0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO ELENICE FÁTIMA DE OLIVEIRA A PAZ E A ESPADA NO EVANGELHO DE MATEUS GOIÂNIA 2016 1 ELENICE FÁTIMA DE OLIVEIRA A PAZ E A ESPADA NO EVANGELHO DE MATEUS Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião, como requisito para a obtenção do grau de mestre. Professor: Dr. Joel Antônio Ferreira GOIÂNIA 2016 2 O48p Oliveira, Elenice Fátima de A paz e a espada no evangelho de Mateus[ manuscrito]/ Elenice Fátima de Oliveira.-- 2016. 109 f.; 30 cm Texto em português com resumo em inglês Dissertação (mestrado) -- Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião, Goiânia, 2016 Inclui referências 1. Bíblia - N.T - Evangelhos. 2. Bíblia - N.T - Mateus. 3. Judaísmo. 4. Paz - Aspectos religiosos. I.Ferreira, Joel Antonio. II.Pontifícia Universidade Católica de Goiás. III. Título. CDU: 27-247.4(043) 3 4 Dedico este trabalho ao meu esposo e companheiro Kaley Duarte Folha, pelo apoio, incentivo e compreensão nas minhas ausências. À minha mãe Jovita Borges de Oliveira, pelo incentivo e apoio. 5 AGRADECIMENTOS A Deus pela oportunidade de dialogar um pouco mais com as Escrituras através desta importante pesquisa. À Pontifícia Universidade Católica de Goiás, na pessoa de seu digníssimo Reitor Dr. Wolmir Therezio Amado. Á Escola de Formação de Professores e Humanidades Ao meu orientador Prof. Dr. Joel Antônio Ferreira por todas as suas contribuições que possibilitaram o êxito deste trabalho. A todos os professores do curso de Mestrado em Ciências da Religião, com os quais convivemos e dos quais absorvemos conteúdo de qualidade e compartilhamento de suas experiências. A todos os colegas e amigos pela agradável convivência nesses dois anos, onde foi possível muitas trocas e assimilações. Agradeço a minha amiga Dalva Pedro, pela agradável companhia em nossas viagens em busca de mais conhecimento e troca de experiências. A todos os funcionários e servidores da Escola de Formação de Professores e Humanidades, com os quais convivemos durante todo esse período. A todos os meus familiares em especial os meus sobrinhos Ítalo Roberto Borges de Jesus, Rodrigo Daniel Borges de Jesus e Alexandre Borges de Jesus, pela companhia, apoio e incentivo. Aos meus alunos do curso de teologia, da Igreja Bethel do Setor Aeroporto, grandes incentivadores. 6 Portanto, todo aquele que me confessar diante dos homens eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus; mas, aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai, que está nos céus. (Mt. 10, 32-33) 7 RESUMO OLIVEIRA, Elenice Fátima. A paz e a espada no Evangelho de Mateus. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2016. O Evangelho de Mateus é fruto de um trabalho coletivo produzido por uma comunidade de judeu-cristãos. A história dessas comunidades se confunde com a própria história de Israel. Os hebreus/judeus enfrentaram muitas resistências, por meio de uma sucessão de domínios e influências culturais, para construírem uma sociedade baseada na Aliança de Deus com o povo. Esses conflitos deram origem a muitas correntes de pensamento cultural/religioso, movimentos de libertação e grupos mistos. O movimento de Jesus foi um movimento messiânico/popular que defendia a renovação da Aliança e a resistência aos domínios. Os seus discípulos deram continuidade a esse movimento criando as comunidades de judeu/cristãos. O Evangelho de Mateus foi produzido para responder necessidades atuais da comunidade. Assim, este Evangelho traz o tema da paz e da espada em justaposição em Mt 10,34-36, para demonstrar a realidade da comunidade em crise com os líderes judeus da época e com o sistema da pax romana. Esta pesquisa trabalha este tema (A paz e a espada em Mateus) a partir da hipótese de que o Jesus de Mateus não se conforma com o sistema vigente e o subverte. O Evangelho de Mateus apresenta aos membros da comunidade um caminho alternativo. Palavras-chave: Judaísmo, Evangelho de Mateus, comunidade de Mateus, paz, espada. 8 ABSTRACT OLIVEIRA, Elenice Fátima. The peace and the sword in the Gospel of Matthew. Dissertation (Master of Religious Sciences), Pontific Catholic University of Goiás, Goiânia, 2016 The Gospel According to Matthew is a collective work produced by a community of Judeo-Christians. This communities history is intertwined with the Israel own history. Hebrews/jewels confronted much opposition, by a succession of dominations and cultural influences, to construct one Society based on God’s Alliance with the nation. These conflicts originated many schools of religious/cultural thoughts, liberations movements and mixed groups. The Jesus’s movement was a messianic/popular movement that defended the alliance renovation and resistance to dominations. Your disciples gave continuity to these movement making Judeo-Christians communities. The Gospel according to Matthew was produced to meet the community actual needs. Therefore, this Gospel brings the Peace and Sword theme in overlap in Mt 10, 34-36, to demonstrate the community in crisis reality with Jewish leaders of the same time and with the roman’s pax system. This search works this theme (Peace and Sword in Matthew) starting to the hypothesis that Matthew’s Jesus does not conform to the current system and subvert it. The Gospel according to Matthew presents to the community members an alternative way. Key words: Judaism, Matthew´s Gospel, Matthew´s Community, peace, sword. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1 CONTEXTO SOCIO POLÍTICO E RELIGIOSO CULTURAL DA PALESTINA ....... 16 1.1 Passos para se chegar ao JudaÍsmo .................................................................. 17 1.1.1 A esperança Messiânica dos Hebreus/Israelitas até o Judaísmo .................... 26 1.1.2 O judaísmo após Esdras e Neemias ................................................................ 27 1.1.3 Configuração do judaísmo após a reforma de Esdras ..................................... 28 1.2 O Período Macabeu e a Helenização da Cultura Judaica ................................... 31 1.3 Dominação Romana e o Nascimento de Jesus, o Cristo .................................... 36 2 O EVANGELHO DE MATEUS E A COMUNIDADE MATEANA ............................. 41 2.1 Autoria e data da composição do Evangelho de Mateus .................................... 42 2.2 Como Mateus apresenta o Messias .................................................................... 45 2.3 Grupos, Comunidades e Movimentos Judaicos no Novo Testamento ................ 47 2.3.1 Essênios ........................................................................................................... 48 2.3.2 Saduceus ......................................................................................................... 50 2.3.3 Fariseus............................................................................................................ 51 2.3.4 Zelotas e sicários ............................................................................................. 53 2.4 Movimentos Populares e Proféticos e o Movimento de Jesus ............................ 54 2.5 Como Mateus situa os Fariseus no contexto de Classe e Status em Israel ........ 58 2.5.1 Os fariseus no Evangelho de Mateus ........................................................... 61 2.5.2 Jâmnia .............................................................................................................. 63 2.6 A Comunidade Mateana ...................................................................................... 66 2.6.1 A Comunidade mateana e o judaísmo formativo .............................................. 70 3 A PAZ E A ESPADA NO EVANGELHO DE MATEUS ........................................... 75 3.1 A Paz para os Judeus ......................................................................................... 76 3.1.1 Critica textual, crítica das fontes e crítica da redação ...................................... 82 3.1.2 Crítica das Fontes ............................................................................................ 85 3.1.3 Crítica da Redação: Espada ............................................................................. 88 3.2 Interpretando Mateus (10,34-36) ......................................................................... 92 CONCLUSÃO............................................................................................................ 99 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 103 10 INTRODUÇÃO Os Evangelhos são o resultado de um trabalho conjunto feito por comunidades que fizeram a opção de crer em Jesus, como o enviado de Deus. Eles, são a boa notícia de Jesus Messias, dada primeiro aos cristãos que se comprometeram com a sua vida e o seu projeto, e depois a todas as pessoas (STORNIOLO, 1991, p. 7). Assim, a fé se tornou um elemento indispensável para a construção da imagem de Jesus e para a elaboração de um vasto material narrativo sobre sua vida, obra, morte e ressurreição. Os Evangelhos também traduzem a forma como esses homens e mulheres se entregaram ao projeto de Deus, anunciado por Jesus, assumindo modo de vida condizente a essa fé. Cada Evangelho narra, ou descreve, Jesus tendo como pano de fundo a realidade na qual está inserida a sua comunidade ou grupo. Entender esse contexto é indispensável para a interpretação dos textos que formaram cada Evangelho. Toda a Bíblia, bem como os Evangelhos, podem ser lidos de várias formas, sendo às vezes diferentes e até contraditórias as leituras. Isto se deve à distância que temos da realidade das primeiras comunidades que produziram esses escritos. Também é fato que há leituras diferentes porque somos diferentes e temos interesses diferentes. Somos pessoas situadas em contextos concretos (MOSCONI, 2004, p 8). A nossa realidade influencia a interpretação que damos àquilo que lemos. A partir dessa perspectiva será investigado o texto de Mateus, com a intenção de compreender a intenção do redator final desse Evangelho. Estaria ele reproduzindo uma fala de Jesus, ou estaria fazendo uma interpretação, de forma intencional, para se encaixar na necessidade de sua comunidade? Os textos que compõem os Evangelhos foram produzidos algum tempo depois da morte de Jesus, em diferentes lugares e por diferentes comunidades. Os Evangelistas estavam interpretando e atualizando o material informativo a respeito do Cristo. Os autores redatores dos evangelhos não tiveram a preocupação de simplesmente contar a História de Jesus, mas sim trazer a sua memória para dentro de suas comunidades, de maneira a significar como os cristãos deviam ser testemunhas do Mistério de Cristo vivo, nos diversos lugares e ao longo dos tempos (GALLAZZI, 2012, p 7). Em resumo, os evangelhos falam da mesma pessoa, contam a mesma história, de maneira diferente, porque diferentes eram os contextos e as pessoas que participaram da sua elaboração. 11 O Evangelho de Mateus reconta a história de Jesus de uma forma planejada, de acordo com um projeto elaborado, com a finalidade de retratar a sua própria realidade. Assim, a leitura que fizeram das práxis de Jesus tinha também a finalidade de influenciar o comportamento dos membros da comunidade. O Jesus de Mateus não se conforma com o sistema imperial da época e o subverte. Esta subversão de Jesus é mais que simplesmente resistência; é revirar, é inverter a ordem das coisas; é voltar de baixo para cima. É perverter o sistema imperial, político, religioso e social e isto deveria estimular os membros da comunidade a também persistirem na sua fé e ficarem firmes nela, diante das perseguições. O reinado de Deus e a nova justiça já havia despontado e haveria de prevalecer. Entender um pouco mais do contexto que envolve a comunidade de Mateus é fundamental para a compreensão e para se obter respostas a muitas perguntas, sobre o conteúdo deste Evangelho, sobre a intenção do autor e sobre a expectativa da sua comunidade. Esta pesquisa tem por objetivo adentrar um pouco nos fatos históricos que contornavam essa comunidade. O nosso recorte recai sobre Mateus 10,34-36 cujo foco é “a paz e a espada no Evangelho e Mateus”. Entender paz e espada dentro de uma perspectiva histórica e dentro de uma perspectiva literária é o objetivo dessa pesquisa. No primeiro capítulo faremos uma abordagem da origem, desenvolvimento e principais pontos da religião dos hebreus e também do judaísmo, as influências de fatos históricos sobre ambos, os principais períodos na história do povo judeu que trouxeram importantes modificações na visão cultural e religiosa desse povo, a interferência do helenismo, da pax romana, das correntes religiosas, políticas e mistas no período entre os testamentos. No segundo capítulo serão abordadas questões referentes ao Evangelho propriamente dito, quanto à sua autoria, data, local, conteúdo literário, proposta do redator, intenção do autor, quanto à organização do material que compõe o Evangelho, fontes que este, possivelmente tenha se valido para compô-lo. A crítica textual, a crítica das fontes e a crítica da redação são considerados valiosos mecanismos de interpretação de todo tipo de literatura, principalmente textos tão antigos como os bíblicos. A formação de grupos, movimentos e correntes no período do segundo Templo. A comunidade mateana e sua relação com o judaísmo formativo. Provável local onde a comunidade mateana se encontrava. Os principais conflitos e tensões que refletem o contexto no qual a comunidade está inserida. 12 A questão da paz e da espada é o assunto do terceiro capítulo, devendo recair mais detalhadamente na perícope do capitulo 10, 34-36, onde será demonstrada a questão da paz para a comunidade judaica, tratada como uma dimensão teológica e/ ou uma questão social? Também acerca da espada, se investigará se possivelmente teria sido a arma que Jesus usaria em algum momento para subverter o sistema. O que isso significa no Evangelho de Mateus? Paz e espada, embora sejam termos antagônicos, em Mateus não se excluem, pois cada um a seu modo será um importante instrumento para a completude do projeto do Reino de Deus. Ambos fazem parte da história, tanto do Povo judeu, quanto das comunidades cristãs nascentes. Dos Evangelhos sinóticos (visão comum), Mateus é o que mais faz citações do Antigo Testamento. Esse Evangelho é a porta de entrada do Segundo Testamento. Durante muito tempo foi considerado o mais importante dos Evangelhos e o mais lido nas comunidades. A vida, a obra, os ensinamentos, a morte e a ressurreição de Jesus, tiveram um significado para as pessoas que viveram à margem da sociedade da época. Esta situação de marginalidade se dera em virtude de um sistema despótico e cruel, que por séculos oprimiu e subjugou grande parcela dos habitantes da Palestina. Quais foram as principais vítimas desse sistema? Como elas reagiram? Para elas Jesus era sim, o Salvador, o enviado de Deus. Para a classe dominante, que se beneficiava com a situação de opressão, Jesus era apenas um agitador, um revolucionário, um inimigo do sistema que precisava ser silenciado, eliminado. Essa relação tensa e ao mesmo tempo intrigante torna o Evangelho de Mateus, um livro profundo e ao mesmo tempo um instrumento de denúncia. A realidade social, política e religiosa, está bem desenhada nesse Evangelho, cujo redator final traz para a sua narrativa toda a tensão de uma comunidade em crise, vivendo em uma sociedade despótica e injusta. Vários são os fatores que contribuíram para a realidade retratada no Evangelho de Mateus, dentre eles, o político, o religioso, o cultural, o econômico, entre outros. Paz e Espada, portanto, é o reflexo da tensão e da realidade vividas pela comunidade mateana. Não penseis que vim trazer paz à terra; eu não vim trazer paz, mas espada (Mt 10,34). Esta fala de Jesus, inserida no capítulo missionário, deve ser lida e compreendida dentro de seu contexto, sob pena de suscitar confusão e conflito com outros textos bíblicos que falam da missão pacificadora de Jesus (Is 9,6). O contexto no qual estava inserida a comunidade mateana revela a nítida oposição entre o judaísmo de Mateus e o Judaísmo conhecido como formativo. 13 O que encontramos nos vinte e oito capítulos do Evangelho de Mateus é o reflexo da dura realidade de uma comunidade de Judeu-cristãos, que viviam possivelmente, em Antioquia, na Síria. A palavra que melhor define esta comunidade é “resistência”. Indícios deixam transparecer que a comunidade mateana era composta, na sua maior parte, por camponeses. Algumas parábolas evidenciam as relações de trabalho e posse dos meios de produção, como a do semeador (Mt 13,3), a parábola do joio e do trigo (Mt 13,24-30), do grão de mostarda, a parábola dos reis, descritas em Mt 18,23; 22,1; 25,14. Essa comunidade era formada por judeu-cristãos pós 70, e conviviam com a cultura helenística e judaica. Saldarini (2000, p. 23), salienta que, “no século I, muitos grupos de seguidores de Jesus ou eram partes integrantes da comunidade judaica ou ainda não estavam completamente separadas do judaísmo. Particularmente na grande Síria”. Parece ser este o caso da comunidade mateana. Nisto se dá a tensão que percorre todo o Evangelho; O grupo de Mateus se vê diante da necessidade de estabelecer uma identidade própria, como seguidores de Cristo, e isto não estava no projeto de um judaísmo nascente, que tinha planos de se reorganizar após a destruição de Jerusalém, das instituições judaicas e do templo em 70 d.C. pelo general Tito, filho do Imperador Vespasiano. A questão é que esse novo judaísmo não tinha a pretensão de reconhecer Jesus, como Cristo, o enviado de Deus, então a comunidade mateana se viu diante da necessidade de influenciar e/ou de resistir. Espada nesse contexto é um instrumento de juízo e este juízo depende da ação do próprio Deus, não é espada em seu sentido literal como se supunha e como esperavam que Jesus agisse (Mt 26,51). Ele era pacífico e pacificador. Mas era também fiel a Deus e ao seu projeto para a salvação dos que haviam se perdido. Em Mateus as sentenças de paz e espada juntas e colocadas no capítulo 10 tem como objetivo estimular a resistência da igreja diante da perseguição. De qual Paz Jesus estava falando é um dos desafios que se apresenta nesta perícope. Eis a questão que se coloca: A pax de Roma já era uma realidade imposta pela espada que trazia a ordem, mas também a exploração. A paz tem vários sentidos, na vida, e nos textos bíblicos: pode ser a paz de espírito, a paz em relação à comunhão com o criador. Pode ser a paz como ausência de guerra, como a ausência de tumulto. Pode ser um estilo de vida de forma simples sem maiores agitações, pode ser um distanciamento dos grandes centros urbanos. A paz esperada pelos seguidores de Jesus, naturalmente seria o fim de toda tirania e 14 ofensa por parte dos dominadores. Mas seria somente esta paz que Jesus estava trazendo juntamente com o seu Reino? O outro desafio é: O que representa a espada nesse contexto? Nesse sentido a pesquisa caminha, para tentar entender a proposta de Jesus para um mundo desestabilizado e à beira do caos. A proposta do Evangelho é realmente intrigante, conflitante, desafiadora, quem a aceitará? A quem ela fora feita? Jesus estava propondo uma incitação à rebelião? Diante dos grupos que se formaram na sociedade judaica, a qual deles Jesus pertencia? O que significa ser Ele um Galileu? O que representava a Galileia para o mundo de Mateus? Esta perícope (Mt 10-34-36) sem dúvida, é um daqueles textos bíblicos, que ao serem lidos de primeira, causa um certo espanto. Temos medo de admitir que Jesus está se propondo a ser um revolucionário, um zelota? A imagem do Cristo Salvador, libertador está construída no imaginário de muitos como aquela imagem pacífica, (Is 9,6) cuja perícope, aparentemente, não combina. Os textos bíblicos, mesmo construídos a partir de fragmentos, devem formar um conjunto harmônico. Quando nos deparamos com aparentes contradições devemos fazer uma leitura dentro do seu contexto, assim se revelará o significado mais próximo do texto desde as suas origens. Esta pesquisa tem por objetivo ler este texto dentro do contexto da comunidade mateana. Para atingirmos esse objetivo faremos uma retrospectiva da história de Israel e do desenvolvimento do judaísmo para entendermos o significado da paz para os judeus. Vamos perceber que todo Israel e o judaísmo sempre estiveram muito íntimos dessa questão de paz e violência. Espada seria um sinônimo de violência? Mateus, em seu Evangelho, traça um perfil de Jesus, começando pela genealogia, ligando-o a Abraão e a Davi, como o Messias. Entre os judeus a expectativa messiânica fora largamente incentivada por meio dos profetas e mestres de Israel. Mateus organiza seu Evangelho com a finalidade de apresentar à sua comunidade, o filho de Deus. Os seus discípulos são comissionados a darem continuidade ao anúncio das boas novas e a viverem de acordo com a justiça do Reino. A comunidade de Mateus assimila esta mensagem e entende o comprometimento com o seu Mestre como um novo estilo de vida. Na época de Jesus, os povos da Palestina constituíam uma sociedade complexa, repleta de conflitos políticos, mais do que uma religião unitária (HORSLEY, 2004, p.16). 15 A paz e a espada em Mateus constituem tarefa relevante em vista da necessidade de sanar possíveis lacunas em relação à falta de publicação envolvendo este tema por inteiro. A maioria dos manuais ou trabalhos relacionados ao Evangelho de Mateus, abordam de forma sucinta o assunto, e algumas vezes não contemplam a totalidade dessa temática. 16 1 CONTEXTO SOCIO POLÍTICO E RELIGIOSO CULTURAL DA PALESTINA Fundamental para a compreensão dos textos que compõem o Novo Testamento é o conhecimento do contexto no qual eles surgiram. A Palestina, berço do Cristianismo, foi palco de inúmeros eventos que culminaram, na visão de alguns intérpretes das Escrituras, no cumprimento de expectativas cristológicas e apocalípticas. Isto, porque esses eventos, registrados na história, foram interpretados, no Novo Testamento, como sendo a plenitude dos tempos. O tempo no qual Deus haveria de se manifestar. Por isso, torna-se importante o conhecimento do desenvolvimento da religião dos Hebreus e dos judeus. O nomadismo dos Hebreus teve origem com o patriarca Abrão (Gen. 12-22). Esta religião cujo ponto principal é a aliança de Iahweh (Deus criador) com Abrão, prometendo-lhe filhos e terra como possessão (Gn. 12, 1,2), passou por um longo processo de assimilação e transformação, conforme a nação foi se desenvolvendo. O elemento pessoal é característico da estrutura da religião do antigo clã israelita, como pode ser visto não só no modo pelo qual essa religião veio a se formar, e como era constituída, mas também em seus complementos éticos. Um segundo elemento é o relacionamento mútuo entre a divindade e o homem. Esse elemento aparece claramente na sequência: “revelação da divindade” – “decisão por parte do homem” - “promessa e compromisso pela divindade” - “responso crítico do homem”. Esta estrutura se tornou fundamental também no javismo (FOHRER, 2015, p 50) De Abrão até Moisés o clã dos patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó) viveu como nômades forasteiros (Gn. 15,13-21) vindo a residir no Egito, onde permaneceram por quatrocentos e trinta anos aproximadamente (Êx. 12,40), sendo que nos últimos anos se tornaram escravos de Faraó, rei do Egito (Êx. 1,7-22). Moisés foi o libertador desse povo, conduzindo-os pelo deserto por quarenta anos. Durante o período de peregrinação no deserto com os grupos Hebreus, foram descobrindo os passos de uma nova comunidade diferente dos Egípcios e povos adjacentes. Devagarzinho, foram descobrindo as bases da futura Toráh. A palavra “Toráh” designa, em linguagem coloquial da época do Antigo Testamento, o ensinamento da mãe (Pv. 1,8; 6,20; cf. 31,26) e do pai (4,1s) para introduzir seus filhos nos caminhos da vida e adverti-los diante das ciladas da morte. Expressa igualmente o mandamento e a história da instrução da qual emerge. No Deuteronômio, por fim, Toráh transforma-se no conceito mais importante da vontade de Deus universal e literariamente fixada (p.ex. Dt 4,44; 30,10,31,9). Mais tarde esse conceito deuteronômico 17 designa a lei de Esdras (p.ex. Ne 8,1, todo o Pentateuco, mas também a palavra profético-escatológica de Deus para os povos (Is 2,3 par.; Mq 4,2; Is 42,4). (CRÜSEMANN, 2002, p. 12). Um dos pontos importantes da religião dos Hebreus é o nome de Deus e seu significado. Para se conhecer um pouco das origens do judaísmo e suas transformações é preciso considerar que, no decorrer de sua formação muitas foram as influências sofridas. O javismo (adoradores de Iahweh) de Moisés, está associado à origem da religião dos Hebreus no deserto, tendo como base a revelação recebida por este, cujo Deus revelador se identifica como o “Eu Sou o que Sou” (Ex 3,14). Significa uma presença dinâmica, não estática de Deus. Que a partir daquele momento estaria guiando seu povo pelo deserto para a posse da terra prometida. “O javismo mosaico, depois dos básicos e nômades elementos cananeus, foi a primeira influência na história da religião israelita” (FOHRER, 2015, p 107). O primitivo povo israelita estabeleceu sua independência sob a liderança de Javé (Iahweh), como um campesinato livre de qualquer classe dominante. Esta liberdade estava condicionada à aliança feita entre o povo e Iahweh e entre si. O próprio Deus era o senhor e objeto de lealdade exclusiva. Pois bem, essa ideia fazia parte da memória coletiva do povo, e posteriormente foram registradas no que hoje conhecemos como os relatos bíblicos. Para esses nômades camponeses era o ideal serem livres de senhores e reis, independentes de dominação estrangeira, vivendo sob o governo de Deus numa ordem social justa e igualitária. Portanto, o inverso disso seria uma referência negativa às gerações posteriores. 1.1 Passos para se chegar ao Judaismo O encontro dos javistas com a religião dos cananeus, cujos deuses principais eram El e Baal, provocou algumas mudanças em ambas as partes. Os javistas entendiam que o seu Deus era único, agia sozinho e por meio de aliança com seu povo, feita através de Moisés. Os cananeus tinham um culto mais elaborado, seus deuses eram distintos e agiam através dos ciclos da natureza. “No Antigo Testamento1, Iahweh é concebido exclusivamente como criador; a destruição da 1 Os textos que formaram o AT foram produzidos a partir de várias fontes. O estudo dessas fontes não será objeto de nosso trabalho. Salientamos apenas, que em razão dessa diversidade de fontes os textos podem aparecer de forma divergente e até contraditória. 