético, a religiões têm uma importante função de coesão e ordenamento social, na medida em que, por exemplo, instituem certos grupos como autoridades no ensino da respectiva doutrina, determinam o ritmo temporal de um grupo social e estabelecem padrões de ordem e caos que balizam as ações dos indivíduos em sociedade. Inúmeros outros aspectos da vida tais como a economia, a política, a arte e a ciência têm interessantes e importantes relações com a religião. Esta se revela, então, um fenômeno não só multifacetado, mas que envolve vários outros aspectos da existência humana, uma vez que seu objeto ou sua busca é o próprio sentido dessa existência. 4 Essas ideias estão fortemente baseadas nas concepções de Rudolf Otto (1997 [1917]), que são de fato uma referência muito comum nas tentativas atuais de conceituar religião. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 16 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins 3. Filosofia da Religião “Filosofia da religião” é uma expressão moderna que designa uma disciplina filosófica que inclui temas da metafísica clássica, como a investigação da causa primeira do que há - um tema que já encontramos em Platão e Aristóteles -, discussões fortemente presentes na filosofia medieval e moderna, como as provas da existência de Deus, e debates mais modernos como a epistemologia da crença em Deus e as críticas à religião do ponto de vista prático. Trata-se, portanto, de uma área com fortes raízes na tradição filosófica ocidental, remontando ao pré-socrático Xenófanes de Cólofon, que ainda no século VI a.C. já criticava as religiões populares por sua concepção antropomórfica e distorcida do divino (fragmentos 169 a 172, cf. Kirk & Raven, 1990, p. 169). A relação entre filosofia e religião já começava conflituosa entre os gregos antigos, um conflito que ficou ainda mais agudo na filosofia moderna e contemporânea. No entanto, atitudes mais conciliadoras e compreensivas entre a razão filosófica e a forma de vida religiosa também foram cultivadas ao longo da tradição filosófica do ocidente. Apesar de boa parte do que se chama de filosofia da religião ainda hoje se voltar para os problemas relacionados ao conceito de Deus, uma importante distinção deve ser feita entre os esforços empreendidos pela filosofia e pela teologia em relação a esse mesmo objeto de investigação. Enquanto a teologia busca sistematizar os conteúdos de uma determinada fé revelada, a filosofia da religião se volta para os conceitos pressupostos tanto na religião revelada quanto na teologia. Trata-se, então, de um empreendimento que parte, não da autoridade de uma revelação, mas da indagação racional autônoma sem compromisso prévio com nenhuma doutrina religiosa e interessada apenas naquilo que possa ser justificado em termos da razão humana. Ela se dedica, então, à análise das características e paradoxos envolvidos no conceito de Deus, tal como proposto na tradição monoteísta, acerca da qual a tradição filosófica se ocupou com maior profundidade. A essa área mais do que central na filosofia da religião dá-se o curioso nome de “teologia natural”, embora ela não seja nem teologia, mas filosofia, nem natural, mas uma investigação estritamente conceitual e argumentativa. Essa diferença no ponto de partida entre a teologia e a filosofia - a primeira, na revelação e a segunda, na indagação crítica - está na raiz de um dos problemas mais tradicionais da história da filosofia da religião: o da relação entre fé e razão. As mais diversas abordagens foram aparecendo ao longo desse trabalho de reflexão e debate na história da filosofia. Tem-se desde uma recusa a usar os parâmetros da razão filosófico-científica para se discutir assuntos religiosos - que, para uns, teriam sua própria racionalidade e critérios de compreensão e, para outros, seriam inteiramente irracionais - até as tentativas de conciliação que visavam mostrar que os mesmos modelos de aceitabilidade intelectual da ciência deveriam ser empregados na avaliação de crenças religiosas. O problema da racionalidade da crença religiosa é um dos mais discutidos pela filosofia contemporânea da religião e ele se REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 17 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins justifica não só por sua importância em si, como também pela possibilidade de se poderem aplicar suas abordagens para o problema da justificação de outros tipos de crença, como as envolvidas na avaliação de hipóteses, as da vida cotidiana e as crenças de cunho moral5. Não só a possível irracionalidade da crença religiosa motivou a análise filosófica contemporânea a respeito da religião. Problemas relativos ao modo como se relacionam liberdade e vida religiosa, particularmente a cristã, também geraram críticas fortes por parte de filósofos modernos e contemporâneos. Numa determinada interpretação da perspectiva cristã, a liberdade é uma dádiva divina, que deve ser usufruída sempre se tendo em vista a autoridade e o referencial do absoluto, ao qual o cristão se sente chamado. A ênfase parece ser mais no compromisso e na entrega para Deus do que na busca de fruição da liberdade. O ponto de vista dos críticos modernos e contemporâneos da religião defende uma noção de liberdade na qual o eu individual ocupa um lugar privilegiado e cuja realização máxima se dá no usufruto de um poder fazer com um mínimo de limites externos ao seu querer. O conflito se manifesta em vários autores, mas assume dimensões particularmente dramáticas com Nietzsche, Feuerbach, Marx e Freud, os chamados “mestres da suspeita”. São filósofos ditos ateus (em relação ao monoteísmo tradicional, pelo menos) extremamente importantes para quem deseja ter familiaridade com a filosofia da religião atualmente. É importante notar, então, que essa área da filosofia acadêmica que se dedica aos conceitos fundamentais envolvidos no fenômeno religioso não tem nenhum compromisso em princípio com a defesa da legitimidade dessa atividade humana. Em outras palavras, aquele que critica a religião e rejeita as principais noções nela envolvidas com base em argumentos ou especulações conceituais também está fazendo filosofia da religião, o que é mais um indício da autonomia da disciplina em relação à teologia e à religião. É por isso que não se pode esperar da filosofia da religião nenhum tipo de “convencimento” acerca das verdades ou inverdades religiosas, um incremento seja da fé seja da descrença, pois o propósito é estritamente o de discussão e avaliação teórica, apresentando-se as alternativas de entendimento julgadas mais importantes na tradição filosófica sobre o tema. É certo que tanto o crente quanto o descrente podem se beneficiar das reflexões feitas na disciplina - seja no sentido de confirmação da crença que já possuía seja no sentido de mudar de posição -, mas é importante frisar que a disciplina não tem um objetivo proselitista catequético, de educação para a fé, qualquer que seja ela. Outra distinção importante é entre filosofia da religião e a exposição das diferentes doutrinas religiosas, ao modo de um panorama informativo de cultura religiosa. Certamente o filósofo da religião precisa de certo grau de informação acerca das crenças e formas concretas de vida religiosa. No entanto, trata-se apenas de um ponto de partida, para que ele se concentre na análise e discussão conceitual, que é o que se pode entender como uma abordagem propriamente filosófica de um problema. Isso não significa que se rejeite inteiramente o método de se discutir as concepções metafísicas e epistemológicas eventualmente presentes nas diferentes doutrinas religiosas. De certo modo, é um pouco 5 Trato desse assunto com mais profundidade em Portugal (2010). REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 18 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins disso o que se faz quando se discute o conceito de Deus comum às grandes religiões monoteístas. No entanto, mesmo nesse caso, os elementos crítico, especulativo ou de análise conceitual são mais importantes num trabalho de filosofia da religião que a exposição das concepções doutrinais ou a sistematização das experiências de uma determinada tradição religiosa. Assim, é possível distinguir filosofia, teologia e religião, mas certamente há grandes zonas cinzentas entre esses conceitos, com intersecções e sobreposições que podem frequentemente tornar difícil em certos casos concretos a distinção que se pretendeu defender aqui. Em todo caso, como se diz popularmente, não é porque há crepúsculo e amanhecer que não se pode claramente diferenciar o dia da noite. 4. Ainda Há Lugar para a Teologia num Mundo de Ciência? Voltemos, então, à questão que Dawkins discutiu em sua carta. Teria a teologia ainda algo a dizer em vista do avanço do conhecimento em ciências naturais? Na resposta que dei acima, tentei mostrar que a própria carta em que o biólogo inglês apresentou suas ideias era uma mostra do contrário daquilo que ele parecia defender, ou seja, na medida em que o que ele estava fazendo não era um trabalho em ciências naturais, ficava claro que não se pode pretender que essas encerrem todo o conhecimento que possamos ter sobre todas as questões. Dawkins estava fazendo filosofia e mesmo que suas ideias filosóficas pretendam se basear e defender o papel central das ciências naturais na compreensão humana da realidade, isso não é o mesmo que fazer ciências naturais. A observação acima, porém, só diz respeito a um dos lados do problema. Mesmo que as ciências naturais não digam tudo sobre a realidade nem encerrem todo o conhecimento que possamos ter, haveria ainda algum lugar para a teologia no panorama acadêmico do mundo de hoje? Para responder essa questão, é melhor sermos um pouco mais precisos. Tanto no contexto de Dawkins quanto em nosso contexto, talvez ajude a dar uma resposta mais clara ao problema se nos restringirmos à noção de teologia cristã, que é a predominante na história da cultura ocidental. Isso não significa que outras concepções de divindade de outras culturas também não possam contribuir, mas o exercício argumentativo que tentarei a seguir fica mais simples e de mais clara aplicação a outras tradições se for limitado ao cristianismo, sem contar a inegável hegemonia dessa religião em nossa formação cultural em quase todos os seus elementos fundamentais. Para ser tida como uma área do conhecimento, a teologia precisa de credenciais que a distingam de simples opinião por meio de um método ou conjunto de métodos de crítica e justificação objetiva de suas teorias. Etimologicamente “teologia” seria simplesmente a ciência de Deus, tal como a biologia é a ciência da vida, mas certamente a Teologia não é científica como é a Biologia, pois esta última é uma ciência empírica, enquanto a Teologia lida com algo que está para além da possibilidade de teste empírico. Embora as ciências formais, como a Matemática e a Lógica tampouco tenham teorias sobre as quais caibam testes REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 19 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins empíricos, certamente a Teologia não é também uma ciência deste tipo, pois ela não se resume a tautologias, estruturas formais ou simples relações de ideias, ou seja, ela se pretende informativa sobre um tipo de realidade que não é tida como construção ideal apenas. Em grande medida, o trabalho básico do teólogo é de interpretar textos considerados sagrados por uma comunidade de adeptos de uma tradição religiosa ou de reelaborar – no sentido de sistematizar e colocar numa forma mais coerente – a experiência religiosa comum dessa comunidade. Com base nessa interpretação textual e dessa sistematização, o teólogo apresenta as doutrinas que constituem o credo dessa tradição e as orientações para o aperfeiçoamento da experiência religiosa e para a vida em geral dos adeptos da tradição. Em outros termos, o teólogo se dedica ao estudo de textos sagrados e da experiência religiosa de uma comunidade e propõe uma compreensão da concepção de Deus e da relação deste com o mundo, que sirva para o aprofundamento da experiência religiosa e para o aperfeiçoamento da ação dos membros da comunidade. É na medida em que o trabalho de interpretação textual se dá de forma crítica, bem fundamentada em conhecimentos históricos, geográficos, dos idiomas originais e outros necessários para essa tarefa, e na medida em que a sistematização doutrinal e pastoral se der de modo bem argumentado e coerente com as fontes textuais e experienciais da fé que o trabalho do teólogo vai adquirir credenciais epistêmicas positivas para ser considerado de uma área do conhecimento. Isso significa que, embora não seja como as ciências naturais ou como as ciências formais, a teologia teria um status epistemológico de discurso crítico objetivo, objeto de avaliação de uma comunidade de pesquisadores especializados e, portanto, não trivial, ou seja, para além da opinião comum. No caso de que estamos tratando, então, a teologia seria a área de conhecimento que estuda a noção cristã de Deus e sua relação com o mundo, além de dar elementos para orientar a prática de seus adeptos de forma coerente com essa noção, mas o seu estudo pode ser de interesse mesmo daqueles que não são cristãos. Assim, na concepção apresentada aqui, estudar teologia serviria para entender o cristianismo tal como visto a partir de si mesmo em termos de seus ideais (em contraste com o cristianismo que se deu ou se dá historicamente, que seria da área de estudo do historiador ou do sociólogo). Desse modo, o estudo da teologia se justifica na medida em que é importante entender como o cristianismo se autocompreende fundamentalmente e na medida em que é importante saber o que ele propõe sobre diferentes dimensões da vida. A importância do cristianismo no debate sobre essas variadas questões tem pelo menos três facetas: uma primeira seria a influência histórica deste nas instituições e concepções atuais, a segunda estaria na influência social e cultural que ele tem no mundo de hoje e a terceira se liga à contribuição que o cristianismo pode dar para a melhor compreensão de um assunto em termos conceituais, independente de seu papel na história e na sociedade atual. A importância histórica do cristianismo na formação das mais importantes instituições e valores da civilização ocidental é tão fundamental que deveria prescindir de REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 20 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins defesa. No entanto, livros como How the Catholic Church Built Wester Civilization, de (Woods, 2012) e Religion and the Rise of Modern Science (Hooykaas, 1972) – para dar apenas dois exemplos – cumprem um papel importante na lembrança de que, sem o cristianismo (nas suas diferentes denominações), a civilização ocidental não teria a ciência moderna, a economia de mercado, os direitos humanos e muito de suas ideias fundamentais, de suas artes plásticas, música e literatura. Contudo, apesar de previsões catastróficas como as de Freud em O Futuro de uma Ilusão (1927) ou do capítulo final de Darwin's Dangerous Idea (1995) de Daniel Dennett, o cristianismo não é importante só por seu passado, que deveria ser respeitado como uma venerável peça de museu. Sua presença no mundo de hoje é um fato que não pode ser negado. Embora essa presença na vida pública já não seja a que teve alguns séculos atrás, não se pode negar a força política e social do cristianismo não só em países como o Brasil, onde quase a totalidade da população se declara cristã, mas também nos Estados Unidos e mesmo no 6 secularizado Reino Unido e até na oficialmente ateia China . Não deixa de ser curioso como o próprio Richard Dawkins reconhece essa força ao propor a manutenção de costumes e celebrações de origem cristã como o Natal e a leitura da Bíblia, mesmo numa suposta cultura de base científica e pós-cristã, que ele antevê ou propõe em seu The God Delusion (2006, p. 344). Uma força social e política como essa não pode ser negligenciada e a Teologia tem muito a contribuir para sua compreensão. Mas não é apenas por fatores históricos ou sócio-político-culturais que o estudo do cristianismo (e da Teologia como entendimento deste a partir de si mesmo em termos ideais) se justifica. Desde o final dos anos 1960 em diante, vem crescendo na filosofia contemporânea um movimento no sentido de encontrar em teses teológicas de origem cristã ou da concepção teísta de Deus em geral elementos para responder problemas conceituais de fundamento. Trata-se de uma inversão da ideia medieval de filosofia como serva da teologia e, nesses tempos de forte secularização do meio acadêmico-científico, é possível que seja o máximo que se possa esperar de colaboração positiva entre Teologia e Filosofia. Devido a limites de espaço, vou indicar brevemente alguns exemplos apenas. Em filosofia política, diante dos impasses enfrentados pelo multiculturalismo, o relativismo de valores e a perda de legitimidade das instituições, Roger Trigg recentemente propôs um resgate das bases cristãs dos principais conceitos políticos ocidentais como igualdade, respeito à diversidade e direitos humanos em Religion in Public Life (2007). Não se trata de propor uma teocracia ou coisa do tipo, obviamente, mas de ver que noções tão caras e fundamentais do pensamento político moderno e que têm origem cristã não precisam ser jogadas fora numa cultura política secular e ao lidar com pessoas e grupos pertencentes a culturas não ocidentais. Um segundo exemplo se refere ao problema das bases metafísicas da ciência moderna, ou a questão acerca do tipo de concepção geral de mundo que seria mais apropriada para o estabelecimento e o florescimento da ciência moderna. A esse respeito, Alvin Plantinga (2011) faz ao mesmo tempo uma forte crítica do naturalismo ontológico – o tipo de ontologia predominante no 6 Segundo matéria recente do Daily Telegraph (2014), a continuar no ritmo das últimas décadas, a China deverá ter algo próximo a duzentos e cinquenta milhões de adeptos em 2030, tornando-se o país com a maior população cristã do mundo. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 21 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins meio acadêmico-científico atual – e uma defesa do teísmo cristão. Este último seria uma teoria geral da realidade muito mais adequada para uma atividade que supõe tanto um mundo ordenado quanto a possibilidade de que o esforço intelectual humano possa entendêlo. Em filosofia da mente, uma área particularmente dominada por propostas naturalistas, timidamente o dualismo de substância – como o de Richard Swinburne (2013), que prefere chama-lo de “dualismo interativo” – vem aos poucos, desde uma base teísta, mostrando que ainda tem a contribuir para pensar melhor sobre problemas difíceis como o significado da consciência e sua relação com eventos e entidades físicas. Por fim, gostaria de mencionar uma contribuição nesse esforço de apresentar respostas de origem teológica para problemas filosóficos que tem a ver com o início deste artigo: o problema das nossas origens. Refiro-me ao esforço do teólogo norte-americano John Haught para mostrar que a explicação das ciências naturais não é a única que há para uma diversidade de fenômenos como a ética e os valores, a ação intencional e mesmo a origem da vida. A respeito desta última questão, a teologia apresenta a ideia de que a vida tem origem na criação de Deus. Descartando-se a interpretação literal criticada acima, o que isso poderia significar? Segundo Haught, podemos falar, de um lado, da enorme dificuldade de se explicar esse fenômeno (simbolizada pelo fato de que Deus mesmo é, no fim das contas, um mistério inescrutável) e, de outro lado, que vida tem características tais que fazem pensar em razões adicionais às causas materiais para sua origem (Haught, 2006). Assim, em primeiro lugar, o tema é particularmente complexo a ponto de haver várias teorias postuladas e nenhuma delas dispor de corroboração clara, ou seja, toda a aparência de haver uma explicação simples e pacificada sobre esse assunto que Dawkins sustenta em sua carta não tem fundamento. Mas, mesmo que se consiga achar uma teoria claramente corroborada, a explicação teológica ainda contribui no sentido de mostrar o caráter extraordinário da vida em um universo conhecido composto quase que inteiramente de matéria inorgânica. Voltada para o que pode ser estudado objetivamente, a ciência toma o que é desprovido de vida como o que pode ser conhecível por excelência e, portanto, deve ser tido como o verdadeiro fundamento da realidade. A vida é uma exceção desviante, que a ciência procura explicar em termos do que não tem vida, ou seja, uma explicação da vida em termos padrão, de grande aceitabilidade científica, seria por redução à química e à física, como vimos Dawkins dizer em sua carta. O problema é que a vida é evidentemente diferente da matéria inorgânica, embora seja também regida pelas leis da química e da física e seja composta de substâncias desse tipo. A dificuldade com a qual o naturalista deve lidar é a de explicar o salto que a natureza parece ter dado ao dar origem à vida. A explicação naturalista se refere normalmente à noção de informação, no sentido de um conjunto de instruções necessárias para formar um padrão específico como o que temos no DNA ao se replicar. O problema, porém, apenas se transfere: e de onde veio essa informação codificada na célula? Para Haught: O processamento de informação que codifica os resultados específicos na vida orgânica, não importa quão gradual tenha sido sua chegada à terra e REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 22 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins não importa quão simples eram as primeiras células, torna a vida descontínua lógica e ontologicamente com o mundo inanimado. (Haught, 2006, p. 65) É claro que o DNA é ainda explicável em termos químicos e físicos, mas a informação que sua sequência específica traz não é logicamente redutível à química e à física, e esse é um grande problema a ser enfrentado pelas ciências naturais nesse assunto. Haught faz questão de frisar que não se trata de a teologia propor Deus como uma explicação alternativa à explicação científica do surgimento da informação num mundo de física e química. Cabe à ciência tentar explicar esse surgimento, não à teologia. É por isso que ele suspeita de teorias pretensamente científicas como o design inteligente, pois podem ser teologicamente suicidas ao ligar demais fatos objetivos à ação divina, ao colocar a ação de Deus na linha da série de fatores causais objetivos. Por outro lado, ele entende que o modo como a informação surgiu no mundo material é uma boa analogia do modo como pode haver uma influência operando na natureza que não é redutível à força material comum. É possível, assim, falar que a vida não é resultado de processos físicos e químicos apenas. É algo natural, mas não puramente material e, ao mesmo tempo, não suspende as leis físico-químicas em vigor. Nesse sentido, a teologia se proporá oferecer uma explicação em termos de causa primeira, de um poder e inteligência infinita, que permite e suscita o surgimento de algo complexo e excepcional como a vida. Isso deixa as ciências livres para buscarem causas segundas naturais. A consequência disso é a teologia permitindo dar sentido ao mistério fascinante na questão da emergência da vida e abrindo a possibilidade para que ele possa ser explicado cientificamente. Por sua vez, a ciência poderá reconhecer na metáfora teológica que a explicação científica tem diante de si uma imensidão encantadora e sempre desafiadora para lidar. Seria isso trivial e óbvio como diz Dawkins em sua carta? Por um lado, claramente não é nem uma coisa nem outra, pois temos acima exatamente o contrário de um pensamento que defende o cientificismo e o naturalismo ontológico que ele parece defender em seu texto. Por outro lado, talvez o seja para quem já está imbuído de valores e crenças metafísicas fundamentais para as ciências naturais. Porém, é preciso lembrar que sua origem remonta aos postulados teístas de que o mundo é ordenado e que nossa inteligência é capaz de entendê-lo em alguma medida. Assim, como tentei defender neste texto, a teologia pode nos ajudar a entender a origem de ideias que estão no alicerce mesmo da atividade científica e de outros traços essenciais de nossa cultura, pode nos ajudar a entender muito do que se pensa e se faz em vista da influência do cristianismo no mundo de hoje e pode nos ajudar a dar respostas para problemas filosóficos sempre difíceis e desafiadores. Em outras palavras, se parece trivial e óbvio é porque essas ideias já são pressupostos arraigados e, nesse caso, fazse necessário um trabalho de revelar as origens conceituais e históricas desses pressupostos; um trabalho que, em grande parte, pelo menos, cabe ao teólogo. Sem dúvida, as respostas da teologia para a compreensão de nossas origens são REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 23 Teologia, Religião e Filosofia da Religião - Algumas Distinções a partir de uma Crítica a Richard Dawkins problemáticas, mas pelo menos não negam aquilo mesmo que elas estão fazendo ao falarem desse assunto. 