18 natureza e do homem são vistos como o resultado não do conflito no interior de deuses ou entre eles, mas do pecado humano” (FOHRER, 2015, p. 66). No Antigo Testamento, há diferentes pontos de vista acerca dos inícios do javismo. O estrato-fonte J traça a origem do javismo inteiramente a partir da terceira geração de homens (Gn 4.26). Desde então, ele foi adorado com este nome. O estrato-fonte N também usa o nome “Iahweh” desde o começo. Permanece obscuro como se firmou o uso desse nome; o próprio nome não é revelado, nem é explicado o seu significado (FOHRER, 2015, pp.81-82). O javismo na Palestina, antes da formação do estado Israelita, sofreu um processo de absorção e assimilação pelas tribos nativas, conhecidas como cananeus. Aos poucos, o javismo de Moisés se revela superior e é aceito pelos nativos. Esse processo estava essencialmente completo por volta da metade do século XII antes de Israel se tornar estado israelita, governado por líderes ocasionais e regionais, conhecidos como juízes. “Para se pintar um quadro preciso do javismo desse período, seria necessário coligir abundante evidência de todas essas regiões particulares. Pode-se, contudo, admitir como característica central o conflito do javismo com os elementos existentes na vida nômade e na religião cananeia” (FOHRER, p. 122). O conflito com a religião cananeia foi mais duro, prolongado e grave do que aquele com o nomadismo, que, de qualquer modo, estava sujeito a declinar senão a desaparecer inteiramente, uma vez que os israelitas se estabeleceram na Palestina. O novo modo de vida estava inteiramente relacionado com as ideias e com o comportamento que os israelitas encontraram entre a população nativa. Inevitavelmente eles começaram a se aproximar do modo de vida, das práticas cultuais e do ambiente religioso cananeus. (FOHRER, 2015, p. 130). Apesar de todas as mudanças sofridas pelo javismo e de todas as transformações decorrentes de influências de fatos históricas, o javismo manteve as ideias básicas da soberania de Deus e da comunhão com Deus, da ação de Iahweh na vida dos homens e nações, e da ênfase sobre as exigências éticas do viver segundo as normas que expressam a vontade de Deus. Mesmo com todas as influências e tendências, ao que parece, o javismo se mostrou uma religião formada por conceitos firmes capaz de conservar seu núcleo mesmo que a forma viesse a mudar. A História de Israel, conforme registrada nos textos sagrados, sugere que o período dos juízes é superado pelo início da monarquia. O estado de Israel se organizou como as outras nações, tendo o seu próprio reino (I e II Rs). Nesse período 19 o javismo era a religião oficial do Estado. Havia templo e culto. As ações políticas de reis, muitas vezes entravam em choque com os ideais do javismo provocando fortes reações por parte dos seus defensores mais fiéis. Depois que eles se estabeleceram na Palestina, a organização nômade de clãs e tribos tornou-se antiquada. Em sua nova situação, os clãs e tribos transformaram-se em associações regionais. Assim, tornou-se possível incorporar membros de outras tribos e cananeus. [...] esta é uma das razões da posterior inimizade entre cidades e zona rural, até ao ponto em que não estava enraizada, como a antipatia da população rural de Judá para com Jerusalém, no fato de que a maioria dos habitantes da cidade eram cananeus (FOHRER, 2015, pp. 76,77). A nação de Israel não era formada por um único povo. A ocupação de Israel se deu de forma gradativa e por diferentes tribos. A tribo de Moisés era mais uma que veio habitar essa região. Contudo a proposta do javismo já tinha a tendência de unificação. Um único povo, um único rei e um único Deus. “Na realização desse propósito de reconciliar israelitas e cananeus, o javismo foi guiado na direção do sincretismo até bem dentro do século VIII, a despeito de toda resistência e reação” (FOHRER, 2015, p. 181). A proposta de reino unido não prevalece. Após o reinado de Salomão, Israel se divide em reino do norte e reino do sul. O reino do norte conhecido como Israel, e o reino do sul conhecido como Judá. Paralelo ao período dos reis havia a figura dos profetas que sempre agiram como boca de Deus. Uma figura importante no período da monarquia foi o rei Davi. O oráculo do profeta Natã prometeu uma dinastia eterna à Davi porque ele realizava do melhor modo o ideal do reino. Ele fez aquilo que se esperava que um rei fizesse para seu povo. Depois de Davi os outros reis foram avaliados tendo-o como parâmetro (2 Sm 7,12-14). A sua casa permaneceria, mesmo que seus sucessores fossem indignos. A aliança de Iahweh com Davi permaneceria até se concretizar em outro governante, que seria outro e mais poderoso que Davi, destinado a estabelecer o reino ideal de Iahweh. Se a dinastia devia ser eterna, então alguém que fosse maior do que Davi teria que vir para restabelecê-la. O reino ideal de Davi é um dado fundamental da fé messiânica do Antigo Testamento (McKENZIE, 2015, p.200). Esta é uma das tradições mais fortes do messianismo. O Rei Messias deveria ser descendente da casa de Davi. Seria esse um sinal para identifica-lo, mas não o único. O judaísmo foi construindo suas ideias centrais de forma muito definida, de 20 maneira a facilitar às gerações posteriores a leitura dos fatos e o seu encaixe dentro da própria história. A começar pela aliança entre Deus e os homens (Hebreus), (Gn 15, 1-14) através de Abraão, até à promessa da vinda de um Messias Salvador, descendente da casa de Davi. O cumprimento dessa promessa, tem mais tarde, um significado de renovação da aliança de Deus, agora com todos os que crêem, não mais com a raça eleita, Israel. Durante o período da monarquia, a fé na eleição de Israel foi esposada, acima de tudo, pelo nacionalismo religioso. Segundo essa crença, o relacionamento especial de Iahweh com Israel estava baseado na eleição da nação. Essa eleição deve produzir uma benção para as outras nações, mas Israel é a nação abençoada acima de todas as outras. A consciência nacionalista, que ecoa através dessas declarações, não pode ser omitida: Israel é o elemento crucial no mundo de todas as nações; o destino das outras depende de seu relacionamento com Israel (FOHRER, 2015, p. 240-241). O propósito real das diversas narrativas históricas do período da monarquia é justamente demonstrar que Iahweh é Deus criador de todas as coisas e é também Senhor da história. Os próprios livros históricos constantes do Antigo Testamento se referem à história como o lugar da ação de Iahweh. Sua revelação e suas atividades acontecem na história ou por meio dela. Porém, a Bíblia não é um livro histórico, embora a tenha levado a sério e construído suas narrativas não de forma atemporal. A história é sempre um sistema seletivo com o qual os interpretadores interpretam não algo passado simplesmente, mas sobretudo ordenam e interpretam seu próprio mundo. Interpretação histórica significa criar uma relação coerente de sentido (SCHNELLE, 2014, p. 25). A ideia da soberania de Iahweh e sua comunhão com os homens, desenvolvida pelo javismo, trouxe o raciocínio de que “se Iahweh é Senhor, o homem é seu servo, ou escravo, e ao aproximar-se dele sua atitude deve ser de temor e até de tremor” (Êx 20, 18-19, Sl 76, 8-9; Jz 6,23) (FOHRER, 2015, p 244). Mais tarde essa atitude se desenvolveu para uma atitude de amor e de confiança em Deus. “Desde o princípio, Iahweh foi considerado um Deus de propósito ético, que exige completa obediência, segundo leis que expressam a vontade de Deus” (FOHRER, 2015, p. 247). A vontade de Deus também podia ser pronunciada na Torá concreta, divulgada por um sacerdote ou profeta cultual. O culto a Iahweh exigia a separação entre o sagrado e o profano, puro e impuro. Outro conceito importante desenvolvido no 21 judaísmo e que vai ter lugar de destaque no cristianismo é o conceito de justiça. O homem que obedece aos mandamentos de Deus pratica a justiça e a retidão. A justiça abrange tanto a justiça social como a distribuição justa da justiça; Ela se refere ao comportamento que uma pessoa deve ter em relação ao Deus do seu povo, ao princípio que rege o comportamento dos homens uns para com os outros e refere-se também à sua atitude, para com Deus, que é medida e julgada e refere-se, ainda, às exigências de Iahweh aos seus adoradores (FOHRER, 2015, p 250). Outro conceito também desenvolvido e que está intimamente ligado ás ideias do Novo Testamento é o conceito da shalom (paz). O completo bem-estar do homem, em todos os sentidos. É a harmonia entre o homem e Deus, é também a comunhão entre os homens. Enfim, uma relação pacífica e harmoniosa do ser humano com Deus, com o próximo e com a comunidade. Quando alguém possui paz, está em perfeita e segura comunhão com Iahweh. Ele deseja a paz daqueles que o servem (Sl 35, 37). “Deve-se esperar a paz perfeita da salvação messiânica (Is 9, 5-6) e em seu reino, haverá paz sem fim” (MCKENZIE, 2015, p. 644). A história do desenvolvimento do judaísmo se confunde com a história de Israel. É possível contar a história de um através do outro e vice e versa. A questão da justiça social sempre esteve presente no direito escrito de Israel, ou seja, na Toráh. A proteção aos pobres, ás viúvas, aos órfãos e estrangeiros, crianças, escravos, figurava em Êx 22,20 a 23, 1-8. “O direito dos sem direito decide-se no lugar do direito (Êx 23,1-8). O critério do judiciário reside, assim, naquelas pessoas que ali mesmo não podem atuar e para as quais nada se prevê” (CRÜSEMANN, 2002, p. 259). A inobservância dos preceitos legais parece ter sido a responsável pela ruína de Israel, de acordo com a doutrina da retribuição, presente nos textos dos Evangelhos. No período do Antigo Testamento pode-se dividir em três grandes momentos a história de Israel. O período pré-exílico, o exílico e pós exílico. Nesses três momentos Israel foi advertida de seus erros e instruída a se arrepender de seus pecados. O pecado aqui estava relacionado à desobediência da Lei. O judaísmo vai se transformando e se sofisticando à medida que a nação vai se modernizando. A fé dos grandes profetas individuais, baseada na influência perene do javismo mosaico, estava fundamentada numa nova compreensão de Iahweh, oriunda do mistério da experiência pessoal. Os profetas aprenderam que o santo poder de Deus não reduz o homem a uma servidão involuntária, fazendo-o humilhar-se no pó, mas, ao contrário, coloca-o diante de uma decisão pessoal: a decisão se ele dirá sim ou não a Iahweh e à sua vontade, se tornará um homem realmente novo ou continuará a ser o homem que tem sido (FOHRER, 2015, p. 345). 22 Para os profetas, o pecado de Israel e as calamidades admoestadoras de Iahweh, bem como os seus outros esforços, são os fatores mais importantes para compreensão da história de Israel na Palestina. A sujeição de Israel a reis e impérios durante sua história, desmoronou o ideal construído no imaginário das gerações posteriores, que esperavam uma nação livre e justa, tendo como único Senhor, o próprio Deus. “Conforme acreditavam essas gerações, a julgar por aqueles que falaram em seu nome, como os profetas, o Deus de Israel permaneceu interessado em conservar seu povo livre da escravidão estrangeira e opressão interna” (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 25). Na maioria das vezes, os profetas olhavam para dentro do próprio país, denunciando os desmandos das autoridades políticas que levavam o povo à idolatria. Desaparecendo a profecia, desapareceria também o olhar crítico sobre o modo como a sociedade funcionava. E isso era muito bom e conveniente para as autoridades. Dificilmente os profetas do Antigo Testamento mobilizavam o povo à resistência. Seu ponto forte era a denúncia contra as injustiças nacionais (BORTOLINI, 2003, p. 9) Também “os profetas estavam ligados ás tradições, contudo eles interpretaram as tradições da eleição escatológicamente, resultando na visão dos novos atos salvíficos de Iahweh que se dariam na história futura” (FOHRER, 2015, p. 364). Jesus é um acontecimento histórico. A sua vinda está relacionada com a plenitude dos tempos (Gl 4,4). Esse tempo começa a ser contado desde a origem da criação, quando já era prevista a vinda do Cordeiro de Deus (Gn. 3:15). Os Evangelhos interpretaram Jesus Messias dessa forma, como o cumprimento das profecias a seu respeito dentro de um tempo marcadamente reconhecido pelos olhares mais atentos. Ou seja, os olhares da fé. Jesus é a boa notícia da parte de Deus. Importante notar que no período dos profetas a forma de relacionamento de Iahweh com a nação de Israel deixa de ser exclusiva. De acordo com a fé dos profetas Iahweh conduz o destino de todas as pessoas e nações. Além dos profetas, a escola deuteronômica exerceu forte influência sobre o Judaísmo, promovendo interpretações importantes na teologia do Antigo Testamento. “A teologia deuteronômica, [ ] preparou o caminho para um cânone autorizado e marcou o começo do desenvolvimento de uma religião do livro, uma fé que podia ser ensinada e aprendida Dt. 7.6ss; 30.11ss” (FOHRER, 2015, p. 387). 23 A história do Judaísmo começa com o tempo do exílio babilônico. As dez tribos de Israel, estabelecidas no norte do país, tinham desaparecido depois da destruição da Samaria pelos Assírios, no ano 722 a.C. A tribo de Judá, ao sul, foi conquistada em 587 a.C. pelos Babilônios. A invasão de Judá provocou a destruição de Jerusalém e a deportação da classe alta da população para a Babilônia. Impedidos de continuarem o culto do templo, permaneceram, porém, fiéis à lei do seu Deus. Os mandamentos do sábado e da circuncisão eram sinais pelos quais Israel se tornava consciente da sua eleição entre todos os povos. Através dessa prática, criou-se o fundamento mental e espiritual para se poder recomeçar na terra dos antepassados, após o fim do domínio babilônico (LOHSE, 2000, p. 11-12). Sob o domínio dos persas os judeus desenvolveram uma vida cultural independente, apoiada explicitamente pelo governo. Pouco depois da conquista da Babilônia, o rei Ciro decretou a reconstrução da “casa de Deus” em Jerusalém. Esdras e Neemias foram os encarregados dessa missão e um após o outro retornaram a Jerusalém para pôr em ordem a situação (Ne 3). “Quando alguns judeus foram deportados, a cidade não ficou desabitada, grande número de habitantes continuou a morar nela (Lm 1,4-11; 5), só os pobres da terra2” (FOHRER, 2015, p. 400). Confusão e divisão sempre existiram no seio na nação de Israel, justamente por ser um local de ajuntamento de diversas culturas e religiões, desde a antiguidade. Desde o período pré-exílico havia um forte sincretismo devido às influências dos vários povos circunvizinhos. Politicamente, os judeus viviam sob um governador oficialmente nomeado, de início um herdeiro da dinastia davídica. Mas, pelo menos desde a época de Neemias, o governador era simplesmente um judeu não davídico ou outro funcionário imperial. As esperanças messiânicas de restauração do reino davídico passaram para o segundo plano, entretanto, com a autorização imperial direta, o escriba real Esdras reorganizou a comunidade judaica em torno da lei que ele tinha trazido da Babilônia. Esta continha material da tradição popular que havia sido oficialmente sancionado pelo governo “teocrático” da aristocracia sacerdotal e era em seu favor (HORSLEY e HANSON, 2015 p. 27). As autoridades religiosas e civis agora estavam centralizadas no templo, tendo como administradores do governo os sumos sacerdotes, tornando-se estes os cabeças da sociedade judaica, cujas famílias detinham o poder político e econômico. Como o templo funcionava como um depósito do tesouro, ou mais precisamente, 2 Naturalmente, sua condição de vida era miserável: insuficiência de víveres (Lm. 1,11), canibalismo (2,20; 4,10); sofrimento das criancinhas (2, 11-12,19); violência contra mulheres (5,11); assassínio de sacerdotes e profetas (2,20); enforcamento de homens respeitáveis e degredação de anciãos (5,12). A administração babilônica envolvia também a opressão, sobretudo o trabalho forçado (5,13) e impostos (5,4). Só gradualmente foi restaurada certa prosperidade, de modo que, pelo ano 520, muitos habitantes de Jerusalém possuíam casas bem confortáveis (Ag. 1,4ss) (FOHRER, 2015, p 400). 24 como um banco deu a estas famílias sacerdotais mais poder e autonomia (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 27). No fim do império persa, o sumo sacerdote era reconhecido como o representante político e econômico, bem como o chefe étnico e religioso judeu. Na verdade, o que começou sob os persas continuou durante os impérios helenísticos e até ao império romano, isto é, a Judeia funcionava como uma comunidade do templo, sob o controle político externo de um governo imperial. Para os camponeses essa situação significava impostos religiosamente sancionados para sustentar o templo e seu complexo aparato cúltico regular e de ocasiões especiais, todos obrigatórios (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 28). Não se pode negar que os fatos relativos ao cativeiro babilônico mexeram muito com a fé dos judeus. Tantas foram as questões relacionadas à prática e até mesmo na forma de conceber a imagem de Deus, que o javismo nesse período, se ressentiu de um grave golpe. Como consequência, as divisões de opiniões se acirraram, criando grupos que criam de uma forma outros de outra forma. Assim Israel vai sobreviver ao exílio. Dos que retornaram a Judá após o fim do cativeiro, poucos foram os que conservaram a antiga forma de culto. Pode–se dizer que um outro judaísmo estava nascendo após o cativeiro da Babilônia. No exílio o culto primitivo javista se tornou extremamente legalista, pois necessitavam de algo em que se apoiar, já que estavam sem o templo, sem o culto. A escola deuteronomista teve grande influência na interpretação dos fatos e na esperança dos exilados. Para esta escola a única maneira de se chegar a Deus, agora, seria através da observância estrita da lei. “A lei era a rocha fixa e irremovível, a qual eles podiam aderir a fim de evitar que fossem varridos pela corrente da história” (FOHRER, 2015, p. 407). No exílio também, foram concluídas as obras referentes ao Código da Santidade, contido em Lv. 17-26. “Código colocava diante do povo a exigência de que eles deveriam ser santos no sentido de pureza cultual e ética” (FOHRER, 2015, p. 408). A regra de conduta agora, seria ditada pelas exigências da Lei. Durante os períodos pré e pós exílico a figura dos profetas foi muito importante na história da teologia do judaísmo. Entretanto o comissionamento dos profetas com uma palavra de Deus dirigida a terceiros é apenas um aspecto da autorização profética, o qual ocupa o lugar dominante na tradição veterotestamentária pela simples razão de que os assim chamados “profetas da escrita”, tiveram influência decisiva sobre esta tradição (JEREMIAS, 1985, p. 181). 25 O profeta Ezequiel, era da linhagem sacerdotal e foi levado ao cativeiro, onde exerceu o seu ministério. Uma importante contribuição de Ezequiel para a teologia do Antigo testamento foi a sua concepção de Iahweh, como um Deus independente da sua terra de origem, ou seja, Ele poderia ser adorado em qualquer lugar, independente se estivessem ou não em Jerusalém. Ezequiel também desenvolveu a ideia da responsabilidade individual de cada israelita (Ez 18). Cada um é responsável por si próprio e decide por sua salvação ou condenação Outras questões teológicas também foram desenvolvidas em Ezequiel, de suma importância para a consolidação do judaísmo como um todo tais como: A teologia do pecado, do perdão (Ez 36,25) renovação por meio de um novo coração, que só Deus pode conceder, por meio do seu Espírito (Ez 11, 19-20; 36,26). Para ele seria um novo homem convivendo com outros novos homens, formando uma comunidade, vivendo não só em mútua comunhão, mas, acima de tudo, em comunhão íntima com Iahweh (Ez 11,20; 36,28). Esta mesma ideia de comunidade pode ser encontrada na interpretação dada pela Comunidade mateana, dos discursos de Jesus. Outra corrente importante, desenvolvida durante o exílio, para a consolidação do judaísmo foi a corrente conhecida como escatológica. O Dêutero-Isaías (profeta anônimo, ao qual se convencionou chamar Dêutero-Isaías, cuja tradição está contida em Is 40-55), exerceu seu ministério nos últimos anos do exílio babilônico e esperava que Ciro libertasse os deportados judaítas e permitisse que eles voltassem a Jerusalém para reconstruir o Templo (FOHRER, 2015, p. 418) A ideia essencial das esperanças escatológicas era a distinção entre duas eras, esboçadas por ele como o fim da era de transição de pecado e miséria e o começo da era futura de redenção e libertação (Is 40, 1-2, 3-5,6-8). (FOHRER, 2015, p. 424). A boa notícia de que esse tempo havia chegado é esboçada nos Evangelhos e nos demais escritos do Novo Testamento. A base de toda a esperança messiânica se encontra na interpretação dada aos escritos do Antigo Testamento. O Evangelho de Mateus, que é considerado o mais judaico de todos, contesta a interpretação das Escrituras feita pelos líderes do judaísmo de seu tempo. Para Mateus a verdadeira interpretação das Escrituras não poderia omitir a realidade chamada Jesus, o Cristo, como o enviado de Deus. 26 1.1.1 A esperança Messiânica dos Hebreus/Israelitas até o Judaísmo O Messianismo é um conceito teológico desenvolvido dentro da profecia escatológica. Havia uma corrente que cria que o próprio Iahweh, reinaria e estabeleceria a soberania de Deus (Is 24, 23; 33,22; 43,15; 44,6; Mq 2,13; 4,7; Sf 3,15; Zc 9,1-8; Ml 3,1; Sl 47; 96-99; 146,10; 149,2). Outra corrente supunha um rei humano indicado por Ele, como seu representante e soberano, denominado Messias. Este é um termo comumente usado no Novo Testamento, mas começou a ser desenvolvido no Antigo Testamento. Fohrer (2015, p. 451) destaca algumas passagens bíblicas que incluem as esperanças messiânicas do Antigo Testamento: Is 9,2-7, esta passagem fala do “menino” ou “filho” no trono de Davi, com o nome real de “Maravilhoso Herói Divino, possuidor dos despojos, possuidor da paz”. O capítulo 11,1-9 de Isaías fala de um “rebento do tronco de Jessé”, a dinastia davídica, e seu reino de paz é claramente messiânico. Soberano e Justo Juiz, Rebento da raiz de Jessé, são mencionados em Is 11,10 e 16,5. Também o profeta Jeremias menciona um ramo de Davi (Jr 23,5-6 e 33,15-16), que reinaria com retidão e justiça. Ezequiel usa a metáfora de um broto na ponta de um cedro no capítulo 17,22-24. O profeta Miquéias, fala do Soberano messias, proveniente de Belém de Efrata (Mq 5,2-4). Zacarias 9, 9-10 descreve a entrada real do rei messiânico em Jerusalém. A esperança messiânica originou-se nos tempos iniciais do período pósexílio, depois da queda de Judá e da deposição da dinastia davídica, após o exílio e a libertação, quando veio a existir na Judéia uma nova comunidade sob a soberania persa, mas a profecia escatológica prometia uma era eterna de salvação, como uma efetivação da soberania de Deus, a ser exercida primariamente dentro do contexto de uma nova nação e o império israelita em solo palestinense (FOHRER, 2015, p. 453). É preciso ainda salientar que havia distinção clara entre os chamados profetas individuais e os profetas escatológicos. Os profetas individuais aguardavam uma transformação básica do homem enquanto os profetas escatológicos aguardavam uma nova era e uma nova forma do mundo em que o homem vivia. Os primeiros acreditavam que primeiro viria a transformação individual e depois juntos transformariam a comunidade. Os segundos acreditavam ao contrário, primeiro a mudança seria no mundo, no local onde o homem estaria vivendo e só assim ele seria atingido e transformado. 27 1.1.2 O judaísmo após Esdras e Neemias Neemias e Esdras representam o período pós-exílio, pois eles foram os responsáveis pela recondução de parte da comunidade de Israel para Jerusalém. Dentro de uma ordem cronológica os fatos relativos à reconstrução dos muros de Jerusalém se deram em torno 445-398 a.C. “Esdras e Neemias exerceram seu ministério durante o tempo de Artaxerxes I e Artaxerxes II” (FOHRER, 2015, p. 464). Estes ilustres judeus fizeram ou executaram alguns projetos para a recuperação do povo israelita. Tentaram resolver, a seu modo, os conflitos. O projeto de Zorobabel e Josué (Esd 3,1-13) com o apoio de Ageu e Zacarias: Achavam que reconstruindo o altar e o templo de Jerusalém movimentariam e reuniriam o povo e reorganizariam os trabalhadores, os levitas e os sacerdotes (FERREIRA, 2011, p. 187). Acredita-se que primeiramente os muros da cidade foram restaurados por Neemias, que se tornou governador de Jerusalém e implantou medidas de ordem externa e interna. Restabeleceu as populações locais na cidade, que se encontrava parcialmente habitada (Ne 11,1-2) e implantou um sistema de remissão de dívidas. Internamente instituiu pagamento de dízimos aos levitas (Ne 12-44ss e 13,10ss), o descanso no sábado (Ne 13,15ss). Sua reforma foi mais política que propriamente religiosa. “Neemias foi o responsável por colocar as bases para o estabelecimento da paz e da independência relativa da nova província, tornando possível uma reforma religiosa” (FOHRER, 2012, p. 464). Diferentemente de Esdras, o governador Neemias era sensível às assimetrias sociais e econômicas (Ne 5,1-19). Em Neemias 5, há um retrato de como ele via os ricos explorando os pobres. Ficou revoltado. O seu projeto é diferente e melhor que o de Esdras: exigiu que os ricos devolvessem aos pobres as terras roubadas e perdoassem as dívidas acumuladas (Ne 5,7-13). Procurou reconstruir as famílias e os clãs (Ne 7); reconstruiu as muralhas de Jerusalém (Ne 2,11-3,38); criou os anos jubilares, atualizando a visão do Levítico e do Deuteronômio. O problema de Neemias é que ele jogou as leis para os ricos e nós sabemos que os poderosos não agem por lei, principalmente quando é para haver transformação a serviço dos pobres. Então, o seu projeto, com o tempo, ficou só no registro (FERREIRA, 2011, p. 187-188). Esdras foi o encarregado pelo rei para dar continuidade à reconstrução de Jerusalém e responsável pela segunda leva de exilados de volta àquela cidade. Esdras inicia seu projeto de reforma fazendo a recitação da Lei que portava consigo, diante do povo (Esd 7,1-10). A segunda medida de Esdras foi a aplicação da Lei ao 28 caso dos casamentos mistos (Esd 10,10). Estes casamentos aconteceram porque a população nativa que ficou na terra, quando ocorreu o exílio, se misturou com outros povos que vieram habitar ali, acontecendo estes casamentos.3 O projeto de Esdras (Esd 9,1-10,4; Ne 8,1-18): ele estava a serviço do rei da Pérsia. Porém, para os judeus, o seu projeto foi marcante. Era da linhagem sacerdotal e um superespecialista em leis. Ele via que o sofrimento do povo era proveniente de um castigo de Deus. Então, tomou atitudes seríssimas: Nada de casamentos com estrangeiras; os costumes pagãos não podem entrar na convivência dos judeus; Observância total à Lei de Deus; A pureza da raça deve ser preservada (Esd 9,2). Esdras nacionaliza a fé. Deus está a serviço da raça judaica. O seu projeto vai se perpetuar na história israelita (FERREIRA, 2011, p. 187). Para Esdras estes casamentos tinham que ser dissolvidos. Assim, “a segregação da comunidade, introduzida pela lei deuteronômica e continuada pelo profeta Ageu4, estava efetivamente completa” (FOHRER, 2015, p. 466). Esta medida provocou protesto e agitações na Palestina, ameaçando a paz das províncias desagradando o rei persa e fizeram com que Esdras fosse chamado de volta à Babilônia, não mais retornando à Jerusalém. 1.1.3 Configuração do judaísmo após a reforma de Esdras A primeira característica desse novo judaísmo foi a tendência legalista, que atribuía posição central ao ritual cultual. A segunda característica foi o desaparecimento da influência profética (FOHRER, 2012, p. 466). Esta religião nascente se apegava à Lei como seu ponto de apoio e as outras tendências ficaram em segundo plano. “O caráter particularista dessa religião foi criticado através dos livros de Jonas e de Rute” (FOHRER, 2012, p. 467). Jonas critica a restrição da salvação somente à Israel enquanto Rute vê a benevolência de Iahweh para com outros povos. 3 É preciso chamar a atenção para o aspecto autoritário do governo de Esdras. Durante o seu tempo os estrangeiros/as foram expulsos da terra. Isso trouxe problemas socioeconômicos gravíssimos porque muitos estrangeiros eram casados com mulheres Israelitas. Quanto às mulheres, especialmente, as mulheres de Israel foram rebaixadas no nível social e começaram e experimentar as assimetrias que tinham o masculino como chefe. 4 Ageu e Zacarias são profetas do período pós-exílio. Ambos estavam seguros de que aqueles que tinham retornado da Babilônia depois de 538 a.C. eram o resto sagrado de Israel, que devia ser libertado do julgamento. Para esses profetas esse resto que retornara era o povo da era escatológica da salvação (FOHRER, 2015, p. 434) 29 “O projeto dos pobres: livreto de Rute. Ao contrário dos projetos de Zorobabel, Esdras e Neemias, este não é um projeto pronto. Ia se construindo, à medida que a luta era mais desafiadora” (FERREIRA, 2011, p. 188). “O período pós-exílio também foi marcado pela contribuição da história do Cronista, que é baseada na doutrina da retribuição5”. O livro das Crônicas dos Reis de Israel, revelam uma leitura aplicada mais aos indivíduos que à nação como um todo (FOHRER, 2012, p. 468). Houve uma elevada estima pelo culto do Templo de Jerusalém, uma elevação da posição dos sacerdotes e profetas (2 Cr 33). Para o cronista os acontecimentos na história de Israel estavam relacionados aos atos dos seus governantes e nada mais eram do que uma punição da parte de Iahweh por esses atos impiedosos. Muitos salmos foram compostos nesse período, representando quase dois terços dos hinos e orações preservados no Saltério, cuja expressão de fé centralizava-se em dois pontos: o culto do Templo e a Lei (FOHRER, 2012, p. 468) A supremacia do templo elevou Jerusalém para um patamar que parecia ser esta o verdadeiro centro do universo. A Lei estabelecia uma conexão direta entre Iahweh e o homem. Toda a vida se ligava à Lei, porque Iahweh julga retamente e retribui a cada um de acordo com os seus feitos. A doutrina da retribuição foi duramente criticada no livro de Jó, fruto desse período (FOHRER, 2012, p. 469). A Lei6 era o parâmetro para a divisão entre justos e ímpios. Esses escritos também, sublevaram a dinastia davídica a ponto de omitirem todos os atos pecaminosos praticados por esse monarca. O tempo de Davi é descrito como o estado ideal das coisas, um digno objeto de aspiração. Alguns profetas individuais exerceram seu ministério nesse período, como o profeta Joel, como profeta cultual no Templo de Jerusalém. Foi um profeta escatológico, pregou o retorno a Iahweh, para evitar que o desastre econômico atingisse a nação. Parte de Isaías (65, 66); o Dêutero-Zacarias (Zc 9-11). Esses profetas trouxeram uma visão escatológica com suas devidas consequências para o apóstata infiel. “Esse período é responsável por mudanças intelectuais profundas e 5 FOHRER, 2012, p. 468 Esdras ensinou aos habitantes de Jerusalém a lei, promulgando-a em nome do rei. Essa lei, abrangia os cinco livros de Moisés, o Pentateuco, que coligiam e sistematizavam as antigas tradições de Israel (LOHSE, 2000, p. 13). 6 30 toda reflexão teológica podia ser organizada e unificada sob o termo geral “sabedoria” de modo antes não suspeitado” (FOHRER, 2012, p. 470-471). O Judaísmo desse período foi ampliado em razão de muitos conceitos teológicos importantes serem discutidos e desenvolvidos em seu seio. Estes conceitos contribuíram para a consolidação do Judaísmo, pois as influências dessas tendências forçaram uma busca de identidade e unidade. Questionamentos sobre a própria existência vieram à tona, e os mistérios da vida só foram respondidos através de uma entrega incondicional a Iahweh. Aqui Iahweh é a solução para todos os problemas da existência humana. Um fato importante na história de Israel foi a separação histórica entre Jerusalém e Samaria. Samaria era a capital do Reino do Norte e Jerusalém a capital do Sul, Judeia (2 Rs 17). “Por um decreto imperial a Lei de Israel tornou-se o direito comum de Jerusalém e da Judeia. A partir de então, o culto da comunidade judaica ficou sob a proteção do governo persa” (LOHSE, 2000, p.13). Isso provocou a desgosto dos vizinhos e, especialmente dos habitantes de Samaria. Os adoradores de Iahweh que viviam na província de Samaria, romperam relacionamento com Jerusalém e constituíram sua própria comunidade samaritana com um templo no monte Garizim, no curso do século IV a.C. Os samaritanos eram complacentes com os casamentos mistos e não participavam das tendências exclusivistas da comunidade de Jerusalém. Mas, Fohrer (2015 p. 477) adverte que “a verdadeira razão da separação foi a oposição entre o norte e sul, desde os tempos de Davi e Salomão. Por esta razão os Samaritanos só adotaram o Pentateuco que era considerado sagrado, pois as demais escrituras traziam a glorificação de Jerusalém e de Davi”. Essa separação brusca e o grande favorecimento de Jerusalém pelo rei persa causaram entre os habitantes da Samaria um sentimento de amargura, que contribuiu para um crescente distanciamento entre norte e sul. Tal distanciamento acarretou finalmente, a separação política das províncias da Samaria e de Judeia. Embora o historiador Flávio Josefo relate que os samaritanos teriam recebido a permissão da construção do templo no monte Garizim sobre Alexandre Magno, é mais provável que a construção do santuário seja anterior ao reinado do imperador macedônico. Nesse tempo reinava uma inimizade profunda entre eles e os judeus. Tal animosidade finalmente os levou à guerra. No ano 128 a.C., os judeus, sob o comando de João Hircano, destruíram o templo no monte Garizim (LOHSE, 2000, p. 14). O Antigo Testamento retrata a questão da violência como parte da cultura religiosa dos adoradores de Iahwé. O Deus do Antigo Testamento parece indiferente 31 à questão da violência. Às vezes aparece como autor ou idealizador da violência. Embora faça parte também da cultura Hebraica e Judaica a busca pela paz, os conceitos de paz concebidos no Antigo Testamento estão mais diretamente relacionados à comunidade, diferentemente do conceito, mais ampliado no Novo Testamento, que relaciona a paz tanto à comunidade quanto ao indivíduo. Com efeito, a Bíblia não fala com um uma única voz acerca de Deus. Por um lado, Deus ouve o clamor dos oprimidos (Ex 3, 7-9) e, por outro, exige o extermínio de todas as cidades que resistam a entregar a seu povo todos os seus bens, suas mulheres, filhos e animais (Dt 20, 1-14) (PIXLEY, 2011, p. 14). A forma como os textos bíblicos vão sendo construídos, traz certa luz para a compreensão da situação vital dos adoradores de Iahweh, desde as suas origens. Pode-se perceber, na trajetória desse povo, uma falta de acomodação. Em nome de Deus e de seu projeto de justiça, interpretado como condição vital para a sobrevivência de toda comunidade, eles se mostraram incansáveis em seus ideais. Pelo menos uma corrente mais tradicional parece estar sempre em conflito com outros movimentos. Sem falar que estão sempre se defrontando com movimentos de renovação, de vivificação e de resistência. É assim que hebreus/judeus/ israelitas, vão construindo suas histórias. Esta história sempre foi lida de múltiplas e diferentes formas, ensejando o aparecimento inevitável de múltiplas visões de conteúdo religioso/cultural. Portanto, este não é um fenômeno só da atualidade. No passado, os intérpretes também foram tão variados quantas foram as suas concepções. O período que se segue retrata bem essa realidade. 1.2 O Período Macabeu e a Helenização da Cultura Judaica Este período ilustra bem a insatisfação dos camponeses e a preocupação da corrente mais rigorosa do judaísmo com o rumo no qual a política estava levando a nação. O líder maior da religião judaica, o Sumo Sacerdote, a este tempo, demonstrava muito interesse na helenização da Judeia e consequentemente a relativização das Leis da Aliança. Isso trouxe instabilidade e preocupação por parte 32 da camada mais fiel às Leis da Aliança. Não só essa camada, mas os pobres7 que se viam privados de sua liberdade religiosa e política e de seus bens (terra) se encontravam em uma situação de muito temor. Render-se ou lutar. Eles preferiam sempre lutar. O espírito aguerrido desse povo evidencia a presença constante da espada. Lutas, embates, guerras, sempre em defesa de um modo de vida construído ao longo dos séculos e constantemente ameaçado por domínios inescrupulosos que buscavam manter seu poderio e seus interesses a qualquer preço. A história da guerrilha, promovida pelos macabeus e asmoneus, não representa nenhuma novidade de comportamento em Israel. Questões dessa natureza fazem parte de toda sua história. É preciso que se diga que essa foi uma batalha que teve origem entre o povo, o povo pobre de Israel. Mas, não necessariamente, só os pobres participaram, mas os pobres que tinham um ideal religioso construído desde muito tempo, naturalmente foram os protagonistas. As características dos idealizadores dessa revolta precisam ser salientadas. Esta revolta se originou do povo que era pobre, camponês, e vítima da opressão política que de muito lhes sobrevinha dos palácios e dos ricos. As razões desse levante também não são novas. Este mesmo povo sempre soube se juntar e defender seus direitos e sua fé. Eles sempre reagiram às ofensivas da classe dominante. Os acontecimentos que prepararam e culminaram na revolta macabaica foram muitas vezes interpretados simplesmente como uma questão de perseguição religiosa por um império pagão hostil e uma subsequente rebelião dos judeus para recuperar a sua liberdade religiosa. Mas a situação foi muito mais complexa. E, como a reforma helenística, a resistência popular, o decreto imperial e a guerra de libertação, constituiu uma virada crucial para a história judaica posterior (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 29). O Império Grego sucedeu ao Persa e o resultado foi uma total disseminação da cultura grega e da língua por todo o domínio de Alexandre, o grande e seus generais sucessores. Os gregos fundaram cidades na costa da Ásia Menor, estabeleceram postos avançados de comércio na costa da Síria, e mantiveram comércio com os Fenícios. Eles estavam sempre em expansão. 7 Os pobres da terra: as vítimas da política opressiva das monarquias de Judá e Israel. Expulsos de suas terras, mão-de-obra barata nos campos dos latifundiários, obrigados a servir nas milícias, e pesadamente tributados pelo estado. São os “oprimidos da terra”, cujos maiores porta-vozes são os profetas pré-exílicos. Eles, depois da destruição da cidade e da deportação dos antigos opressores, recebem da Babilônia terra, campos, vinhas (Jr 39,10). (GALLAZZI e RUBEAUX, 1993, p.18). 33 Em termos de extensão e complexidade das terras que Alexandre sujeitou a seu governo, suas conquistas não tiveram precedentes na história grega e lhe valeram o epíteto de “Magno”. Em 323 a.C. Alexandre Magno morreu e seus generais foram incapazes de seguir uma política unitária, resultando no desmembramento do império (STAMBAUGH e BALCH, 2008, p.10). A sucessão de domínios e influências que se impôs ao povo judeu/israelita por meio dos reinos que se levantaram, provocaram mudanças ou reflexões teológicas diversas. A prova disso se vê nas mais variadas tendências existentes entre os grupos ou correntes que se formaram no período que antecedeu ao nascimento de Cristo. Se torna importante perguntarmos pelo javismo, pelo judaismo, e pela corrente deuteronomista. Ainda sobreviveu alguma herança dessas interpretações no período intertestamentário? O que teria acontecido a essas correntes depois de tantas interferências de natureza religiosa, espiritual, cultural e econômica? A memória deuteronomista voltou à tona, sua mística alimentou a resistência, seu projeto de um único povo ao redor de um único Deus empurrou-o para a luta. Este era o coração do grupo de Matatias e seus filhos, que iniciou a guerrilha (GALLAZZI e RUBEAUX, 1993, p. 29). Contra o que, exatamente, esses guerrilheiros lutaram? Para Koester (2015, p. 214), “o estopim foi uma divergência entre os partidos pró-sírio e pró-egípcio com relação à função sumo sacerdotal e ao controle dos interesses financeiros do templo”. “Para a maior parte da população judaica, a reforma helenística não envolvia apenas a classe ociosa. Ela era uma ameaça à sua própria existência e identidade” (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 30). A palestina foi objeto de disputa entre os Tolomeus e os selêucidas8. Historicamente, os Tolomeus (Ptolomeu) impuseram uma administração eficiente e pacífica e conseguiram extrair da Palestina abundantes tributos (PIXLEY, 2011, p. 43). O governo dos selêucidas, que começou no ano de 198 a.C. foi, por contraste um tempo difícil em Israel. Os reis selêucidas governaram com graves dificuldades, já que, a partir de sua derrota em Magnésia em 190 a.C. diante dos romanos, foram submetidos a reparações de 15.000 talentos em 12 anos, uma soma astronômica que os obrigou a explorar as nações súditas, entre elas, Israel (PIXLEY, 2011, p. 44). Os povos do Oriente Próximo se abriram à influência grega, às atitudes dos gregos, à sua cultura e herança espiritual. Além da língua foram completamente 8 Estes foram os generais que sucederam a Alexandre, o grande após sua morte. 34 absorvidos pelo helenismo, perdendo sua própria identidade. Fundaram colônias e cidades gregas. Tendo estes mesmos se estabelecido nas cidades existentes. Quem não sabia falar a língua grega era considerado bárbaro. Os colonos gregos trouxeram sua forma de vida e a conservaram. “Jerusalém, todavia, permaneceu como EstadoTemplo” (KOESTER, 2015, p. 211), enquanto a cultura grega transformava as cidades nas “Polis”. A palestina esteve sob a autoridade dos Selêucidas durante algumas décadas apenas. A revolta dos macabeus resultou no estabelecimento do Estado judaico dos asmoneus, que se manteve até a conquista da Síria por Pompeu em 63 a.C. (KOESTER, 2015, p. 33). A influência grega estava nas construções, nos teatros e termas e nos ginásios, onde se praticava esportes. Além disso, a forma de pensar dos gregos também encontrou aceitação entre alguns judeus, especialmente a elite. Aqui é preciso refletir sobre o conflito entre a abertura que se dá para a influência grega e a rigidez da Lei dos judeus, transmitida por Moisés. Seria impossível, na visão dos mais tradicionais representantes do judaísmo conciliar esses dois polos. Onde se situava entre os judeus a consciência da eleição de Israel como povo de Deus em meio a todos os povos? Teria enfraquecido esta consciência? A resistência dos camponeses judeus só se expandiu e intensificou quando se tornou evidente que o plano selêucida era confiscar as terras daqueles que persistiam em viver de acordo com a lei mosaica tradicional, vendê-los como escravos a fim de levantar dinheiro para o tributo devido a Roma, e assentar estrangeiros no território confiscado (1 Mc 3, 35-36.41). Este plano selêucida mostra que o que estava em jogo não eram simplesmente as liberdades religiosas dos judeus, mas a própria existência da sociedade judaica tradicional. A revolta macabaica foi uma luta dos camponeses judeus pela própria sobrevivência socioeconômica (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 36) Fenômenos como o sincretismo, culto aos deuses antigos, os oráculos, os mistérios, fizeram parte do desenvolvimento da religião dos gregos (KOESTER, 2015, pp. 167-172). Duas importantes influências gregas afetaram diretamente o judaísmo e provocou alterações no modo de ser da religião. A religião de “mistérios” e o culto ao imperador. Estas influências encontraram forte resistência por parte dos judeus acostumados à ideia de Iahweh, o único Deus e Senhor. A história dos Macabeus é contada com mais particularidade nos próprios livros que tem esse nome e pelo historiador Flávio Josefo. história dos judeus é essencial para nos Conhecer esse período da aproximarmos dos escritos 35 neotestamentários, pois conhecendo estas realidades podemos interpretar melhor os movimentos e os conflitos existentes à época de Cristo, dos apóstolos e das comunidades que se formaram após o advento da ressurreição de Jesus, o Cristo. Após a morte de Matatias, a liderança da resistência macabaica passou para um de seus filhos, Judas Macabeu, (que significa martelo) sucedido por Simão e Jônatas. Todos eles ocuparam o cargo de Sumo sacerdote, e rei, contrariando boa parcela dos que tinham zelo pelas tradições, já que eles não vinham da linhagem sacerdotal. “Pertenciam a uma família sacerdotal rural, mas não descendente da estirpe sadoquita” (IRs 2,35) (LOHSE, 2000, p. 23). Por uma variedade de influências e circunstâncias históricas, o período de 165 a.C. a 100 d.C. apresentou uma tendência crescente para a facciosidade e o sectarismo. Ao longo desse período a liderança, ou corpo principal, foi mudando. Não era, de forma alguma um grupo fixo. Tanto os que estavam no poder como os que se sentiam oprimidos e alienados mudavam com frequência durante esse período (OVERMAM, 1997, pp. 21-22). O templo de Jerusalém, que havia sido profanado por Antíoco IV Epífanes9, tornando-o impróprio para as celebrações do culto judaico, pôde finalmente, ser purificado por Judas Macabeu no ano 164. “Judas abateu o culto de Zeus, que viera a se conhecer como a “abominação da desolação”, e restabeleceu o culto tradicional dos judeus (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 17). Esta, sem dúvida foi uma grande vitória da luta religiosa dos camponeses guerrilheiros. “Os Assideus se retiraram, mas os Macabeus continuaram a lutar pela liberdade política que alcançaram temporariamente em 142 a.C. e permanentemente em 129 a.C. Houve, uma vez mais, reis judeus, os asmoneus que também fracassaram, tanto política quanto religiosamente” (FOHRER, 2015, p. 479). O que tinha começado como uma revolta de camponeses judeus, uma guerra de guerrilha contra os exércitos Selêucidas, terminou não na implantação do Reino de Deus, mas simplesmente no estabelecimento de uma nova dinastia de sumos sacerdotes (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 37) 9 Entre 175 e 163 a.C., os helenizantes, cujos interesses eram impedidos pelas regulamentações detalhadas da Torah, romperam com as instituições tradicionalistas. Fundaram, encorajados por Antíoco, uma pólis de estilo grego em Jerusalém, que completaram com um ginásio e um conselho dominado pelos nobres não-sacerdotais da família de Tobias. As tentativas alcançaram seu clímax em 167 a.C., quando Antíoco demoliu as muralhas da cidade de Jerusalém e construiu uma nova fortaleza (a Acra) para a guarnição Síria. Estabeleceu no próprio Templo um culto dedicado ao deus grego Zeus, e Antíoco publicou decreto proibindo a prática da religião judaica na Judeia (HOSRLEY e HANSON, 2015, p. 17). 36 Judas perde o apoio do povo que reuniu no Gallaad (I Mc 6,48-54), dos piedosos e dos escribas (I Mc 7,8-18), dos sacerdotes e anciãos (7,33-38) e, finalmente, dos seus próprios combatentes (I Mc 9,1-10). O projeto de Judas de salvar, de libertar, de conduzir para a grande reunião, todo Israel, só não se concretizou porque Judas não se contentou em ser apenas um pastor, ele quis ser um chefe como na antiga história da monarquia. “De fato, o regime asmoneu tornou-se semelhante a qualquer outro pequeno estado oriental semi-helenizado”. (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 38). A paz era o ideal a ser implantado em toda a comunidade de Israel, pelo menos para os grupos mais tradicionais do judaísmo. Os caminhos para se alcançar a verdadeira paz, fora transmitido por Deus aos pais, no passado. A conquista dessa paz, parece que nunca passou de um ideal, pois a espada era uma constante na construção da história dessa comunidade. Não sem razão, mas, justamente para preparar o caminho para a verdadeira paz, conforme a interpretação de escribas e profetas. A paz seria alcançada somente por meio da total obediência aos preceitos dados por Deus desde o início10. Essa revolta, que se iniciou com este propósito, foi se descaracterizando. A aliança de Judas com Roma “(pacto militar), menos de cem anos depois, levará ao suicídio político, entregando a Judeia nas mãos de Roma” (GALLAZZI e RUBEUAX, 1993, p. 163). No período do reinado de Alexandre Janeu (103 a 76 a.C.) o estado judeu foi tão grande como o de Davi, novecentos anos antes. Com sua morte veio a disputa pela sucessão. Essa disputa se transformou em uma guerra civil inesperada. “Esta guerra inesperada e a resultante instabilidade que pairou sobre o estado judeu tentaram os romanos a intervir. A intervenção veio na esteira da conquista romana da Síria e da abolição da monarquia selêucida” (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 18). 1.3 Dominação Romana e o Nascimento de Jesus, o Cristo Na sua conquista inicial, e nas subsequentes, os romanos trataram brutalmente os habitantes, a fim de obter submissão. Os exércitos romanos incendiaram, 10 Os que amam estão combatendo. A espada anda junto com o amor de Deus. Longe de qualquer forma de alienação, o amor e o conhecimento de Deus não nos afastam da história, mas nos jogam para dentro dela, até o fim, até à derrota dos inimigos, para que todos possam cantar hinos de louvor e exaltação a um Deus que por todos será assim conhecido (GALLAZZI e RUBEUX, 1993, p. 109). 37 destruíram, massacraram, crucificaram ou escravizaram as suas populações. (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 44). O que se segue à dominação asmonéia é uma violenta conquista por parte de Roma, seguida por lutas devastadoras pelo poder. O controle da área era disputado por facções asmonéias rivais, pelo império dos partos a leste e até por facções rivais da guerra civil romana, que então assolava o Mediterrâneo Oriental e a Itália. (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 43) Herodes11 consegue ser reconhecido como rei dos territórios judaicos da palestina, em 40 a.C. depois de muitas manobras. Para se manter no poder não hesitou em eliminar muitos membros da antiga aristocracia asmonéia, de quem era parente, e criar uma nova aristocracia leal a ele. Como político que era, favoreceu algumas famílias sacerdotais colocando-as no sumo sacerdócio mesmo não sendo sadoquitas (HORSLEY e HANSON, p. 44-45). Tornou-se o protótipo da dominação imperial helenística como rei romano dependente. De 37 a 4 a.C. manteve rigoroso controle do povo por meio de mercenários estrangeiros pessoalmente leais a ele, criando fortalezas por todo o país e colônias militares, além de contar com um importante serviço secreto de informantes (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 44). Herodes acabou com qualquer participação do povo no processo político, reduzindo os fariseus a mera irmandade religiosa. Herodes era um simpatizante da cultura helenística e empreendeu esforços desmedidos na construção de cidades, ginásios, e outras obras relacionadas à cultura helênica. Para sustentar tudo isso sobrecarregou o povo com taxas cada vez mais elevadas de impostos, o que provocou o constante descontentamento dos camponeses e dos defensores de vida tradicional judaico, livre de qualquer dominação ou opressão. A imposição romana da monarquia dependente herodiana na palestina e o controle do Estado-Templo por parte de Herodes significavam que a população estava agora sujeita a várias camadas de governantes com suas exigências de impostos ou tributo além dos dízimos e das ofertas. Os projetos de desenvolvimento teriam aumentado o fardo dos camponeses, que formavam sua principal base econômica. Os galileus, que apenas recentemente haviam passado para a jurisdição de Jerusalém, provavelmente teriam alimentado sentimentos ambíguos com relação ao Templo e ao sumo sacerdócio, a quem até então não haviam pago o dízimo e outros encargos (HORSLEY, 2004, p. 91). 11 Herodes era considerado ilegítimo para estar no cargo de rei, pois era só meio judeu: Era filho de pai idumeu e de mãe árabe, adepto ao helenismo e uma criatura de Roma (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 45). 