5. Bibliografia ARISTÓTELES. Protréptico. Una exhortación a la Filosofía. Madrid: Abada, 2010. BEILBY, James (ed.) Naturalism Defeated? - Essays on Plantinga's Evolutionary Argument Against Naturalism. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2002. DAWKINS, Richard. The God Delusion. New York: Houghton Mifflin, 2006. HAUGHT, John. Is Nature Enough? Meaning and Truth in the Age of Science. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. HOOYKAAS, R. Religion and the Rise of Modern Science. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1972. KIRK, G. S. & RAVEN, J. E. Os Filósofos Pré-Socráticos. Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1990. MARKHAM, Ian S. (ed.). A World Religions Reader. Oxford: Blackwell, 1996. OTTO, Rudolf. Das Heilige. München: C. H. Beck, 1997 [1917]. PLANTINGA, Alvin. Where the Conflict Really Lies. New York/Oxford: OUP, 2011. PORTUGAL, Agnaldo Cuoco. Bertrand Russell e o debate atual sobre Fé e Razão. Síntese (Belo Horizonte), v. 40, p. 407-426, 2013. ________________________. Filosofia Analítica da Religião como Pensamento Pós-"Pós-Metafísico". Horizonte: Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião (Belo Horizonte), v. 8 (16), p. 80-98, 2010. REA, Michael. World Without Design – The Ontological Consequences of Naturalism. Oxford: Oxford University Press, 2002. REPPERT, Victor. C. S. Lewis's Dangerous Idea. Downers Grove, IL: IVP Academic, 2003. SWINBURNE, Richard. Mind, Brain and Free Will. Oxford: OUP, 2013. TRIGG, Roger. Religion in Public Life. Oxford: OUP, 2007. WOODS, Thomas E. How the Catholic Church Built Western Civilization. New York: Perseus, 2012. http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/asia/china/10776023/China-on-courseto-become-worlds-most-Christian-nation-within-15-years.html, acessado em 4 de maio de 2014. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 25 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig Maria Cristina Mariante Guarnieri (*) Resumo: Franz Rosenzweig (1886-1929) é considerado por muitos autores como um grande expoente do pensamento judaico. Iniciou seus estudos em medicina, mas aos vinte anos assume seu interesse por história e pela filosofia e, em 1908, inicia a sua tese de doutorado sobre a filosofia de Hegel. Paralelamente às pesquisas sobre Hegel, Rosenzweig experimenta a possibilidade de converter-se ao cristianismo, mas descobre nessa busca que essa conversão não era mais necessária. Começa a seguir os cursos de Hermann Cohen com o intuito de redescobrir o significado das raízes judaicas. Este é o início de sua reflexão sobre a questão teológica: um “novo pensamento” que possui como categoria fundamental a Revelação. Rosenzweig utiliza o judaísmo como método, o que faz dele um pensador religioso; seu pensar sobre o problema teológico busca, conceitualmente, uma direção menos dependente da Grécia. Nossa intenção nesse ensaio é tratar do encontro entre filosofia e teologia no pensamento de Franz Rosenzweig e seus desdobramentos na questão do conhecimento. (*) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP Palavras chave: Filosofia, Teologia, Conhecimento, Diálogo, Franz Rosenzweig O Judaísmo é meu método, não meu objeto. Franz Rosenzweig REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 26 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig Diante de sua própria experiência como judeu, historiador, e intelectual que se encontrava no debate com o racionalismo do início do século XX, Rosenzweig estabelece uma forte crítica à modernidade, enfatiza a importância da linguagem e do diálogo, que acontece na situação concreta, que é limitada pelo tempo e pelo espaço. Leora Batnitzky (2011) analisa a complexa relação do judaísmo com questões modernas que nos trouxeram os termos de nação, cultura e religião. Ao se perguntar sobre como teria sido a trajetória do judaísmo para se tornar uma religião, Batnitzky analisa as diversas tensões conceituais presentes nesse processo. Para autora, Martin Buber e Rosenzweig são responsáveis pela ênfase ao retorno à uma vida autêntica que foi bloqueada pela modernidade. “Experiência, e não racionalidade, eles argumentam [Buber e Rosenzweig], é a base da vida judaica.” (Batnitzky, 2011, p.73) O que estamos chamando de filosofia hebraica em Rosenzweig é o que faz dele um pensador religioso, isto é, ao afirmar utilizar o judaísmo como método, o pensamento do autor sobre o problema teológico está buscando, conceitualmente, uma direção menos dependente da Grécia. Nossa intenção nesse texto é tratar do encontro entre filosofia e teologia no pensamento de Franz Rosenzweig e seus desdobramentos na questão do conhecimento. O judaísmo como experiência O renascimento do pensamento judaico no séc. XX, que está intimamente ligado com a emancipação política dos judeus a partir do Iluminismo na Europa, trouxe como resultado prático a submissão de muitos judeus a assimilação cultural e a integração social. Sem dúvida, uma ruptura com as próprias raízes, vivida por Rosenzweig como uma crise, que criará uma tensão significativa em seu trabalho intelectual. A conversão ao cristianismo era o caminho natural no processo de assimilação e Rosenzweig, tal como os fundadores da fé cristã, decidiu trabalhar nessa conversão buscando um conhecimento maior sobre o próprio judaísmo. Rosenzweig passou a freqüentar os serviços sinagogais que o levaram a uma intensa experiência, vivida solitariamente, no Yom Kippur de 1913. A decisão de não mais se converter, tomada após essa experiência, é relatada em uma carta para seu primo Rudolf Ehenberg, onde ele conclui que havia se tornado impossível a conversão e que permaneceria judeu. 1 Em carta a Friedrich Meineck e ele relata um pouco dessa sua experiência: Em 1913, ocorreu-me algo, quando tenho de falar a respeito, indico com o termo “desmoronamento”. Achei-me de repente num campo em ruínas, ou melhor, dei-me conta de que o caminho percorrido até então levava à irrealidade. Era justamente o caminho que me indicava apenas o meu talento, ou talvez os meus talentos. Experimentei, assim, a falta de sentido de um tal 1 Friedrich Meinecke foi orientador de Rosenzweig e seu trabalho sobre o desenvolvimento da ideia de nacionalismo na Alemanha desde o século XIII, serviu de inspiração para o doutoramento de Rosenzweig, cujo título é Hegel und der Staat, apresentada em 1912 e publicada em 1921. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 27 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig império dos meus talentos, aos quais eu passivamente me submetia. Tinha horror de mim mesmo [...] Recordo como sendo sinistra a minha insaciável fome de formas, uma fome sem objetivo nem significado, impulsionada unicamente por si mesma. O estudo da história teria servido apenas para aplacar a minha fome de formas, e nada mais. Entre os fragmentos dos meus talentos, comecei a procurar a mim mesmo, entre a multiplicidade das coisas, o Uno. Cheguei, assim, [...] a descer aos subterrâneos de minha existência, aproximando-me do antigo cofre do tesouro de minha vida, de que nunca me esquecera [...] finalmente o encontrara, um tesouro de minha posse pessoal, uma coisa herdada, não tomada emprestada. Ganhando, ganhara algo de inteiramente novo, ou seja, o direito de viver e de até ter talentos; agora era eu que tinha talentos, não eles que me tinham.(ROSENZWEIG apud Emilio BACCARINI, in PENZO; GIBELLINI, 2002, p.276) A experiência que reafirma o judaísmo de Rosenzweig é sentida como um desmoronamento, algo impactante que inverte sua compreensão da realidade, O pensador inquieta-se com a possibilidade de ser definido como um objeto – talento – e descobre que sua fome insaciável de formas apenas reclamava o desejo de ser. É a busca de si próprio, que se dá entre e a partir dos fragmentos que restou da sua ilusão de ser; é a presença da própria angústia em sua máxima atividade, expressão afetiva que se transformará em tensão intelectual claramente observada em seu “novo pensamento”2 .(Cf. GUARNIERI, 2011,pp.908) Ao decidir permanecer judeu, o exercício de filosofar exigia um outro modo de pensar, uma nova forma de conceber a realidade: a nova filosofia implicaria em um pensamento contaminado pela realidade. Esse “novo pensamento” marca um distanciamento do pensamento a partir de categorias de essência, algo próprio do pensamento grego e como historicamente se deu a evolução da abordagem do real. Como essência, ele se refere ao conceito que, como um universal, abarca todo o particular. E conclui que três elementos escapam à essa abordagem: Deus, Mundo e Homem são conceitualmente pouco acessíveis ao nosso conhecimento. A única possibilidade de sabermos um pouco mais desses três elementos é a partir da própria experiência. A angústia da morte como fim das ilusões Justamente para garantir o movimento da vida, Rosenzweig terá na reflexão sobre a morte o aparelho crítico necessário para a tentação da razão. É na constatação de que todo mortal vive a angústia da morte e que grande parte da filosofia se constrói a partir da negação das angústias do terreno, que o pensador apontará a necessidade da filosofia de integrar a morte em um sistema especulativo. Uma tentação que será inevitavelmente vencida pela própria experiência concreta, que inviabiliza a racionalização da morte em um sistema de pensamento. 2 O novo pensamento –Das neue Denken – é também título de um pequeno livro de 1925, escrito como prefácio a posteriori à Estrela da Redenção, esta publicada em 1921. O novo pensamento é a denominação dada ao seu método filosófico que descreve o sistema de correlações que o “senso comum” experimenta na concretude da existência. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 28 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig A auto-suficiência da razão constrói um sistema da totalidade; o novo pensamento constrói um sistema de correlações que o “senso comum” experimenta na concretude da existência. “O sentido comum saudável é a fé na vida tal como esta é no dia a dia, em seu aspecto mais comum e, sobretudo, precisamente como é limitada pelo nascimento e a morte.” (Rosenzweig, 1997, p.17) Rosenzweig entende a “metafísica” como uma forma exagerada da doença a que todos estamos sujeitos e, seguindo essa ideia, analisa a história da filosofia e nos mostra que toda vez que se buscou responder questões sobre o ser, isso foi feito por meio de uma redução da complexidade real a um único elemento que, então, se tornou o fundamento último. Assim, a filosofia antiga reduz Deus e o homem ao mundo, o que resulta em uma perspectiva cosmológica; a Idade Média reduz o homem e o mundo a Deus, perspectiva teológica; e a Idade Moderna tem reduzido Deus e o mundo ao homem, o que nos coloca em uma perspectiva antropológica. O confronto entre pensamento e realidade, presente em toda obra do autor, torna-se o tema central de um pequeno livro – e por esse motivo conhecido como o Livrinho entitulado Das Büchlein vom gesuden und kraken Menschenverstand - O Livrinho da saúde e da doença do senso comum, ou entendimento humano, escrito em 1922. Essa obra é resultado de seminários que Rosenzweig conduziu na Freies Jüdischen Lehrhaus (Casa livre de estudos 3 judaicos) e sua redação foi pensada para um círculo pequeno de leitores, mais interessados no conteúdo de seus pensamentos que explicitavam de forma clara e direta a primeira parte da Estrela da Redenção, sua obra principal, publicada em 1921. O filósofo paralisado No Livrinho, o autor utiliza a doença e a saúde como metáfora para nos contar, ironicamente, a história de um filósofo que adoece e é atacado pela paralisia da razão, pois descobre a impossibilidade de definir o “ser em si” das coisas. O filósofo enfermo, ao qual Rosenzweig se refere, busca saber, por exemplo, a essência de um pedaço de queijo e desenvolve uma série de argumentos sobre o tema até perceber-se paralisado: partindo do relato do ataque, passa pelo diagnóstico e finaliza com uma surpreendente proposta terapêutica que pretende devolver o funcionamento normal da razão, isto é, uma razão que, saudável, não pode negar a sua condição finita. No início do livro, ao descrever o ataque que sofre o filósofo, o autor aponta – e reconhece – a capacidade humana de assombrar-se diante da vida. Essa capacidade o levará a ideia de Menschenverstands4 que nos remeterá a condição de um pensamento que está ligado ao tempo, que se deixa engolir pelo fluir da vida. O seguir vivendo acaba por dissolver a rigidez do assombro. Já o filósofo não pode esperar, ele não permite que o assombro se dissolva na vida. Ele retira o que assombra do fluir da vida e “pára para pensar”[ Er denkt nach] sobre o tema que é sujeito quando o assombro está entregue ao fluir da vida, tornan3 Fundada pelo próprio Rosenzweig em 1920, em Frankfurt, e logo se converte no centro intelectual do judaísmo alemão. Foram professores da casa Martin Buber, Scholem, Fromm. Ver o discurso de abertura feito por Rosenzweig na abertura da Casa. (Cf. ROSENZWEIG in GLATZER, 1969, p.573-79). 4 Menschenverstands pode ser traduzido como senso comum, bom senso, inteligência humana, entendimento humano. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 29 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig do-se objeto quando retirado dela: torna-se objeto do pensar. (GUARNIERI, 2011, p113) O filósofo, portanto, não permite que o assombro seja dissolvido no movimento da vida; ele o retira do fluir da vida e se detém em estado de paralisação. O filósofo transforma o assombro em objeto (o que antes pertencia ao fluir da vida, agora tem uma imagem estática) e se pergunta pela essência; desta pergunta emerge o conceito. Filosofar torna-se, então, a doença e o filósofo, o doente. E este doente recusa a perceber que as coisas não têm “em si”. E mais, recusa a perceber que tudo, incluindo ele próprio, está mergulhado no fluir da vida e que esta é finita. Constatar este movimento da existência é perceber-se caminhando com a angústia.(GUARNIERI, 2011, p.114) O termo angústia é utilizado por nós no sentido kierkgaardiano: angústia que se origina na percepção do limite, que marca inexoravelmente a vida humana. A angústia é ao mesmo tempo um sentimento diante da existência como limite, mas é também produtora de movimento, dado que ela indica a infinita possibilidade de ser, algo que impele o ser humano, através de suas escolhas, se tornar si-mesmo.(Cf. Kierkegaard s/d) Porém, a angústia que Rosenzweig aponta na conclusão do Livrinho é uma angústia não mais do processo de escolha, mas do passo que foi dado, da escolha que já foi feita. Esta pequena diferença no trato com a questão da angústia indica uma diferença fundamental entre as duas tradições – judaísmo e cristianismo – que não poderá ser aprofundada aqui. Mas quando se considera o judaísmo, a partir da constatação filosófica de que Deus faz o que quer, não há questões de bem ou mal, a eleição é o dado mais importante, seguir a lei garante não só o bom relacionamento com Deus, mas intermedia a relação entre physis e techné. O nome de Deus, que não se deve nem pronunciar, aponta para definição daquilo que é: “Aquele que sempre foi” ou “que sempre será”, “Aquele que sabe ser e se revela”, o criador que é, indica que nós, não somos. Portanto, ele cria do nada, o que aponta o Abismo como a realidade de onde fomos tirados e, nesse sentido, dependente desse ser supremo. Para nós resta a obediência, reverência, e não há porque nos angustiar. Porém, Rosenzweig lembra que observar as leis é um meio de atender o chamado que Deus faz à seu povo, mas que mesmo assim, há espaço para angústia, como já citei acima. A vida flui do nascimento até a morte. E nesse movimento, cada passo vai acompanhado pela angústia; a angústia que se torna decepção, e a decepção que se torna cansaço. (Cf. ROSENZWEIG, 1992, pp.114-5) Assim percebemos o nosso próprio vazio ontológico e não há como recuperar o movimento da vida sem enfrentarmos nossa condição de angustia. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 30 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig Método judaico Como podemos observar, para o autor, a busca do conhecimento não se faz sem angústia e isso está intimamente ligado a sua afirmação do uso do judaísmo como método. A atividade cognitiva, para Rosenzweig, não possui uma forma estática, mas é um processo contínuo que se dá através do diálogo. Diálogo este que passa a ser o lugar da ação, pois falar está ligado ao tempo e requer que o outro – concretamente – escute e se manifeste sem que você saiba de seu pensamento; na realidade, sem que se saiba como ocorrerá o encontro, e é nesta tensão que se entende que o pensamento deve fluir, sem que se saiba onde irá parar. Homem, mundo e Deus participam neste diálogo e, desta forma, constituem a realidade. Contingência e tempo são as marcas dessa realidade que no pensamento de Rosenzweig desdobrará em um curioso pragmatismo sustentado pela presença de Deus. A própria linguagem – o hebraico- aponta o fluxo do pensamento. Marcelo Dascal, a partir de seus estudos na filosofia da linguagem e de seu interesse na questão das 5 controvérsias, descobrirá o Talmud . E não só, pois observará, através de suas pesquisas, a importância do debate para o desenvolvimento do pensamento, algo básico no judaísmo, mas que ele diz encontrar em outras tradições. Em entrevista Dascal comenta que o Talmud é o primeiro texto sagrado em que se conserva não só a opinião da maioria que vence, mas também a da minoria. Isso é o reconhecimento, representado pelo “Deus vivo”, de que o saber e a verdade estão continuamente em construção em um trabalho dialético-cooperativo de todos, que é o grande empreendimento criativo da humanidade. Para esse empreendimento, você tem que preservar todos os fragmentos de verdade, inclusive aqueles que são a minoria naquele momento. (DASCAL,2009, p.103) A lei é estabelecida pela Torá, mas sua interpretação fomenta uma série de discussões que buscam a compreensão dessa lei. Uma (re)criação da própria lei que implica em uma constante e inevitável busca da verdade; um construção e descontrução de conhecimento ao qual somos impelidos na medida em que buscamos compreender a realidade. Buscamos uma normalização cognitiva, usando a própria linguagem para tal feito, mas sofremos com uma dissonância cognitiva (Cf. SMITH, 2002, p.14) que, se soubermos aproveitar, poderá nos lançar no fluxo do movimento do conhecimento. A angústia que esse movimento inevitável da vida nos apresenta é a nossa insuficiência no busca de apreender a verdade sobre o real. Angústia que, na questão do conhecimento, se apresenta como tensão intelectual e cognitiva do pensador (Cf. GUARNIERI, 2011) e é experimentada por Rosenzweig na própria dificuldade em conhecer Deus, mundo e homem. Diante dessa constatação, o filósofo judeu afirmará que esse conhecimento só é possível na correlação desses elementos e, portanto, só poderá se dar na pragmática da vida, no embate do sujeito que fala e é ouvido por outro, que o indagará nessa escuta. Incluindo a relação Deus e ser humano, que diferentemente de Buber, terá no mandamento, isto é, na 5 Talmud é o registro das discussões rabínicas que pertencem à lei, à ética, aos costumes e à história do judaísmo. Compreende a Mishná, que constitui o primeiro compêndio da Lei Oral judaica, e o Guemará, que forma a base dos códigos da lei rabínica, contendo discussões da Mishná e dos escritos dos tanaítas - mestres, educadores ou transmissores da tradição. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 31 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig resposta ao mandamento a garantia do diálogo Deus e ser humano. As discussões do Talmude são apenas uma amostra do exercício necessário na busca de compreender o mandamento divino. A tensão está posta no judaísmo desde as primeiras discussões. Onde estaria a supremacia do judaísmo, em agadá (parte lendária, espiritualidade) ou halachá (parte da lei)? Nos hinos e Salmos ou na Torá? Um outro pensador judeu, Abraham J. Heschel (2006), parte da análise das duas escolas, a de Rabi Akiva e Rabi Ishmael, para observar que é na tensão entre elas que se constrói, por exemplo, a exegese da Torá. Haveria, então, uma dialética entre oposições, sem que nenhuma delas seja menos importante. Nas diferentes abordagens, rabi Akiva é como uma relação mística com o divino, e em rabi Ishmael há uma perspectiva racionalista. O próprio Heschel nos fala: “A consciência e a vida judaica só podem ser compreendidos em termos de um padrão dialético que contenha propriedades opostas ou contrastantes.” (2006, p.163) No coração do judaísmo já encontramos a polaridade: de ideia e acontecimentos; do mitsvá (mandamentos bíblicos) e do pecado; do kavaná (intenções) e das ações; da halachá e da agadá; da fidelidade e da espontaneidade; da uniformidade e da individualidade; da lei e da espiritualidade; do amor e do temor; da compreensão e da obediência; da alegria e da disciplina; do impulso do bem e do mal; do tempo e da eternidade; deste mundo e do mundo que virá; da revelação e da reação; do discernimento e da informação; da empatia e da auto-expressão; da crença e da fé; da palavra e do que está além da palavra; é, como diria, Heschel, da busca do homem por Deus e de Deus em busca do homem. Revelação como categoria O “novo pensamento” não só se utiliza do judaísmo como método, como afirma o próprio Rosenzweig, mas tem como categoria fundamental a Revelação. E, para tratar dessa categoria, precisamos abordar um pouco mais a ideia de milagre para o autor. O milagre visto como prova da verdade revelada, é importante, para Rosenzweig, tanto para a antiguidade pagã quanto para a antiguidade cristã. O milagre como sinal é um segundo ponto que será analisado pelo pensador, pois, no seu entender, esse milagre ultrapassa a visão que poderíamos entender como mágico-pagã. O milagre com sinal emerge da revelação bíblica e tem a função de sinalizar, de mostrar um poder extraordinário. Nele encontramos a profecia do milagre e a realização desse. Sendo que a profecia aqui é que diferencia esse estádio, pois o profeta, segundo o próprio Rosenzweig, apresenta aquilo que está sendo sinalizado por Deus, o que implica em uma ação da Providência. Outra discussão apresentada pelo autor é a relação do milagre e da natureza, pois esse em geral é visto como um desvio das leis da natureza. Rosenzweig fará um esforço para apontar, tal como Agostinho, que o milagre possui um caráter misterioso, que nos revela que há um espaço na natureza que só é conhecido por Deus. Mas não podemos deixar de observar que a própria noção de natureza no judaísmo também pode ser discutida. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 32 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig Tomemos a narrativa de Jó como ilustração. Sabemos, resumidamente, que Jó perdeu tudo, inclusive o sentido da própria vida. Seu sofrimento vai até o desejo de morrer e nada lhe serviria de consolo, só ver Deus face a face, para entender o porquê ele estava sofrendo. Mas o grande aprendizado de Jó é que Deus não está submetido a nenhuma categoria humana, isto é, não pode ser transformados em conceitos: “Mas Ele decide; quem poderá dissuadi-lo? Tudo que Ele quer, Ele o faz. Executará a sentença a meu respeito Como tantos outros de seus decretos. Por isso fico aterrorizado em sua presença, Sinto medo só em pensar; Porque Deus me tem intimidado, Me tem aterrorizado o Todo-poderoso”! (23,13-16) Toda a narrativa é apresentada como a expressão da vontade de Deus. Jó nos mostra que o homem não tem direito de ir contra Sua vontade; é Ele o criador e aquele que sustenta o mundo. Tudo só existe porque Deus quer. Natureza, portanto, é hábito, costume, do que é convencionalmente acertado e sustentado pela tradição. Para o judaísmo não há o conceito de natureza; o que se chama de natureza é a dependência contínua do criador.(Cf. SALDARINI e KANOFSKY, in NEVILLE, 2001, p.101-104) Portanto, a ideia de autonomia do ser humano, assim como da razão e do conhecimento, é ilusória. E, nesse sentido, a angústia filosófica não teria sentido, apenas indicaria a necessidade da fé. A fé não precisa do pensamento do ser. O fato de existir uma natureza é o que possibilitaria pensar em um conhecimento objetivo das coisas. Mas, ao admitir a não autonomia de nada, dado que não há conceito de natureza, estaremos nos referindo a ideia de que a permanência do que existe só é possível porque Deus quer. O milagre é sinal, revela a misteriosa presença divina, mas também pede um reconhecimento histórico que será dado pelo testemunho. Pelo testemunho que vemos através dos indícios e provas de um milagre, pelo testemunho daqueles que viram o acontecimento, mas também pelo martírio, o que para Rosenzweig é o testemunho autêntico, geralmente dado por aqueles que defendem a sua fé no milagre com o próprio sangue. Mas toda essa fenomenologia busca recuperar no texto o que ele entende como milagre central: a revelação: o milagre por excelência é o próprio evento da revelação. A revelação compreendida, poderíamos dizer, de duas formas: na relação entre Deus, mundo e ser humano, como também na relação de amor entre Deus e ser humano. É a revelação que estabelece o diálogo Deus e ser humano. Para Rosenzweig tudo isso é passível de ser experimentado a partir do que poderíamos chamar de presentidade, isto é, não podemos descrever a criação-revelação- REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 33 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig redenção como um processo já acontecido, visto como algo externo e objetivo, mas sim de uma experiência vivida como ocorrência histórica-existencial que nos afeta no presente. A Estrela: teologia e filosofia Em sua obra maior A estrela da Redenção encontramos a expressão da tensão vital entre o nada e o ser. Para o autor, o nada não é irreal, ele é impensável. A morte estabelece uma relação entre o pensar e o real na qual o real vem antes do pensar: não há identificação entre ser e pensar, fundamento de toda a totalidade pensada e expressão do que ele denomina de “velha filosofia”. Na Estrela da Redenção o conceito de verdade, segundo Rosenzweig, não garante nem preserva a realidade. Mas, ao contrário, é a realidade que garante e preserva a verdade. “De Deus não sabemos nada. Porém este não saber é não saber de Deus. Como tal, é o princípio do nosso saber Dele. O princípio, não o final.” (ROSENZWEIG,1997, p.63) Para o autor, partimos do nada. Diante do nada, duas vias se apresentam: a do sim e a do não. Deus é ato, e o ato rompe o nada. É a criação, o sim, a ação que se abre na perspectiva do acontecer. Ao perguntarmos pela essência, nos perguntamos pela origem; a propósito do ato, por seu princípio. A vida da negação – o nada – o não é a resposta. E, neste caso, não pode ser o começo, pois indica algo – “algo fica morador do nada”. Esse algo, dessa forma, também é uma essência. Já a via afirmativa, o não nada, indica o sim como resposta e, portanto, abre possibilidade. O sim é o princípio, um algo que se tornou fugitivo do nada através da própria liberdade: é o ato. O nada, então, não é determinado, mas fonte de determinação, o ponto de partida do pensamento sobre Deus, é o lugar do estabelecimento do problema. Na Estrela os três elementos Deus, homem e mundo constituem os três vértices de um triângulo. Entre os três há uma unidade superior – que não é a unidade de Deus – e é justamente neste ponto que podemos observar a contribuição do “método judaico de pensar” do autor. Os elementos se correlacionam determinando o primeiro triângulo, mas eles só são nessa correlação. E o imediato, as vias através das quais se conectam esses elementos da tríade do primeiro triângulo e se expressam formando um segundo triângulo inverso são: a criação, a revelação e a redenção. Ambos compõem A Estrela da Redenção, a estrela de Davi, onde no centro está o fogo eterno – o judaísmo – e os raios são a vida eterna – o cristianismo. A estrela remete, então, a uma nova totalidade que expressa a verdade; uma “nova verdade” cujo interno se manifesta em suas partes que permanecem identidades separadas. É no movimento da relação de um e outro, e deles se reconhecerem um por referência do outro, que observaremos a construção do conhecimento no encontro e na separação em cada instante. Judaísmo e cristianismo vistos nessa correlação, para além da definição de um povo eleito e daqueles que são salvos, não exclui um ao outro, como mostra Rosenzweig, mas ambos estão comprometidos com a necessidade de ser o testemunho vivo do reino de Deus. A vida dos judeus seria, então, determinada pelo falar com Deus, e nos cristãos, a ideia de caminho remeteria a missão de disseminar-se sempre mais a palavra de Deus. O ser humano REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 34 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig tem como tarefa falar de Deus e isso precisará ser dito sempre de novo. Se é preciso sempre falar, é preciso falar para alguém e é falado no tempo. Em cada instante a verdade, então, se manifesta, é revelada, e precisa do outro como testemunho, como aquele que se compromete a dizer de novo, a ensinar de novo, a debater, a se deixar traduzir de forma sempre nova, justamente pela significação infinita da verdade, que implica sempre em um inesgotável conhecimento. Para ser verdade cristianismo precisa do judaísmo. Não há como falar do reino de Deus senão mediante a revelação do amor de Deus e essa confissão é judaica e cristã, mas também há a uma diferenciação entre aquele que espera o messias e aquele que parte do salvador. Deus como aquele que salva só pode ser reconhecido como Aquele que não quebra a promessa. Dessa forma, não há como ser cristão sem reconhecer o ser judeu, pois só na tensão desses dois caminhos é que a fé se edifica e a razão se amplifica e isso só será possível no diálogo. A Estrela intui desde o princípio a facticidade e a multiplicidade do real, não é de se admirar que Rosenzweig veja na estrela da redenção – a estrela de Davi- a metáfora do fogojudaísmo e irradiação - cristianismo. Criação, revelação e redenção é o imediato traduzido das relações entre Deus mundo e ser humano, é na alteridade que o sentido da ação e do pensamento pode ser legitimado. O amor ao próximo nasce do amor de Deus e da consciência de ser criatura e objeto desse amor de Deus; é esse amor de Deus que sustentará qualquer obra de amor e proverá o ser humano da possibilidade de redenção. A fé como amor de Deus é a forma como se experimenta Deus. Por revelação, Rosenzweig entendia uma orientação, que dá sentido e permanência a fé. É na revelação que a linguagem desperta e é através dela que o homem realiza a cada instante o milagre da renovação. Já a palavra de Deus é revelação porque é ao mesmo tempo criação. Rosenzweig enfatiza a importância da revelação, da redenção e da criação: a redenção e a criação acolhem a revelação e é no novo pensamento que é possível uma reflexão que considere o sujeito existencial, concreto, que se sabe criado, mas que no pensamento, que se dá no tempo, sabe da presença do outro, anuncia a presença da revelação, testemunha o milagre, sinal da presença divina. O milagre é experimentado na retomada da orientação, a revelação na busca da redenção e no assombro, a certeza da criação. Conclusão Há muito para aprofundar nas relações entre filosofia e judaismo no pensamento de Rosenzweig. E quanto mais ampliamos o campo de pesquisa, mais encontramos relações que se alimentam da própria tensão existente entre fé e razão. A fatualidade que está presente na Estrela da Redenção enfatiza a importancia para o pensamento do uso da palavra “e”; palavra básica de toda experiência, pois é expressão da multiplicidade que não perde a oportunidade de se reafirmar. É na relação original entre o sim e o não, a expressão de uma tensão que é a origem de tudo. A função do “e” é descrever as relações entre as experiências, revelando seu caráter múltiplo, contingente e aberto. Rosenzweig inicia sua grande obra estabelecendo REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 35 A filosofia hebraica de Franz Rosenzweig uma crítica a filsoofia tradicional e, a faz, partindo da ideia que toda a filosofia se constrói a partir da negação da morte. Mas para ele, diante da morte há apenas o silêncio da falta de respostas. E é no encontro com a morte que nos é revelado o caráter insuficiente da linguagem. Porém, nos resta a realidade caótica, organizada pela linguagem, experimentada a cada instante, em sua surprendende e misteriosa, e proque não dizer, monótona, ocorrência de acontecimentos. Para o autor, diante da conrectude da existência, é necessário restabelecer o caráter real da pluralidade, isto é, o novo pensamento dá um caráter ontológico e epistemológico à pluralidade da experiência. O novo pensamento sabe que não pode ter conhecimento independente do tempo. O conhecimento está atado àquele exato instante e isso pode ser observado no cotidiano: um ato é um ato no presente, em uma vida que flui do nascimento até a morte. Referências: BATNITZKY, Leora. How judaism became a religion: an introduction to Modern Jewish Thought. USA: Princeton University Press, 2011. DASCAL, Marcelo. Entre a filosofia e o Talmude. WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.1 n.1 (jan-jun) 2009. Disponível em Http:// seer.ufrgs.br/webmosaica. GLATZER, Nahum N. (Ed) The Judaic Tradition. USA: Behrman House, 1969. GUARNIERI, Maria Cristina Mariante. Angústia e Conhecimento: uma reflexão a partir dos pensadores religiosos Franz Rosenzweig, Sören Kierkegaard e Qohelet. São Paulo: Editora Reflexão, 2011. HESCHEL, A.J. Deus em busca do homem. São Paulo: Arx, 2006. KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia. Trad. João Lopes AlvesLisboa: Presença, s/d. NEVILLE, R. (org.). The human condition. New York: State University of New York Press, 2001. PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino (orgs.). Deus na filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 2002. ROSENZWEIG, Franz. Das Büchlein vom gesuden und kraken Menschenverstands. Frankfurt am Main: Jüdischer Verlag im Surkhamp Verlag, 1992. ______.La Estrella de la Redención. Salamanca: Ediciones Síguem, 1997. ______. Philosophical and Theological Writings. Trad., edição, comentários e notas de Paul W. Franks e Michael L. Morgan. Indianapolis: Hackett Publishing Company, Inc., 2000. SMITH, Barbara Herrnstein. Crença e resistência: a dinâmica da controvérsia intelectual contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2002. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 37 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión El ego amans Entre giro teológico y filosofía de la religión Germán Vargas Guillén (*) (*) Universidad Pedagógica Nacional de Colombia. e-mail: [email protected]. Resumo: O ego amans é que opera a redução erótica. E s t a i m p l i c a o t râ n s i to d a s u b j e t i v i d a d e transcendental e seu estudo genético, que desemboca na crise para a individuação como experiência amorosa que parte de e retorna para a comunidade. Essa virada, em essência teológica, é a maneira de enfrentar a positivização do mundo da vida no contexto das sociedades pós-industriais e póscapitalistas. Na primeira parte do artigo, examina-se a passagem do ego cogito para o ego amans; a fenomenologia do ego amans; e o ego amans como superação do positivismo. Contudo, sempre se corre o risco de que o amor se converta em uma menção vazia de conteúdo. Como, então, procurar a vigilância crítica sobre a validade das asserções às quais dá lugar sua enunciação? Redução indica a operação pela qual o vivido se torna esfera de propriedade, é ver como se efetua a encarnação do amor como processo de individuação. Esta encarnação que individua acontece na dialética entre eros e ágape; esta dialética dá lugar a um projeto de formação da individuação da carne. Assim, a redução erótica exige a volta em e pela experiência pessoal do Deus do amor, seja como eros, seja como ágape. Esses são dois pólos da experiência do ego amans em sua constituição de sentido de si mesmo e dos valores de comunidade e de cultura. É possível pensar em toda essa operação em que se instala o ego amans sem recorrer a um mundo da vida que se nos dá tanto técnica quanto tecnologicamente? A hipótese que se sustenta é de que a religião enquanto religação exige a volta ao si mesmo na concreção de seus processos de individuação. É, então, o indivíduo que, ao saber dizer sim ou saber dizer não REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 38 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión à técnica e à tecnologia acha sua serenidade; e a acha, precisamente, porque descobre a aesthesis como forma de voltar a criar e projetar um sentido de vida em um mundo tecnologizado que se faz cruel e se desumaniza em relações mecânicas, incluindo as operações comerciais e financeiras. Daí, então, que a experiência individuante do ego amans consista, hic et nunc, em exibir a tecnicidade como reencantamento do mundo. Que fica para o ego amans como esfera de extensão de sua individuação? Em suma, a tripla relação: liberdade, mal, Deus. Palavras chave: ego amans, individuação, giro teológico, tecnologia, religião, fenomenologia. Edmund Husserl, Gilbert Simondon, Jean-Luc Marion. Abstract: The ego amans is the one that operates the erotic reduction. This implies the transition from transcendental subjectivity to its genetic study, which ends up in the crisis of individuation as amorous experience that starts from and returns to community. This turn – essentially theological – is the manner of facing up the positivisation of the life world in the context of post-industrial and post-capitalist societies. In the first part of the article, the passing from ego cogito to ego amans is examined; the phenomenology of ego amans and the ego amans as overcome of positivism. However, one always runs the risk that love turns out to be a mention empty of content. How then to search for a critical watchfulness over the assertions validity to which its enunciation gives place? Reduction indicates an operation by which the living becomes sphere of property; it is to see how the incarnation of love as individuation process gets effective. This incarnation that individuates happens in the dialectic between eros and agape, and this dialectic gives place to a project of formation of flesh individuation. So the erotic REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 39 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión reduction requires the return in and through personal experience of the God of love either as eros or as agape. These are the two poles of the ego amans' experience in its constitution of the meaning of itself and of the values of community and culture. Is it possible to think about all this operation in which the ego amans is installed without recurring to a world of life, which is given to us both technically and technologically? The hypothesis sustained here is that religion as relinking requires the return to oneself in the realization of the process of individuation. So, it is the individual who, when knowing to say yes or no to technic and technology, finds its serenity, and he finds it precisely because he discovers aesthesis as a form of getting back to creating and projecting a life meaning in a technological world, which is cruel and unhuman in mechanical relationships, including the commercial and financial operations. So, the individuating experience of ego amans consists in exhibiting technicity as re-enchantment of the world. What remains to ego amans as extension sphere of its individuation? Summing up, the triple relationship: freedom, evil, God. Key words: ego amans, individuation, theological turn, technology, religion phenomenology. Edmund Husserl, Gilbert Simondon, Jean-Luc Marion. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 40 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión I El tránsito del ego cogito hacia el ego amans La fenomenología genética –como la desarrolló E. Husserl, por ejemplo en el §9 de Crisis– exige volver, desde nuestro presente viviente, a la configuración del mismo. Husserl, por ejemplo, aplicó este procedimiento a la matematización de la naturaleza, es decir, al modo como devino ésta en un proyecto para la cultura que desemboca en «visión del mundo de los seres humanos modernos [que] se deja determinar y cegar por las ciencias positivas y por la “prosperity” de que son deudores» (Crisis, §2, p. 50). En esta vertiente de la fenomenología genética se busca establecer, en cierto modo, de manera histórica –sin que por ello la fenomenología se troque en historiografía, o, en hermenéutica– la emergencia de una intencionalidad, a saber, la de la racionalidad científica en el sentido moderno del término. Con este procedimiento, en esa investigación concreta, la fenomenología procura establecer cómo la crisis de la subjetividad es una crisis del olvido del sujeto –en parte desplegada por la psicología que corre de Descartes a Wundt y Fechner– y de su indisoluble relación con el efectivo mundo de nuestra vida cotidiana. Esa fenomenología, al cabo, funda el sentido en la operación del sujeto trascendental, de la subjetividad trascendental, como fuente primera y última. Sólo que esta subjetividad está siempre en relación con otros. De ahí que toda su experiencia sea, de comienzo a fin, intersubjetiva. Y, en adición, cualquier subjetividad, al realizar su vida, tiene estructuras propias que son, en sí, las que tiene cualquiera otro sujeto2, cualquiera otra persona. Por eso, Husserl llama a esta intersubjetividad: comunidad monadológica. Si se lleva a cabo, en otra dirección, una fenomenología genética de la individuación –de cualquier cosa, y entre esas cosas: del individuo psíquico o humano, como lo llama Simondon–, entonces será preciso ver cómo emerge el título sujeto (? ðïêåßìåíïí = hypokeimenon) y sus relaciones con el individuo (? ? ? ? ? ? ß): partiendo de nuestro mundo de la vida para ir a examinar los procesos constitutivos de la individuación de Heráclito y Parménides, a las estructuras de la percepción de cualquier organismo hasta llegar al humano. La fenomenología genética parte del presente –vivo y viviente–. En Crisis, algunas de las preguntas de base fueron: ¿cómo se ha devaluado lo humano, hasta llegar a ser cifra de la contabilidad positivista, del cálculo?, y, con ello, ¿cómo se olvidó que la fuente de sentido del mundo es el sujeto que lo experimenta, en su relación con los otros? Para Simondon, a su vez, las preguntas fueron: ¿cómo opera la individuación y cómo ella compete al campo de la experiencia humana tanto como a los demás entes?; ¿cómo la percepción individúa lo que aparece en el mundo; pero, al mismo tiempo, individúa a quien percibe? En últimas: ¿cómo se da el tránsito de la interacción materia (hylé) – forma (morphé) a información, individuación, transducción, transindividuación? (Vargas Guillén & Gil Congote, 2013a). La fenomenología trascendental de Husserl mantiene y preserva una vocación científica y, por eso mismo, epistémica. En ella se acepta que la subjetividad trascendental es 2 Ahí es cuando la fenomenología trascendental, incluso en su modo genético, tiene que buscar soporte en la estructura primordinal del sujeto y su despliegue en la comunidad intermonádica de yoes. Es, entonces, cuando la fenomenología se transforma, porque acude en su búsqueda, en psicología trascendental o psicología fenomenológica trascendental. Esta es la llamada vía psicológica (Hua. IX), que aparece desde las Lecciones de 1925 sobre este tema, hasta las diversas versiones del Artículo Fenomenología preparado para la Enciclopedia Británica (1928). REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 41 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión cuerpo, que vive con otros todas sus experiencias en el mundo común de la vida. Pero, en todo caso, se requiere estudiar, comprender, desplegar: el estudio de la génesis e incluso de las estructuras generativas que dan lugar a la emergencia del sentido. Ahora bien, ¿qué pasa si nuestro asunto (Thema, questio, subject) es el quién de la experiencia religiosa o mística? Nuestra hipótesis es que pasa a un segundo plano el ego cogito3 y sus funciones trascendentales (cogitatum). Queda, en cambio, en el centro el ego amans. 4 La fenomenología del ego amans La constitución primera y primaria, de cada quien, no es la constitución trascendental, si por tal se entienden las funciones de pensamiento. Desde luego, la razón en sus modos de razonabilidad, de querer-ser-racional, de poder-ser-racional, de poder-querer-ser-racional: está protoimpulsivamente dada en cada quien, en su experiencia constitutiva o constituyente; experiencia mediante la cual se llega a individuar, a identificar, a constituir su ser propio. La constitución primera y primaria es el goce de estar cerca de la realidad (Lust im Dabeisein; cf. Husserl: Ms. C 16 IV, pp. 7-8): de la madre, del abrigo que ofrece la madre y que ofrecen las cosas, de la acogida que ofrecen los otros. Este primer despertar en la relación con los otros y con lo otro aparece como instinto de curiosidad (der Instinkt der Neugier). La evidencia primera de mi ser en el mundo es el amor, es el amar: ser amado –aún en su forma negativa: despreciado, no querido, rechazado– y amar a los otros, a lo otro –aunque sea reclamando, exigiendo, demandando amor–. A cada paso, en mi vida, doy amor, me dan amor; lo niego, me lo niegan. Amo personas, cosas, temas, materias, ideas, libros, proyectos, recuerdos, fantasías, etc. Desde luego, también puedo amar la sabiduría (filosofía). Hay que tener un largo entrenamiento para ser refractario al amor, a los sentimientos, a las expresiones, a los gestos. Quien logra esto último actúa como inhumano, se deshumaniza, pierde el rostro y la calidez de persona; se torna impersonal, primero, y, luego, despersonalizado. Son los gestos aprendidos para atender masivamente a los enfermos, a los que se hospedan en los hoteles, a los subalternos de la tropa, a los que llaman al call center, a los reclamos de los clientes. La crisis, entonces, ya no es la de la subjetividad trascendental como la pensó Husserl (1935). La nuestra es La crisis del ego amans y las estructuras del mercado –postcapitalista, neoliberal, postindustrial–. Situados aquí, entonces, el problema no sólo se refiere a la génesis histórica, sino que también alude a la generatividad de mí mismo, como persona y como sujeto de una comunidad en la cual tiene sentido mi vida. No se trata sólo de una génesis de la pérdida del amor –como fenómeno cultural, histórico, antropológico; social, económico, financiero–; se trata de mi propio amar amar –máxima exposición de la vida ética–: es el amar que acontece en mi propia y efectiva relación con el mundo, de la que experimento junto y con mis seres queridos, el que vivo como miembro de mi comunidad, donde se exhibe lo más alto de mis valores y de mis aspiraciones. Es posible ver cómo el amor, la hospitalidad, el reconocimiento o la solidaridad: se 3 Mantengamos a la vista esta iluminadora observación de Husserl: «Sum cogitans, esta expresión de evidencia dice concretamente: ego cogito – cogitata qua cogitata. Eso incluye todas las cogitationes, las singulares y la síntesis constituyente hacia la unidad universal de una cogitatio, en la que como cogitatum el mundo y lo que pienso como agregado tenía y tiene validez de ser para mí; solo que yo ahora como filosofante, no debo simplemente efectuar al modo natural estas valideces y utilizarlas a modo de conocimiento» (Crisis, §17; p. 120). 4 «(…) ¿se podrá restablecer un concepto radical del amor sin destruir esa misma definición del ego? Más adelante veremos que hay que pagar ese precio redefiniendo el ego, aun en tanto que piensa, justamente mediante la modalidad del amor que omitía y REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 42 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión han vuelto efectos de mercado, cómo operan aquí las tarjetas de crédito; y, sin embargo, también se puede ver cómo todos estos valores –amor, hospitalidad, reconocimiento, solidaridad– son líneas de fuga, espacios de resistencia, estrategias de subversión en medio del delirio capitalista; líneas de fuga puestas en movimiento por un quien concreto que puedo ser yo, o puedes ser tú, o puede ser cualquiera, según los pronombres personales, hasta hallar la radicalidad teleológica del nosotros: punto de llegada, pero igualmente punto de partida de la constitución del ego amans. De lo que se trata al amar es de amar, sólo por amar; de recibir al extranjero, al extraño, al otro, sólo porque sí; de aceptar la mirada, el rostro, la presencia del otro y verlo como persona; de hacerme cargo de las angustias, preocupaciones y tristezas del otro, sólo porque está ahí y es humano, como yo. Es sólo el amor el que pone en crisis el capitalismo. Volver a la plaza de mercado, porque allí están los frutos de las manos de los campesinos más pobres; consumir las marcas nacionales, porque nuestros compatriotas necesitan puestos de trabajo bien remunerados; apagar las televisiones y encender los cerebros, porque hay que ganar tiempo para el silencio y la meditación amorosos; hacer los trayectos en transporte público, porque es la hora de minimizar el calentamiento global del planeta, porque podemos combatir la idea de que la tierra es tan sólo una estación de gasolina. En fin, hacer lo mínimo en lo cual, en cada acto, se expresa el amor y amar: esta es la subversión que reclama una fenomenología del ego amans ante la crisis de la sociedad postcapitalista y postindustrial; es poner en el centro el amor con que me siento amado y amo a los demás. Es el fenómeno del amor que se encuentra en cada expresión del Cristo redivivo y que hace presencia en la historia con Francisco de Asís. El ego amans como superación del positivismo (…) cuando aborda los fenómenos eróticos, el ego convertido en amante ya no constituye nada objetivo; ya no hay ninguna otra cosa aparte de él mismo, ni tampoco cosas, ni siquiera hay mundo, sino sólo él mismo y su reducción erótica. Marion, 2005; p. 248. El amor no tiene que ver con las cosas. Éstas se poseen, se carece de ellas o son indiferentes para nosotros. El amor, en cambio, sólo tiene por polo correlativo a otro ser humano. Puede ser que esté, o no, a mi alcance; puede ser que espere de él o no. Siempre es la experiencia de un tú que es objeto de nuestro reconocimiento. La estructura esencial del amor es la interacción entre un yo y un tú. Éste puede incluso aparecer como comunidad. Desde la posición de existencia de cada quien, se trata a la comunidad (Personalidad de Orden Superior, la llama Husserl) como a un tú pleno y completo. Reconozco al tú y, en ese acto, él me reconoce. La reducción indica que hago manifiesta su presencia en mi vida; y que así también espero que sea un remanso para mi ánima, para mi ánimo. ¿Qué es lo que ha ocultado la evidencia potente del amor que constituye al ego amans? Desde luego, lo primero es el cálculo racional, la prosperity, la preeminencia del tener reprimía la metafísica –como aquel que ama y que odia por excelencia, como el cogitans que piensa en la medida en que primero ama, en suma, como el amante (ego amans). Habrá que retomar pues toda la descripción del ego y volver a desplegar todas sus figuras según el orden de las razones, aunque dándole ahora preeminencia al añadido del duque Luynes contra la omisión del texto latino de las Meditationes –sustituyendo el ego cogito, que no ama, por el ego originalmente amante. Habrá que retomar pues las Meditationes a partir del hecho de que yo amo antes incluso de ser, porque no soy sino en cuanto experimento el amor –como una lógica. En una palabra, habrá que sustituir unas meditaciones metafísicas por unas meditaciones eróticas» (Marion, 2005; pp. 14-15). REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 43 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión sobre el ser. Lo que se ama no es; en cambio, está en proyecto de ser, de ser alcanzado, de revelar su ser, de instalarse en el seno de nuestra vida –propia y comunitaria; de nuestro acontecer y de nuestro ser–. Por eso la obra de arte o el diseño de un proyecto (técnico, tecnológico) es o puede ser expresión del ego amans. No porque se ame la facticidad de la cosa, sino el sentido que ella también abre del horizonte de la vida personal y colectiva. Así, entonces, la reducción erótica abandona a cada momento la positividad del dato, y, consecuentemente, entrega, ofrece o abre la dimensión mistérica tanto del otro como de las cosas –en el obrar estético, en el diseño–. No es, por tanto, que el ego amans ame las cosas, sino el sentido que tienen o pueden tener ellas para nosotros, en y para poder vivir juntos; para concretar un proyecto de vida, por ejemplo, creativo. Quien ama no se pregunta: ¿qué hay?, sino ¿quién está ahí? Y si el amor se dirige a las cosas, a un qué, entonces la pregunta que se hace quien ama es: ¿Para qué está ahí?, ¿cómo se convierte, lo que hay, en riqueza de sí mismo y de la comunidad? Se comprende, entonces, que las cosas laten por llegar a plenitud; y es justamente el amor el que potencia la plenificación de lo dado para llegar a sentido. El amor se expresa en y como obras. Ellas son la materialización del don. El amor es vida efectual que lleva progresivamente la pura facticidad o hylé a realización de sentido. La reducción erótica es una reconducción de la mundaneidad del mundo a la esfera de propiedad. En esta reducción, el ego amans no se sitúa ante el otro o ante las cosas para conocerlas, sino para vivirlas. De la vivencia deviene el conocimiento, pero también el goce, la complacencia, la contemplación. Cuando se tiene la experiencia erótica, lo que aparece es la potencia de vida que todo lo refiere a las posibilidades u horizontes de vida, de un quien y su respectiva comunidad. Todo el vivir amoroso del ego amans es encarnación: el otro no es sólo un dato, es un conjunto de valores que se expresan en las variadas circunstancias de la vida. Veo a mi vecino: contra todos los prejuicios que tengo o puedo tener sobre los demás, como evidencia aparece que el otro ama a su familia; que su familia lo ama. Observo que sus actos son honrados, honorables, sinceros, pulcros. Comprendo su experiencia de amar porque también yo amo. Asumo respeto por su conducta. Paso del dato: un x sujeto con y profesión a experienciar a un quien que encarna valores que valoro, que acepto, que admito. Veo que en su vida se encarnan, se hacen carne, valores que también yo encarno, en mi carne, en mi vida. La encarnación no es un dato aislado. Siempre está en un quien concreto, específico, efectivo. Es la manera como el amor se hace vida, como se convierte en testimonio, como se efectúa en el campo de nuestra experiencia. Paso, así, del valor abstracto, digamos, amistad, a ser amigo de alguien; a tenerlo por mi amigo; a gozar por su gozo y a penar por su sufrimiento. No sólo, pues, se da la encarnación, el hacer vida propia los valores; también se da el respeto de los valores que encarnan los otros. Y no tenemos que tener unidad de credo o de opción ideológica o política para respetar los horizontes de vida que los otros dan a su mundear. Pero hay todavía más: hay individuación. Los hijos de mi vecino encarnan un aire de REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 44 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión familia; como las hijas de la mía tienen su propio aire de familia. Y, sin embargo, cada quien en particular toma algo de eso común y lo varía para hacer de sí expresión particular de un horizonte de ser, de un proyecto. La individuación ocurre porque hay mundo común compartido, encarnado por cada quien que se enlaza, identitariamente, con el mismo. Pero, en el otro lado, no se puede perder la especificidad de ser cada quien un sí mismo; en su capacidad de darse una perspectiva, un horizonte de vida. Aquí está el valor de la comunidad: ofrecer entorno para que cada quien al individuarse se constituya, por efectos continuos de la voluntad, del servicio, de la interacción. Ahora bien, así como se puede afirmar que la comunidad es entorno de la individuación; es igualmente válido observar que la individuación es potencia y riqueza de la comunidad. Una y otra se transforman –por transducción– a través de procesos de mutua afectación que bien pueden ser llamados procesos de información. Sin esta interacción que a cada paso transforma los polos en correlación (comunidad-individuo) la comunidad se torna totalitarismo, imposición, negación de las diferencias individuales. Sin esta interacción, de mutua dependencia, el yo se torna despótico, ve en la comunidad medio para sus intereses egoístas, y nunca un fin. Si positivizar es olvidar la fuente de todo saber, es decir, el olvido fundante de la correlación aesthetica de sujeto-mundo, sujeto-comunidad; el despliegue del ego amans es la condición de posibilidad de mantener como centro esa correlación. Es, en último término, poner el mundo como espacio del despliegue del amor, y amar. El ego amans es el único que puede dar el paso de las cosas al sentido de las mismas. Tras la constitución podrá volverse a la reflexión para establecer el proceso constitutivo, constitucional. No antes. Primero amar, vivir; luego conocer. Esto es lo que descubre el ego amans. Entonces, bajo la caracterización del ser amado, vivido: sobreviene la actitud reflexiva; y, sin embargo, el ego amans no es ni naturalización, ni actitud natural. Todo lo contrario es la subversión de lo visible por lo invisible (Vargas Guillén, 2012a; pp. 99-113). Ahora bien, todo nuestro análisis, hasta ahora, carece de la diferencia entre eros y ágape; en último término, entre las posibilidades de dar sentido desde sí y el vivir el gozo del sentido en la vida compartida comunitariamente. II Eros y ágape como proyecto de formación de la individuación de la carne 5 (…) nosotros amamos porque primeramente Él nos amó (1 Jn., 4,19). ¿Qué va del eros (?ñùò) al ágape (? ã? ðç)? También la Biblia de Jerusalén traduce ambos términos como amor. Como se sabe, se trata de dos tradiciones distintas: Grecia e Israel, respectivamente. El eros es hijo de Poros y de Penía, siempre rico en recursos y pobre, astuto y elocuente, al acecho, hábil engañador; el segundo es regocijo, gozo, en especial, por estar con el otro, junto al otro, porque el otro, en comunidad, hasta un momento dado de su ser-en-el-mundo, ha realizado la plenitud temporal (pro tempore) de sus búsquedas, ha encontrado la realización del sentido de su existencia. 5 Merino comenta este texto en los siguientes términos: «La filosofía franciscana (…) es una filosofía del amamus. (…) Este reconocimiento agradecido y esta aceptación del amor gratuito y transformador hace de la vida franciscana, como comportamiento y como reflexión, que se traduzca y se exprese en la forma activa del amamus, pues, «nosotros amamos porque primeramente El nos amó» (1 Jn., 4,19). (…) Este amor, sentido como fuerza y vivido como respectividad, es la gran realidad que da al franciscanismo un talante peculiar como acción, como visión y como interpretación del hombre y de lo que acontece al hombre» (Merino, 1982; pp. 66 y 67). REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 45 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión También se puede hablar de amor profano y de amor sacro —como se titulara de Tiziano a una de sus obras— (Vargas Guillén, Germán; 2012b). A la hora de la verdad, ?ñùò tiene como polo de la correlación al ego, un quien que en la reunión tiende a afirmarse; mientras ? ã? ðç tiene como polo de la correlación: la comunión, la vida comunitaria, un yo más bien expandido o, incluso la suposición que la primera persona es el otro. ¿Es posible la realización de la primera persona sin vida comunitaria; y, de retorno, vida comunitaria que disuelve la persona, primera persona, su individuación, su singularidad? O, si se prefiere otra cuestión: ¿quién, en la interacción personal, es el primero en decir: «¡Heme aquí, soy yo, yo te amo!»? El asunto es que tal aseveración sólo puede hacerla quien esté más allá de las garantías, de los contratos. Es la radicalidad del encuentro con el otro. Allí se funda no sólo la hospitalidad, sino también y esencialmente el acogimiento. En este sentido, el primer desplazamiento que se exige es del ego cogito al ego amans: no es porque te conozco que te amo; te amo tan sólo porque eres. Desde luego, sobre el ego amans viene, sobreviene, se despliega el ego cogito. Aquí se funda la ratio cordis: es en y desde el corazón que puedo incluso perdonar lo imperdonable; descubrir que el otro más que «cosa» o «causa» es «motivo», «horizonte», «perspectiva», «respectividad»; en resumidas cuentas, a pesar de toda evidencia, el otro es «infinito» e «infinitud de posibilidades» (Levinas, 1977; p. 126). Así, entonces, el prototipo del amor crístico —el que llevó a Francisco hasta los estigmas— es el que antepone al otro como centro; y no se dice con ello que ya esté ganado que el otro es un ser naturalmente bueno, virtuoso. Lo que se indica es que el otro puede, en cualquier caso y condición, promover –ser promovido– su condición humana hacia una elevación en la experiencia y la vivencia de valores; esto es, hay una dialéctica, incesante, de eros y ágape: de afirmación del individuo al individuarse que funda la vida comunitaria; de reunión y participación en comunión. El caso es que el eros se devalúa al ser experimentado por el tirano y por el déspota, por el mandamás, por el mandacallar; se troca en individualismo, individualista. Se trata del «héroe del relato» que se rodea de áulicos que ríen y sonríen con cada expresión tiránica; pueden celebrar para congraciarse, como si amaran a su señor. De modo que la individuación –más allá de todo individualismo– introduce la diferencia cuando la reunión (eros) se torna participación, comunión (ágape); entonces el ágape sólo puede vivirse como expresión del consentimiento entre quienes se han individuado en el gozo del eros. En eros sin ágape el individuo se torna individualista; en ágape sin eros emerge la masa, el amasijo, la indiferenciación. En la dialéctica de eros-ágape, en primer término, el sujeto se individúa en su singularidad hasta hacerse efectiva expresión del universal; ahí es donde la persona se personaliza afirm(á)ndo(se) (en) la comunidad, en el vivir común; en segundo término, es en esta dialéctica que deviene la potencia y el despliegue del nosotros como comunidad en la cual todos y cada uno de los sujetos se hace cargo de sí, llevando al máximo servicio la posibilidad de realización de sí y de los otros. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 46 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión En la perspectiva del eros la comunidad, el común, es punto de llegada; en la del ágape el nosotros es punto de partida, condición de posibilidad de la existencia. El equilibrio dialéctico eros-ágape diferencia entre el horizonte del totalitarismo y el de la libertad. En aquél se impone una perspectiva, se hace valer a toda costa; en ésta se consensúa, se negocia, se matiza hasta hallar coincidencia o confluencia de voluntades. Y, sin embargo, se trata de que, en todas las circunstancias en que se toma la vía del ágape, opere el carácter de primera persona que ofrece el eros; y, de que el operar de primera persona (eros) funde comunidad, comunión, ágape. Aquí hay relación y referencia a la experiencia de cuerpo, de dones, de carismas: en una comunidad (cuerpo) en la que cada quien da de sí (don) lo peculiar o propio de sí (carisma) para riqueza de todos. La dialéctica ágape-eros despliega la subjetividad en intersubjetividad como condición de posibilidad tanto de toda experiencia de sí como de toda experiencia de comunidad; en consecuencia, asume la voluntad común como instancia que abre el horizonte de mundo, del mundear de cada quien. Y, sin embargo, esa voluntad común sólo llega a aclararse a partir de la interacción, de la meditación sobre su haber sido y sobre su poder llegar a ser: como temporalidad y como historia. En cambio, la dialéctica eros-ágape, es una suerte de éxtasis, un estar en el tiempo fuera del tiempo; un estar extasiado en la suidad que goza de y en su propia y radical afirmación; entonces, desde esta experiencia sui funda y potencia la comunidad. Sin la mentada doble implicación de la dialéctica ágape-eros—eros-ágape: el eros es afirmación de y en el poder; el ágape es contracorriente, destrucción y deconstrucción de las estructuras afirmativas del poder. El eros se afirma en el poder como superación de toda forma de pobreza; el ágape vive de la alegría de la pobreza como riqueza que descubre la radicalidad y la totalidad del don. Se trata, por tanto, de la dialéctica del sujeto-eros con la comunidad-ágape. La dialéctica, como en una suerte de quiasmo, se despliega «para encontrarse con el otro y poder forjar una nueva sociedad basada en el valor de las personas, aunque aparezcan desfavorecidas humanamente, relativizando la excesiva vigencia de las cosas» (Merino, 1982; p. 62). El ágape sólo llega a su efectuación cuando se enraíza en el ser personal de cada quien (eros) como fundamento, alfa y omega, de la vida comunitaria; y ésta sólo tiene valor porque potencia la expresión y la realización de cada quien en cuanto sujeto del mundo. Comprender al individuo, su formación, es entender que éste «(…) nace, se potencia y se madura desde una experiencia vivida y compartida; sólo es comprensible y aprehensible en contacto con esta experiencia personal y comunitaria» (Merino, 1982; p. 63). 6 ¿Quién es, pues, el sujeto del ágape, quién el del eros? . A lo que se apunta es a establecer quién es el divino y qué es lo divino. En el ágape: todos y cada uno; nosotros, entrelazados por la fuerza potente del espíritu de comunidad —el Paráclito—, que se despliega al estar juntos —la comunidad de los santos, la comunidad de los ángeles—. En el eros es la primera persona en los modos del dominus, de la ousía, de la cosa, de la causa. ¿Apunta esta elaboración a una antropología, y, desde ella, a un humanismo? En un 6 «(…) el sujeto puede ser concebido como la unidad del ser en tanto viviente individuado y en tanto ser que se representa su acción a través del mundo como elemento y dimensión del mundo» (Simondon, 2009; pp. 32-33). REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 47 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión sentido amplio y genérico sí. En un sentido restringido lo que está en discusión es el alcance del título persona. Lo que está en el centro: de la historia, tanto de la humana como de la historia de la Salvación, es la persona. Y ésta en sus modos de humana y divina; y no sólo en la persona de Cristo, sino en la persona de todos y cada uno de los humanos; lo que invoca eso divino que está en cada quien: lo sagrado de su vida; lo que hace que el otro sea en sí mismo un fin y nunca un medio. Y el modo de persona que ha llevado lo humano a su máxima expresión de amor, en la dialéctica ágape-eros—eros-ágape, es Cristo que fue capaz de amar amar; que pudo decir sí antes de toda pregunta, de toda condición, de todo análisis de las consecuencias. Ese Cristo que pone la vida de todos y cada uno como lo más valioso y digno de cuidado; ese Cristo que se hace el menor hasta para la entrega en Cruz: ¿puede ser un modelo, un paradigma incluso para los no-creyentes, para los ateos, para los agnósticos y para los indiferentes ante todo proyecto de fe? La pregunta que hace la fenomenología en su despliegue de y como giro teológico es, precisamente, seguir el fenómeno de Cristo: en su amar amar. Esta fenomenología sigue al Cristo como posibilidad de fundar una ética de la compasión que tiene por referente al pobre, porque éste no sólo exige la compasión para ser comprendido, sino también para ser reivindicado: en sus reclamos, en sus exigencias, en su crítica activa o pasiva al status quo. La prueba incontestable de que es posible el amar amar del Cristo, de la entrega a la protección de los más pobres y los más desamparados (el huérfano, la viuda, el desplazado) —en el modo de una escatología profética (Levinas; Ob. Cit., p. 48)— es, precisamente, Francisco de Asís. Jesús de Nazaret y Francisco de Asís son la expresión de una vida puesta al servicio y la expresión de la dialéctica ágape-eros—eros-ágape, son su esplendor y su exigencia. Una pregunta que se puede plantear, entonces, es la siguiente: ¿Quién es el ego amans? Y, complementariamente, ¿a quién ama el ego amans? La hipótesis que se plantea es que: el ego amans es el individuo, concretamente en y cuando es centro de la relación (zwischen; between; entre, cabe) con los otros. Y es centro porque puede amar y porque puede ser amado; además, porque es enlace con quien ama y con quien lo ama; es una fuerza potente que no depende de sí, ni del otro, sino que todo posible amor es originario de un don que sólo es fuente plena y total de amor: Dios. Pero, además, porque en el amar descubre al otro y a Dios como su entorno; además, al ser amado se descubre como entorno de los otros. ¿Quién, pues, es el ego amans? El individuo que se individúa individuando e individuándose a sí mismo en el amor a los otros. En todos los casos, es quien descubre la libertad de la entrega en el servicio, el que puede gozar viendo el goce que pueden vivir los otros, a veces por su acción o por su intervención; y tiene tanto mayor gozo cuanta más anónima es su acción. Ahora bien, ¿a quién ama? (Vargas & Gil, 2013b): a sí mismo, al otro, a la tradición. Son las formas de ordo amoris: amor a sí mismo, amor a la iglesia (ecclessia, comunidad), amor a REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 48 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión Dios. Su reverso da con la teología del pecado: ¿cuándo se peca? Cuando se atenta contra sí mismo, cuando se atenta contra los otros (dimensión social del pecado), en fin, cuando se atenta contra Dios: la blasfemia. Todo lo que hemos venido indicando es la fenomenología del amor a Dios, con Dios, de Dios: vuelto nuestra carne, encarnación, carne de nuestra carne. Y hay que hacer una fenomenología que describa el amor, el sentimiento del amor, de lo que ocurre porque hay télos amoroso que no depende de ti o de mí, pero que vive en ti y en mí: despliegue del nosotros. Y, sin embargo, no hay reglas para amar; no hay reglas distintas a amar al prójimo como a sí mismo; o, quizá, la de que quien quiere servir que se haga menor. Desde luego, todos los santos, en esencia, son testimonio y testigos del amor. Pero, ¿cómo se torna la fenomenología del amor en fenomenología de la religión? Antes de responder y también para no responder directa, sino oblicuamente y por medio de un rodeo se debe indicar: el religare de la religión implica volverse a o sobre sí mismo; implica descubrir la interioridad de vida (que sobreviene del enorme cansancio: Hua. VI; p. 348). En último término, se trata de hallar a Cristo en la intimidad; pero, ¿qué pasa con los no-cristianos?, ¿podemos tratarlos todavía como paganos? La vuelta larga consiste en que incluso se puede hablar de la religación en el campo de la o una experiencia atea: ¿En qué consiste la vuelta larga? En pasar del mundanal rüido a la interioridad –acaso en la soledad– del alma: uno puede intentar mentir a todos; a sí mismo, sin embargo, es imposible. El impostor podrá ser un cínico. El cinismo es la capacidad de reconocerse malo, motivado por el mal. Y, todavía, el cínico puede volverse sobre sí mismo y renunciar al bien: malo hasta la muerte, hasta que lo liquiden: procura deliberadamente hacer el mal. Esta decisión puede ser encubierta con impostura(s), pero el agente del mal hace lo que hace –como en El diablo y el buen Dios, de J.P. Sartre– y siempre puede cambiar: de un momento a otro arrepentirse, hacer en adelante todo el bien posible, amar, realizar las acciones buenas y santas. Desde luego, a ojos de los humanos es el pecador arrepentido; teológicamente, un ser bueno, incluso puede ser un santo. Lo cierto, pues, es que sólo en la interioridad de vida se puede dar el salto del bien al mal y del mal al bien. Esta es la potencia y la fuerza de la religación: descubrir el amor, incluso para abandonarlo de una vez y para siempre o para asumirlo y elevarlo hasta la muerte (incluso la muerte en Cruz). ¿Cómo entra aquí en juego la dimensión social del pecado? No basta con que yo quiera salvarme: soy responsable por mi pasividad ante el dolor de las víctimas, ante el sufrimiento del desplazado, del huérfano y de la viuda. Puedo, en cambio, procurar reivindicarlos en la medida de mis fuerzas; puedo ante y por ellos: actuar el amor más sincero en el anonimato del servicio. Y esto se vuelve política y se torna cultura. ¿Cómo lograrlo? Con la simplicidad de los hijos de Dios. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 49 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión III La técnica y la religión ¿Qué encontramos como contexto general para pensar nuestro mundo de la vida, lugar efectivo y efectual de la religación? Tanto la técnica como la tecnología. Estas dos son vistas ordinariamente bajo suposiciones tales: (1) el desprecio de la técnica por «invadir» inhumana o antihumanamente el mundo humano, con su consecuente (2) reducción «androide» de los dispositivos a robots, y, (3) la hegemonía de la automatización –sobredeterminación– contra toda idea de indeterminación de las máquinas (Simondon, , 2007; pp. 33-38). El problema, como se ve, no son las máquinas, sino la génesis de los objetos técnicos –la tecnicidad como forma de vida, la tecnologización del mundo de la vida–. Su génesis tiene lugar cuando los dispositivos artificiales empiezan a cumplir competentemente funciones que antes estaban en el campo de la experiencia humana; propiamente, en los niveles más mecánicos y serviles. El problema que trae consigo el despliegue de la tecnología como estructura del mundo de la vida es, entonces, antropológico; se trata de la emergencia del homo tecnologicus. Éste parece desplazar el homo religiosus; invadirlo, negarlo. No es, pues, tan sólo que se dé una progresiva «invasión» de los aparatos en nuestro mundo de la vida, con la eliminación de las funciones más serviles que antes cumplían las personas; antes bien, lo que se hace imperativo es pensar, al menos, las siguientes preguntas: ¿Qué es lo humano, qué significa ser humano, en un mundo de la vida tecnologizado?; y, ¿cómo aparece la operación religante, religiosa, del homo homo en un mundo de la vida tecnologizado? De antiguo sabemos que el homo homo es un animal simbólico, pero, ¿cómo queda alterada o transformada la estructura simbólica por un mundo de la vida tecnologizado? La hipótesis propuesta por Simondon es que «el hombre tiene como función ser coordinador e inventor de máquinas que están alrededor de él. Está entre las máquinas que operan con él» (p. 34). La indeterminación relativa de las máquinas –que supera todo mecanicismo automático, todo automatismo ciego–, entre las cuales y con las cuales se produce, se procesa y se intercambia información: pone en el centro al ser humano. Este 7 entre es el que humaniza la máquina; pero, igualmente, en esta relación con las máquinas también los humanos tienen que desplegar sus potencias anímicas y humanizarse cada vez. Ahora bien, esto implica mirar el devenir del objeto técnico al menos en tres modos: su emerger como elemento –en cierto modo: dependiente del humano–, su constituirse como individuo, y, su estabilizarse como conjunto –en cierto modo: la sociedad de los objetos técnicos–. En la primera instancia todavía el objeto técnico, en ese sentido: no tecnológico– aparece como expresión del orgullo humano, de su capacidad creativa; en la segunda, el objeto técnico cobra autonomía y, en cierto modo, amenaza a los humanos –sus puestos de trabajo, su creatividad, etc.–; en la tercera, el individuo psíquico (o humano) deviene homo tecnologicus: coordinador de la sociedad de los objetos técnicos –y la sociedad del hombre con ellos–. 7 Hemos designado este entre con la antiquísima preposición castellana cabe; hemos extendido nuestra comprensión como cabencia del sentido. Nuestra hipótesis es que el sentido cabe fenomenología y hermeneútica, (cf. Vargas Guillén & Reeder; 2009). REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 50 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión Aquí es donde aparece también la política de los signos, de la información; el gobierno de y con los signos, transformados y atravesados por los objetos técnicos (Simondon, 2007; p. 36). Que esto último llegue a llamarse biopolítica o, en cambio, ciberpolítica: es un horizonte que sólo queda anticipado en la reflexión de Simondon. Ahora bien, «los esquemas fundamentales de la causalidad y de la regulación que constituyen una axiomática de la tecnología deben ser enseñados de manera universal» (p. 35). En último término, esta formación es la que permite no sólo preservar al ser humano en el centro del entre, sino también el que le permite ejercer la gobernanza, justamente, a partir de la religación, del volverse sobre sí mediante el cual cada quien se hace dueño de sus potencias anímicas; en especial, vuelve sobre sí y reinstaura su ser y su devenir qua amans, qua ego amans. Los objetos técnicos –su devenir y su modo de existencia– crean un entorno al que el ser humano tiene que lograr su adaptación. La paradoja radica en que este entorno ha sido creado por las potencias anímicas humanas y, una vez desatado, es ahora entorno para la adaptación humana; en último término, este entorno es el lugar donde ocurre la individuación; pero éste a su vez es efecto de la individuación humana que deviene individuación de los objetos técnicos. La relación, entonces, entre la técnica y la religión consiste en que: el descubrirse cada quien, como individuo en proceso de individuación, centro de o entre dispositivos que coordina, a los que –según Heidegger, en Gelassenheit– puede y sabe decir no o decir sí, implica una vuelta sobre sí mismo que abre, potencia y efectúa la relación con los otros, una articulación del nosotros –transindividuación la llama Simondon; intersubjetividad, comunidad, es el sentido fenomenológico de este acontecimiento–. Este saber decir sí o saber decir no es cosa misma de la religación en un mundo de la vida tecnologizado: superación de la alienación, humanización religante del sí mismo en este, su nuevo escenario existencial. La tecnicidad y el reencantamiento del mundo ¿Qué es lo que se pierde con la división mundo-sujeto? En síntesis, el origen; la experiencia mágica de mundo, la aesthesis, el amans del ego amans. Allá, en esa experiencia originaria: mítico-mágica-amatoria, todavía no se diferencia, por el uso de una retícula, figura y fondo; hay una suerte de unidad primigenia. En el puro origen: sólo se da la unidad, el todo, la indiferenciación. Pero sobreviene un desgajamiento –que bien se puede llamar desfase–: hay un momento de eclosión. Sobre un lugar-clave y en un tiempo-clave se da la figuración, deviene una diáspora de dimensiones de ser; variedad de variantes que hace que se manifieste el ser en su multiplicidad de sentido. Y no es que un sentido tenga primacía sobre otros, que una fase pueda determinar a las demás. Es que el ser en sus distintas fases expresa diversas perspectivas que hacen que acontezca, de manera efectiva y efectual, la individuación. Entonces, fase por fase, el ser muestra cómo se pueden dar diferentes manifestaciones en diversidad de individuos. Y todos ellos pueden, de nuevo, tender a la unidad primigenia. No REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 51 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión es, por tanto, que se pueda hablar de una reconciliación dialéctica de los contrarios, sino de un armonización de la variedad de fases de ser. Y, si no se equivoca el sentido último de la tecnicidad, ésta se orienta precisamente a lograr esa neutralidad del origen que lleva a desfasamientos y, al mismo tiempo, que propicia la individuación de los individuos. ¿Por qué, entonces, se requiere una vuelta al origen, a un estudio de la génesis del objeto técnico, a una fenomenología de la religión y a una fenomenología genética de la técnica? En síntesis, porque hay un momento en que se desfasa de esa unidad primigenia el sujeto con respecto al mundo; y, en ese momento, la que antes fuera la correlación individuoentorno (correlación en la cual la mediación era, en sí, el despliegue mítico-mágico del ser en la experiencia del ego amans) se transforma en mediación técnica desplegada a través del objeto técnico. Puesto en el desfasamiento reticular que produce los efectos de subjetividad (religión) y objetividad (objeto técnico) se mantiene la lógica de las oposiciones: religión-ciencia, éticaestética, individuo-sociedad, presente vivo-historicidad, natura-cultura. ¿Cómo, entonces, se lleva a cabo el máximo de la tecnificación del objeto técnico? Por el despliegue tanto del análisis como de la inducción. La armonía (neutralidad la llama Simondon) que supera el desfasamiento, entonces, sobreviene como efecto de la síntesis. Los problemas, pues, del origen del mundo y del mundanear del mundo son los problemas de la filosofía; concretamente, de la filosofía de la religión y de la filosofía de la técnica, a saber, la reconstrucción del sentido de la totalidad como fuente de la eticidad. Aquí es donde aparece el sentido y el valor de la tecnicidad: que ella sea ecológica, que ella sea humana-humanizante, que ella genere y potencie estructuras y procesos societales, que ella sea efecto y efectúe la cultura. Todo esto es lo que indica, sumariamente, tecnicidad: forma de instalación en el mundo, como mundo (kosmos: orden, totalidad, universo). ¿Qué sentido tiene, entonces, la tecnología? El de estructura de reencantamiento del mundo, una vuelta religante hacia el sí mismo que se hace responsable de sí, del entorno y de la historia para propiciar un cuidado del origen y su fuerza destinal. Por eso es que la fenomenología de la génesis del objeto técnico tanto como la fenomenología de la religión son una vuelta a las potencias de lo mítico-mágico-amatorio, al momento primero, para poder establecer cómo en cada presente las actuales dimensiones de la manifestación de la tecnicidad (objeto técnico) y de al subjetividad pueden retrotraerse a su examen desde el sentido destinal, desde su origen, por una parte; y, abrirse al horizonte de realización del ser, por otra. Así, el objeto técnico y la subjetividad son medianía mítico-mágica-amorosa que despliega las potencias creativas del ser humano como fase del ser que descubre y realiza el sentido de(l) ser. ¿Cuál es el lugar donde se reconcilian técnica y religión? Bien que la técnica sea, en sí, apertura a la objetividad –objetivación de la función ideal, concreción progresiva del eidos–; bien que la religión sea despliegue de la subjetividad –en sí, paso del individuo y sus procesos de individuación, primero, a la constitución de la individuación psíquica, y, posteriormente, a REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 52 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión la constitución del individuo como sujeto racional, operador de la ética. Todo ello, empero, acontece como desdoblamiento que se realiza a partir del mundo mágico, mítico-mágicoamatorio. Pero, ¿qué quiere decir, aquí, estética? Desde luego, invoca el arte, la obra de arte, lo bello; pero igualmente alude a la aesthesis –vida pura de despliegue del ego amans–: cuando todavía las vivencias no tienen el carácter de percepción, esto es, cuando todavía éstas no son tamizadas por una grilla, engrilladas, o, cuando todavía no emerge una (otra, en algunos casos) grilla que engrilla la dación de mundo (Fink, 2003; pp. 361-428). Claro que el objeto técnico tanto como la experiencia religiosa pueden ser bellos: el faro en el promontorio de una isla, pequeña, dando luces y alumbrando para el paso de los marineros; la iglesia, su atrio o su púlpito, no sólo porque se hallan en un santuario e invitan a la reflexión, al recogimiento. Los ejemplos