38 Horsley e Hanson (2015, pp. 45-46), afirmam que Herodes, no seu ambicioso projeto de helenização movido por sua ambição desmedida forçou ao máximo a exploração econômica do país e do povo que dominava. O ônus recaiu pesadamente sobre os camponeses e foram muitos os descontentes. A vista disso, Herodes manteve rígido controle político e social, impedindo qualquer forma de protesto e reclamações. Proibia reuniões públicas, formação de grupos e até a vida comunitária normal. Quando finalmente Herodes morreu em 4 a.C., o descontentamento profundo e longamente reprimido explodiu, primeiro em atos de desafio ao tirano moribundo e depois em revoltas populares espontâneas em toda a parte do reino (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 46). Herodes Antipas12, (filho de Herodes, o grande) que assumiu como tetrarca a Galileia e a Pereia, deu sequência ao governo tirano de seu pai. Isso provocou fortes reações dos camponeses que eram os mais prejudicados. “Arquelau (outro filho de Herodes) assumiu o governo da Judeia e da Samaria, sob os protestos de uma delegação de anciãos judeus que preferiam um governo romano em seu lugar” (HORSLEY e HANSON, 2015, pp. 46-47). Quando se diferencia a história do judaísmo, de forma mais rústica, procurando enquadrar Jesus dentro do tempo na história dos judeus, Jesus pertence ao grande espaço de tempo da história designado pela classificação judaica tradicional das épocas de tempo do segundo templo (second temple judaism). Este tempo principia com o retorno do exílio babilônico (539 a.C.) e se finda com a destruição do templo pelos romanos (70 d.C.). Dentro desse espaço de tempo, alguns períodos podem ser distinguidos, tendo critérios distintos para esta distinção. Podem ser destacados os tempos por meio dos “poderes politicamente dominantes do momento”. Esta tipificação resulta das épocas de domínio persa, helenista, no tempo dos macabeus e asmoneus, e finalmente, na época romana. Se forem escolhidas outras classificações de época, mais gerais, então Jesus pertence bem genericamente ao “antigo judaísmo” (ancient Judaism) ou à religião do judaísmo na época helenista tardia (STEGEMANN, 2012, pp. 29-30). Todo o período do governo romano direto de 6 a 66 d.C. foi marcado por um descontentamento generalizado e periódica turbulência na sociedade judaica palestinense (HORSLEY e HANSON 2015, p. 47). 12 Herodes Antipas (4.a.C.-39 d.C.) foi estabelecido tetrarca das regiões da Galileia e da Pereia. Este é o Herodes cujo casamento João Batista condenou e o rei Herodes em cujo reinado Jesus desenvolveu suas atividades (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 46) 39 Este foi o período de maior interesse em relação a movimentos e líderes populares, como Jesus de Nazaré e também por rebeliões camponesas de grande escala: insurreições se seguiram à morte de Herodes no ano 4. a.C. e a maciça revolta contra Roma em 66-70, seguida de uma segunda grande revolta contra Roma em 132-135 d.C. (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 47). A História de Jesus é contada nos Evangelhos algum tempo depois de sua morte e ressurreição. Cada um a seu modo apresenta Jesus, o Cristo, de forma diferente, para responder aos anseios de cada comunidade que participou da sua elaboração. O Evangelho de Mateus apresenta Jesus como Senhor da História. “A realidade de Jesus como o verdadeiro sujeito da história está contida em seu nome Emanuel. Ele é a manifestação da presença de Deus na história” (Mt. 1,23 e 28,20) (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p.19). O Messias Salvador nasce por intervenção de Deus na história humana. Jesus não é homem qualquer. O significado primário do nascimento virginal, por obra do Espírito Santo, faz aparecer essa ação divina como segunda criação, que supera a descrita em Gn 1, 1ss. Na primeira (Gn 1,2), o Espírito de Deus agia sobre o mundo material; agora faz culminar em Jesus a criação do homem. Essa culminação não é mera evolução ou desenvolvimento do passado; por ser nova criação, realiza-se mediante intervenção do próprio Deus (MATEOS e CAMACHO, 2011, p. 22). A relação paz e espada revela–se nos eventos que antecederam e sucederam ao tempo do Messias. Com o domínio de Roma as conquistas da revolta camponesa macabaica são desfeitas; tudo volta a ser até pior do que antes. A tão sonhada independência de Israel não se mantém. Era preciso a chama da fé e da esperança reacender no coração do povo novamente. Apesar da dureza do regime imposto por Roma e das dificuldades decorrentes desse regime, Israel não se dá por vencido. As várias correntes, movimentos e grupos que vão se formando revela que “os povos judeu e galileu apoiavam-se e estavam firmemente comprometidos com a tradição israelita e com o modo de vida que ela representava” (HORSEY, 2004, p. 57). O olhar “a partir de cima” sobre o brilho de Roma não faz perceber toda a realidade. Ele apresenta contexto de sentido contradito pelas vítimas. Seria importante inverter a perspectiva numa percepção “ a partir de baixo”, para que a realidade experimentada como sofrimento não seja entregue ao esquecimento através da glorificação e para que os vencedores na história não triunfem novamente sobre as suas vítimas na descrição da história (WENGST, 1991, p. 19). 40 A questão é muito complexa: não se pode falar de um judaismo unificado 13, ao tempo de Jesus. Nem de um único povo vivendo sob uma mesma expectativa e fé. Nem se pode dizer que o que movia a população para as revoltas estava totalmente relacionado à defesa da Lei (Torah). Havia pessoas e interesses diferentes, envolvidos no contexto das resistências judaicas14. É preciso procurar em meio a toda essa complexidade o seguimento, ou a corrente responsável por não deixar que se perdesse toda a tradição da religião dos Hebreus/Judeus. Em vários momentos durante o primeiro século de dominação imperial romana na Judeia, grupos escribais promoveram protestos ad hoc e resistência organizada. Até metade do século I d.C., essas ações eram todas não violentas, aparentemente muito conscientes de que qualquer provocação, por pequena que fosse, quase certamente levaria à tortura e execução cruel. Nos três casos relatados por Josefo, a resistência estava profundamente enraizada na aliança mosaica, fundamento da sociedade judaica. Em cada caso fica claro que, fundamentadas no princípio da fidelidade exclusiva a Deus e à Sua Lei, as dimensões religiosas e políticoeconômicas são inseparáveis (HORSLEY, 2004, p. 46) Bem, em meio a tudo isso surge Jesus, o Cristo, considerado por muitos o enviado de Deus. Mas nem todos o viam assim. Para testemunhar a respeito de Jesus e de sua messianidade, um grupo de Judeus, interpretando as Escrituras encontrarão os fundamentos para a defesa de sua fé. Assim, formularão as bases de uma proposta de renovação intra-judaica, no princípio, que mais tarde se transformará numa religião independente do judaísmo, o cristianismo. Para contar história de Jesus, o Cristo é que os evangelistas se esmeraram na coleta de dados e nos testemunhos a fim de demonstrar para suas comunidades a veracidade de tudo a seu respeito. Cada evangelista elabora seu projeto com uma finalidade específica. O Evangelho de Mateus apresenta Jesus como o Messias, o enviado de Deus. 13 Entre os elementos que provocaram fragmentação no século I d.C. estiveram a ocupação romana, as escolas judaicas rivais e a destruição do Templo de Jerusalém (OVERMAN, 1997, p. 22). 14 No tempo de Jesus, além de inúmeras comunidades coesas de judeus (de língua grega ou aramaica) em várias cidades do Império Romano e da Babilônia, havia vários povos de origem israelita, os galileus, os samaritanos e os judeus, vivendo na Palestina sob diversos governantes indicados pelos romanos. Talvez a autoridade dirigente mais importante fosse o Templo e os sumos sacerdotes de Jerusalém. Mas, no tempo de Jesus, a Galileia não era governada diretamente pelos sumos sacerdotes do Templo, mas pelo filho de Herodes, Antipas. Em razão de histórias locais e regionais diferentes, os judeus, galileus e samaritanos tinham costumes e práticas um tanto diferentes, ao mesmo tempo em que compartilhavam uma história e tradição cultural israelita comum. Na época de Jesus, os povos da Palestina constituíam uma sociedade complexa, repleta de conflitos políticos, mais do que uma religião unitária (judaísmo) (HORSLEY, 2004, p. 16). 41 2 O EVANGELHO DE MATEUS E A COMUNIDADE MATEANA Para falar sobre a vida, obra, morte e ressurreição de Jesus o autor do Evangelho de Mateus, juntamente com sua comunidade, elaboram esse Evangelho. Trata-se de um projeto cuidadosamente preparado com a finalidade de apresenta-lo aos judeus cristãos e também a todos os que vierem a crer nele. Com a vinda do Messias, o reinado de paz seria instaurado, conforme a tradição deuteronomista. Como o reinado de Deus se tornaria uma realidade, destronando o império romano e a autoridade sacerdotal dominante em Israel por ocasião de sua missão? O Evangelho de Mateus contesta cada uma das pretensões imperiais de Roma a respeito da soberania divina, presença, ação e bem-estar social. O esquema apocalíptico do evangelho responde à questão: “a quem pertence a soberania do mundo”?15 Jesus, o ressuscitado manifesta sua autoridade total sobre céu e terra (Mt 28,19). O Reino de Deus [...] é manifestado parcialmente agora, em Jesus, exigindo lealdade humana (Mt 4, 17-22), submetendo pecado (1,21; 9.1-8), enfermidade e o reino de satanás (Mt 12, 28). O Reino de Deus, não o de Roma, durará para sempre (Mt 24-25) CARTER, 2002, p. 71). Quando esse Evangelho foi concluído fazia mais de cinquenta anos da morte e ressurreição de Jesus. Muitas coisas haviam acontecido; Jerusalém tinha sido destruída, em 70 d.C. o templo, e os sacerdotes haviam desaparecido. Os judeus estavam dispersos por todo vasto império. O redator desse Evangelho, juntamente com os seus colaboradores estavam fazendo memória da trajetória de Cristo. É provável que não houvessem testemunhas oculares, devido à distância e o tempo que separavam a comunidade de Mateus dos eventos relacionados à pessoa de Jesus. Neste capítulo serão tratadas questões relacionadas ao Evangelho de Mateus, à comunidade mateana, o contexto onde o Evangelho surgiu, a finalidade dos autores/redatores ao elaborar esse material. Os Evangelhos testemunham a relação existente entre os vários grupos, comunidades e movimentos existentes na sociedade judaica ao tempo de Jesus, e como estes grupos interpretaram a sua mensagem. Estamos enfim, em busca de um fio condutor, que nos ajude a compreender a interpretação que Mateus fará, algum tempo depois, em seu Evangelho, dos atos e dos ensinamentos de Jesus. Em qual desses movimentos, correntes, grupos, se encaixava Jesus e seu movimento? Responder a esta pergunta é fundamental para 15 Naturalmente essa soberania pertence a Deus e não a júpiter ou ao imperador (Mt. 11,25). 42 compreendermos a sua proposta para um judaísmo tão fragmentado e sectário de seu tempo. 2.1 Autoria e data da composição do Evangelho de Mateus A autoria do Evangelho de Mateus é incerta para a grande maioria dos autores. Alguns autores afirmam que esse Mateus que dá nome ao Evangelho, não é o mesmo discípulo que andou com Jesus (Mt 9,9). Alguns argumentos fortalecem essa afirmação: Mateus, o discípulo de Jesus não era um discípulo proeminente (CARTER, 2002, p. 33). Este autor argumenta que Mateus não foi testemunha de momentos importantes vividos por Jesus. Pedro, Tiago e João eram mais próximos e são citados mais amiúde estando com Jesus nos eventos importantes. A data provável da elaboração do Evangelho também fortalece o argumento da não autoria mateana pois enfraquece a possibilidade de testemunhas oculares, como seria o seu caso. Quem era, então o autor do Evangelho? Carter (2002, p 33) afirma que não é possível saber quem escreveu o evangelho de Mateus. Ele argumenta que o nome Mateus foi associado a este evangelho por Irineu, no segundo século. As razões? O significado do nome “Matheus” é “presente de Deus”, referindo-se à boa notícia do evangelho, como um presente de Deus. O nome Mateus, soa algo parecido à palavra discípulo, em grego (mathetés), que significa aprendiz. Este termo seria apropriado para o evangelho que procura treinar discípulos para viver uma existência alternativa (CARTER, 2002, p. 33). Há ainda outra corrente que defende a possibilidade de Mateus ter sido um importante líder para esta comunidade, no passado, ou talvez até a tenha fundado, por isso a homenagem a este ilustre líder (CARTER, 2002, p. 33). Para Storniolo, (1991, p. 8) a questão da autoria nos evangelhos é secundária, pois os autores, na verdade, são mais organizadores. Alguém que coletou e organizou esses documentos e lhes deu a forma que hoje temos. “O autor de Mateus é provavelmente um judeu, que, embora expulso da assembleia de sua cidade, ainda se identifica como membro da comunidade judaica e apoia a obediência à lei judaica [...] e acordo com a interpretação de Jesus” (SALDARINI, 2002, p. 42). Este autor tanto se considera judeu, como é considerado pelos outros como tal. Ele luta por sua interpretação da vida judaica. 43 “O autor deste evangelho, usa um estilo e processos de composição que o identificam. Estilo e processos semíticos, herdados de uma tradição preexistente e reinterpretado em nova redação”. (VV.AA. 2014, p. 21). O redator de nosso evangelho tomou sobre si a responsabilidade de autor. Mateus “faz uso frequente do Antigo Testamento” [...] demonstrando um grande conhecimento das Escrituras “se referindo a elas em pelo menos 130 passagens; destas, 43 são citações precisas” (VV.AA, 2014, p. 22). Suas citações da Escritura são feitas à moda judaica, respeitando às vezes até a letra dos textos. A feição semítica deste evangelho sempre chamou a atenção de seus leitores, tanto que sua atribuição a um apóstolo não apresentou dificuldade nos primeiros tempos. Este semitismo se deve certamente às fontes do evangelho das quais o autor é uma testemunha fiel que respeita suas propriedades linguísticas e suas formas originais (VV.AA, 2014, p 22). Para uma definição mais harmônica acerca da autoria dos evangelhos é preciso considerar vários fatores. Aspectos internos e externos são um importante referencial. O estilo, a língua, o grau de interpretação também o são. A história, ou os fatores externos contribuem para se compreender o contexto onde os textos são produzidos e interpretados. Nesse sentido, tanto os fatores acima, quanto a história e a geografia do evangelho de Mateus são relevantes para uma aproximação da real autoria desse evangelho. O Redator final do Evangelho de Mateus “usa um estilo e processos de composição que o identificam”. Expressões como “Reino dos Céus, meu Pai que está nos céus, cumprir a Lei, a Lei e os Profetas”, entre outras, são tipicamente palestinas [ ] e revelam um fundo semítico da narrativa. Também foram citados “processos literários como fenômenos de repetição, sumários, estribilhos, duplicados e sobretudo inclusão, isto é, repetição, no fim de um desenvolvimento, de uma palavra ou de uma fórmula típica que o introduziu. Os agrupamentos numéricos (2-3-7), muito frequentes, podem ter uma função mnemônica, mas têm, antes de tudo, um valor simbólico, muito apreciado pelos judeus” (VVAA, 2014, p. 21). Fica claro, pela narrativa de Mateus que este autor ou redator, está elaborando uma reação ao conflito enfrentado por certo grupo de judeu-cristãos. Em Mateus a terra de Jesus é a Galileia, uma região da Palestina que tinha também um valor simbólico: falava-se muitas vezes da “Galileia dos pagãos”, em tom pejorativo. Terra de trânsito de viajantes, a região tinha sofrido influência de várias procedências, e a fé dos galileus não era considerada pura pelos fariseus. O profeta Isaías tinha anunciado que seria de lá que Deus se manifestaria aos pagãos, no fim dos tempos (Is 8,23) (VV.AA. 2014, p. 23). 44 Mateus associa Galileia e Egito com o novo Êxodo. De volta do Egito Ele (Jesus) vai viver na Galileia, cujas fronteiras ele sempre atravessa em busca dos pagãos, apesar de deixar claro que seu ministério se restringe às “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10, 6). “É na Galileia que ele transmite seus ensinamentos mais importantes. Em duas importantes ocasiões Jesus deixa a Galileia: Para receber o batismo por João e para ir a Jerusalém, lugar onde seria crucificado” (VV.AA, 2014, pp.23-24). Mateus usa uma linguagem simbólica e espiritual para dar novo significado ao êxodo. Para ele Jesus é maior que Moisés. Moisés é uma das figuras mais importantes do judaísmo. Moisés morreu no deserto, não conheceu a Terra Prometida ou Santa; Jesus retornara à Galileia após a sua ressurreição, cumprindo assim o seu êxodo espiritual e ministerial. A Galileia agora será a terra da abertura para o mundo (VV.AA, 2014, p. 24). É de lá que Jesus irá enviar seus discípulos para fazer discípulos de todas as nações. (Mt. 10). Mateus reconta a história de Moisés, agora em Jesus, pois Ele é maior que Moisés. Todos estes aspectos, inclusive o teológico, são importantes para a definição da autoria desse evangelho. Embora não se tenha um consenso a esse respeito, o que fica claro é que ele era um judeu, que entendia bem as Escrituras, que exercia liderança e que estava determinado a apresentar o Cristo, como o enviado de Deus a todos os seus discípulos. A geografia de Mateus é teológica (VV.AA, 2014, p. 23). É na Galileia que Ele chama os seus seguidores. Estas referências à Galileia são significativas e demonstram que o Evangelho de Jesus é para os marginalizados e vis. Os Galileus não eram bem vistos pelos de Jerusalém, local da pureza religiosa. Na Galileia se misturavam judeus e gentios e era assim que Mateus queria ensinar aos seus discípulos: Que Jesus agora estava revelando a nova Justiça, não privilegiando apenas uma raça, mas a todas as etnias, desde que nele cressem. A data da composição, ou melhor, da finalização do projeto de Mateus, está situada entre os anos de 80 e 90 d.C. Assim como não existe nenhum manuscrito que indique o lugar de origem e o autor do evangelho, também nenhum manuscrito registra a sua data de composição. Vários critérios apontam para uma provável data nos anos 80 ou 90 do primeiro século (CARTER, 2002, p. 35). 45 Foi provavelmente de Antioquia, Síria, pelo ano 80 d.C., que Mateus escreveu seu Evangelho para as comunidades dispersas, nascidas na Palestina (STORNIOLO, 2013, p. 8). Os fatores que irão contribuir para se afirmar que o Evangelho de Mateus foi escrito entre os anos 80 e 90 d.C., são basicamente dois: primeiro a opinião da maioria dos estudiosos do Novo Testamento de que Mateus tenha se valido do Evangelho de Marcos16 para elaborar seu projeto. Segundo são as evidências internas que deixam transparecer que Jerusalém já havia sido destruída, juntamente com o Templo e suas instituições. Isto ocorreu em 70 d.C. 2.2 Como Mateus apresenta o Messias Mateus inicia o Evangelho mostrando a origem de Jesus: Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. De início se vê a preocupação de Mateus de demonstrar que este que ele apresenta é de fato o Messias, Ele preenche os requisitos legais e logo de início isso está sendo demonstrado. A sua descendência, vindo de Davi, confirma os oráculos do profeta Natã, em 2Sm 7,14-17, onde diz que o reinado de Davi seria eterno. Da mesma forma como filho de Abraão, o coloca como legítimo judeu, herdeiro do trono. Abraão representa o começo do povo de Deus. A sua aspiração mais profunda era ter uma terra e uma descendência. Deus lhe prometeu ser pai de um grande povo e possuir uma terra imensa (Gn 12). Isso não aconteceu com Abraão mas vai acontecer agora, com Jesus. Davi foi o líder popular que se tornou o rei justo. Mas ele pecou (2 Samuel). O verdadeiro líder popular e rei justo vai ser Jesus Cristo, que fará toda humanidade reconhecer e vier o caminho da justiça (STORNIOLO, 2013, p. 20). Na sua demonstração da veracidade de Cristo, ele o apresenta com o nome de Jesus, pois o profeta Isaías assim o disse que seria: “Ele será Jesus17; porque salvará o seu povo dos seus pecados” (Is 9,6). Em cumprimento às palavras do profeta... ele prossegue dizendo que o legítimo herdeiro do trono de Davi, será também chamado de Emanuel (Mt 1, 23) que quer dizer “Deus Conosco”. A entrada dos magos vindos do oriente? O que isto quer dizer? Ele seria reconhecido e respeitado pelos de longe, 16 O Evangelho de Mateus foi escrito alguns anos depois de Marcos, talvez uma década ou duas, quando o Evangelho de Marcos, provavelmente escrito em Roma, tinha chegado a ser conhecido pela comunidade de Mateus na Síria (CARTER, 2002, p. 35). 17 “Jesus” deriva do nome hebraico Josué, que vem da raiz verbal Ys’, que significa “salvar” (SALDARINI, 2000, p. 274). 46 pelos gentios. Ele estava sendo homenageado e reconhecido como rei dos judeus. Não pelos de casa, mas pelos de longe. O papel especial de Jesus em Mateus é transmitido pelo título Messias. Já em Paulo (anos 50 d.C.), Jesus é chamado de Jesus Cristo, não Jesus o Cristo. [...] Intérpretes cristãos atribuem com frequência ao judaísmo do século I a crença inequívoca em um Messias nacionalista, político e escatológico. Na realidade, nem todos os judeus acreditavam em uma vida após a morte ou um fim apocalíptico para o mundo. [...] Assim, no tempo de Jesus, as expectativas para a intervenção divina no fim do mundo variavam bastante (SALDARINI, 2000, p. 276). O local do seu nascimento estava previsto e Mateus tem o cuidado de explicar todos os detalhes, para que não ficassem dúvidas sobre a legitimidade daquele que ele estava apesentando como o legítimo Filho de Deus. Porque isso foi tão importante, tão necessário? Porque haviam muitos movimentos messiânicos, surgindo em várias partes, arrebanhando seguidores e criando expectativas no povo. O verdadeiro Messias precisava ser identificado em meio a tantos que surgiram. [...] o papel mais importante de Jesus em Mateus é o de “Filho de Deus”. A estranha nota no fim da genealogia, que Jesus é filho não de José, mas de Maria (Mt. 1,16), é imediatamente explicada na história do nascimento de Jesus (1,18-25). [...] embora a conclusão não seja declarada, é óbvio que Jesus, que não é filho de José, é o Filho de Deus. A intenção de Mateus é confirmada pelo uso frequente de “Filho de Deus” na narrativa (SALDARINI, 2000, p. 281). Qual a necessidade que Mateus teria de um trabalho tão minucioso? Porque este Evangelho foi tão relevante para a sua comunidade? O evangelho de Mateus representou para a sua comunidade e representa para nós hoje, a síntese de um programa muito bem elaborado pelo autor e redator final desse material, com a finalidade de apresentar o Cristo, como um mestre extraordinário, também. Na apresentação de Mateus, Jesus é um judeu praticante que, por palavras e exemplo, ensina os outros a observar a vontade e a Lei de Deus. Jesus fala como mestre competente. [...] os ensinamentos de Jesus e a pessoa do mestre são inseparáveis na narrativa. A autoridade de jesus não é a d um douto escriba ou fariseu, nem a de um rabino tardio. Sua autoridade na vem diretamente de Deus e é sancionada de forma apocalíptica (SALDARINI, 2000, p. 288-290) Mateus apesenta Jesus, ainda como quem exerce com amor, atividade da cura. Além da proclamação do Reino fazia parte de suas atividades curar todo tipo de enfermidade; e eram muitos os doentes e possessos (Mt 4,23; 9,35). Jesus segue 47 proclamando, ensinando, curando, libertando, ressuscitando os mortos. “Finalmente, Jesus cura os cegos e os coxos no Templo (Mt. 21,14), o que provoca a oposição das autoridades do Templo” (SALDARINI, 2000, p. 293). Ainda outros papéis e títulos foram atribuídos a Jesus em Mateus como forma de apresentação. Mateus resgata das tradições bíblicas esses papéis e títulos com o fim de dar credibilidade e consistência aos seus relatos: o novo Moisés, a Sabedoria personificada, profeta, o filho do homem, senhor, senhor e mestre, Jesus crucificado e Jesus ressuscitado18. Importante ressaltar que todos esses títulos, nomes e atividades de Jesus fazem parte da tradição judaica e são perfeitamente compreendidos pelos judeucristãos do século I. A apresentação de Jesus, como o enviado de Deus, faz parte do projeto de Mateus e isso torna seu Evangelho um tanto diferente dos outros, pois ele se empenha em fazer uma boa apresentação de Jesus. Ele usa todos os recursos da tradição. 2.3 Grupos, Comunidades e Movimentos Judaicos no Novo Testamento Como já dissemos Mateus se utiliza da tradição judaica para fazer a apresentação de Jesus aos membros de sua comunidade (Mt 1,1;18-25; 2,1-23; 3,117;). Estas tradições estavam disseminadas nas várias correntes e movimentos messiânicos que se formaram após o exílio babilônico. O surgimento dessas correntes se deve, principalmente à tentativa de explicar os acontecimentos que sobrevieram ao povo de Israel. O judaísmo que se formou após Esdras e Neemias foi um judaísmo fragmentado e com fortes tendências ao sectarismo. Este foi um período de luta por independência política e identidade religiosa em Israel e dessa busca surgiram várias 18 Jesus é associado a Moisés, o Êxodo e ao próprio Israel nas histórias introdutórias e em toda a narrativa. Jesus é um profeta como Moisés (Mt 17, 4-5; Dt 18,15). A sabedoria e os sábios só são mencionados em algumas passagens de Mateus (sabedoria em 11,19; 12,42; 13,54; sábios em 11,25; 23,34). Mateus valoriza bastante o testemunho dos profetas [...], mas nunca se refere a Jesus como profeta. As pessoas são descritas dizendo que Jesus é João Batista, Elias, Jeremias, ou um dos profetas (Mt 16,14). O título “senhor” é usado em Mateus para Deus e Jesus em relação as outras personagens narrativas. [...] alguns dos usos evangélicos de “Filho de Homem” para Jesus subordinamse à figura régia celestial em Daniel, descrita como “um como Filho de Homem” (Dn 7,13; Mc 14,62; Mt 26,64. No início do Evangelho, Jesus é apresentado como Cristo, filho de Davi, salvador e “Deus está conosco”. A morte paradoxal e irônica de Jesus na cruz, morte que não é um fim, mas uma realização de tudo aquilo que foi prometido no início, une os encadeamentos temáticos elaborados do começo ao fim da narrativa (SALDARINI, 2000, pp. 311-312). 