se pueden multiplicar indefinidamente. Sin embargo, la belleza misma tiene un lugar de acontecimiento: el mundo y, en especial, la expresión de las múltiples y variadas manifestaciones de los procesos de individuación. En resumen, la aesthesis –vida pura del ego amans– es el lugar de la convergencia de lo técnico y de lo religioso porque, de un lado, se objetiva como inserción de objeto con el mundo para potenciarlo, expresarlo, ofrecerle sentido y, por eso, se objetiva la experiencia de mundo; pero, al mismo tiempo, se subjetiva porque, con respecto a la dación o donación del mundo, se exige que alguien lo experiencie, lo realice, lo despliegue. Y, sin embargo, no se trata de una estetización que se conforma con la belleza –o el simulacro de belleza del objeto–, como tampoco se trata de una vuelta a la intimidad del goce subjetivo del mundo o de la experiencia de mundo. Aesthesis es aquí y ahora (hic et nunc) vida nuda del ego amans: no antes y no después. De lo que se trata es de que se recupere la unidad de teoría y práctica, de técnica y religión, de individuo y multitud o colectivo o comunidad. Si como lo indicó Kant: los cherokees no se pintarían sus caras ni adornarían sus cuerpos si su experiencia no tuviera como polo correlativo a otro(s), es aquí y ahora que se busca captar cómo en la aesthesis como ego amans no sólo soy primera persona del sentido, sino que ese sentido lo comparto con otro(s), así éste sea yo mismo como mi pasado yo o como mi futuro yo. Y, sin embargo, lo que cuenta es este presente vivo, viviente: comprender para hacer, hacer para comprender, ida de un polo a otro. En resumen, transducción. ¿Qué queda aquí, entonces, como tarea para el ingeniero y para el hombre religioso? Ya se ha dicho: desarrollar, respectivamente, una filosofía de la tecnicidad y una filosofía de la religión. Éstas tiene que ser ejecutada en clave genética, mediante un método que elucida el haber sido y el poder llegar a ser. Se trata, siempre, de combatir toda forma de solipsismo, de positivismo y de instrumentalismo. Es cierto que se requiere enfrentar las cosas de la creación como individuo; como es cierto que se requiere atenerse a los datos, a lo dado; como es cierto que es imperativo traducir el eidos en dispositivos, en tecnofactos. Y, sin embargo, de lo que se trata es de ejecutar «el esfuerzo filosófico [que] puede conservar tecnicidad y REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 53 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión religiosidad para descubrir su convergencia posible al término de una génesis que no sería realizada espontáneamente sin la intención genética del esfuerzo filosófico» (Simondon, 2007; p. 230). El pensamiento religioso, pero también el técnico, produce dogmatismo. Éste se produce porque se ignora la otra fase en que se desdobla, a saber, la tecnicidad o su correlativa religiosidad; e, igualmente, porque se olvida el origen, esto es, la dación mítico-mágicaamatoria del mundo en que es vivenciado originariamente por el ego amans. Desde luego, dogmatismo, en muchos sentidos, es positivización, así sea en el modo de estetización. Incluso la percepción, las grillas en que se da la percepción, pueden ser dogmatizadas; por eso el ego amans se exige el retorno a un momento anterior a la percepción. Este momento anterior es el originario experienciar estético mítico-mágico-amatorio; este momento es, en rigor, la experiencia estética. Propio del objeto técnico o de la experiencia religiosa, que abre una u otra vía el ego amans a partir de la experiencia originaria mítico-mágica-amatoria del mundo es que despliege una expresión de la correlación sujeto-mundo. Tanto el objeto técnico como la experiencia religiosa expresan la aesthesis, pero al tiempo la subjetiva y la objetiva. El despliegue estético del ego amans es la experiencia del origen, sin retícula; pero, igualmente, es la vuelta al origen, la preservación y la puesta en movimiento del origen. El despliegue estético puede hacerse en o como experiencia técnica y/o como experiencia religiosa. En la técnica y en la religión tiene que pervivir el origen, y esta preservación es la tarea de la filosofía, de la filosofía de la religión, de la filosofía de la tecnología, de la filosofía de la tecnicidad. El maestro de Simondon, M. Merleau-Ponty, en su obra Signos, dijo que la filosofía busca impedir que se olvide la fuente de todo saber: el mundo. Al parecer, Simondon mantiene la idea de su maestro y la lleva a un grado de radicalidad: se trata de estudiar la fuente o génesis de ese saber y la forma originaria de despliegue de ese saber a partir de la experiencia estética. Aquí aparece la idea del ecumenismo del pensamiento. Este alude (oikumene=tierra, toda tierra, todos los lugares) al hecho de que el pensamiento en su mundear o mundanear lo hace estéticamente, todavía sin grilla, sobre todas las regiones: lo ético, lo natural, lo cultural, etc. Oikós es casa, residencia, lugar que se habita; oikonomia es el cuidado de la casa. De lo que se trata es del mundo como aquello que habitamos y lo habitamos también por medio del pensamiento. Y éste se despliega estéticamente. Ahora bien, bello es la inserción del pensamiento en el mundo, la posibilidad de llevarlo al máximo de expresión; bella, igualmente, es la expresión de los sujetos que, a su vez, expresan el mundo. Y no porque se expresen sujeto o mundo –en mutua participación– se despliega lo bello. Éste implica: acople de sujeto y mundo, en su mutuo individuarse. La estética es, en sí, una interfaz entre mundo y sujeto. Esta interfaz es, en sí, la de la individuación. Si bien hay individuo psíquico tanto como individuo físico –y otras gradaciones de individuación– lo que hace la estética como interfaz es enlazarlos procurando una armonía REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 54 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión que permita múltiples desdoblamientos, sin perder el sentido originario mundo, que se da como tal (como mundo) como unidad (kosmos). La estética es el acontecimiento del origen, su renovación. Es mediante ella que el mundo deviene no sólo como unidad, sino también como la superación de todo dogma para comprender o para intervenir en él. En fin, es ego amans en individuación. IV Libertad, mal, Dios Ensayitos quiere a Dios. Francisco Rodríguez Latorre (2013; p. 173). Incluso el ego amans hace el mal que no quiere. Ahora bien, en la mención del título mal8 al mismo tiempo se invocan los títulos voluntad y libertad. Éstas sólo puede ser desplegadas en primera persona por el ego amans. Sólo se puede imputar «maldad» a quien decide. La libertad es la esencia misma de la decisión del ego amans. Todos estos títulos (libertad, voluntad, decisión, bien, mal) implican, así mismo, la esfera de lo humano, vida pura del ego amans. Atribuir, en cambio, «bondad» o «maldad» a un individuo no-humano implica una antropomorfización. También ésta puede ser atribuida al conocimiento: sabemos lo que es una piedra, una espinaca, una bacteria, tal como se da en nuestra esfera de experiencia o esfera de propiedad; y, sin embargo, todas ellas se nos dan así, indefinidamente, de manera invariante. Se puede establecer el eidos, la estructura: modus essendi y, al mismo tiempo, modus cognoscendi: las estructuras –de las cosas, del mundo– se dan en el pensar y se dan en los hechos. Y forma parte de las posibilidades llegar a establecer, o no, el eidos. El darse o el aparecer, la fenomenidad, implica la primera persona: si algo aparece, aparece a o para una subjetividad –para un individuo psíquico– que la enfrenta, que le da sentido, que la reduce a su esfera de propiedad. Que este sentido –vivenciado en o desde el polo subjetivo– se pueda validar implica no sólo que se aluda al polo correlativo 'mundo', también hace relación al estar con otros, entre o en medio de los otros, la intersubjetividad. Este sentido es verdad si vale para uno y vale (validez) para todos, así e indefinidamente. Conocer, entonces, es promover la facticidad a sentido: la piedra es piedra, comporta una estructura; ésta puede ser conocida, y llega a ser conocida. Se puede contar con la piedra en múltiples circunstancias: está en la construcción, en la vía, en el río. Y, no por su situación –ora aquí, ora allá; ora con un sentido, ora con otro– o por su uso cambia de estructura. Ahora bien, ésta no comporta télos. Éste, que se sepa, es sólo humano. En la natura hay –o los humanos pueden interpretar que hay– teleonomía. El humano, en cambio, es un ser cuyo ser es querer y poder ser; en la cultura, en la vida moral –tanto personal como colectiva– hay teleología. Ésta aparece como una decisión que alguien toma y que se convierte en un 8 Aquí, desde luego, se precisa diferenciar lo moral o ético de lo legal, de lo jurídico, de lo justo. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 55 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión proyecto de quien la toma y, progresivamente, de otros que la hacen vivir como un horizonte de experiencia tanto personal como colectiva. Así se dio la emergencia del ego filosofante: el querer ser racional9. En resumen, se aspira a algo. Esta aspiración ordena la experiencia, las acciones del yo. El télos es libremente asumido en la radicalidad del ego amans. Al cabo, él lo encarna, lo hace carne de su carne, vida. ¿Puede ser ejercida la libertad, la decisión, sin conocimiento? La estructura teleológica de la conciencia: el querer ser racional y el poder actuar en dirección de unos fines que se da a sí mismo un sujeto (de nuevo: individuación psíquica que se torna cada vez más racional), un colectivo de sujetos (intersubjetividad, transindividuación), sólo sobrevienen si se llegan a expresar racionalmente, si se muestra de ellos el por qué y la causa; en fin, si se muestran fines, querer y poder actuar que puedan ser fuente de sentido de la experiencia personal y colectiva. Ser racional es querer ser racional, es querer serlo, es serlo en un sentido teleológico (Hua. VI, p. 274). De lo que se trata con la razón es de que se logre esclarecer el sentido de la subjetividad, en su relación con los otros; de esclarecer su historia; de dar valor a sus proyectos. Racionalizar la experiencia del ego amans y el sentido de ella es un proceso in fiere: como queriendo llegar a ser. Se es moral si se es racional, si se mantiene el proyecto de racionalizar la experiencia (Nenon, 2011). ¿Qué viene a representar en este proyecto el título Dios? Al menos fenomenológicamente se trata de un índice que refiere: 1. El télos de la historia; 2. El fundamento o el origen en la serie regresiva de las causas; 3. El Cristo, modelo de eticidad que puede, una y otra vez, servir de paradigma del actuar personal y colectivo. Se trata, respectivamente, de la idea del hombre infinitamente alejado; de la causa incausada; del amor, personal, que alguien (el Cristo) y todos pueden vivir en su experiencia de mundo. Este último es el fundamento radical del ego amans. Sólo en esta acepción se tiene al frente una conexión entre ética (voluntad, decisión, deliberación, adhesión, sentido de vida), racionalidad y divinidad. Este proyecto ético teleológicamente orientado por la razón que se hace racional en el querer ser racional tiene que ver, entonces, con lo divino como es vivenciado en la radicalidad del ego amans –más que de el Divino–: sentido que da sentido a todo proyecto de ser. En esta dirección se enlaza con la vida, los derechos humanos, la ecología, la tecnicidad. Elucidar el télos es amar a Dios, ayudarlo, querer que se haga su voluntad. Ésta es sólo la nuestra, plena y absolutamente esclarecida como un proyecto que da sentido a la vida personal y colectiva; es el sumo bien. Éste sólo adviene con el amor, con la realización religante de las potencias plenas del ego amans. Bibliografía Fink, Eugen. (2003). «La filosofía fenomenológica de Edmund Husserl ante la Crítica Contemporánea». Traducción de Raúl Velozo Farías. En: Acta fenomenológica latinoamericana. Volumen I, Lima, Pontificia Universidad Católica del Perú; pp. 361-428. 9 Por supuesto, hay otras culturas –no occidentales– que se proponen otros proyectos, otros fines: la sintonía cósmica, la disolución del yo, la ataraxia, la armonía. Que se cambie el télos no implica que no se tenga estructura teleológica. Que ésta, igualmente, sea una estructura intencional. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 56 El ego amans - Entre giro teológico y filosofía de la religión Husserl, Edmund. (1961). Phänomenologische Psychologie. Vorlesungen Sommersemmester 1925. Den Haag, Martinus Nijhoff. (Hua. IX). Husserl, Edmund. (1962). Die Krisis der europaischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Ergazungsband. Texte aus dem Nachlass 1934-1937. Den Haag, Martinus Nijhoff. (Hua. VI). Husserl, Edmund. (2008). La crisis de las ciencias europeas y la fenomenología trascendental. Bs. As., Prometeo; trad. Julia V. Iribarne. Levinas, Emmanuel. (1977). Totalidad e infinito. Ensayo sobre la exterioridad. Salamanca, Sígueme; trad. Daniel E. Guillot. Marion, Jean-Luc. (2005). El fenómeno erótico. Bs. As., El Cuenco de Plata; trad. Silvia Mattoni. Merino, J. Antonio. (1982) Humanismo y franciscanismo. Franciscanismo y mundo actual. Madrid, Eds. Cristiandad. Nenon, Thomas. (2011). La fenomenología como ciencia falible. En: Revista Co-herencia. Vol. 8, No 15 Julio - Diciembre 2011, pp. 45-67. Medellín, Colombia; trad. G. Vargas Guillén. Rodríguez Latorre, Francisco. «Encuentros con Ensayitos. –Cuando Ensayitos habla de argumentación y ciencia empezamos a encontrarnos». En: Ensayitos, en debate. Alcances y limitaciones del método analítico. Bogotá, Universidad Pedagógica Nacional, 2013, p. 173. Simondon, Gilbert. (2009). La individuación. A la luz de las nociones de forma e información. Buenos Aires: Ediciones La Cebra y Editorial Cactus; trad. Pablo Ires. Simondon, Gilbert. El modo de existencia de los objetos técnicos. Bs.As., Prometeo, 2007; trad. Margarita Martínez y Pablo Rodríguez. Vargas Guillén, Germán & Gil Congote, Lina Marcela. (2013b). Universidad e individuación. –Fenomenología de la individuación y de la formación como transducción de información–. Bogotá, Universidad Pedagógica Nacional –Doctorado Interinstitucional en Educación; Cátedra Doctoral Educación y Pedagogía: Pensar la universidad. En prensa, 2013). Vargas Guillén, Germán & Gil Congote, Lina. (2013a). La región de lo espiritual. –Individuo, individuación. Bogotá, Universidad Pedagógica Nacional (Doctorado Interinstitucional en Educación; Seminario doctoral: La región de lo espiritual. En prensa, 2013). Vargas Guillén, Germán & Reeder, Harry P. (2009). Ser y sentido. Bogotá, San Pablo. Vargas Guillén, Germán. (2012a). Fenomenología, formación y mundo de la vida. Saarbrücken, EAE. Vargas Guillén, Germán. (2012b). La fenomenología de lo invisible: el problema del método. En: 'Odos; No. 2, Julio–Diciembre; pp. 86 á 99. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 57 Uma saída do dilema de Eutífron Uma saída do dilema de Eutífron 1 Nick Zangwill (*) Resumo: Defendo a visão de que a moralidade depende de Deus, contra o dilema de Eutífron, argumentando que as razões de Deus para determinar dependências moral-naturais podem ser razões pessoais que têm conteúdo não moral. Eu evito a preocupação do “capricho arbitrário”, mas concedo que a explicação não se estenda à bondade de Deus e sua vontade. Entretanto, dependências moral-naturais humanas podem ser explicadas pela vontade de Deus. Então, uma versão ligeiramente restrita da teoria do comando divino é defensável. (*) University of Hull [email protected] Abstract: Abstract: I defend the view that morality depends on God against the Euthyphro dilemma by arguing that the reasons that God has for determining the moral?natural dependencies might be personal reasons that have non-moral content. I deflect the "arbitrary whim" worry, but I concede that the account cannot extend to the goodness of God and His will. However, human moral-natural dependencies can be explained by God?s will. So a slightly restricted version of divine commandment theory is defensible. 1 Tradução de Rodrigo Rocha Silveira e revisão de Agnaldo Cuoco Portugal. Publicado originalmente em Religious Studies (2012) 48, 7-13. Cambridge University Press. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 58 Uma saída do dilema de Eutífron Dependência moral e o dilema de Eutífron Suponha que julguemos que um ser humano tem a propriedade moral M porque tem a propriedade natural N. M pode ser a propriedade de ser bom ou mau, virtuoso ou perverso, obrigatório ou proibido; e N pode ser a propriedade de ter certos estados psicológicos, ou estar em certas relações sociais com outros seres humanos, ou ter certas propriedades físicas. Além disso, suponha que esse julgamento é correto. Um pensamento ou hipótese seria de que isso exaure a questão, e N é o right-maker [o que faz de N moralmente correto] último de M. Chamemos essa teoria “antiteoria”. Para um antiteórico, dependências M-N são brutas e inexplicáveis, como a existência do mundo físico para os fisicalistas ou como a existência de Deus para os teístas. Suponha, porém, que rejeitamos a antiteoria e adotemos a anti-antiteoria. Então, pensamos que algo poderia explicar a dependência de M em relação a N: poderia haver algo que explicasse por que uma pessoa ser N faz com que ela seja M. Uma possibilidade é que haja uma relação de dependência mais básica e mais geral sob a qual esse caso é subsumido. Por exemplo, consequencialismo ou deontologia podem ser teorias gerais verdadeiras e, portanto, uma pessoa seria M em virtude de maximizar a felicidade ou em virtude de respeitar os direitos e, para os deontologistas kantianos, dependeria ademais de ter ações consistentemente desejáveis. Outra possibilidade é a de que a dependência M-N não se dá em virtude de um fato moral bastante geral, mas em virtude de outro tipo de fato. O fato fundamental não precisa ser um fato moral. Mesmo se houver algum fato mais profundo baseando as dependências ordinárias que afirmamos ao fazer julgamentos morais (como a dependência de M em relação a N), não há razão para afirmar que, além delas, precisamos saber o fato moral mais geral ou o fato não moral fundamental para afirmar as dependências ordinárias. A competência conceitual não requer que saibamos aquilo em relação a que as dependências que afirmamos dependem em última análise. Considere a visão de que alguma dependência M-N (doravante “D”) acontece porque Deus quer: D depende da vontade de Deus. A ideia é que os fatos da dependência moral ocorrem porque Deus desejou sua existência. Ele poderia desejar D diretamente ou ele poderia desejá-la ao desejar os fatos do consequencialismo ou da deontologia dos quais D depende. De uma forma ou de outra, dependências morais são devidas a, ou dependem de, Deus. Essa é uma maneira de caracterizar a teoria do comando divino2. Agora entra em cena o dilema platônico de Eutífron: as coisas são boas porque Deus as deseja ou Deus as deseja porque são boas (Platão, 1997)? “Boas porque Deus as deseja”, declara o defensor da teoria do comando divino. Mas, então, como é bem conhecido, um subdilema secundário se abre: Deus tem razões para querer o que Ele quer? Ou não? Se sim, as razões pelas quais Deus quer as coisas serão realmente os right-makers últimos e Deus mesmo rapidamente sairá de cena. Se não, os atos de sua vontade parecerão caprichos arbitrários. 2 Ou teoria do mandamento divino (n.t.) REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 59 Uma saída do dilema de Eutífron O subdilema levanta a questão geral de haver ou não razões para os mandamentos de Deus. Suponha que Deus tenha razões, independentemente de conhecermos essas razões. (Moisés Maimônides em Guia para os Perplexos, defende que as razões de Deus para alguns de seus mandamentos são omitidas de nós porque, se conhecêssemos as razões, elas enfraqueceriam nossa obediência a eles (Maimônides, 1958)). Se Deus tem razões para querer D ou para querer alguma dependência mais básica da qual D depende, então o fato de ele ter essas razões é a explicação última de D. Ademais, se as razões de Deus são somente que o consequencialismo, ou a deontologia, ou seja o quer for, é verdade e esse fato moral não divino é o right-maker mais profundo de M, então o defensor da teoria do comando divino estará “espetado” pelo segundo subchifre do dilema e Deus sairá de cena. Deus se torna, nesse caso, moralmente irrelevante. Além disso, o outro chifre parece indisponível: não pode ser que Deus simplesmente não tem razões para querer as dependências. Isso faria dos atos de Sua vontade “caprichos arbitrários” em um sentido indiscutivelmente mau. Razões pessoais Contudo, a virtude de ter montado a questão de Eutípron desse modo é que podemos ver que é possível que Deus tenha outros tipos de razões. O tipo de razões que tenho em mente não seria como o consequencialismo ou a deontologia, em que as razões de Deus para querer as dependências se referem somente à Sua crença em alguma teoria moral geral. Esse não é o único tipo de razões que Deus pode ter. Em particular, quero sugerir que Deus poderia ter certo tipo de razões pessoais para querer o que ele quer – em que uma razão pessoal é expressa por meio de um indéxico como “eu” ou “meu”. Em relação aos seres humanos, nosso amor por nossos amigos ou família e nossos relacionamentos com eles nos fornecem razões pessoais para fazer várias coisas por eles. Nós também temos razões pessoais para cumprir nossas promessas. Muitas das nossas razões são pessoais nesse sentido. Não parece haver nenhuma razão pela qual Deus não deva ter razões pessoais também. As razões pessoais de Deus seriam uma questão de como elas se dão com relação a Deus e em Seus relacionamentos com outros. Se é assim, aparentemente não se levantaria o problema de Eutífron, contanto que as razões pessoais não sejam razões pessoais morais no sentido de ter conteúdo moral. Obviamente, é difícil de saber se esse caminho é atrativo até que tenhamos alguma ideia de quais possam ser as razões pessoais não morais de Deus. O importante, todavia, é o espaço teórico para uma teoria do comando divino desse tipo. Considere a sugestão feita em tom de brincadeira por Kierkegaard (em Ou isso, ou aquilo) de que Deus criou o mundo porque Ele estava entediado (Kierkegaard, 1944, p. 282). Deus poderia ter também querido as dependências morais por essa razão? Essa seria uma teoria consistente. Essa razão envolveria um indéxico: “Eu faço isso porque estou entediado”, pensa Deus. Trata-se de uma razão pessoal, não impessoal, e carece de conteúdo moral. Talvez a sugestão de Kierkegaard não seja a correta. (Talvez Deus não fique entediado). Entretanto, é uma razão do tipo certo. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 60 Uma saída do dilema de Eutífron Considere um exemplo não divino: muitas pessoas gostam de cultivar rosas. Isso dá a elas razões para fazer várias coisas, como comprar adubo e podar. Diferentemente do caso de meramente estar entediado, as razões deles para fazer essas coisas são boas. Cultivar rosas é um hobby decente. Porém, as razões deles carecem de conteúdo moral. Essas pessoas estão interessadas em rosas, não em bondade moral. Esse interesse em rosas dá a eles razões para fazer coisas. As razões de Deus para estabelecer relações de dependência moral-naturais poderiam ser similares. O apelo a razões pessoais não é somente o apelo a razões não morais. Se esse fosse o caso, não se escaparia do problema de Eutífron, porque, se Deus quer dependências N-M por razões não morais – por exemplo, razões estéticas –, então essas razões não morais são a explicação última das dependências. Nesse caso, Deus sai de cena novamente. As razões pessoais não morais de Deus, todavia, não nos dão razões. As promessas de Ariel dão a Ariel uma razão para manter suas promessas, mas elas não criam razões similares para outras pessoas fazerem o que Ariel prometeu. As amizades de Bea dão a ela mesma um razão para fazer coisas pelos seus amigos, mas elas não dão as mesmas razões para outras pessoas fazerem coisas pelos amigos de Bea. As promessas de Ariel são dele, não nossas, e os amigos de Bea são dela, não nossos. Similarmente, as razões pessoais de Deus não se aplicam a nós, uma vez que elas são d'Ele, não nossas. Essa, portanto, parece ser uma possível saída do dilema de Eutífron: a ideia é que Deus tem razões pessoais não morais para querer as dependências morais últimas. Se as razões de Deus para querer o que ele quer fossem Ele adotar alguma teoria moral, como o consequencialismo ou a deontologia, então a teoria do comando divino estaria morta. Pois o right-maker último de M seria algum fato sobre consequências ou direitos e Deus não tem relação com isso. Porém, se Deus tem razões pessoais não morais, a teoria do comando divino está, ao menos, viva e poderia florescer dado posterior desenvolvimento. Caprichos, dependência e necessidade Estaríamos agora presos no segundo subchifre? Se Deus tem razões pessoais não morais para querer ou comandar o que ele quer ou comanda, por que elas não são caprichos arbitrários que não precisam nos vincular tanto quanto se Ele não tivesse razões nenhumas? Precisamos perguntar o que um “capricho arbitrário” significa aqui. Uma maneira de elaborar essa objeção seria a de dizer que, na teoria do comando divino como eu a reconstruí, Deus querer as várias dependências morais é arbitrário no sentido de que Ele poderia ter querido de outro modo. Ele poderia ter querido que assassínio, roubo, estupro e tortura fossem corretos. Ao que parece, então, assassínio, roubo, estupro e tortura teriam sido corretos se Deus tivesse escolhido diferentemente, o que ele poderia ter feito. Já que ele poderia ter escolhido fazer assassínio, roubo, estupro e tortura corretos, eles poderiam ter sido corretos. Mas – esta é a objeção – essa consequência é inaceitável. Essa objeção confunde dependência com necessidade. Para o defensor da teoria do comando REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 61 Uma saída do dilema de Eutífron divino, os fatos morais e as dependências M-N dependem da vontade de Deus. Contudo, a dependência das dependências M-N da vontade de Deus não acarreta a contingência destas. A vontade de Deus, é claro, é livre. Ser livre significa que o eu é a fonte do querer e da ação. Porém, não é de modo algum claro que essa ideia envolva o princípio “poderia ter feito diferente” - que um eu que quer algo poderia ter querido outra coisa. Esse é outro assunto. Talvez em muitos casos de ação humana, nós poderíamos ter feito diferentemente (assumindo que não estejamos em circunstâncias fora do normal). Não devemos, porém, extrapolar do nosso caso usual para a essência do livre-arbítrio e, por conseguinte, para a vontade de Deus. Dada a separação entre dependência e necessidade, não existe nenhuma grande ameaça à liberdade de Deus advinda da necessidade daquilo que Ele faz. Não é o caso, então que assassínio, roubo, estupro e tortura poderiam ter sidos corretos numa teoria do comando divino. Eu noto que a distinção dependência/necessidade está no pano de fundo do debate sobre a teoria do comando divino, uma vez que tanto esta quanto a posição contrária a ela, o “autonomismo” a respeito da moralidade, concordam que é necessário que seja moralmente bom se e somente se Deus o aprova (ou aprovaria se Ele existisse). Isso, porém, não resolve a questão do que depende de quê. O autonomista afirma que Deus quer as coisas porque elas são boas, enquanto o defensor da teoria do comando divino afirma que elas são boas porque Deus as quer, a despeito de sua concordância sobre a conexão necessária entre as duas coisas. O debate a respeito da teoria do comando divino não pode levantar voo sem a distinção dependência/necessidade, o que também vale para a maioria das questões filosóficas em minha opinião. A bondade de Deus Se Deus tem razões pessoais, elas precisam se boas razões. (Se não elas serão arbitrárias num sentido indiscutivelmente ruim) As razões de Deus não precisam ser impessoais e não precisam ser a de que alguma teoria moral ordinária é verdadeira – como consequencialismo ou deontologia. Elas, contudo, devem ser boas. Não parece existir nenhuma razão pela qual as razões de Deus não possam ser boas razões a despeito de serem pessoais e carecerem de conteúdo moral. Elas podem ser boas razões pessoais não morais. Não obstante, há uma dificuldade: de onde vem a bondade dessas razões? O problema é que, aparentemente, a vontade de Deus não pode explicar a bondade de Suas razões para querer o que Ele quer. Um ato de vontade seguramente não pode criar sua própria bondade, pois a ligação da bondade a um ato de vontade é anterior a qualquer coisa que o ato realiza. Então, a bondade dos atos da vontade de Deus não pode ser um produto deles mesmos. Deus não pode, como Napoleão, coroar a si mesmo com a bondade. Distinguir diferentes conceitos morais não ajuda de forma alguma com esse problema, como alguns pensaram, pois é também verdade que Deus é obrigado a querer o que Ele quer e que Ele é virtuoso ao querê-lo. O problema se aplica a qualquer das REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 62 Uma saída do dilema de Eutífron propriedades morais de Deus que consideremos. Uma resposta mais plausível é dizer que a bondade das razões pessoais de Deus (ou seja, de Deus ter essas razões) não precisa ser bondade moral. Se elas precisassem ser razões moralmente boas, então haveria, de fato, um círculo vicioso e um problema a respeito da fonte da bondade moral dessas razões. Nem toda bondade, contudo, é bondade moral. Suponha, por exemplo, que as razões têm virtudes racionais. Se as razões de Deus tiverem bondade de outro tipo que não moral, isso significaria que não se pode ter uma teoria do comando divino daquela bondade. Isso significa que não se pode ter uma teoria do comando divino de todas as propriedades normativas – moral, racional e as demais propriedades normativas que existirem. Alguém poderia, entretanto, defender uma teoria do comando divino restrita a normas morais, contanto que Deus as queira racionalmente. Se Ele quer as normas morais e esse querer é racional, então elas são caprichos arbitrários. Eu assumo que um capricho arbitrário é irracional ou, ao menos, não racional. Se Deus, contudo, tem razões pessoais não racionais, como aquelas dos cultivadores de rosas, Seu querer pode ser racional. Isso aparenta ser bom o suficiente. É verdade que, qualquer que seja o tipo de bondade que se ligue à vontade de Deus e Suas razões, não podemos ter uma teoria do comando divino dessa bondade. De outros tipos de bondade, porém, poderíamos. Não estou satisfeito como isso. O que dizer da bondade moral de Deus? Certamente não se pode negar que Deus e Sua vontade são moralmente bons. Eles são essencialmente e necessariamente bons. Essa bondade moral depende de Ele querer ser moralmente bom de forma essencial e necessária? Esse ato de vontade não teria de ser moralmente bom antecedentemente? Em caso afirmativo, parece que Ele não pode desejar a bondade de seu ato de vontade, uma vez que este teria de ser moralmente bom. O problema não é que isso gera um regresso. Deus usualmente não se importa com regresso por ser descomunalmente infinito. Com efeito, ele os saboreia e os come no café da manhã! O problema a respeito da bondade moral da vontade de Deus é que, para o defensor da teoria do comando divino, a bondade d'Ele surge do fato que a bondade moral está no conteúdo dos atos de vontade de Deus. É assim que a vontade d'Ele gera a bondade. Se, no entanto, a bondade moral é criada ao estar incluída no conteúdo da vontade de Deus, então ela não pode explicar a bondade moral que se liga a esses atos de vontade. Isso é um problema. Eu penso que isso precisa ser aceito. A própria bondade de Deus não pode ser explicada pela teoria do comando divino. Essa é a má notícia. A notícia relativamente boa é que não há razão por que outras bondades não possam ser assim explicadas. Podemos adotar uma teoria restrita do comando divino. Ela, todavia, não é tão restrita, pois ainda fornece uma explicação de todas as dependências M-N que povoam nossa vida moral humana. Resta ainda um enigma a respeito da bondade moral de Deus e de Sua vontade. Bondade é uma propriedade dependente, como todas as propriedades normativas: se algo é bom, deve sê-lo em virtude de outras propriedades. (Isso é um problema para Platão, pois ele toma a bondade como fundamental no mundo). A bondade de Deus depende da essência de Deus, o REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 63 Uma saída do dilema de Eutífron que quer que ela seja. A questão é como a bondade d'Ele se relaciona com os atos da Sua bondade. Portanto, a teoria do comando divino não pode ser completamente geral. Há duas possibilidades restantes. A primeira é que a vontade d'Ele depende de Sua bondade, que, por sua vez, depende de Sua essência. A segunda é que tanto a vontade quanto a bondade d'Ele dependem de Sua essência, mas nem a vontade nem a bondade d'Ele dependem uma da outra. Em ambas as visões, a bondade de Deus é intimamente relacionada com a Sua vontade: ambas fluem da essência inescrutável de Deus (Maimônides, 1958). Sua vontade não explica, porém, Sua bondade. Para o defensor da teoria do comando divino, a bondade de Deus tem uma explicação especial – ela é a exceção – e a bondade de todas as outras coisas dependem da vontade de Deus. Coda Minha proposta, portanto, é que Deus tem razões para querer a bondade das coisas. Essas razões não são razões morais. Elas são as razões pessoais d'Ele, que dizem respeito a Ele ou às coisas que tem relação com Ele. Eu confesso não poder dizer quais são, de fato, as razões pessoais de Deus. Não posso colocá-las sobre a mesa: isso é pedir demais! (Deus é famosamente inescrutável). Mas, contanto que as razões de Deus sejam pessoais e careçam de conteúdo moral – como as preocupações dos cultivadores de rosa com as rosas -, a teoria do comando divino não está fora de questão. Razões pessoais não morais podem ser boas para nós humanos, ainda que elas não sejam, nelas mesmas, razões morais (isto é, razões com conteúdos morais). Então, por que não para Deus também? Se as razões de Deus têm conteúdo moral, então Deus sai de cena. Porém, se as razões d'Ele têm conteúdo não moral, então a vontade de Deus pode ser a fonte das normas da moralidade que se aplicam aos seres humanos. A conclusão é somente que a teoria do comando divino é coerente, não que ela é plausível. Para mostrar que ela é plausível, teríamos de ter alguma ideia de quais poderiam ser as razões pessoais de Deus e que elas são boas razões e, além disso, que o que nós tomamos como dependência M-N básicas necessitam de maior explicação, e também que Deus é a melhor explicação para as últimas. Minha meta aqui, todavia, foi somente mostrar 3 uma maneira pela qual pode ser que a moralidade humana dependa de Deus . Referências bibliográficas KIERKEGAARD, Søren (1944) Either/Or, Volume 1 (Princeton NJ: Princeton University Press). MAIMONIDES, Moses (1958) Guide for the Perplexed (London: Dover Press). PLATO (1997) 'Euthyphro', in Plato's Complete Works (Indianapolis: Hackett). 2 Agradecimentos aos membros dos meus seminários de meta-ética na Universidade Estadual de Ohio, onde eu tentei pela primeira vez essa linha de argumentação. Agradecimentos também a Mike Burley, David Enoch, John Hare e o parecerista anônimo desse periódico [Religious Studies]. Também sou grato pelo apoio de uma bolsa de estudos Lady Davis da Universidade Hebraica de Jerusalém, onde este ensaio foi concluído. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 65 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teses kierkegaardianas e seus desdobramentos1 Marcio Gimenes de Paula (*) Resumo: A história de Abraão - e a ordem divina para o sacrifício do seu filho Isaac – é, como muitos de nós sabemos, a fonte de inspiração para algumas reflexões de Kierkegaard em Temor e Tremor. A partir de tal episódio, Johannes de Silentio, o pseudonímico autor da obra, além de fazer uma ode à fé como a mais alta das paixões, questiona-se também acerca de um problema que, segundo sua interpretação, parece central, isto é, a suspensão teleológica da ética. Assim, o objetivo do presente artigo é investigar, notadamente a partir das reflexões de Kierkegaard uma possível interpretação para a suspensão teleológica da moral, em que circunstâncias tal coisa efetivamente ocorre e como podemos inseri-la nos debates éticos da filosofia do século XIX. Palavras chave: Ética, Filosofia Contemporânea, Filosofia da Religião, Kierkegaard. (*) Departamento de Filosofia Universidade de Brasília – UnB [email protected] Abstract: The story of Abraham - and the divine command to sacrifice his son Isaac - is, as many of us know, the source of inspiration for some reflections of Kierkegaard in his work Fear and Trembling. From this episode, Johannes Silentio, the pseudonymous author of the work, and make an ode to faith as the highest of the passions, wonders also about a problem that, according to his interpretation, it seems central, ie, about the teleological suspension of morality. The objective of this paper is to investigate, especially from the reflections of Kierkegaard a possible interpretation for the teleological suspension of morality and in what circumstances such a thing does occur 1 Trabalho originalmente apresentado no I Colóquio Kant e Kierkegaard: acerca da moral e da religião, realizado no dia 14 de Maio de 2014, na Universidade de Brasília. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 66 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos and where we can insert it in the ethical debates of philosophy of the nineteenth century. Key words: Ethics, Contemporary Philosophy, Philosophy of Religion, Kierkegaard. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 67 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos Introdução Especialmente após os trágicos episódios de 11 de Setembro de 2001, as razões de um indivíduo solitário e suas crenças muito particulares, parecem ter se tornado cada vez mais difíceis de serem compreendidas ou – ao menos – aceitas dentro de um contexto social mais abrangente e, de modo especial, em sociedades democráticas. O medo e o desacordo de boa parte das pessoas diante de tais personagens e situações não parece desprovido de fundamento. Afinal, homens que, acreditando-se cumpridores de uma missão divina, aceitam chocar seus aviões contras as torres gêmeas, não parecem admitir nenhum tipo de discussão acerca de suas posições ou convicções. O que, portanto, podemos fazer ou pensar diante de tal situação? Desse modo, a figura de Abraão, patriarca da fé das três religiões monoteístas, representa um imenso desafio para discussões éticas contemporâneas e, pelo que se pode notar, Kierkegaard sabia disso. Afinal, como compatibilizar, por exemplo, uma ética produzida consensualmente em sociedade com a figura de um indivíduo singular que, ouvindo um comando divino, parte para assassinar, se necessário for, o seu próprio filho? Em qual grau a atitude de Abraão teria alguma diferença da atitude dos fanáticos religiosos? Em outras palavras, Temor e Tremor de Kierkegaard é um livro sobre ética ou sobre a fé? Em qual sentido ambas podem conviver? Penso que uma hipótese para investigar tal questão é não apenas uma análise dessa obra de Kierkegaard, mas de outro importante trabalho posterior do autor dinamarquês. Refiro-me aqui ao Pós-Escrito às Migalhas Filosóficas, mas especificamente a sua seção 2, intitulada O problema subjetivo, ou como tem que ser a subjetividade para que o problema possa se apresentar a ela. Aqui reside, segundo avalio, uma importante chave de leitura para compreensão da ética kierkegaardiana exposta em Temor e Tremor, mesmo sendo essa obra de 1843 e o Pós-Escrito de 1846, mesmo sendo cada uma delas de autoria de um pseudônimo distinto e mesmo tendo o Pós-Escrito a autoria do próprio autor somada ao pseudônimo. Desse modo, o artigo possui três divisões, a saber: a) Ética e subjetividade: as teses do PósEscrito ajudando a ler a figura de Abraão em Temor e Tremor; b) O que significa a suspensão teleológica da ética nesse contexto?; c) Conclusão. Passemos ao primeiro movimento. a)Ética e subjetividade: as teses do Pós-Escrito ajudando a ler a figura de Abraão em Temor e Tremor Como já apontam autores como Jacob Holand e Álvaro Valls, a obra kierkegaardiana parece se situar entre duas das principais referências da subjetividade, a saber, a figura do irônico Sócrates e a suma imagem do mistério representada por Cristo2. Desse modo, penso que o primeiro ponto para qualquer discussão acerca da ética em Kierkegaard não pode desprezar tal alerta. Assim, nos argumentos do Pós-Escrito, tal influência é igualmente perceptível. No capítulo 1 (o tornar-se subjetivo) da seção 2 (O problema subjetivo, ou como tem que ser a subjetividade para que o problema possa se apresentar a ela), bem como no 2 Howland, J. 2006. Kierkegaard and Socrates – a study in Philosophy and Faith. CUP: Cambridge. Valls, A. 2000. Entre Sócrates e Cristo – ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Edipucrs: Porto Alegre. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 68 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos decorrer de toda a obra, a influência é clara. Contudo, antes de adentramos propriamente numa análise que conjuga ética e subjetividade, cabe perceber que tal análise é precedida de dois outros importantes pontos: uma crítica do problema objetivo do cristianismo e um elogio ao tema da subjetividade em Lessing. Na época em que Kierkegaard viveu, bem como na segunda metade do século XIX, terá uma extrema repercussão, notadamente no ambiente germânico, mas não exclusivamente nele, a tese de que a adesão ao cristianismo passa antes por uma compreensão acerca de suas teses e doutrinas. A raiz de tal afirmação é bastante antiga e, inclusive, remonta teses centrais da própria concepção judaico-cristã que privilegia o ensino e a explicação de textos sagrados como uma forma de propagação da religião. Por isso, a concepção de religião revelada e das três religiões monoteístas como religiões do livro não parecem desprovidas de fundamento. Na modernidade, um dos autores que percebe tal coisa com extrema clareza é Espinosa que, em 1670, ao escrever sua obra o Tratado Teológico-Político, fornece as primeiras pistas não apenas para uma secularização da sociedade em termos políticos, mas também fornece um suporte bastante significativo para aquilo que chamaremos nos séculos XIX e XX, como a exegese moderna dos textos sagrados. Desse modo, a filosofia alemã do século XIX, na qual Kierkegaard está inserido mesmo sem ser alemão, parece manter um elo de continuidade com a concepção espinosana e, nesse sentido, as inúmeras histórias sobre a vida de Jesus, que começam por Hegel, e que passam por obras de Strauss, Bruno Bauer, Feuerbach, Stirner, Renan e outros, na mais seriam do que um espinosismo vivo no século XIX. Desse modo, Hegel e os pós-hegelianos, incluindo Kierkegaard entre eles, seriam espinosanos ao seu modo, ora oscilando entre o louvor das teses do mestre e ora refutando-as publicamente. O fato é que, segundo tal concepção, ressalta-se no cristianismo, cada vez mais, o seu lado histórico em detrimento de sua outra faceta, talvez aquela que mais lhe faz justiça, a saber, o seu lado eterno, subjetivo, existencial, ligado a uma escolha e decisão do indivíduo dentro do tempo. Para combater tal tese exagerada de um cristianismo temporal, objetivo e absolutamente explicado dentro do tempo, Kierkegaard parece construir uma explicação bastante engenhosa, mas que não deixa de ser também, num tempo de excessos, uma caricatura. Segundo ele, se o cristianismo pode ser compreendido dentro do tempo, ele não é mais eterno. Se pode, aliás, ser compreendido, não é mais cristianismo, pois a fé é precisamente aquilo que, segundo num tradição que vem desde os dias de Tertuliano, não pode ser explicada, a fé não se constitui num conhecimento. Logo, não pode se tornar objetiva, não pode se tornar sistemática, não pode fazer parte da história mundial e não pode desprezar a existência e a escolha do sujeito, tal como parece afirmar esse pequeno trecho do Pós-Escrito: Para que serve a demonstração? A fé não precisa dela, pode até mesmo considerá-la sua inimiga. Ao contrário, quando a fé começa a envergonhar-se de si mesma; quando, como uma amante que não se pode contentar com amar, mas que no fundo se envergonha de seu amado e por isso precisa provar que REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 69 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos ele é algo de notável; portanto, quando a fé começa a perder a paixão, portanto, quando a fé começa a deixar de ser fé, aí a demonstração se torna necessária para que se pode desfrutar da consideração burguesa da descrença (Kierkegaard, 2013, p. 36). Kierkegaard estaria, então, desprezando toda e qualquer relação da fé cristã com o conhecimento e com a história? Penso que não. Acho que a explicação possui um grau de complexidade maior do que aquilo que se costumeiramente avaliar e que pode, em boa medida, ser compreendida quando entendemos que o autor dinamarquês combate uma caricatura de cristianismo (e de filosofia) do século XIX com outra caricatura. Ele não parece advogar a tese de que algumas verdades do cristianismo não podem ser ensinadas. Portanto, seguindo uma tradição, pode-se, até um dado limite, aproximar fé e conhecimento. Ele também não parece advogar a tese de que a história mundial, esse conceito que fica tão célebre com Hegel, não pode abordar, com um de seus fenômenos, a existência do cristianismo como algo imanente. Contudo, o problema parece antes residir numa tentativa de compreender o cristianismo, a todo preço, como algo totalmente temporal, como uma realidade totalmente secularizada, algo que não faz mais justiça a um aspecto importante da sua essência. Curiosamente, dois autores que não parecem advogar teses cristãs, como Heine e Feuerbach, parecem estar muito próximos do que pensa Kierkegaard na medida em que reconhecem que a precariedade do cristianismo moderno e secularizado e que a religião, enredada num tentativa de explicar sua doutrina a todo preço, termina por engendrar sua auto-destruição3. Com efeito, a partir da crítica kierkegaardiana ao cristianismo como algo meramente histórico e objetivo, podemos nos acercar do seu elogio a Lessing. No seu entender, o pensador alemão é uma figura singular e seu apreço pela subjetividade merece todo nosso reconhecimento e louvor. Contudo, Kierkegaard se depara aqui com uma situação curiosa: elogiar a subjetividade, mas enquadrá-lo num modelo objetivo e sistemático, consiste num equívoco. Talvez, o mesmo equívoco no qual Xenofonte caiu ao elogiar Sócrates de tal maneira que tornou a sua filosofia inofensiva. Desse modo, o autor dinamarquês articula uma proposta: o melhor elogio que pode fazer a um autor subjetivo e exercer a sua subjetividade. Não se trata de ter Lessing como exemplo, num horizonte intocável, mas de filosofar ao melhor modo de Lessing, isto é, assumindo-se como uma criatura existente, tal como já 4 parece ter percebido, com extrema argúcia, Jacob Howland . Feita a crítica ao problema objetivo do cristianismo e elogio da subjetividade de Lessing, resta agora saber o que Kierkegaard parece compreender por ética e subjetividade a partir do Pós-Escrito. Ali, de modo muito curioso, o pensador parece fazer brotar uma concepção sui generis de ética. Enfatizando, a partir da interpretação socrática e também da filosofia grega, que a ética advém do fulcro da subjetividade, Kierkegaard parece se fixar num ponto onde, talvez, Hegel e a concepção hegeliana, pouco se detiveram, a saber, a esfera da subjetividade e objetividade. No entender do pensador dinamarquês, embora a filosofia 3 Refiro especialmente aqui a tese de Heine exposta em Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha e a crítica do cristianismo moderna feita por Feuerbach em A Essência do Cristianismo. 4 Howland, Jacob. Lessing and Socrates in Kierkegaard´s Postscript IN Furtak, Rick Anthony (ed.). 2010. Kierkegaard´s Concluding Unscientific Postscript – A critical guide. CUP: Cambridge. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 70 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos moderna comece pela subjetividade e defenda categoricamente tal posição, a mesma não passa de um rápido introito da história da filosofia e, logo na segunda aula, o desejo principal consiste na sua superação, na positivação, na objetivação e na construção de sistema. Desse modo, Sócrates, o pensador negativo, que por sua ironia não chega ao sistema, ao positivo e a conclusões, parece ser apenas o ponto de partida, mas nunca o ponto de chegada da filosofia. A questão aqui talvez resida num debate entre dois termos, que, mais adiante abordaremos: Sittilichkeit (como ética) e Moralität (como a moral em sentido subjetivo e individual). Curiosamente, no caso de Sócrates, Kierkegaard, a despeito da crítica, talvez até pudesse concordar com a tese de que Sócrates é o ponto de partida. Contudo, quando o cristianismo é englobado no processo da história mundial e compreendido do mesmo modo parece haver um equívoco. Ao colocar uma ênfase maior na subjetividade – e não compreendê-lo como mero ponto antecipatório da objetivação – Kierkegaard termina por construir, a partir daqui, sua crítica ao conceito de ética compreendido dentro da história, dos costumes, das sociedades. Evidentemente não significa que ele negue tal coisa, mas apenas que faz uma diferenciação no seu acento. Isso também não significa que tal tipo de subjetividade se confunda com algum gênero de subjetivismo, mas sim que ele defende uma espécie de interioridade aguçada dentro da subjetividade, uma espécie de paixão ardorosa que dará imensa importância ao conceito de reapropriação onde a verdade do objetivo é antes algo que constitui numa espécie de verdade para o sujeito. Não se trata, nesse contexto, de afirmar algo que seja subjetivismo ou relativismo, algo que fale que existem tantas verdades quanto forem os indivíduos, mas sim de uma verdade que brote como reapropriação de subjetividades aguçadas. Penso que nesse espírito é que se pode compreender a confissão feita pelo pseudonímico Johannes Climacus, o autor do Pós-Escrito: Eu, Johannes Climacus, não sou nada mais, nada menos, do que um ser humano; e presumo que aquele com quem tenho a honra de conversar é também um ser humano. Se ele quiser ser a especulação, a especulação pura, terei de desistir de conversar com ele; porque, no mesmo instante, ele se torna invisível para mim e para o olhar frágil e mortal de um ser humano (Kierkegaard, 2013, p. 113). Feito tal movimento, onde também se almeja recuperar a dialética da filosofia antiga em detrimento da especulação, penso que há agora condições de compreendermos Abraão em outra chave interpretativa. b) O que significa a suspensão teleológica da ética nesse contexto? Como muitos leitores de Temor e Tremor sabem, o primeiro dos três problemas abordados na obra é “haverá uma suspensão teleológica do ético”? A pergunta instigante feita para analisar o caso de Abraão deve ser, antes de mais nada, compreendida enquanto suspensão do télos da ética e, portanto, não da ética ela mesma e menos ainda a sua abolição. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 71 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos Em outras palavras, haveria alguma situação onde a finalidade da ética pudesse ser suspensa? Para o filósofo estadunidense MacIntyre, a concepção de Kierkegaard sobre ética parece originar-se de um equívoco que teria comprometido o que se compreende por ética no contexto ocidental: Kierkegaard evoca essa importantíssima ideia nova da escolha radical e suprema para explicar como o indivíduo se torna cristão e, nessa época, sua caracterização da ética já mudou radicalmente. Isso já se tornara bem claro, mesmo em Temor e Tremor (Frygt og Bæven), de 1843... Essa ideia destrói toda a tradição da cultura moral racional – caso ela própria não possa ser derrotada (MacIntyre, 2001, 81-82). Tal tese de MacIntyre encontra ressonância também na concepção de Tugendthat, que advoga que “Kierkegaard abandonou o caráter racional da moral” (Tugendhat, 1997, p. 231). A despeito de já ser MacIntyre (tal como também o é Tugendhat) um autor consagrado no campo da Ética e também já haver surgido um intenso debate de suas teses acerca da 5 filosofia kierkegaardiana , penso que vale a pena uma reflexão sobre sua afirmativa de que ética kierkegaardiana exposta em Temor e Tremor representa, na verdade, a derrocada da cultura moral racional. O autor, inclusive, aprofunda tal crítica ao afirmar, no mesmo Depois da Virtude, que “Kierkegaard a fundamenta [a moral] na escolha fundamental sem critérios, devido ao que acredita ser a natureza inapelável das ponderações que excluem tanto a razão quanto as paixões” (MacIntyre, 2001, p. 95). Dois problemas parecem ficar evidentes aqui: o primeiro é que o autor não compreendeu que Temor e Tremor não é, na realidade, um livro sobre ética, mas sim um ode, um ato de louvor à fé como a mais alta das paixões, sendo o seu pseudonímico autor convocado, como uma espécie de rapsodo, o lírico Johannes de Silentio. O segundo é que a escolha de Abraão, embora seja um ato da vontade, também obedece a um imperativo divino, tal como aquele que também aparece nos Evangelhos e dará suporte para a ética kierkegaardiana do amor, tão bem exposta nas Obras do Amor de 1847. Desse modo, o problema de Temor e Tremor, ainda que tenha inúmeras semelhanças e influências do cristianismo não é, a rigor, um trabalho sobre o cristianismo ou sobre o tornar-se cristão. É certo que o tema do paradoxo aparece e aqui se afirma, mas não temos, ao pé da letra, um cristianismo confesso no seu mais alto grau, pois, segundo seu entender, o paradoxo também ocorre na filosofia. MacIntyre parece, contudo, ter um acerto na sua interpretação sobre Kierkegaard especialmente quando relaciona a ética kierkegaardiana com algumas das interpretações morais de Kant. Para ele, parece bastante evidente que, por conta do afastamento do pensador dinamarquês acerca das teses hegelianas da moral, torna-se perceptível uma natural aproximação dele com as teses kantianas. O filósofo denomina tal coisa como uma espécie de dívida positiva. Feitas tais observações, voltemos ao texto de Temor e Tremor. O pseudonímico autor 5 Davenpord, J. e Rudd, A (Ed.) .2001. Kierkegaard After MacIntyre. Essays on Freedom, Narrative, and Virtue. Open Court. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 72 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos Johannes de Silentio começa a articulação desse texto apontando que “o ético enquanto tal é universal” (Kierkegaard, 2013, p.111). Nesse sentido, Abraão parece claramente atentar contra o ético, pois sua história e sua atitude de obediência à voz divina e sacrifício do seu filho parece inaceitável. Em outras palavras, sua história torna o singular acima do geral. O autor do texto aponta claramente que tal singularidade, tal como já parece apontar Hegel na Filosofia do Direito, se constitui numa espécie de forma moral do mal6. Segundo a tradutora portuguesa de Temor e Tremor, Elisabete Sousa, podemos situar aqui não apenas um debate das teses kierkegaardianas com Hegel, mas também com Kant. Afinal, seu texto não deixa de ser também uma resposta a um tipo de interpretação acerca da história de Abraão que também havia sido defendida por Kant: Ao longo desta secção, Johannes de Silentio procede à verificação da inoperabilidade das formulações hegelianas sobre o ético, definido como universal, no que diz respeito às implicações do sacrifício de Isaac para a consideração de Abraão como pai da fé para todas as gerações. Para então provar como a ética e o direito estabelecidos pelos costumes e instituições (Sittilichkeit), prevalecendo igualmente na consciência moral do indivíduo (Moralität), não podem fundamentar a categoria que atribui a Abraão, a de singular que é superior ao universal, Johannes de Silentio recorre a sucessivos exemplos e contra-exemplos através dos quais refuta o julgamento da conduta de Abraão de acordo com uma hipotética finalidade social. Porém, ao apropriar-se das concepções de Hegel, descontextualiza-se e incorre por vezes em generalizações abusivas, que a devido tempo se assinalam em nota. Por outro lado, Johannes de Silentio responde cabalmente a Kant, quando em Der Streit der Fakultäten (O Conflito das Faculdades) propõe que, em coerência com o imperativo categórico, Abraão desobedeça e interpele directamente essa voz divina, convicto do seu dever como pai, ao mesmo tempo que expõe a sua dúvida sobre a autenticidade dessa voz vinda de um Deus que não se deixa ver (Kant, AA VII, pág. 65). Ao suspender o ético, retira-se igualmente a centralidade colocada por Kant nessa voz divina que escapa ao domínio da razão, porque permanece invisível e impossível de identificar” (Kierkegaard, 2009, p. 111, nota 122). No caso de Kant podemos ver diretamente que o autor alemão interpreta a voz que Abraão escuta, e afirma ser um imperativo, como algo que pode ser ilusório e, por isso, sugere uma espécie de teste: Pode servir de exemplo o mito do sacrifício que Abraão quis fazer, por ordem divina, mediante a imolação e a cremação do seu único filho (a pobre criança teve ainda, sem saber, de transportar a lenha). A essa pretensa voz divina, Abraão deveria responder: 'É de todo certo que não devo matar o meu bom filho; mas não estou seguro de que tu, que me apareces, sejas Deus, e que tal te 6 Especialmente a passagem da Filosofia do Direito denominada O Bem e a Consciêcia Moral (terceira seção, segunda parte). Hegel, G.W.F. 2010. Filosofia do Direito. Unisinos/Unicap/Loyola: São Leopoldo/Recife/São Paulo. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 73 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos possas tornar, mesmo se essa voz ressoasse a partir do céu (visível)' (Kant, 1993, p. 76, nota 16). Já Hegel talvez não esteja equivocado ao compreender o ético como algo ligado com a esfera do universal. Seu equívoco se deu quando compreendeu que essa seria a totalidade da explicação, quando julgou o ético mais importante que o moral. Contudo, o problema não parece residir aqui, mas em compreender o ético como equivalente à esfera da felicidade, isto é, como algo responsável pela beatitude ou salvação. Em outras palavras, o erro de Hegel reside em desejar compreender a fé no âmbito da ética, reduzindo-a a esse tipo de concepção. Desse modo, parece fazer sentido recuperar aqui o que será exposto depois no Pós-Escrito: O cristianismo quer, de fato, dar de presente ao indivíduo uma felicidade eterna, um bem que não é distribuído no atacado, mas é só para um, um único de cada vez. Se o cristianismo admite que a subjetividade, como possibilidade da apropriação, é a possibilidade da aceitação desse bem, ele não supõe, contudo, que a subjetividade sem mais nem menos esteja pronta e acabada, que tenha, sem mais nem menos, uma ideia real do significado desse bem (Kierkegaard, 2013, p. 134). Por isso, por meio da história singular de Abraão, Silentio só pode chegar a um tema milenar da tradição, mas que parece esquecido ou relegado ao esquecimento no século XIX: o tema do paradoxo. Aliás, cabe frisar que não se trata apenas de um tema do cristianismo, mas da própria filosofia grega: A fé, como efeito, é o paradoxo de o singular ser superior ao universal, mas é de destacar a forma como o movimento se repete: depois de o singular haver estado no universal, isola-se agora enquanto singular como superior ao universal. Se não for isto a fé, Abraão estará, então, perdido, nunca no mundo a fé terá existido precisamente porque sempre existiu. Ora se o que é ético, i.e, o que é moral, é o máximo, e se nenhuma incomensurabilidade permanece no homem de outra forma que não seja esse incomensurável ser o mal, i.e., o singular que deve exprimir-se no universal, nem necessitamos sequer de outras categorias além das que os filósofos gregos possuíam, ou das que delas possam derivar-se por meio de um pensamento consequente. Não era coisa que Hegel devesse ter escondido, pois na realidade dedicara-se ao estudo dos gregos (Kierkegaard, 2009, pp. 113-114). Se o paradoxo é essa esfera onde o singular encontra-se acima do universal somente essa pode ser a chave para uma aproximação da figura de Abraão. Contudo, diferentemente de um herói trágico, que ainda pode encontrar algum tipo de apoio ao conforto no universal, o gesto de Abraão não goza da mesma prerrogativa. A história do patriarca desperta um tipo de horror religioso. O escândalo paradoxal é que a justificativa da história só pode ocorrer pelo singular, por isso Abraão pode ser tomado mais por um cavaleiro da fé do que por qualquer tipo de heroísmo. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 74 É possível discutir ética a partir de Temor e Tremor? Possíveis objeções a teseskierkegaardianas e seus desdobramentos c)Conclusão Johannes de Silentio conclui, do seguinte modo, a sua análise do problema se há uma suspensão teleológica do ético: A história de Abraão contém então uma suspensão teleológica do ético. Como singular tornou-se superior ao universal. Este é o paradoxo que não se deixa mediar. É tão inexplicável o modo como Abraão entrou nesse paradoxo, quanto é inexplicável o modo como nele permaneceu. Se não é esta a situação de Abraão, nem sequer é herói trágico, é antes assassino. Querer continuar a chamar-lhe pai da fé, falar dele a homens, que com nada mais se preocupam além de palavras, é uma insensatez. Um homem é capaz de chegar a herói trágico pelas próprias forças, mas o cavaleiro da fé não é. Quando um homem segue esse caminho, árduo num certo sentido, do herói trágico, muitos haverá que poderão aconselhá-lo; a quem segue pelo estreito caminho da fé ninguém pode dar conselho, ninguém o pode entender. A fé é um prodígio e todavia nenhum homem dela se encontra excluído; pois que toda a vida humana está unida na paixão e a fé é uma paixão (Kierkegaard, 2009, p. 125). Contudo, antes desse ser apenas um problema de teologia, há aqui, segundo Silentio, uma outra questão: em outros tempos, a filosofia também foi paixão. Agora, no distante século XIX, tal coisa parece haver se perdido. Talvez possa ser uma pista para uma nova investigação, mas que vai além das pretensões dos limites desse trabalho. Referências bibliográficas Davenpord, J. e Rudd, A (Ed.) .2001. Kierkegaard After MacIntyre. Essays on Freedom, Narrative, and Virtue. Open Court. Feuerbach, L. 2009. A Essência do Cristianismo. Vozes: Petrópolis. Hegel, G.W.F. 2010. Filosofia do Direito. Unisinos/Unicap/Loyola: São Leopoldo/Recife/São Paulo. Heine, H. 1991. Contribuição à história da religião e da filosofia na Alemanha. Iluminuras: São Paulo. Howland, Jacob. Lessing and Socrates in Kierkegaard´s Postscript IN Furtak, Rick Anthony (ed.). 2010. Kierkegaard´s Concluding Unscientific Postscript – A critical guide. CUP: Cambridge. __________. 2006. Kierkegaard and Socrates – a study in Philosophy and Faith. CUP: Cambridge. Kant, I. 1993. O Conflito das Faculdades. Edições 70: Lisboa Kierkegaard. S. A. 2013. Pós-Escrito às Migalhas Filosóficas – vol. I. Vozes: Petrópolis. MacIntyre, A. 2001. Depois da virtude. Edusc: Bauru. ________________ . 2009. Temor e Tremor. Relógio d ´Água: Lisboa. Tugendhat, E. 1997. Lições sobre Ética. Petrópolis: Vozes. Valls, A. 2000. Entre Sócrates e Cristo – ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Edipucrs: Porto Alegre. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 77 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO Os textos enviados serão avaliados pelo corpo editorial da revista. Os textos podem se destinar às seguintes seções: artigos, traduções, resenhas. Os textos dos artigos podem estar escritos em português, espanhol, ou inglês. E não devem exceder 70 mil caracteres com espaços. Traduções e resenhas devem estar em português. Os artigos devem ser inéditos e expressar resultados de pesquisa filosófica original em nível de pós-graduação, reservando a revista, tendo recebido o artigo, prioridade para sua publicação. Nenhuma modificação de conteúdo, estilo, referência bibliográfica ou apresentação será feita sem o prévio consentimento do autor. Os originais dos artigos devem ser enviados a revista por meio de correio eletrônico em formato Word ou compatível. Juntamente com o artigo deve ser enviado um abstract entre 150 e 300 palavras, bem como cinco palavras-chave, o título do artigo, e e-mail do autor. As referências bibliográficas devem ser apresentadas ao final do texto de acordo com normas da ABNT. Os textos em português deverão respeitar as novas regras ortográficas. Os autores serão notificados sobre a recepção dos artigos enviados. Uma vez submetido, cada artigo será encaminhado a um parecerista, especialista no assunto, que o avaliará e preencherá um formulário próprio, que será encaminhado ao conselho editorial. Em caso de dúvida, será consultado um segundo parecerista. A decisão do Conselho Editorial quanto à publicação ou não do artigo será comunicada por meio eletrônico aos autores. As ideias e conceitos dos artigos assinados são de responsabilidade dos autores. Os autores mantêm os direitos autorais e concedem a revista o direito de publicação inédita. REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO | ANO 1 - No 1 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO - ABFR