48 correntes, grupos e movimentos tentando explicar a vida, a morte, o culto, Deus, os anjos, o demônio, o futuro e até mesmo o próprio judaísmo. Ao longo do período de 165 a.C. a 100 d.C., a liderança, ou corpo principal, foi mudando. Não era, de forma alguma, um grupo fixo. Tanto os que estavam no poder como os que se sentiam oprimidos e alienados mudavam com frequência durante esse período. Nesse espaço de tempo, essas seitas ou facções estavam competindo por controle e influência na sociedade judaica. A consciência da facciosidade característica desse período volátil da história de Israel é crucial para um entendimento adequado dos judaísmos formativo e de Mateus (OVERMAN, 1997, p. 220). Essas correntes são também uma tentativa de responder aos prováveis questionamentos por parte da população judaica que alimentava uma visão religiosa muito aprimorada, em relação às culturas com as quais estiveram próximos nos últimos anos, com conceitos bem definidos e expectativas futuras alimentadas pelos profetas e intérpretes das Escrituras, ou seja, possivelmente surgiram de uma corrente tradicional, fiel às leis dos pais. Ao se depararem com uma realidade adversa e ao que parecia, cada vez mais ficava distante a realidade sonhada, parte da sociedade reage tentando explicar, justificar, entender e esperar. Outro fator importante relacionado às correntes, movimentos e grupos judaicos é o fato de eles contribuírem com uma teologia muito importante para o judaísmo de seu tempo. Muito foi dito e penado nesse período. E isso se tornará um material consistente na elaboração dos Evangelhos. A chegada do Reino de Deus e do Messias era uma esperança alimentada pela profecia escatológica nesse período. Israel inteiro se perguntava se não havia chegado o tempo de Deus agir e libertar o seu povo. Mateus traz para a sua comunidade uma interpretação de tudo que foi dito, escrito, vivido e esperado em relação ao Messias na tradição judaica. Ele apresenta Jesus como aquele que era esperado, como a intervenção de Deus na história de seu povo. 2.3.1 Essênios Grupos e comunidades como os essênios, os fariseus, os saduceus, os zelotas, os sicários, são alguns que serão mencionados, além do próprio movimento de Jesus. A comunidade dos essênios é um dos frutos desse período. Este grupo é originário dos círculos dos assideus (de onde provavelmente surgiram os fariseus). O protesto 49 dos assideus contra a helenização do culto em Jerusalém pode ter provocado a revolta dos camponeses macabeus. “A teologia da comunidade reflete os conceitos apocalípticos do período helenístico, especialmente dos assideus. Daniel é um dos livros copiados várias vezes, pelos essênios (KOESTER, 2015, p. 238). Está cada vez mais claro que o grupo conhecido em fontes antigas como essênios era o mesmo da comunidade utópica que viveu no deserto de Qumrã, onde foram recentemente encontrados os sus escritos, os manuscritos do mar morto. Talvez a explicação mais satisfatória para a origem da comunidade de Qumrã seja a de que, em reação direta à assunção ilegítima do sumo sacerdócio pelos asmoneus, numerosos hassidim se retiraram para o deserto junto ao mar morto, a fim de continuar sua disciplinada preparação para o advento do reino de Deus (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 38). A interpretação escritural do grupo dos essênios não é alegórica, mas escatológica; cujos esquemas são estritamente dualistas como: bem e mal, luz e trevas, Deus e belial, o espírito da verdade e o espírito da falsidade, terra e céu, as gerações dos filhos das trevas e dos filhos da luz foram predeterminadas por Deus (KOESTER, 2005, p. 238). Esta comunidade ainda relata uma luta cósmica entre os espíritos do bem e os do mal, que ocorre tanto na terra quanto nos céus. Os essênios aguardavam várias figuras messiânicas, devidamente autorizadas, Ou seja, “ungidas”, como o profeta escatológico, o rei messiânico da casa de Davi e o sacerdote messiânico da casa de Aarão. Entre as várias figuras messiânicas, a posição mais elevada pertence ao sacerdote ungido, que tem precedência sobre o rei ungido. Associado com essa visão especial do futuro está o conhecimento dos anjos, dos espíritos e dos demônios; a atividade desses seres tem relação com as aspirações e ações dos seres humanos, tanto as dos eleitos como as dos maus. Os anjos estão divididos em dois exércitos hostis, liderados pelo príncipe da luz ou pelo espírito da verdade em oposição ao anjo das trevas (belial) e suas hostis. Belial é o inimigo de Deus e também o tentador da raça humana (KOESTER, 2015, p. 238-239). O grupo dos essênios tinha a Lei como valor absoluto e esta era interpretada pelo Mestre da Justiça. Este Mestre da Justiça não estava entre as figuras messiânicas. Davam muito valor às abluções de purificação; o ideal de pobreza e partilha vivido entre eles junto com uma vida pura faria apressar o Reino de Deus que exterminaria os maus. Eles consideravam o templo e o sacerdócio impuros. Esperavam um Messias legislador e sacerdote que viria restaurar e purificar a Lei, o Templo e o Sacerdócio. A grande massa, o povo, era considerada maldita e impura 50 por não conhecer e observar a Lei. Entre eles havia os anawim, os pobres de Javé, que esperavam uma intervenção de Javé, o Deus dos pequenos. Esperavam um Messias para resolver seus problemas. Os essênios desapareceram da história depois que os romanos destruíram Qumrã. A escola farisaica, que liderou a reconstrução da comunidade judaica depois da destruição de Jerusalém, não aceitava seus ensinamentos específicos. Mas o judaísmo farisaico, e o cristianismo em grau ainda maior, incorporaram muitos elementos das expectativas apocalípticas que os essênios, na tradição dos assideus, haviam cultivado e desenvolvido 19 (KOESTER, 2005, p. 239). Horsley e Hanson (2015, p. 40-41) comentam que, apesar de os essênios estarem ligados, na sua formação, aos fariseus, nem todos os fariseus se tornaram essênios. Alguns fariseus podem ter preferido atuar “numa reação um pouco diferente à consolidação do poder político e religioso dos asmoneus”. Podem ter formado um grupo, ou associação político-religiosa com a finalidade de fazer com a lei mosaica fosse aplicada na sociedade judaica de forma mais efetiva. Isso explica porque os fariseus são encontrados em confronto com os judeu-cristãos membros da comunidade mateana, tempos após. 2.3.2 Saduceus Os saduceus20, pertencentes à nobreza, eram a classe sacerdotal, que à época de Jesus eram nomeados pelos governadores. Os sumos sacerdotes eram os líderes do povo. Foram eles os responsáveis pelo julgamento e morte de Jesus. “Os Saduceus pertenciam à classe alta sacerdotal e leiga; eram grandes comerciantes; controlavam as riquezas do templo; eram aliados dos romanos para manterem privilégios” (FERREIRA, 2012, pp.115-116). 19 Da mesma forma que a comunidade de Qumrã, o cristianismo primitivo considera-se o povo de Deus dos últimos tempos, os pobres e santos, aos quais se referem as promessas das Escrituras. [] Todavia não se espera mais, como em Qumrã, a salvação no futuro, pois ela já foi revelada na missão de Jesus. Ao professar Jesus como o Messias crucificado e ressuscitado, a comunidade cristã aplicava a ele os diversos títulos de autoridade formados pelo judaísmo como expressão de sua esperança no tempo da salvação messiânica. Enquanto em Qumrã se esperavam o profeta, o rei messiânico e o sacerdote messiânico, os cristãos conheciam um único Ungido de Deus, que não era somente o Rei-Messias, mas também o profeta de Deus e o sacerdote de seu povo (LOHSE, 2000, p.103-104). 20 Certamente, a designação de saduceus, deve estar ligada ao nome de Sadoc, outrora sumo sacerdote, sob o rei Salomão (1 Rs 2,35). Os sacerdotes o consideravam seu antepassado e, portanto, eram descendentes dele. No projeto futuro de Israel, do país e do santuário, desenhado em Ez 40-48, confia-se aos filhos de Sadoc o serviço sacerdotal (Ez 40-46; 43,19; 44,15; 48,11). Mais tarde os sadoquitas desempenharam um papel determinante na reconstrução da comunidade pós-exílica. Como eram os sacerdotes legítimos exerceram o serviço do Templo em Jerusalém (LOHSE, 2000, p.67). 51 Se os saduceus provinham da classe governante, como o diz Josefo, provavelmente não eram um grupo de protesto, em sentido próprio, mas um pequeno grupo com ideias particulares sobre como algumas partes da vida judaica deveriam ser vividas, e com crenças específicas ao lado de outras práticas (SALDARINI, 2005, p. 308). Os saduceus interpretavam a Lei ao pé da letra, e não atribuíam o mesmo valor à tradição oral. Entre os saduceus havia também alguns escribas dedicados ao estudo e à interpretação da Lei (LOHSE, 2000, p. 68). Os saduceus desapareceram como grupo na destruição de Jerusalém em 70 d.C. Os saduceus, bem como outros grupos, como pensadores e líderes, devem ser vistos como parte da sociedade judaica palestinense, [...] situados e descritos em conexão com outros líderes judaicos e movimentos sociais de 200 a.C. a 100 d.C. (SALDARINI, 2005, p 16). Os Saduceus tinham uma rígida observância da Lei de Moisés; aceitavam somente o Pentateuco, como livro sagrado, pois acreditavam no Reino de Deus aqui na terra. Desprezavam o povo e o consideravam impuro; esperavam um Messias que restaurasse a monarquia de Davi. Negavam a existência de anjo e espíritos (At 23,8), e acreditavam que recompensas e castigos ocorrem somente aqui na terra (KOESTER, 2015, p. 231). Não acreditavam na ressurreição (Mc 12, 18ss). 2.3.3 Fariseus O nome” fariseus” deriva muito provavelmente do hebraico p’erushim ou do aramaico p’ erishajja, os separados (LOHSE, 2000, p. 69). Os fariseus pertenciam à classe média, em geral, eram artesãos. Eles suportavam os romanos e diziam que era uma purificação. Este grupo, ou partido, tem particular importância para nossa pesquisa a respeito do Evangelho de Mateus, pois os veremos relatados por Mateus de forma muito próximo aos membros da comunidade mateana, e especialmente em confronto com os mesmos. No que se refere a certas convicções dos fariseus, como por exemplo, a fé na ressurreição, no juízo e nos anjos, é possível ver nelas não só a influência apocalíptica, mas também a abertura dos fariseus para correntes religiosas novas. Isto indica que os fariseus foram antes um movimento reformista do que conservador. Eles não constituíam apenas um grupo com o objetivo concreto e restrito, mas a organização voluntária e cooperativa, existente há muito tempo e bem interligada, que procurava exercer influência na sociedade judaica e estabelecia relações mútuas para atingir os seus propósitos (STEGEMANN e STEGEMANN, 2004, p.184) 52 Em algum momento da trajetória dos fariseus, eles tiveram muita influência política, especialmente no período de Alexandra Janeu21. Porém, o fato de que os fariseus competiam com outros grupos é atestado pelas circunstâncias de terem perdido as boas graças de Hircano, quando decidiu mudar para o partido dos saduceus (OVERMAN, 1997, p. 27). O governo de Herodes (de 37 a 4 a.C.) acabara efetivamente com qualquer participação real do povo judeu no processo político normal. Os fariseus assim, tornaram-se menos um partido político que uma associação solta de irmandades religiosas (HORSLEY E HANSON, 2015, p 45-46). A partir de então eles tentam influenciar a vida social através de preceitos e do exemplo, mas já sem nenhuma função ou autoridade política, com exceção de alguma representação no Sinédrio, mas com poderes ainda mais reduzidos. Este fato levou-os para distante dos camponeses e os colocou como classe em busca de coesão e afirmação22. Algumas crenças e esperanças messiânicas dos fariseus revelam que eles tinham um ideal muito alto da observância da Lei e queriam impor isso ao povo. Detentores do saber, legalistas e conservadores, acreditavam que a salvação podia ser alcançada pela rígida observância da Lei que faria acontecer o Reino de Deus; esperavam um Messias legislador que restaurasse a Lei. Até a destruição de Jerusalém, os fariseus possuíam uma importante influência no Sinédrio (At 5,34-40; 23,6-8). Quando cresceu o ódio do povo contra o domínio dos romanos, a ponto de levá-lo à revolta armada, os fariseus não mais conseguiram impedir o desastre. Muitos se juntaram aos insurretos, outros se contiveram. Embora vários fariseus tenham morrido na guerra, muitos sobreviveram à catástrofe. Por isso, o movimento farisaico conseguiu influenciar decididamente o caráter espiritual das sinagogas após 70 d.C., levando sua própria doutrina ao reconhecimento (LOHSE, 2000, p. 75). A teia da sociedade era composta por redes de relacionamento. Grupos judaicos voluntários, como os fariseus e os saduceus, podem ser melhor compreendidos como escolas de pensamento (SALDARINI, 2005, pp. 88,89). “Ela permitiu que os fariseus fizessem tudo. Restaurou as práticas que os fariseus haviam introduzido, de acordo com as tradições dos antepassados, e que seu sogro Hircano abolira” (OVERMAN, 1997, p. 25). 22 Se durante os reinados de alguns asmoneus estiveram mais próximos dos camponeses, agora tendiam a voltar-se para as suas próprias irmandades e escolas de interpretação religiosa legal (tendência que provavelmente continuou no período pós-herodiano do domínio romano direto) (HORSLEY E HANSON, 2015, 45). 21 53 2.3.4 Zelotas e sicários Além dos saduceus, fariseus, outros grupos mais se formaram como os zelotas23. Também conhecidos como a quarta filosofia24. Recrutavam adeptos entre os povos. Para eles os romanos eram impuros e invasores. Organizavam-se em guerrilha para expulsá-los. Esse grupo formava uma resistência armada contra os romanos. No governo de Antonio Félix (52-60 d.C.), de Pórcio Festo (60-62 d.C.) e de Albino (62-64 d.C.), os zelotas iniciaram ações de guerrilha a partir das estepes e dos montes da Judeia. Alcançaram alguns sucessos e ganharam o apoio sempre maior da população. Preocupados com as disputas internas pelo poder, nem os saduceus nem os romanos conseguiram reprimir este movimento (GALLAZZI, 2012, p. 19). Este grupo promoveu mudanças relativas ao templo e seu funcionamento, tendo afastado as famílias sacerdotais por considerarem-nas ilegítimas e elegeram ocupantes ao cargo de sumo sacerdotes descendentes legítimos de Sadoc. “O grupo, ou pelo menos a sua liderança, era composto de intelectuais que articulavam uma motivação políticorreligiosa coerente da sua posição (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 168). A sua defesa da resistência estava fundamentada em quatro ideias básicas, cooperar com a tributação implicava escravidão a Roma. O povo judeu devia lutar pela sua libertação. 2) A consideração do tributo como escravidão estava enraizada na fé judaica de que o povo (Israel), havia sido chamado a viver exclusivamente sob o governo de Deus. 3) Um dos princípios farisaicos compartilhados pela Quarta Filosofia era a crença no “sinergismo” com Deus. 4) A indomável paixão pela liberdade da Quarta Filosofia parece ter sido inspirada por certa orientação escatológica (HORSLEY e HANSON, 2015, pp. 168-169). Havia um grupo radical chamado de sicários25, pois usavam um punhal (sica) e nas festas e aglomerações matavam romanos e aliados a eles. Talvez por serem 23 A antiga fortaleza de Massada, onde supostamente o último bando restante dos zelotas, como movimento resistiu heroicamente ao cerco romano, finalmente cometendo suicídio em massa para não se render aos conquistadores estrangeiros, tornou-se um símbolo da convocação para Isael moderno: “Massada nunca mais cairá” (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 9). 24 Como o conceito sintético de “zelotas” gerou tanta confusão no estudo da sociedade judaica do século I d.C., será útil esclarecer os dois “zelosos” grupos antirromanos e anti-“establishment” que não eram movimentos de camponeses, isto é, a Quarta Filosofia e os sicários (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 166). 25 A primeira vez que se fala dos sicários operando em Jerusalém é na década de 50, isto é, meio século depois. Como a Quarta Filosofia antes deles, os sicários eram provavelmente um grupo de mestres, tanto no tocante à composição dos seus membros quanto à sua liderança (HORSLEY e HANSON, 2015, pp. 173, 175) 54 mestres e devido à sua consciência crítica da dominação romana, e de oposição a ela, os sicários tinham uma percepção mais aguda que os outros da situação intolerável que se tinha desenvolvido (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 176). A estratégia dos sicários visava à elite dominante judaica colaboracionista: [...] A maneira óbvia de opor-se ao sistema estabelecido era atacar os colaboradores que o mantinham. Através de ataques terroristas a tais pessoas, os sicários podiam não só causar uma intensa ansiedade entre os círculos dominantes, mas ainda demonstrar a vulnerabilidade do regime estabelecido, tanto aos opressores quanto aos oprimidos (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 177). Para os zelotas, Jesus era um judeu infiel porque tratava com amizade os cobradores de impostos (Mc 2,14-17; Mt 10,3;21,31-32; Lc 15,1; 18,10-14), pagava o imposto, e porque não permitia a violência contra os samaritanos (Lc 9,51-56) (MORACHO, 1994, p. 112). 2.4 Movimentos Populares e Proféticos e o Movimento de Jesus O grupo dos essênios, saduceus, fariseus, zelotas e sicários representam uma parte da resistência judaica, mas não toda. A resistência proveniente dos grupos populares é digna de nota. É de lá que sairá o movimento de Jesus, bem como o movimento de renovação proposto por Mateus. Estudos anteriores compararam Jesus e seus seguidores apenas a um “judaísmo sectário” abstrato, particularmente aos fariseus supostamente normativos e, desde a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto em 1947, aos essênios ou à comunidade de Qumrã. Para ele esses são pertencentes aos grupos letrados, e dificilmente representavam o povo comum. Jesus e seu movimento, recentemente tem sido comparado aos movimentos populares (HORSLEY, 2012, pp. 158-159). Os líderes e movimentos populares podem ter certas implicações para a nossa compreensão de Jesus de Nazaré e da igreja primitiva. Horsley e Hanson (2015, p. 215), afirmam que o debate sobre “Jesus e os zelotas”, está historicamente mal fundamentado e equivocado. A discussão deve considerar a ação violenta ou não violenta por parte dos grupos26. A tentativa de 26 A ação dos grupos dominantes era quase sempre violenta, manifesta nas próprias condições que deram origem aos vários tipos de movimentos. Os romanos conquistaram e continuaram seu controle por meios violentos, incluindo intimidação e terror. Herodes manteve a segurança por meio de violência repressiva. Os sumos sacerdotes saqueavam e torturavam o seu próprio povo. (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 215). 55 associar o movimento de Jesus aos zelotas também está equivocada, pois os zelotas propriamente dito só surgiram como um grupo quase quarenta anos depois da vinda de Jesus, ou seja, quando as tradições dos evangelhos tinham assumido forma e já quase no tempo em que foi escrito o primeiro evangelho, o de Marcos (70, d.C.). O estudo do banditismo social judaico pode lançar alguma luz sobre a maneira como Jesus foi preso (como um salteador, Mc 14,48) e a cena da crucificação, em que Jesus foi crucificado com dois salteadores (não ladrões, Mc 15, 27). Mais importante que isso a cena do banditismo ilustra as condições de desintegração social em que as palavras e as ações de Jesus encontraram eco. A frequente ocorrência de grupos populares com as formas particulares de movimentos messiânicos e proféticos têm muito mais importância para o estudo de Jesus e do primitivo cristianismo palestinense (HORSLEY e HANSON, 2015, p, 218). São ainda mencionadas as ocorrências de reis populares27 e de profetas oraculares e rústicos como parte da sociedade palestinense. Estes movimentos ocorreram em um período da história judaica em que aparentemente estava bastante difundido o espírito apocalíptico, pelo menos em época de tensão e de conflito. “A prova de que houve uma onda de iminente expectativa escatológica na sociedade em geral vem principalmente da literatura apocalíptica28 e dos evangelhos cristãos” (HORSLEY e HANSON, 2015, p 212). No decorrer de sua história, caracterizada por muitas vicissitudes, guerras e momentos de necessidade, a pergunta que cada vez mais afligiu o judaísmo foi: quando Deus, de fato, cumpriria suas promessas? Como as promessas salvíficas se encontravam em visível contradição com o presente, repleto de sofrimento e tristeza, a esperança dos piedosos não se voltou para os acontecimentos intra-históricos, mas para a futura transformação do mundo, pela qual tudo deveria ser mudado. Dessa expectativa fala a literatura apocalíptica que surgiu entre o início do século II a.C. até p começo do século II d.C. (LOHSE, 2000, p. 49). O banditismo na Palestina judaica e os movimentos proféticos populares foram provavelmente “pré-políticos”. O Banditismo foi um protesto sério, mas não revolucionário. Ao contrário do simples banditismo, os movimentos proféticos eram animados por uma esperança, quando não por um programa efetivo, de liberdade da sua sociedade (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 213). 27 Tanto antes como depois de Jesus de Nazaré, houve diversos líderes populares judeus, quase todos oriundos dentre os camponeses, que, nas palavras de Josefo, “reivindicaram a realeza”, “usaram o diadema real” ou foram “proclamados reis” pelos seus seguidores (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 89) 28 O tipo de movimento mais claramente enquadrado numa mentalidade apocalíptica foi o dos movimentos proféticos populares. Esses profetas e seus seguidores concebiam a solução da sua situação intolerável em termos de uma repetição nova, escatológica, de um dos grandes atos históricos de libertação (HORSLEY e HANSON, 2015, p. 213). 56 Os mais notórios de todos os protestos promovidos pelos habitantes da Judeia e da Galileia aconteceram imediatamente antes e depois da missão de Jesus de Nazaré. Judeus e Galileus organizaram demonstrações gigantescas, disciplinadas e não-violentas contra a provocação romana. Em ambos os casos o povo subjugado da Palestina demonstrou sua disposição de sofrer e morrer para defender seu modo de vida tradicional, especialmente o princípio da aliança mosaica de fidelidade exclusiva ao seu Deus (HORSLEY, 2004, p. 53). Em comparação com os movimentos proféticos29, os profetas oraculares e os movimentos messiânicos foram politicamente mais conscientes. Mais que os movimentos proféticos, e muito mais que o banditismo, os movimentos messiânicos tinham uma clara consciência política (HORSLEY e HANSON, 1995, p. 214). Os dois tipos de profetas populares oferecem sem dúvida o material comparativo potencialmente mais frutífero para o estudo de aspectos da vida de Jesus. A julgar pelos primeiros estratos das tradições dos evangelhos cristãos, Jesus apresenta mais semelhança com essas figuras proféticas que com os reis populares. Por exemplo, a lamentação de Jesus sobre Jerusalém (Lc 13,34-35 e par.) e outros soam muito semelhantes ao oráculo de condenação pronunciado por Jesus, filho de Ananias. De maneira geral, as tradições dos evangelhos associam Jesus e João Batista (HORSLEY E HANSON, 1995, p. 218). Considerando a classificação das ações desses grupos e movimentos como violentas e não violentas, pode-se dizer que o grupo de Jesus e o dos fariseus estão entre os grupos de ações não violentas. Sendo o grupo de Jesus um grupo profético, visto posteriormente como messiânico e escatológico. Pode-se dizer, também, que as tentativas de associar o movimento de Jesus a um dos grupos já conhecidos não encontram respaldo, pois o grupo de Jesus é simplesmente o grupo de Jesus. Embora com características semelhantes aos demais, todavia, tendo sua própria peculiaridade. A análise de fatores mostrou: o movimento de Jesus surgiu em meio a uma profunda crise da sociedade judaico palestinense. Se ele fosse apenas um reflexo das circunstâncias sociais, já estaria dito tudo com a análise das suas condicionantes sociais, e uma análise específica de funções seria desnecessária. Partimos, portanto, do pressuposto de que o movimento de Jesus não apenas se originou de uma crise da sociedade, mas articulou uma resposta a esta crise que não pode ser inferida sociologicamente (THEISSEN, 1997, p. 80) 29 De fato, durante o século I da era cristã a memória dos antigos movimentos proféticos de libertação inspirava novos movimentos proféticos, e o profetismo oracular tradicional havia revivido entre o povo (HORSLEY E HANSON, 2015, p. 144). 57 O líder camponês Galileu, Jesus de Nazaré, terá dado uma primeira expressão a uma corrente de renovação religioso-social das sagradas tradições judaicas da aliança, que encontra expressão semelhante entre os camponeses judeus numa situação de crise posterior30. O que é distintivo sobre a representação da tradição do Evangelho do ensinamento de Jesus não é um individualismo itinerante radical, mas a renovação ou revitalização da comunidade local (e do casamento/família; por ex: Mc 10, 1-45: Lc/Q 6,20-49; 22,28-30). As tradições evangélicas de Jesus simplesmente não se adaptam a uma situação de desaparecimento da vida comunitária tradicional (na forma social básica, a aldeia) em que um estilo de vida individual radical era uma alternativa viável. Elas antes se adaptam a uma situação em que o modo de vida da aliança tradicional baseado na reciprocidade nas comunidades camponesas estava ameaçado, de modo que os camponeses galileus responderam à tentativa de Jesus de uma renovação da cooperação e reciprocidade da aliança mosaica (HORSLEY, 2012, p. 160). Theissen (1997, pp. 11, 33) afirma que o movimento de Jesus31 era um fenômeno palestinense com irradiação para as regiões sírias adjacentes. Este movimento veio a constituir o cristianismo judaico autônomo após 70 d.C. O Movimento de Jesus conviveu e competiu com outros movimentos de renovação intrajudaicos. É um movimento popular e profético. “São fatores sócio econômicos que determinam as características predominantes do movimento de Jesus que é o “desenraizamento social dos carismáticos itinerantes” entendido como [...] ruptura mais ou menos forte com normas usuais” (THEISSEN, 1997, p. 33). Tão importante quanto o estudo sobre o movimento de Jesus é o estudo sobre sua identidade judaica, pois “os discursos sobre o judaísmo de Jesus estão cunhados pelo fato de terem, duas possíveis grandezas referencias: sua pertença ao povo judeu, e o seu posicionamento em relação às convicções do judaísmo” (STEGEMANN, 2012, p. 230). A questão é a identidade de Jesus como Galileu e não como um Judeu. Os Galileus não eram considerados puros, “legítimos” pelos Judeus. 30 Muitos movimentos e revoltas contra a dominação imperial romana assumiram formas sociais típicas da tradição e sociedade israelitas, formas sociais muito sugestivas por suas semelhanças com temas importantes na pregação e prática de Jesus (HORSLEY, 2004, p. 55). 31 Jesus e seu movimento emergiram no final de uma série de situações que exerceram profundo impacto sobre a vida na Galileia. Ao longo de sucessivas gerações, a Galileia foi incorporada ao estadotemplo pelo sumo sacerdócio asmoneu, invadida repetidamente pelos exércitos romanos, subjugada por Herodes e finalmente governada por Antipas, que reconstruiu duas cidades para seu regime diretamente na Galileia (HORSLEY, 2000, p. 157). 58 Jesus e os primeiros integrantes do seu movimento, naturais de aldeias como Nazaré, Cafarnaum e Corazim, deviam ter suas raízes profundamente firmes nas tradições israelitas. Não há base, portanto, em evidência para a identidade dos galileus ou nos primeiros estratos da tradição evangélica, para a afirmação de que Jesus e/ou seu movimento, nas três ou quatro décadas estava de algum modo invocando julgamento contra (todo) Israel ou judaísmo. Pelo contrário estavam envolvidos com a renovação de Israel (HORSLEY, 2012, p. 161). As diferenças regionais entre a Galileia e Jerusalém compunham as diferenças de classe entre as comunidades camponesas e os grupos dirigentes, tanto das famílias sumo sacerdotais como dos reis herodianos32. O campo era tão habitado que toda a terra era cultivada. As repetidas ocorrências de guerras significavam para os camponeses pesadas taxas de tributos. Tanto os romanos quanto os sacerdotes exigiam altas taxas dos camponeses (STAMBAUGH, 2008, p. 92). A principal razão por que os galileus e os judeus perseveraram tão persistentemente sua revolta contra o domínio imperial romano foi a robustez do espírito de resistência ao domínio estrangeiro opressor entranhado na tradição israelita (HORSEY, 2004, p. 53). 2.5 Como Mateus situa os Fariseus no contexto de Classe e Status em Israel Os autores dos evangelhos entreteceram os oponentes de Jesus em uma narrativa dramática que é norteada por seus objetivos ao escreverem o relato. Todos os evangelhos atacam os oponentes de Jesus, que incluem quase todos os líderes judeus que aparecem na narrativa (SALDARINI, 2005, p. 157). Como os evangelhos datam de uma época posterior ao evento Jesus, os evangelistas irão dar sua visão da sociedade da época de acordo com suas realidades. Estas realidades refletem, de certa forma, na compreensão da sociedade do primeiro século, e nas relações de Jesus com os chefes judeus. Mateus reconta a história de Jesus com base no Evangelho de Marcos, de forma ampliada, de Lucas e em outras fontes, como a fonte (Quelle), que são os ditos de Jesus. 32 A face que o domínio imperial romano apresentava na Palestina era a dos seus governantes dependentes, o “tetrarca” herodiano Antipas, na Galileia; e, na Judeia, os sumos sacerdotes instalados no Templo de Jerusalém. O Templo e o sumo sacerdócio eram também tradicionalmente as instituições que governavam Israel. Um programa profético de julgamento divino da ordem imperial para promover a renovação do povo de Israel teria de concentrar-se em primeiro lugar nos governantes dependentes romanos de Israel, o sumo sacerdócio baseado no Templo (HORSLEY, 2004, p. 92). 59 Os evangelistas usaram o produto de suas pesquisas e elaboraram um projeto condizente com as necessidades de suas comunidades. Nesse projeto os personagens não são fiéis às suas realidades históricas. Os evangelistas estão mais preocupados com o método e com a finalidade do que com a fidelidade dos dados. Assim, os fariseus são apresentados em Mateus de forma diferente de Marcos e Lucas. A coalizão das lideranças, mencionada pelos evangelistas, também vai variar de evangelho para evangelho. Mateus vê tanto os fariseus quanto os escribas como classes instruídas por excelência. Ele os situa tanto na Galileia, quanto na Judéia. Ele os coloca o mais das vezes agindo ao lado dos escribas (SALDARINI, 2005. p. 183). Os escribas aparecem em Jerusalém junto aos chefes dos sacerdotes, embora menos frequentemente do que em Marcos. “Na Galileia, tal como em Marcos, eles são menos regulares e menos poderosos membros da liderança do judaísmo do que os fariseus” (SALDARINI, 2005, p. 184). “Escribas e fariseus parecem ser membros da classe dos servidores que auxiliava a classe governante da nação, que possuíam riqueza e poder político direto” (SALDARINI, 2005, p. 184). Constantemente os fariseus são descritos como aliados da classe política e outros grupos a fim de promover seu próprio programa para o judaísmo. Mateus os coloca como influentes líderes na chefia do povoado local na Galileia, num nível intermediário entre a classe governante e o povo e são vistos frequentemente intercedendo por eles (SALDARINI, 2005, p. 184). Alguns fariseus faziam parte da classe governante e do sinédrio e, às vezes, os gozavam de uma base de poder parcialmente independente mediante sua influência junto ao povo. Não se sabe muito acerca dos fariseus nesse período. Questões como: quem os sustentava? Eram funcionários de alguma instituição pública? Como eles viviam?33 “Os fariseus, escribas e saduceus devem ser compreendidos como parte da sociedade judaica palestinense e da antiga sociedade” (SALDARINI, 2005, p. 47). O que fica mais claro em Mateus é a teologia deles. Eles deixam transparecer o seu programa para a liderança do judaísmo e Mateus rebate-os em todo tempo, pois eles ignoram a pessoa do Cristo. 33 Os fariseus, conforme descritos em Josefo, ajustam-se quase prontamente à classe dos servidores. Todavia, carecemos de um indício crucial no que diz respeito ao lugar deles na sociedade, a fonte de seu sustento econômico. Nem Josefo, nem os Evangelhos esclarecem as fontes da base financeira deles, mas o seu poder e a sua influência são mais importantes do que os recursos financeiros, e teriam sido a chave de seu poder e influência (SALADARINI, 2004, p. 62). 60 Tanto o historiador Josefo, como o Novo Testamento descrevem os fariseus como notáveis intérpretes da Torá. Isto era uma particularidade em termos gerais, e em particular, por seu recurso a tradições orais especiais, não constantes na Torá de Moisés em forma escrita (Mc 7,15; Mt 15,2). Também são descritas sua estrita observância dos mandamentos de pureza e de alimentos, bem como da entrega dos dízimos, que se encontraram no Novo Testamento. Outras observações podem ser citadas com base no trabalho de Stegemann (2004, pp. 183-184), especialmente na sua observação de que provavelmente os fariseus, como grupo, tenha evoluído. Na sua fase inicial, eles eram um grupo influente politicamente, mas já no período de Jesus eles haviam se transformado em um grupo predominantemente sectário quietista-religioso, no período herodiano. A forma como a sociedade judaica era organizada no primeiro século, a formação de grupos e seitas, a divisão de classes (STEGGEMANN, 2004, p. 68) a própria administração por parte dos líderes romanos e dos líderes religiosos, tudo isso se torna mais complexo, e de difícil interpretação, pelo fato de que os Evangelhos não tratam uniformemente essas questões, nem os historiadores da época parecem estar de acordo acerca desse assunto. Tanto os saduceus, quanto os fariseus, eram variações do judaísmo e poderes litigantes no mesmo sistema, e não inimigos mortais, como alguns pretendem. Os fariseus eram muito populares e influentes entre o povo, e o esboço deles em Mateus é consistente com esta visão. Overman (1997, p. 26) ressalta que papel dos fariseus como grupo político associado aos governantes políticos é aludido na tradição dos Evangelhos, assim como na aliança que fazem com os herodianos contra Jesus (Mc 3,6; 12,13). Também são ligados aos sumos sacerdotes (Mc 8,31; 11,27; 14,43-53;15,1) e apenas aos sumos sacerdotes (Mc 14,10; 15,3,10,11,31). Sua influência é maior na Galileia. Overman (1997, p. 25), faz menção a um comentário de Saldarini que apresenta os fariseus como aderentes políticos em uma sociedade agrícola tradicional e como tal estão a serviço da classe dominante, servindo aos governantes como educadores, funcionários religiosos e administradores. O governo de Herodes (de 37 a 4 a.C.) acabara efetivamente com qualquer participação real do povo judeu no processo político normal. Os fariseus assim, tornaram-se menos um partido político que uma associação solta de irmandades religiosas (HORSLEY E HANSON, 2015, pp. 45-46). A partir de então eles tentam influenciar a vida social através de preceitos e do exemplo, mas já sem nenhuma 61 função ou autoridade política, com exceção de alguma representação no Sinédrio, mas com poderes ainda mais reduzidos. Este fato levou-os para distante dos camponeses e os colocou como classe em busca de coesão e afirmação. 2.5.1 Os fariseus no Evangelho de Mateus Em Mateus, os fariseus são a mais constante oposição de Jesus na Galileia e estão em debate com ele pela observância sabática, regras alimentares e de pureza além de problemas acerca do divórcio. São também estes os mesmos problemas que os levam a debater com Jesus em Marcos. “Em Mateus, os fariseus têm um papel mais amplo e são menos distintos dos escribas do que em Marcos” (SALDARINI, 2005. p. 180). Eles atacam, de forma desafiadora as fontes da autoridade de Jesus (Mt 9,32-34; 12,22-30). A controvérsia de Jesus com os fariseus é longa e é apresentada em várias ocasiões no Evangelho de Mateus. Nos capítulos 21 e 22 eles são atacados por Jesus, por meio de parábolas (21,45-46) e revidam confabulando contra ele, no capítulo 22. Episódios dessa natureza parecem demonstrar que os fariseus são ativos na liderança de Jerusalém, em contraste com os fariseus de Marcos. Mateus os isenta de participação direta na crucificação de Jesus, no entanto, eles são apresentados na cena do julgamento de Jesus (SALDARINI, 2005, p. 180) quando um jurista fariseu faz uma última pergunta hostil (Mt 22,34-35). Também Mateus registra a participação deles junto aos chefes dos sacerdotes, neste episódio, quando eles pedem uma guarda para o túmulo de Jesus em Mt 27, 62-65. Mateus deixa claro que os fariseus, além de fazerem parte da liderança local, estão sendo desafiados por Jesus e tendo sua influência em questões de normas sociais e de poder sobre o povo minimizadas. Mateus os coloca em contato direto com as forças mais poderosas de Jerusalém. No Evangelho de Mateus, os fariseus estão mais em evidência que em Marcos; é que Mateus insere os fariseus em maior número de situações do que Marcos, e menos que Lucas. Mateus faz o emparelhamento dos líderes judeus de forma diferente de Marcos. Em Mt 3,7; 16,1. 6. 11.12, ele associa os fariseus e os saduceus, um par historicamente oposto e improvável, na visão de alguns autores. Também a 62 associação de escribas e fariseus, aparece em várias citações (Mt 5,20; 12,38; 15,1; 23,2. 13. 14. 15. .25. 27. 29)34 Em Marcos, os chefes dos sacerdotes e os escribas são frequentemente associados, mas em Mateus, aparece apenas três vezes (Mt 2,11; 20,18; 21,15). Já a combinação chefes dos sacerdotes, escribas, em Mateus aparecem apenas três vezes (Mt 2,11; 20,18; 21,15). E chefes dos sacerdotes, escribas e anciãos, aparecem juntos apenas uma vez (Mt 16,21), em contraste com Marcos que os cita diversas vezes. “Mateus cita os escribas agindo sozinhos em cinco passagens (Mt 7,29; 8,19; 9,3; 13,52; 17,10), bem como os saduceus em (Mt 3,7) e o capítulo (16), bem como no paralelo marcano” (Mc 12; Mt 22) (SALDARINI, 2005, p. 170). O papel sugerido à liderança judaica, em Mateus, é atribuído às perspectivas redacionais do redator, e à ênfase dramática e teológica que ele faz do papel desses líderes. Algumas explicações, sugeridas por Saldarini, (2005, p. 171), dos procedimentos de Mateus, sugerem que a visão dele, em primeiro lugar, dos líderes judaicos, especialmente a proeminência dada aos fariseus, reflete o confronto polêmico entre a comunidade mateana e a comunidade judaica pós-70, que era dominada por fariseus que se tornaram rabis. Em (SALDARINI, 2005. p. 171) foi sugerido que a comunidade mateana havia se separado da comunidade judaica e que ao menos algumas seções e opiniões polêmicas dos líderes judaicos refletem tradições antigas (pré-70). Finalmente, há quem considere que a caracterização mateana dos líderes judaicos é um artifício literário e teológico para identificar a comunidade cristã em contraposição ao judaísmo e para explicar a rejeição de Jesus por parte do judaísmo (SALDARINI, 2005, p. 171) Os líderes judaicos em Jerusalém, incluíam o sumo sacerdote e os chefes dos sacerdotes, anciãos e notáveis que eram, provavelmente, os reconhecidos chefes de famílias proeminentes em âmbito local e nacional (SALDARINI, 2000, p. 79). Os servidores das famílias abrangiam os burocratas, soldados e funcionários associados aos asmoneus, aos herodianos e aos romanos, bem como os funcionários do Templo e oficiais ligados aos chefes dos sacerdotes. Dentre os servidores das famílias são encontrados os escribas e os fariseus. A crença e as práticas religiosas faziam parte dos grupos familiares, étnicos e territoriais em que as pessoas nasciam. 34 SALDARINI, 2005, p. 170. 63 O Evangelho de Mateus é visto como um evangelho combativo que retrata o pensamento, a fé, a religiosidade e a esperança de uma comunidade que tem diante de si um longo desafio: sobreviver e vencer. A luta dessa comunidade parece ser, tanto externa, quanto interna. Externamente seu confronto era com os líderes de Israel, representados pelos fariseus, escribas, os chefes dos sacerdotes, os anciãos do povo, os saduceus (Mt 16,1; 22,23) e os herodianos (Mt 22,16 Internamente Mateus parece que lidava contra a forte influência que esses líderes exerciam sobre os membros de sua comunidade. Ele percebia um certo enfraquecimento e até mesmo a saída de alguns de seus membros para se integrarem ao programa dos fariseus. Também há notícias que alguns de sua comunidade haviam sido torturados e perseguidos pelos membros das sinagogas dos judeus. 2.5.2 Jâmnia Pouco antes da queda de Jerusalém, os fariseus que tinham conseguido fugir da cidade fundaram uma escola em Jâmnia (Yabné), na costa do Mediterrâneo, ao sul de Jafa. Esta escola, se tornou depois de 70, o refúgio dos fariseus que escaparam do massacre. (VV.AA, 2014 p.16). Nessa cidade, o judaísmo palestino consegue reviver, se reorganizar e sobreviver. Algumas medidas importantes foram tomadas para garantir o soerguimento do judaísmo nessa nova fase. A sinagoga ganhou expressão partir de Jâmnia falar de sinagoga agora, significará o “judaísmo da diáspora”. Definiram a liturgia sinagogal, prepararam um programa de formação dos rabinos, escreveram um corpo de doutrina visando conservar a identidade do povo judeu na diáspora. Com o encontro em Jâmnia acabaram a paz e as proximidades entre os judeus e os judeu-cristãos. Estes criam em Jesus como Messias e reconheciam o Antigo Testamento incluindo os livros que foram escritos em grego (Tobias, Judite, 1º e 2º Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc). (FERREIRA, 2011, p. 201). No período das dominações helênica e romana, a população da cidade de Jâmnia era mista em sua maioria, sendo a maior parte gregos. Muitos judeus se estabeleceram nesta cidade após a queda de Jerusalém, não só os fariseus. Estes que ali se refugiaram estabeleceram um concílio judaico no local tornando-a o centro da cultura judaica. Este concílio realizou pelo menos três reuniões para lançarem as bases do judaísmo nascente pós destruição de Jerusalém. 64 Essas reuniões tiveram como objetivo unificar os vários grupos do judaísmo em formação, e os que não se adequavam, sendo minoria eram expulsos da comunidade. Foi nesse período também que foram inseridas as dezoito bênçãos na oração da manhã pelos judeus, a décima nona, chamada de “Birkat-ham-minim”, cujo teor era uma maldição proferida contra os judeus considerados hereges por reconhecerem Jesus como sendo o enviado de Deus. Havia diversas correntes de judaísmo e algumas seitas disputando lugar no topo do poder. Era preciso resolver as desavenças entre as escolas rivais, fixar um calendário comum para as festas, promulgar uma liturgia sinagogal e definir o “cânon Judaico das Escrituras”. Algumas medidas de defesa também foram tomadas, podendo-se incluir a rejeição da tradução grega do Antigo Testamento. A controvérsia de Mateus contra esses líderes judaicos está relacionada ao que fora feito a Jesus. Eles são acusados por Mateus de se venderem à liderança política, de traírem a Jesus, de o entregarem nas mãos das autoridades. Mateus os responsabiliza pela destruição de Jerusalém, por entender que seria uma retaliação pelo que fizeram à Jesus. Os judeus mateanos que viam em Jesus, o Filho de Deus, não ignoravam o sectarismo de Jâmnia e acusavam os fariseus de tirania, de ambição e de intemperança. Para Mateus e seu grupo foram os fariseus quem anunciaram a Herodes o nascimento do menino Jesus (Mt 2,5), e avisaram a Pilatos da sua ressurreição (Mt 27,63). Portanto, para eles os fariseus são inescusáveis, porque sabiam a respeito do Cristo e entendiam os sinais da sua vinda. Mateus esclarece que o castigo ainda não terminou para esses líderes, o próximo será na parousia, para ele Sodoma e Gomorra terão melhor sorte do que esses que mataram o seu Senhor. (Mt 10,15; 11,22-24). A pessoa de Jesus Cristo era a razão principal da controvérsia entre judeus e judeus cristãos, membros da comunidade de mateana. Nesse particular não há acordo e o grupo de Mateus é reputado como herege e expulso de suas sinagogas (Mt 23.34). O evangelho de Mateus é construído com base nessa realidade da sua comunidade e reflete todas as angústias de uma comunidade em crise. A narrativa é forte e vista por alguns autores como uma contra narrativa (CARTER 2002, p. 15). Mateus se utiliza dessa narrativa para atacar seus rivais, para se defender e para se fortalecer, pois na crise se vêm na necessidade de uma organização mais 65 pontual. É um trabalho de resistência, feito por um grupo de cristãos judeus, principalmente. Sua resistência se dirige ao status quo dominado pelo poder imperial romano e o controle da sinagoga. Esta narrativa tem a finalidade de resistir a estas estruturas culturais, consideradas ofensivas à fé desses grupos religiosos. A destruição do templo, ocorrida no ano 70 d.C. pelo general Romano Tito, filho do Imperador romano Vespasiano, não foi apenas um golpe político para o povo de Israel. Significou também a destruição do centro cultural e religioso do povo. O templo constituía a estrutura social e cósmica da sociedade Israelita. No programa dos fariseus estava inclusa a recriação do templo em casa ou na comunhão à mesa, as vezes utilizando imagens relativas ao templo. Também desenvolveram um sistema centrado na aplicação das leis da pureza no lar e à mesa. O dízimo, a observância do sábado e o estudo da Toráh eram características centrais do movimento. Tudo era voltado ao templo, ainda que por imagens (OVERMAN, 1997, p. 45). O Templo constituía assim o centro de uma colônia de profissões, especialmente durante a sua reconstrução, mas também durante o serviço litúrgico contínuo; com o Templo sólidas construções se tinham constituído. O trabalho era feito por empreitada. Os salários eram altos; os operários sempre eram pagos no ato, mesmo quando tivessem trabalhado apenas uma hora. O tesouro do Templo era obrigado a suprir as necessidades dos operários vítimas de desemprego (JEREMIAS, 2015, p. 41). Os fariseus criam na ressurreição, na retribuição e se estruturaram com essas bases teológicas, conquistando assim a simpatia do povo. O sistema farisaico, em razão da sua consolidação, foi o mais indicado. O processo de reorganização e consolidação do judaísmo foi demorado, podendo ser observados seus estágios iniciais no final do século I. O mito da fundação de Jâmnia, conforme recontado por sucessivos rabinos, confirma-os como os portadores da autoridade e legitima-os como a instituição que se responsabilizaria pela instrução e pela expiação daí por diante (OVERMAN, 1997, p. 52). O ambiente de Mateus é tenso porque reflete o desenvolvimento institucional, ainda que pequeno do judaísmo. Mateus está claramente na disputa e tanto contesta esse grupo como procura demonstrar que tem legitimidade por causa do Cristo e da interpretação das Escrituras segundo a visão da Nova Justiça. 66 2.6 A Comunidade Mateana O que encontramos nos vinte e oito capítulos do Evangelho de Mateus é o reflexo da dura realidade de uma comunidade de Judeu-cristãos, que viviam no sul da Síria, em Antioquia. A palavra que melhor define a comunidade mateana é “resistência”. Alguns indícios deixam transparecer que a comunidade mateana era uma comunidade rural, como algumas parábolas evidenciam as relações de trabalho e pose dos meios de produção, como a do semeador (Mt 13,3), a parábola do joio e do trigo (Mt 13,24-30), do grão de mostarda, dos reis descrita em Mt 18,23; 22,1; 25,14. Essa comunidade era formada por judeu-cristãos pós 70, que conviviam com a cultura helenística e judaica. A comunidade de Mateus mostra a realidade chamada Jesus como forma alternativa de vida e ousa dar um passo além, apresentando-o para os grupos concorrentes e para a sociedade local, como a solução definitiva, tanto para a vida quanto para a morte, mostrando-o como aquele que foi morto, mas ressuscitou. Esse que foi morto pela elite dominante, era por ela considerado como ilegítimo, portanto marginalizado. Essa condição de marginalizado o coloca próximo da comunidade de Mateus, minoritária e também marginalizada. “A Comunidade de Mateus era formada inicialmente por judeus que creem em Jesus. O grupo mateano é uma assembleia doméstica de judeus que crêem em Jesus”. Têm entendimento próprio da Bíblia e da vontade de Deus interpretada por Jesus; Esse tipo de assembleia doméstica era comum na sociedade greco-romana, e é semelhante a associação voluntária” (SALDARINI, 2000, p. 146). Muitos intérpretes das escrituras, modernamente, utilizam-se do método de leitura de textos bíblicos para compreender a realidade e o contexto do autor e seus grupos. Muitas análises do evangelho de Mateus se referem à comunidade mateana. Comunidade subentende a presença de um forte senso de identidade e um conjunto comum de valores e percepções profundamente mantidos, que resultam em contato afetuoso estreito e protetor (SALDARINI, 2000, p. 148149). A comunidade mateana era apenas um grupo dentro de uma comunidade maior, a judaica. Para muitos, a denominação comunidade sugere separação e independência do judaísmo o que ocorrerá em um dado momento na história desse 67 grupo. As perdas sofridas nas relações comuns e no conflito social com a comunidade judaica, são suportáveis devido as metas a serem alcançadas. “O desejo que eles sentem de uma relação renovada com Deus por intermédio de Jesus e o conflito deles com o resto da comunidade judaica combinam-se para produzir um forte senso de identidade de grupo” (SALDARINI, 2000, p 153). Não há um consenso entre os autores de que o local de elaboração deste evangelho seja Antioquia, na Síria. O testemunho de Inácio, bispo de Antioquia, que utiliza material encontrado só em Mateus em suas cartas a várias igrejas pode ser citado como evidência da conexão deste Evangelho com a cidade de Antioquia 35. A oração do Senhor, na versão de Mateus é utilizada pela Didaché (Mt 6,9-13). Mateus 4,24 se refere à fama de Jesus por toda a Síria. Carter, (2002, p 35) cita ainda a questão da proeminência de Pedro nesse evangelho, o que pode ser um indício do papel significante que ele teve na igreja de Antioquia (Gl 2,1-14) (CARTER, 2002, p. 34). Em 70 d.C. o império romano invadiu a Palestina, que já era sua colônia e lhe pagava tributos. Sufocou o movimento judaico revolucionário, tomou Jerusalém e destruiu o templo. Os judeus tiveram que se dispersar e se reorganizar. As comunidades cristãs que aí existiam saíram antes. Algumas foram para Pela, ao lado oriental do rio Jordão, outras se espalharam pela Síria e Fenícia, e outras ainda se refugiaram junto à comunidade de Antioquia na Síria. E foi provavelmente de Antioquia, pelo ano 80 d.C., que Mateus escreveu o seu evangelho para essas comunidades que tinham nascido na Palestina (STORNIOLO 2013, p. 8). Antioquia era uma das três maiores cidades do império romano. Era a capital da província romana da Síria (CARTER, 2002, pp. 36-37). Lá havia um grande número de Judeus que viviam tanto na zona rural quanto na urbana. Outros fugiram para Pela, bem como para outras regiões, por ocasião da destruição de Jerusalém em 70 d.C. (STORNIOLO 2013, p. 8). Era uma cidade composta por várias etnias e classes de pessoas. Como centro comercial, Antioquia era o ponto de convergência para várias rotas comerciais principais norte-sul e Leste-Oeste (CARTER, 2002, p. 37). 35 Antioquia hospedava três a quatro legiões, aproximadamente quinze a vinte mil soldados, e foi a plataforma base para tropas na guerra dos anos 66-70 d.C. Por causa do controle ou paz romana (Pax Romana) resultante da intimidação e guerra (“paz com derramamento de sangue” para citar incorretamente Tácito), as legiões tinham um papel vital e visível a cumprir, protegendo a cidade de ameaças exteriores e tumultos internos. O considerável suporte econômico necessário para esta presença imperial vinha ados impostos e tributos (muitas vezes em espécie), como era típico do sistema político-econômico tributário de Roma (CARTER, 2002, P. 40). 68 A maioria das pessoas que ali viviam estavam mergulhadas em profunda marginalização. As autoridades estavam comprometidas com o poder romano em troca de favorecimento. Quem tinha ligações com o poder era por este favorecido, quem não tinha era extorquido. As altas taxas de impostos eram duramente cobradas para a manutenção de um poder imperial que não conhecia limites. “Autores antigos reconhecem que juízes e veredictos podiam ser comprados. Aqueles com riqueza e status elevado recebiam tratamento mais favorável que aqueles de níveis inferiores” Reputação e dinheiro funcionavam a favor de um e contra outro (CARTER, 2002. p. 37). Antioquia era considerada uma cidade grande para os padrões da época, e de intensa densidade populacional. Era composta por vários edifícios públicos, comerciais, ruas, basílica, ginásios, banhos, templos e monumentos e com um mínimo de privacidade. A estrutura social dessa cidade não fugia à regra das demais do império. Com uma população mínima de ricos e os demais que serviam às suas necessidades (CARTER, 2002, p. 37). Fora da cidade estavam os camponeses, sobrecarregados de tributos e sempre se esforçando para alcançar uma existência de subsistência. Alguns eram proprietários com diversos tamanhos de posses; outros eram arrendatários, jornaleiros (Mt 20,1-16). Além de ser hierárquica, vertical e interconectada, a estrutura social era marcada pela hostilidade. Os escritos da elite indicam que eles desprezavam a não elite, um historiador social observa: “podemos notar de passagem as categorias que são passíveis de escárnio: na cidade, artesãos insignificantes e gente sem local comercial fixo, os sem dinheiro; no campo, os camponeses. E em todo lugar, escravos, as crianças e as mulheres”. Enquanto alguns membros da elite, não da cidade ou do império, realizavam doações para grupos escolhidos de “pobres merecedores” e muitas vezes em vista da honra ou benefício do provedor, a opinião geral parece ser que era impossível fazer o bastante e que a minoria dos pobres geralmente merecia, nada mais e nada menos, que a sua pobreza (CARTER, 2002, p. 41). A relação cidade/campo parece ter sido uma relação de desconfiança e desprezo. O Camponês desconfiava da cidade e os da cidade desprezavam os camponeses, considerados por eles gente sem classe. (CARTER, 2002. p. 45). A narrativa do Evangelho parece refletir toda essa realidade sócio econômica e a estrutura social da cidade de Antioquia, que era, na verdade a de todo o império. Apesar de o evangelho ter um foco nos marginalizados, pelo uso frequente do termo “pequeninos”, entre outros, e a constante narrativa envolvendo crianças, 69 mulheres, camponeses, estrangeiros, alguns comentaristas afirmam que a audiência de Mateus pode não ser composta apenas por esta classe de marginalizados. Algumas evidências levam a crer que havia no grupo de Mateus alguns abastados, representantes de um ambiente urbano. Estas evidências são apontadas por Carter (2002, pp. 48-49), que elenca entre outras o grego usado pelo evangelho e não o aramaico. O uso da palavra cidade vinte e quatro vezes. O vocabulário usado para dinheiro é mais elevado que nos outros evangelhos, levando a crer que o grupo estava acostumado com dinheiro mais elevado. A audiência de Mateus, então, não estava constituída predominantemente por “marginais involuntários”. Também não podemos certamente assumir sua ausência, tanto mais que o evangelho narra a extensiva missão de Jesus entre eles. E, dado a experiência comum de endividamento, perda de terras e perda de status e relações de parentesco conforme o povo rural se mobilizava para a cidade procurando algum meio para sobreviver, é provável que parte dessas pessoas fizesse parte da audiência de Mateus. A antiga opinião de que as comunidades do cristianismo primitivo eram constituídas quase que exclusivamente de miseráveis sociais e econômicos não parece sustentável. Antes, a audiência parece representar uma amostra de sua sociedade (CARTER, 2002, p. 50). Fala-se muito sobre a marginalidade do grupo de Mateus e de sua forma alternativa de viver. Esses conceitos são importantes para a compreensão desse grupo desde que se tenha noção de que eles são distintos, mas não excludentes. Carter, (2002, p. 75), define o que é ser marginal: Para ele é existir fora do centro, na beira, na periferia, em um relacionamento antitético no qual os grupos vivem em alguma oposição à realidade dominante ou central. Ao explicar a existência alternativa sustenta que o grupo fomenta e mantém seus próprios compromissos, prática e visão de mundo, como alternativas àquelas do mundo dominante ou central. Carter (2002, p. 75) propõe ainda um elenco de informações que fazem transparecer o estilo alternativo evidenciado no projeto de Mateus para sua comunidade. Mais especificamente, os dois centros particulares do “esquema normativo” “em confronto” nos quais os discípulos vivem, são a comunidade sinagogal com a qual está em tensão, e o sistema imperial romano com suas práticas sociopolíticas e pretensões ideológicas, que são antitéticas às compreensões e práticas teológicas, cristológicas e eclesiológicas da comunidade (CARTER, 2002, p. 75). Carter (2002, pp. 75-76) propõe que esta comunidade olha para Jesus para manifestar a vontade de Deus, olha para frente e não para os ícones do passado 70 judaico. O grupo deve seguir a Jesus crucificado pelo império, mas Ele sim é o cabeça do império (Mt 26-27). Ao invés de aceitar a Pax Romana, esta comunidade encontra, proclama e implora pelo império de Deus (Mt 4,17; 6,10,12,28; 24-25), manifestado na presença salvífica de Deus, Emanuel (Mt 1,23). A comunidade deve criticar a realeza e liderança do império romano (Mt 2; 14,1-12; 20,20-28;27). A comunidade não deve suportar o jugo romano e acreditar que Roma terá que prestar contas (Mt 3). Além disso, essa comunidade deve: Viver não como senhores, mas como servos (Mt 20, 20-28), sem a estrutura patriarcal e hierárquica imposta pelo império, mas igualitária (Mt 19-20). Deve reconhecer a soberania de Deus sobre todo o mundo (Mt 17,24-27; 22,1522). Deve resistir de forma não violenta (Mt 5,34,48). Esta comunidade deve ser inclusiva, adotando a prática da misericórdia indiscriminada, respondendo ativamente às necessidades sem preocupar-se com limites étnicos, sociais ou de gênero (Mt 8-9; 9,13; 12,7; 25,31-46). Com relação aos bens materiais a comunidade mateana não deve procurar riquezas ou status, antes deve usar a riqueza em práticas alternativas, vivificadoras, de empréstimos e esmolas para os necessitados (Mt 5,42; 6,19-34; 10,9-15; 19,16-30) (CARTER, 2002, p. 76). Mateus demonstra seu projeto alternativo, organizando os discursos de Jesus de forma a enfatizar a interpretação verdadeira da Lei, e agora com a Nova Justiça. A comunidade mateana estava diante de um grande desafio e ao mesmo tempo diante de uma proposta de vida baseada na fé e na esperança que os antepassados haviam proferido. 2.6.1 A Comunidade mateana e o judaísmo formativo O movimento conhecido como judaísmo formativo e o grupo de Mateus são dois movimentos emergentes, mas não são os únicos, que lutavam num processo de definição e consolidação em uma sociedade fragmentada e dividida. Após a destruição de Jerusalém, do templo e das demais instituições judaicas, tais como a sinagoga, o judaísmo e parte de seus representantes, os saduceus, o que restou foram grupos dispersos que tentavam se reconstruir onde quer que se encontravam. O problema de Mateus e de sua comunidade, portanto, está intimamente ligado ao grupo judaico em formação liderado pelos fariseus. Esse grupo, em luta com a comunidade de Mateus, era um dos vários movimentos que brigavam para ganhar influência e controle no período pós- setenta. 71 Overman (1997, p. 15) defende que esse movimento não deve ser visto como um movimento amplo que representa, na totalidade ou fala pelo judaísmo. Para ele, é esse processo de definição e luta pela influência que aparece de forma tão intensa no Evangelho de Mateus. Deve-se considerar ainda que esses dois grupos compartilham uma história semelhante, o mesmo contexto cultural e habitam o mesmo mundo. Diz-se que são comunidades irmãs (OVERMAN, 1997, pp. 15-16). O grupo de Mateus se desenvolve partilhando e confrontando com um grupo irmão. Foi sugerido que o Cristianismo e o judaísmo são gêmeos fraternos, compartilham a mesma raiz histórica, e com frequência definem-se um em relação ou em oposição ao outro. O judaísmo de Mateus e sua luta com o judaísmo formativo são, talvez, o primeiro capítulo da longa e difícil separação desses irmãos gêmeos fraternos (OVERMAN, 1997, p. 16). O judaísmo formativo deve ser entendido como antecedente do Judaísmo rabínico, mas não pode ser confundido com ele. O rabinismo judaico se estabelece no poder alguns anos após a elaboração do evangelho de Mateus. Embora não haja consenso entre os autores com relação à data do estabelecimento do rabinismo, o que fica, claro é que o Judaísmo formativo o antecedeu. Houve uma evolução do judaísmo formativo para o rabínico, por meio de um processo longo e complexo anos após a escritura deste evangelho. Estudos recentes do desenvolvimento do judaísmo rabínico após a destruição do Templo demonstram que os rabinos adquiriram influência e depois poder na sociedade palestinense apenas gradualmente, durante vários séculos (SALDARINI, 2000, p. 26). Mateus não rejeitava o judaísmo, já que dele fazia parte36. A sua polêmica era contra líderes que se lhe opunham e, ocasionalmente para o povo que os seguia (SALDARINI, 2000, p. 80). Mas em que, afinal, consistia em a rivalidade de Mateus aos líderes judaicos? Bem, Mateus e seu grupo eram judeus, se viam como judeus frequentavam as sinagogas judaicas, mas também reconhecia Jesus de Nazaré, como o Messias, e queria que toda a comunidade judaica entendesse isso e aceitasse a proposta de renovação para o judaísmo, baseada nos ensinamentos do Cristo. 36 Embora o autor afirme a centralidade de jesus Cristo como Filho de Deus e Salvador, tal afirmação não contradiz, a seus olhos, uma interpretação judaica autêntica da Bíblia, nem o modo de vida judaico. Ao contrário, o autor entende que Jesus e os que crêem nele são os intérpretes fiéis e fidedignos da vontade divina e das tradições bíblicas (SALDARINI, 2000, p. 24). 72 Precisamos enfatizar, contudo, que, apesar da opinião altamente negativa de Mateus sobre os líderes judaicos, analisado de acordo com normas sociais convencionais, o comportamento deles não era nem incomum, nem mau. Embora sejam mostrados fazendo perguntas hostis a Jesus e acusações negativas contra ele, os escribas e fariseus nunca se empenham em prolongada difamação de Jesus (SALDARINI, 2000, p. 80). Alguns incidentes registrados por Mateus entre os líderes judaicos e jesus são importantes para demarcar território e para distinguir os seguidores de Jesus (Mt 9,613. 9, 14-17). Aqui, Mateus estava mostrando que a justiça era a base do ensinamento de Jesus, e que seus discípulos eram diferentes dos outros. Eles não precisavam jejuar, já que o próprio Deus estava entre eles. O ensinamento básico era o de que eles eram diferentes dos demais e que o significado fundamental dessas histórias era o de mudar regras sociais. Em outras passagens como Mt 9,32-34 e 12,22-30, Jesus tem sua autoridade questionada pelos fariseus, quando Ele nesses dois episódios, expele demônios de duas pessoas que estavam mudas, surdas e cegas e é acusado de expeli-los pelo príncipe dos demônios. Novamente, aqui, os fariseus são tidos como adversários de Jesus e “A acusação de que o adversário está possuído é típica de disputas e brigas faccionais por prestígio e status social. Tais pretensões são um tipo de acusação de bruxaria usadas por grupos que procuram manter suas fronteiras e identidades contra uma força externa mais poderosa” (SALDARINI, 2005, p. 181). A relação de Jesus e seus discípulos, com esses líderes parece que vai assumindo ares de uma forte tensão, e isto é perceptível no Evangelho de Mateus. Jesus rebate-os com a sequência de parábolas já mencionadas nos capítulos 21 e 22 e em seguida Mateus afirma que “Os fariseus foram se reunir para tramar como apanhá-lo por alguma palavra” (Mt 22,15). Estes líderes são vistos em toda parte e em grande quantidade de ações praticadas por Jesus, lá estavam. Eles são descritos como um grupo ativo e participante de boa parte da vida social, política e religiosa da sociedade judaica. Overman (1997, p. 45) afirma que a relação do judaísmo formativo, representado pelos fariseus, com o rabinismo, se deve ao fato de que os fariseus, antes até da destruição do templo de Jerusalém, haviam preparado um programa de desenvolvimento do judaísmo, mesmo sem a presença física do templo. Eles organizaram um método religioso judaico onde era possível uma identidade social e 73 religiosa que não exigia a presença do templo. Os fariseus estavam melhor preparados para a crise pós setenta por isso foram bem-sucedidos com seu programa de soerguimento do judaísmo37 Tanto o judaísmo formativo como a comunidade de Mateus estavam preocupados em legitimar suas crenças e comportamento. Eles também tinham de apresentar seus respectivos movimentos como tradicionais, aceitáveis e legítimos, ambos procuravam tradicionalizar seus novos movimentos, a fim de legitimar as convicções e ações de suas comunidades (OVERMAN, 1997, p. 48). À antiguidade e tradições somaram-se na lista de prerrogativas dos fariseus, a de serem os melhores intérpretes da Lei. Herdaram do farisaísmo anterior a 70, tanto a preocupação quanto a precisão na interpretação da Torah. Após a destruição do Templo, o estudo e a interpretação da Torah tornaram-se o ritual e a atividade centrais para muitos do judaísmo, substituindo até mesmo o culto do templo (OVERMAN, 1997, p. 73). Com a mudança de foco, saindo do templo e indo para a Torah, a interpretação desta agora torna-se de suma importância. Os fariseus se apresentam como os legitimados para tal, por terem herdado dos antepassados. Mateus, por sua vez, tenta deslegitima-los, chamando para si e para seu grupo a posição de verdadeiros intérpretes da Lei, pois Cristo veio para trazer um modo mais transparente, espiritualizado e humanizado de interpretá-la (OVERMAN, 1997, pp. 75-80). A Nova Justiça aplicada na interpretação das Escrituras, traduzia a vontade de Deus para aquela e para a posterior geração. Essa interpretação das Escrituras não era nova, pois desde sempre Deus esteve preocupado com os marginalizados, apesar de estes não terem sido contemplados pelos intérpretes judeus, agora Mateus os apresenta na cena da narrativa. São eles os endividados, as mulheres, as crianças, os velhos, os estrangeiros, os sem pátria, os enfermos, os possuídos, e os despossuídos. A lei do puro e do impuro, a lei da circuncisão, do sábado, do dízimo são exemplos do rigorismo da tradição judaica amenizadas em Mateus (SALDARINI, 2000, pp, 89-91). Sua postura e a da sua comunidade provoca a ira dos seus companheiros, dando início a um conflito interminável, que irá culminar na divisão dos 37 Os fariseus desenvolveram um sistema centrado na aplicação das leis de pureza no lar e à mesa. O dízimo, a observância do sábado e o estudo da Torah eram características centrais do movimento. Imagens e temas relativos ao templo eram utilizados pelos fariseus. Não havia, porém, a exigência de um Templo, para a execução de seu programa (OVERMAN, 1997, p. 45) 74 dois grupos. Ao contrário do entendimento dos líderes religiosos judaicos, o Reino dos Céus não poderia ser alcançado por meio de esforço próprio ou por meras ações. Este Reino não era um ideal a ser alcançado, ou um lugar privilegiado. A forma de interpretação das Escrituras, baseada no ensinamento de Cristo, era o objetivo de Mateus e a proposta para toda a comunidade de Israel. Todavia, eram tempos difíceis que requeriam mais que palavras, era necessário um alto poder de convencimento. O povo estava sofrido e tudo que eles queriam era a ação de um líder para conduzi-los à libertação. Parece que essa disputa se torna muito acirrada, e “Mateus busca nas origens proféticas, no deuteronomismo, a inspiração para demonstrar seu novo modo de interpretar a Torah” (CARTER, 2002, p. 70). A tensão existente entre os grupos concorrentes é visível nos textos do Evangelho de Mateus. Um dos objetivos desse Evangelho é reforçar a fé e a esperança dos seguidores de Cristo. Só Ele tinha a legitimidade para ser o intérprete da Torah.38 Paz e espada nos remete para a esperança e para a realidade vividas em Mateus. Enquanto a paz era o alvo e espada era a realidade. 38 A autoridade de jesus não é a de um douto escriba ou fariseu, nem de um rabino mais tardio. Sua autoridade na narrativa vem diretamente de Deus e é sancionada de forma apocalíptica (SALDARII, 2000, p. 290) 75 3 A PAZ E A ESPADA NO EVANGELHO DE MATEUS Os Evangelhos noticiam a chegada do Reino De Deus39 e de um tempo de paz (Is 9,5-6). Todavia, o domínio de Deus e a chegada de seu Reino é causa de tensão entre a paz e a espada, conforme o evangelho de Mateus. A espada é a realidade mais constante na vida do povo hebreu/judeu desde as suas origens. Os hebreus lutaram muito para conquistar a terra prometida. Os judeus lutaram igualmente para mantê-la sob seus domínios. Os vários movimentos, correntes de pensamento, grupos que foram surgindo ao longo de sua história, tinham bem caracterizadas essas lutas, tanto pela conquista, quanto pela defesa. A luta desse povo não se restringe somente à posse da terra, mas à sua manutenção, sua cultura, sua religião, sua fé, seus valores, sua independência, sua história, suas riquezas, sua tradição, sua etnia. Enfim, tudo que pode haver de mais precioso na construção da identidade de um povo. Essa identidade estava constantemente sendo ameaçada por invasores, conquistadores, dominadores40. Em Mateus vemos mais uma batalha travada, compondo mais um capítulo de uma extensa jornada de muitas outras lutas que ocorreram ao longo da história de Israel. A ocorrência de repetidas campanhas de guerras significava que cada novo conquistador tomava alguma terra e confiscava mais. Mas a pressão econômica mais dolorosa provinha das taxas, exigidas tanto pelos romanos como pelos sacerdotes. A pretensão dos sacerdotes a essa renda apoiavase na última fonte sacerdotal da Torah mosaica e nas interpretações dos saduceus e fariseus (Mt 23,23; Lc 18,12). A interpretação estrita dos mandamentos era de interesse de ambos os grupos (STAMBAUGH e BALCH, 2008, p. 92) A relação, paz e espada proposta no Evangelho de Mateus, identifica a continuidade dessa situação de tensão existente em Israel e que vinha se desdobrando em vários capítulos. Importante a distinção dos grupos e movimentos que se identificavam, se rivalizavam, ou que se uniam em prol de determinada conquista, em momento específico, nessa longa trajetória, que se constitui a história de Israel e a história da igreja41. “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15) (FEIJOO, 1989, p. 24). 40 Egípcios, Assírios, Babilônios, Persas, Gregos, Romanos, entre outros. 41 Alguns desses grupos, movimentos e correntes estão identificados no capítulo II. 39 76 Os grupos que vemos em Mateus em situação de tensão, são grupos que foram se formando em razão das circunstâncias e do momento. Por exemplo, os fariseus, que não era um grupo novo, em Mateus, assumem uma nova identidade: os representantes do judaísmo em formação. Da mesma forma os seguidores de Cristo. Em Mateus os vemos em luta pela defesa de sua identidade como cristãos judeus. Essa situação de tensão e de disputa por definição de identidade e por poder, estão refletidas no Evangelho de Mateus e constitui o pano de fundo para a elaboração desse Evangelho. Assim, o programa alternativo apresentado à comunidade mateana, no Evangelho de Mateus, traz o tema da paz, em Mateus 10, 34-36, aparentemente de forma inversa ao que era esperado de um Messias, e propagado pelas tradições judaicas, que surgiram no período do segundo Templo, conhecido como “o príncipe da paz” (Is 9,6). As correntes tradicionais judaicas diziam que “deve-se esperar a paz perfeita da salvação messiânica”, o Messias é o príncipe da paz (Is 9,5-6) e, em seu Reino, haverá paz sem fim (MACKENZIE, 2011 p. 644). 3.1 A Paz para os Judeus Os Judeus, ao longo de sua experiência comunitária, desenvolveram conceitos abrangentes sobre diferentes temáticas, especialmente em relação à “paz” denotando “acabamento, plenitude, totalidade, perfeição” (MONLOUBOU e DU BUIT, 2003). A paz para os judeus era o estar em perfeita sintonia com o criador. Era estar em relacionamento contínuo com o Senhor. Quando o ser se separa dessa relação com Deus, há quebra de paz42. “A paz tem o sentido semítico de prosperidade, tranquilidade, direito e justiça; significa, em suma, a felicidade do homem individual e socialmente considerado” (MATEOS e CAMACHO, 1993, p. 60). A abrangência desse conceito equiparava os limites das conquistas individuais aos da comunidade. Para Israel o conteúdo do shalom (paz) pode ser descrito como segue: “shalom” significa harmonia total dentro da sociedade, a qual, em razão da ordem, é impregnada da benção de Deus, o que torna possível um crescimento do homem, livre e sem empecilhos, em todas as direções (BAUER, 1973, p. 823). 42 Alguns profetas tomam a paz como objeto de sua mensagem, infelizmente a torto e a direito (Jr 6,14;8,11;28,9). É que o bem no qual estão pensando não passa de caricatura da paz. Esta exige a justiça, a verdade (Jr 6,14; 8,11), a obediência aos mandamentos divinos (Is 48,18; 54,13-14) (MONLOUBOU e DU BUIT, 2003). 77 No Antigo Testamento a palavra hebraica Shalom43 é de um conteúdo tão rico que dificilmente pode traduzir-se para outra língua. O termo grego que melhor traduz o shalom é eirene44, usado no Novo Testamento que também pode denotar “conduta pacífica”. “No Novo Testamento o termo eirene recebe ampliação de conteúdo e aprofunda o sentido que possuía no Antigo Testamento, levando mais longe as linhas que aí se esboçam” (BAUER, 1973, p. 826). Muito tem sido escrito sobre o conceito hebraico do shalom. Do ponto de vista semântico, R. Friedli parafraseia o conceito de shalom como segue: Paz, alegria, liberdade, integridade, reconciliação comunhão harmonia, justiça, verdade, comunicação. Nesta paráfrase multidimensional ressalta tanto a dinâmica soteriológica, como o relacionamento social. Shalom pertence à área da salvação, da saúde, mas não apenas como salvação da alma, ou paz da alma. Shalom deve abarcar a vida inteira e será concretizado no mundo quando estiverem em ordem sadia todas as interações entre Deus e o homem, de homem para homem (MUSSNER, 1987, p. 253-254). Shalom também era a saudação comum e expressão de bons desejos. O israelita concebia a paz como uma dádiva de Yahweh e, como tal, tornou-se um conceito teológico. Quando alguém possui paz, está em perfeita e segura comunhão com Yahweh (McKENZIE, 2015, p. 644). Outro componente importante para a compreensão da paz no Antigo Testamento é o conceito de justiça (Sl 85,10). Em Lv 26, 3-13 outros elementos da presença da paz são mencionados tais como a chuva, colheitas fartas, ausência de inimigos, de feras, e a presença de Yahweh no meio de seu povo. Contrariamente à paz a vingança de sangue, no Antigo Testamento era tida como maldição (I Rs 2,33). Também os profetas do Antigo Testamento concebiam a paz em relação íntima com a aplicação da justiça. Para eles onde não havia justiça não havia paz verdadeira. A paz sem a prática da justiça não seria verdadeira, mas um engodo, uma mentira (Jr 6,14; 8,11, Ez 13,10-12). Aliado à prática da justiça estava a obediência irrestrita aos mandamentos de Yahweh, como condição para a paz perene, como um rio que corre (Is 48,18). A paz era esperada também em um tempo futuro, quando Yahweh, poria fim a toda inimizade e governaria para sempre (Is 60,17). Esse era o governo A palavra “shalom” significa não apenas “paz”, mas também tranquilidade, segurança. Bem-estar, saúde, contentamento, sucesso, conforto, plenitude e integridade (STERN, 2008, p. 63). 44 A ampliação conceptual do termo shalom se destaca no fato de a Septuaginta empregar mais de vinte vocábulos diferentes para reproduzir seus diferentes matizes de significação. Mas, por fim se impôs a palavra grega eirene para traduzi-lo, mas sofrendo evidentemente ampliação nos seus diferentes aspectos (BAUER, 1973, p. 826). 43 78 esperado através da chegada do Messias (Is 9,5-6). Só os justos terão paz os ímpios não (Is 48,22). Para Musner (1987, p. 254), O conceito do shalom, encerra um acontecer social, é um assunto humanitário, que só será alcançado quando compartilhado com o resto do mundo. O Reino de Deus, detentor desta paz, só será pleno quando esta notícia for divulgada àqueles que não a conhecem. No Shalom encontram-se história mundial e história da salvação. Nem Israel, nem a igreja pode ter exclusividade sobre a paz, pois o Reino de Deus interessa ao mundo inteiro. O Novo Testamento segue as mesmas ideias do Antigo Testamento, sendo a paz a característica do reino messiânico (BORN, 1971, p. 1148). Quanto ao conteúdo a paz estabelecida por Cristo se caracteriza por estar em paralelo com vida (Rm 8,6. 2 Pd. 3,14). Pela eirene, o homem inteiro, corpo e alma, goza de boa saúde (BAUER, 1973, p. 827). Ela faz, principalmente, com que o homem esteja em paz com Deus no Cristo, o qual é a nossa paz em pessoa (Ef. 2,14). Pois, segundo Ef. 2,14-18, ele criou a paz em sentido duplo (Col. 1, 27; 3,14ss). A paz entre os homens e Deus e dos homens entre si (BAUER, 1973, p. 826). Paz é comunhão com Deus, e o próprio Jesus é a nossa paz neste sentido, visto que ele é o vínculo da comunhão (Ef 2,4-14); vivemos em paz com Deus graças a Jesus Cristo (Rm 5,1). Ela é também um estado de tranquilidade interior e de relações harmoniosas com a comunidade cristã, componentes da vocação cristã para a paz (Rm 14,17; I Cor 7, 7,15) (MAcKENZIE, 2012, p. 644). O povo de Israel, apesar de ter experimentado essa paz em alguns momentos de sua história, era movido pela esperança e pela expectativa messiânica de sua restauração. Eles estavam conscientes de que não estavam vivendo na plenitude de Deus e que haviam quebrado a aliança com Yahweh. A esperança messiânica garantia-lhes que o Messias restauraria essa paz num tempo escatológico (Is 9,6), não sem luta, mas de forma definitiva o próprio Deus poria fim à guerra. No Novo Testamento há uma exceção quanto à ideia da paz provinda do Antigo Testamento. Mackenzie, (2012, p 644) explica que o termo grego Irene, traduzido, “paz” é o que mais se aproxima da ideia concebida no Antigo Testamento. Contudo a exceção se encontra exatamente em Mt 10,34-36, pois ali a paz a que Jesus se referia nada tinha a ver com a visão veterotestamentária. A paz que Jesus disse que não veio 79 trazer era aquela que estava em vigor, imposta por Roma, à custa da opressão e da tirania dos seus representantes. A eirene do Cristo tinha uma proposta diferente da pax romana. Seus princípios de generosidade aos estrangeiros, a valorização das pessoas dos estratos mais baixos da sociedade, a quebra das relações díspares de gênero, e a voz de denúncia aos sistemas injustos, comprovam que a eirene do Cristo, para os cristãos primitivos, era substancialmente diferente da pax oferecida pelo império romano (SERIGUE, 2011 pp. 119-134). Os judeus aguardavam a chegada da paz, da plenitude do Reino dos céus, no Messias. Ele contraria a tradição ao negar que veio trazer a paz. Wengst (1991, p. 92) avalia a posição de Jesus como uma negativa ao papel de pacificador no sentido de manter a estrutura da sociedade patriarcal-hierárquica, estabelecida pelo império romano e pela elite sacerdotal (Mt 10,34-36). Os discípulos, ou seguidores de Cristo, a exemplo do mestre, “são defensores não da paz destrutiva de Roma (Pax Romana), mas do império misericordioso de Deus, que traz plenitude e bem-estar aos humilhados e oprimidos (CARTER, 2002, p. 308). Nesse sentido, o Evangelho resiste e subverte o centro do poder formado pela elite religiosa e política. Os que são da paz deverão andar na contramão do sistema. A forma verbal shalom tem o significado de reparação, retribuição: é indenizar, pagar, cumprir, restaurar, terminar, completar. No bem e no mal: recompensar e vingar. Eis porque a casa deve ser “digna de receber a paz”. Quatro vezes encontramos o adjetivo digno nestas linhas (Mt 10). Dignidade aqui é pobreza, é capacidade de receber, é ter direito, ter precisão. Paz é caminho de mão dupla; só a recebe quem a faz: a casa e na casa (GALLAZZI, 2012, p. 191) A paz, em sua plenitude, esperada pelo povo judeu a época de Cristo tinha como objeto a expulsão dos invasores romanos, a liberdade religiosa, a liberação de suas fronteiras, a manutenção de suas tradições religiosas e culturais, a libertação do jugo imperial, o fim da exploração social e econômica. A sociedade judaica daquela época viveu fortes turbulências em diversas áreas de suas vidas e o que mais esperavam era a ação do Messias para trazer-lhes a paz, a restauração, a plenitude. O alvo era o viver em plena paz. A destruição de Jerusalém e do templo não foi apenas um golpe político para o povo de Israel. Significou também a destruição do centro cultural e religioso do povo (OVERMAN, 1997 p. 45). O dito “Não vim trazer paz, mas espada” atribuído a Jesus, 80 no contexto do evangelho de Mateus, ecoa como um forte apelo à resistência, pois aceitar o status vigente era aderir à falsa paz oferecida por Roma, ou, caso contrário o Evangelho45 estava propondo a oportunidade de aderir a um novo estilo de vida. Nesse novo estilo era possível implantar a justiça e ter paz com Deus, consigo mesmo e com o próximo. No judaísmo inteiro, perguntava-se pelo tempo da vinda do Reino de Deus, procurando-se sinais que indicassem, se o tempo messiânico se estava anunciando (LOHSE, 2000 p. 179). Não sem razão pois: A visão acerca da pax é uma visão muito seletiva “desde cima”. Já a vista desde baixo não era nem um pouco otimista. O que se via era escravidão, recrutamento, impostos, tributos, trabalho forçado e arrogância romana. Saquear, roubar, assassinar, essas coisas eles chamam erroneamente de império: eles produzem desolação e a chamam de paz (CARTER, 2002, pp. 66-67) A pax romana era expressa mediante meios políticos, militares, culturais, legais e sociais. Mas, era também legitimada como sendo a vontade dos deuses. Roma fora destinada pelos deuses para governar (CARTER, 2002, p. 67). A disseminação dessa ideia dava a Roma a condição de invencibilidade. A pax romana deve ser considerada muito mais do que um mero período histórico. Existe nesta expressão, primeiramente, ações políticas e militares que procuraram garantir uma relativa estabilidade neste tão extenso Império; e, em segundo lugar, há um forte teor ideológico que procurava mascarar o sistema de perseguição, exploração, morte e assimetrias existentes no Império. Sob a perspectiva dos interesses imperiais, a pax era a forma administrativa pela qual Roma viabilizava a sua unidade territorial e política. O fim primeiro dela era o bem-estar dos dominantes e a manutenção de toda a estrutura de poder implementada pelos romanos. Nesse sentido, a pax era dos romanos e para estes (SERIGUE, 2011, pp. 120-122). A Pax Romana se apoiava no poder militar e oferecia segurança e paz, desde que os povos vivessem em harmonia e não provocassem conflitos. Na compreensão judaica justiça e paz se unem para levar o homem ao Reino Eterno dos Céus, pois por justiça se entende a obediência aos mandamentos divinos enquanto a paz se 45A narrativa evangélica subverte a propaganda imperial mostrando que o império de Roma não é definitivo. O Evangelho conta uma história de uma figura profética que sofre o pior que o império pode fazer com ele: a execução por crucifixão. Mas sua ressurreição e subsequente retorno em poder expõe os limites do poder romano. O Evangelho constrói um mundo alternativo. Resiste aos reclamos imperiais. Recusa-se a reconhecer que o mundo deva ser ordenado nessas linhas (CARTER, 2002, p. 72). 81 resume no estar bem com o próprio Deus, consigo mesmo e com o próximo. A paz designa aquilo que o fiel pode sonhar de melhor, e o melhor que ele pode desejar para o próximo (Lv 26,3-6). (DU BUIT, 2003). Jesus introduz importante corretivo para as expectativas messiânicas correntes. A paz que Ele traz não é tanto entre homem e homem, mas entre Deus e o homem. Entre o homem e homem ele traz a espada da separação entre o bem e o mal, entre aqueles que acolhem a sua mensagem e aqueles que a rejeitam (LANCELOTTI, 1980, p.108) Ao comentar Mateus (10,34-36) Camacho salienta que nesse dito, “Jesus dissipa um mal-entendido (Mt 5,17). A paz que Ele traz (5,9) baseiase na opção contra a riqueza, o prestígio e o poder (Mt 5,3), e estabelece a justiça entre os homens (Mt 5,6). É paz pela qual é preciso trabalhar (Mt 5,9), mas cuja proposta suscita tremenda oposição” (Mt 5,10-11) (CAMACHO, 1993, p. 121). Trabalhar para a construção da paz não seria tarefa fácil. Haveria resistência. Jesus estava literalmente confrontando um sistema poderoso e isso provocaria muitos conflitos. Era o sistema político-religioso. Ele estava disposto a levar sua missão até ao fim e, naturalmente, o fim seria a morte. Ele não temeu a morte, da mesma forma que não temeu a vida. Evidentemente, os seus seguidores, aqueles que dariam continuidade à sua missão também enfrentariam conflitos, oposições, perseguições. Até que ponto estariam dispostos a abrir mão da própria vida, por amor a Jesus? Até que ponto se entregariam à morte para não ceder diante de uma perseguição? O Capítulo (10) de Mateus é um capítulo dedicado de certa forma, ao fortalecimento da sua comunidade. O confronto era inevitável, pois os líderes do judaísmo estavam articulando para se tornaram seus representantes. Roma estava prosseguindo no seu ideal de pax forjada. Então, o capítulo missionário representa para a comunidade mateana um estímulo: se estiverem dispostos a viver com Ele (Jesus) terão que saber que também Ele sofreu todas estas coisas. E mais: Ele não veio trazer a paz, Ele não veio para se conformar com a injustiça, com a impiedade, com a descaso diante das necessidades. Então era preciso estar preparado pois a missão tinha que continuar. E certamente para continuar a missão de implantação da paz seria necessário a espada. Storniolo (1991, p. 83), acerca da paz dissera que é preciso compreender: “Jesus não veio trazer a paz, isto é, tranquilidade apesar de toda a injustiça que reina 82 no mundo. Não, Ele veio trazer a espada, a luta contra a injustiça. E essa luta é mais importante até do que as relações familiares”. A paz é o sinal verdadeiro da presença atuante do Reino. Levar a paz significa estar a serviço do projeto das bem-aventuranças, do projeto de vida dos pobres no Espírito. Por isso o conflito. É para lá que Mateus nos leva. Paz nada tem a ver com neutralidade; querer construir a verdadeira paz provoca reações (GALLAZZI, 2012, p. 191). No dia do julgamento haverá mais tolerância para a terra de Sodoma e Gomorra. O castigo definitivo e inexorável depende da aceitação do apóstolo e do acolhimento de sua palavra de paz (GALLAZZI, 2012, p. 192). A saudação, também aos inimigos (Mt 5,47), é um dos sinais do Reino e da perfeição do Pai. Não é um gesto de cortesia. Trata-se da concretização do anúncio do Reino (Mt 10,7). A saudação judaica shalom inclui saúde, felicidade, benção, paz. O shalom deve ser aceito ou rejeitado (GALLAZZI, 2012, p. 189). Apesar dos graves conflitos com os líderes da comunidade judaica e de experiências disciplinares comuns, ou melhor, por causa dessas relações negativas, o grupo mateano ainda é judeu. Foi classificado como dissidente pelas autoridades e por muitos membros da comunidade judaica em sua cidade ou região. A resposta de Mateus a esse conflito pode ser vista na polêmica e na apologética do evangelho (SALDARINI, 2000, p. 8). A paz era o conceito teológico mais bem desenvolvido, e pelo qual a sociedade judaica se organizou e também pelo qual lutou. O alvo de suas batalhas era a defesa dessa sociedade, ao menos, para um grupo, que defendia essa estrutura ideologicamente criada cujo alvo era viver a plenitude desses valores, especialmente a paz. Uma das dificuldades encontradas por leitores de textos bíblicos é justamente sua interpretação. Essa dificuldade se deve a fatores temporais, linguísticos, estilísticos, teológicos, religiosos e culturais. Para amenizar ou até mesmo para dirimir essas dificuldades as ciências bíblicas se valem de métodos e técnicas interpretativas que tem auxiliado estudiosos ao longo dos séculos. 3.1.1 Critica textual, crítica das fontes e crítica da redação A importância da crítica textual para a interpretação de textos bíblicos se deve ao fato de não possuirmos nenhum manuscrito original desses textos. “Nenhuma das 83 cópias reproduz o texto original integralmente; pelo contrário, cada uma delas apresenta variantes de natureza diferente” (MAINVILLE, 1999, p. 39). Outra dificuldade para reproduzirmos com exatidão a intenção do autor é quanto à distância e a língua46 na qual foram escritos ou produzidos os originais. Em seu desenvolvimento histórico, o método de crítica textual do Novo Testamento tem sido em cada instância uma combinação de vários fatores, como disponibilidade de manuscritos, julgamentos dogmáticos dos especialistas, desenvolvimento gradual de cânones básicos de crítica, procedimentos estatísticos e mecânicos, reconstrução de famílias de manuscritos e crítica do conteúdo, que por vezes resultou em emendas conjeturais47. No estado atual da evolução da disciplina, a tentativa é de considerar todos esses fatores de modo abrangente (KOESTER, 2005, p. 45). A prática da crítica textual distingue dois tipos de exercícios: a crítica externa -avalia uma lição partindo da qualidade dos manuscritos que a contém, e interna, consiste em avaliar uma lição48 partindo de seu conteúdo literário específico (MAINVILLE, 1999, p. 40). Como não é possível se chegar aos originais de nenhum texto bíblico, deve-se considerar as traduções49 mais antigas também, como fontes literárias50. A partir de 1947, foram encontrados em onze grutas de Qumrã cerca de oitocentos manuscritos bíblicos. Essa descoberta fabulosa nos pôs em contato com testemunhas do texto bíblico de mais de mil anos anteriores às que eram conhecidas até então. Todos os livros bíblicos, com exceção de Ester estão representados nos manuscritos de Qumrã, embora, em muitos casos, apenas em fragmentos (MAINVILLE, 1999, p. 23). De grande importância para a reconstrução dos textos bíblicos são os manuscritos de Qumrã, que, como os textos mossorético e protomassoretico são testemunhas diretas da existência de textos bíblicos hebraicos. Outros ainda podem 46 Todos os livros do Antigo Testamento foram escritos originalmente em hebraico, língua semítica cuja existência é atestada há três milênios. 47 O valor dessas considerações, porém, é limitado, tanto por causa do grande número de manuscritos quanto pela complexidade de sua transmissão. O estabelecimento de famílias de manuscritos não resultou num estema cristalino e coerente, pois as vias da transmissão dos manuscritos se entrecruzam frequentemente (KOESTER, 2005, p. 45). 48 Uma lição designa um fragmento de texto tal como foi transcrito por um copista diferentemente de um texto de referência (MAINVILLE, 1999, p. 40). 49 São consideradas testemunhas indiretas. As versões que interessam para a crítica textual são aquelas que foram traduzidas diretamente do grego. São elas a siríaca, latina, cóptica, gótica, armênia, etiópica, geórgica, arábica e eslávica (MAINVILLE, 1990, p. 34). 50 Os primeiros escritos cristãos, inclusive todos os documentos que compõem o Novo Testamento, são fontes literárias muito problemáticas para a compreensão do início do cristianismo. Durante os dois primeiros séculos, a única Sagada Escritura que os cristãos aceitavam era a Bíblia de Israel, a “Lei e os Profetas”, que só bem mais tarde foi chamada de Antigo Testamento (KOESTER, 2005, p. 2) 84 ser citados como: o Pentateuco samaritano, o papiro de Nash e os fragmentos de Gueniza do Cairo (MAINVILLE, 1999, p. 17). Se a reconstrução de um texto “original” dos escritos do Novo Testamento é uma tarefa desanimadora e talvez até impossível, deve-se acrescentar que apenas uma porção muito pequena do texto no Novo Testamento está sujeita a dúvidas 51 (KOESTER, 2005, p. 47). A prática da crítica textual é também esclarecedora dos métodos de trabalho dos escribas e da importância que eles atribuíam ao seu trabalho. Além disso, a crítica textual tem muito a dizer sobre o processo de transmissão do texto bíblico, mesmo se o contato com essa grande quantidade de manuscritos bíblicos mostrar como seria ilusório querer chegar ao texto original. Enfim, e apesar de seus limites, a crítica textual abre diante de nós um mundo de enormes riquezas (MAINVILLE, 1999, p. 59) “Quando foram escritos os livros do Novo Testamento, a Torá escrita e a Torá oral não tinham alcançado ainda o ponto de cristalização definitiva” (BARRERA, 1995, p. 593) Por isso, o Novo Testamento faz uso do Antigo Testamento liberalmente52. “Os primeiros cristãos utilizavam os princípios e métodos da exegese judaica, com uma única diferença, embora determinante: a leitura cristológica do Antigo Testamento53” (BARRERA, 1995, p. 594). A exegese Neotestamentária do AT desenvolve todos os métodos de interpretação conhecidos no judaísmo da época: literal, pesher, midráxico e alegórico. Conhece também gêneros como o Testimonia e o do “proêmio homilético”. As discussões de Jesus com os rabinos revestem-se com frequência desta forma midráxica. Na transmissão evangélica mais antiga está bem enraizada a ideia de que Jesus considerava que as profecias bíblicas tinham cumprimento na sua pessoa e na sua missão escatológica (BARRERA, 1995, pp. 596, 599). 51 O novo Testamento é o mais bem confirmado de todos os documentos da história antiga, e a abundância de evidências, na forma de manuscritos gregos, traduções e citações dos primeiros pais da igreja, tem tornado possível a restauração de seu texto a um grau realmente admirável (CHAMPLIM, 2014, p. 86). 52 A exegese pesher dos cristãos foi tão meticulosa que não há praticamente versículo algum no Novo Testamento que não se refira às Escrituras mais antigas. Os quatro evangelistas parecem ter usado a Septuaginta como outra fonte para a biografia de Jesus (ARMSTRONG, 2008, p. 70-71). 53 Os desvios textuais nas citações que Jesus ou o Novo Testamento fazem do Antigo Testamento inscrevem-se, no panorama de fluidez textual com que o texto bíblico era transmitido na época correspondente aos anos de vida de Cristo e da formação da tradição evangélica. O número de citações do Antigo Testamento é maior em Mateus e João do que em Marcos e Lucas (BARRERA, 1996, p. 602). 85 Mateus faz uso bem amplo do AT, em torno ao tema do Novo Êxodo e do Novo Moisés. Na vida e na doutrina de Cristo tudo acontece e tudo se diz “para que se cumpra” o dito pelos profetas (Mt 1,23; 2,6;5,3;27,9) (BARRERA, 1996, p. 608). O Evangelho de Mateus, como os ‘Pesharîm’ de Qumrã, interpreta as passagens bíblicas como profecias do presente e do futuro das respectivas comunidades, essênica e cristã. O característico do midraxe praticado na escola de Mateus é que precisa desenvolver toda uma biografia de Jesus como marco no qual inscrever as citações, a partir das quais o AT é interpretado à luz do acontecimento cristão (BARRERA, 1996, p. 609). 3.1.2 Crítica das Fontes Importante o estudo relacionado à fonte dos ditos encontrados nos textos bíblicos, pois uma pequena parcela apenas dos escritos do Novo Testamento e de outras peças da literatura do cristianismo primitivo pode ser considerada como produto criativo de um autor individual. O recurso a fontes escritas era disseminado e determinou consideravelmente o conteúdo e a forma desses escritos (KOESTER, 2005, p. 47). O Evangelho de Mateus é considerado o mais judaico de todos os Evangelhos em razão do número de citações de textos provenientes das Escrituras. As citações feitas por Mateus são objeto de investigação da crítica das fontes. Isto nos remete para o que se convencionou chamar de problema dos sinóticos. “Embora praticada de maneira esporádica e isolada desde meados do século XV, a crítica das fontes só se tornou verdadeiro método científico no século XIX” (MAINVILLE, 1999, p. 65). No Novo Testamento, foi o problema sinótico que levou ao desenvolvimento das pesquisas relativas à crítica das fontes. Chamou-se sinóticos os três primeiros evangelhos: Mateus, marcos e Lucas. As semelhanças entre eles podem ser observadas tano na utilização e ordenação dos materiais literários como nas expressões adotadas pelos três autores. Este fato levou naturalmente a se colocar o problema da dependência literária: quem copiou de quem? (MAINVILLE, 1999, p. 66). Como ensina Koester (2005, p. 162), o testemunho mais importante para a teologia escatológica das comunidades que transmitiram a palavra de Jesus é a fonte dos Ditos Sinóticos, também designada como “Evangelho de ditos Q”. 86 É um evangelho de ditos que pode ter sido composto já em torno do ano 50 d.C. com base em coleções ja existentes de ditos que haviam sido reunidos para fins catequéticos, polêmicos e homiléticos. As porções das falas sobre o envio dos discípulos que derivam de Q exigem uma vida ao desabrigo e o abandono de todas as posses (Q/Lc 10,2-12.16) Estes ditos revelam o perfil dos discípulos que deveriam adotar uma forma de vida itinerante. Este mesmo dito foi usado por Mateus capítulo 10, para ensinar os discípulos sobre o perfil dos enviados (KOESTER, 2005, p. 162). Ferreira, (2012, p. 61s) afirma que provavelmente a fonte Q foi redigida por um grupo que conviveu com Jesus, ou estava bem próximo dele. Era o grupo do cristianismo primitivo Galileu. Estes textos são comuns nos atuais evangelhos de Mateus Marcos e Lucas. Esse documento continha ditos sobre o “filho do homem” e o “Reino de Deus”, e acenos apocalípticos e éticos do dia a dia. Jesus, na fonte Q é bem humano, ocupado com a vida concreta das pessoas. A comunidade de Mateus encontrava-se na Galileia, portanto bem longe de Jerusalém, do Templo. Este não era problema para a Galileia. Também não falava em “Lei”, porque esta não fazia parte de suas preocupações. Não eram encontrados títulos cristológicos, como salvador (soter), na fonte Quelle. Quando Jesus era chamado de senhor (Kyrios) era com “s minúsculo”. O julgamento estava muito próximo do juízo, onde os pobres eram felizes. A expressão “filho de Deus” não definia um eixo cristológico. Ser filho de Deus era privilégio de todos que cumpriam os ensinamentos de Jesus (FERREIRA, 2012, p. 62-63). A vinculação entre os evangelhos sinóticos tem como característica uma relação de proximidade e distância. Mateus e Lucas possuem maior volume de material. A descrição da tentação de Jesus é bem mais desenvolvida em Mateus e Lucas (Mt 4,1-11; Lc 4, 1-13), do que em Marcos (Mc 1,12-13) (LEONEL, 2013, p. 14). O Evangelho de Marcos omite o período da infância de Jesus, enquanto Mateus e Lucas o fazem (Mt 1-2; Lc 1-2). Alguns sermões como o do Monte, (Mt 5-7), o da Planície (Lc 617-49) e o Sermão do envio em Mateus (10), e também o capítulo 23 de Mateus não se encontram em Marcos. Entre os sinóticos não há apenas diferenças na comparação entre Mateus e Lucas com Marcos. Entre Mateus e Lucas também há consideráveis divergência (LEONEL, 2013, p. 16). Ainda, Leonel (2013, p. 42) citando Stanton argumenta que é necessário que o estudioso dos evangelhos agregue aos elementos literários de análise um estudo contextual sério no qual eles se apresentam. Na crítica moderna a prioridade e a importância da tradição oral na formação dos evangelhos são quase universalmente aceitas. Os textos de Q (Quelle) eram 87 comuns em Mateus e Lucas. Eles eram os que aproximavam do Jesus histórico. Muitas colocações poderiam ser do próprio Jesus. Para Quelle, era vital compreender o homem Jesus. (FERREIRA, 2012, p. 64). Leonel (2013, p 86) comenta que mais do que promover a expansão dos discursos emprestados de Marcos, o narrador mateano inclui outros, provenientes em sua maior parte da fonte Q. São eles: o sermão do Monte, (Mt 5-7) e o discurso sobre a missão dos discípulos, (Mt 10), para a qual absorve apenas Mc 3,14-19 e 6,8-11, situados em um contexto não discursivo. Apesar da presença de segmentos de Marcos, o capítulo 10 de Mateus pode ser considerado como um discurso presente apenas neste evangelho54. No campo da pesquisa bíblica a questão sinótica adotou com mais precisão a teoria das “duas fontes”. Na crítica moderna o termo “problema sinótico” indica o problema que surge das relações entre Mateus, Marcos e Lucas e comporta o problema das origens (MACKENZIE, 2015, p. 810). Quando um texto parecido aparece em Marcos, Mateus e Lucas significa que os dois últimos se fundamentaram em Marcos. Quando aparece só em Mateus e Lucas significa que a fonte foi Quelle (FERREIRA, 2012, p. 66). Nesse caso podemos concluir que esse dito provavelmente teve origem em Quelle e pode ter sido proferido por Jesus. Como não é possível comprovar se Jesus o disse de fato, Mateus o atribuiu a Jesus, por ter sido provavelmente proveniente de Quelle. Leonel, (2013, pp. 16-19) observa que “a consciência de que há interdependência entre os evangelhos sinóticos e a busca de soluções para essa questão, surgiu de modo consistente no século XVIII”. Concluiu-se que os três evangelhos fizeram uso de uma fonte anterior a eles, oral ou escrita, e que Marcos seguiu de modo mais acurado tal fonte. Portanto, Marcos contém uma tradição dos evangelhos mais antiga do que os outros dois. O curioso é que esse material, oriundo dessas fontes, são colocados dentro de contextos 54A mais antiga composição sinótica deste gênero é o discurso com instruções para a missão, transmitido em formas diferentes em Mc 6, (8s), 10s; Mt 10,7-14; Lc 9, 3-5 e em Q (Lc 10,1-16; Mt 10, 7-16). Trata-se de instruções na segunda pessoa do plural. As orientações sobre objetos que se podem levar têm seus paralelos mais próximos nas listas a respeito do traje e dos objetos de uso dos filósofos cínicos itinerantes. As instruções de Mt 10,5-11,1 apresentam a composição mais elaborada; Mt 10,511: instruções sobre a viagem missionária; (V12-15) paz e maldição; (v 16-33), comportamento nas perseguições; (v 34-36) decisão e separação; (v 37-42) admoestações em forma condicional, relacionadas nos vv 40-42 ao comportamento para com os discípulos (BERGER, 1984, p 66). 88 diferentes pelos evangelistas para atender ao seu projeto, pensado para suas comunidades. Cada evangelista usou de forma independente também o produto de suas pesquisas. Com base nisso “são aceitas a existência de duas outras fontes: M (usada apenas por Mateus), e L (usada apenas por Lucas)”. (LEONEL, 2013, p 18). Apenas em Mateus, em seu relato sobre a crucificação de Jesus, traz o extraordinário conto com um terremoto e do que parece ser uma ressurreição localizada, mas em grande escala, de mortos. Imediatamente após Jesus ter dado seu último suspiro. Mateus segue seu próprio caminho e levanta seus próprios problemas ele tem duas histórias, cada uma delas em duas partes, o que o distingue dos demais evangelhos: um par de terremotos, e uma guarda de soldados que é paga para que espalhem contos. Tem também a história do túmulo vazio, bastante parecida com a de Marcos, embora com diferenças significativas (WRIGHT, 2013, p. 874). A crítica das fontes tem a finalidade de examinar o texto com o objetivo de reconstruir materiais escritos mais antigos (ou fontes) que estão atrás do texto atual e a partir dos quais o texto final foi composto (MAINVILLE, 1999, p. 65). A crítica textual, a crítica literária e a crítica das fontes, são importantes instrumentos para uma interpretação moderada das escrituras. Muitos métodos interpretativos foram propostos para os textos bíblicos desde o período do cativeiro na Babilônia, ou seja, o período do segundo Templo. Questão de Mateus com os líderes judaicos, no tocante às Escrituras, em parte se deve à forma como estes a interpretavam. Isso significa que já naquele tempo se praticava com certa liberdade métodos e técnicas de interpretação das Escrituras. A busca de sentido do texto e a intenção do autor, são prioridades na análise proposta de Mateus 10, 34-36. Não podia haver nenhuma interpretação definitiva da Escritura. Essa ideia foi defendida já nos primeiros dias em Yavneh (Jâmnia), quando o rabino Eliezer envolveu-se numa irredutível discussão com seus colegas sobre um preceito legal (halachá) (ARMSTRONG, 2008. p. 89). 3.1.3 Crítica da Redação: Espada O capítulo 10 do Evangelho de Mateus é conhecido como o capítulo do envio. Este capítulo narra o envio dos discípulos de Cristo em missão com as devidas recomendações. “As ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10,6) seriam o alvo desta missão. A atribuição principal da missão era o anúncio da chegada do Reino dos Céus, 89 a cura das enfermidades e a libertação de todo tipo de espírito imundo (OLIVEIRA, 2014, p 114. Em (Mt 10,11-15), estão relacionadas estas recomendações: em qualquer cidade ou aldeia em que entrassem, deveriam se informar sobre quem nela era digno, e ali ficarem hospedados. Aqui surge outro componente importante no projeto missionário: saber quem era digno. Digno de que? Gallazzi (2012, p. 202) explica que ser digno significa precisarmos dele (de Jesus), mais do que de nossos pais, mais do que de nossa própria vida. Significa saber sentir que esta é a única relação que não pode ser rompida, em hipótese alguma. Acrescenta ainda que à palavra “digno” corresponde o verbo “receber”. Jesus, que começou dizendo aos apóstolos que deviam saber dar, e dar de graça (10,8), termina falando que o apóstolo deve ser recebido e saber receber. É uma relação de mão dupla que faz com que sejamos capazes de construir uma nova casa, onde as relações não sejam determinadas pelo sangue, mas pela capacidade de receber (GALLAZZI, 2012, p. 203). A orientação dada aos seguidores de Cristo vai ainda mais além: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim. E quem ama o filho e a filha mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10, 37). Para Jesus a família não é um valor absoluto, nem prioritário na concepção do Reino de Deus. “Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher e filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc. 14,26) (ALLGAYER, 1994, p. 74). O manancial do amor autêntico alimenta-se do silêncio de uma doação completa e não do arrebatamento dos sentidos ou de manifestações ostensivas. Odiar pai e mãe” e a própria vida”, na lógica de Jesus, é promover o afeto familiar e a autoestima em grau máximo. O amor tira alento da renúncia a bens inferiores ao próprio amor. Amor que não é “amor” de gueto, de segregação, de grupo fechado. Somente é digno do Homem-Deus o amor infinito (ALLGAYER, 1994, p. 75). O foco central da missão de Jesus é exatamente este: enquanto para uns haverá salvação, para outros o julgamento. A negação de Jesus, expressa em uma existência missionária, significa uma negação diante de Deus (CARTER, 2002, p. 316). A missão confronta o mundo de injustiça, poder, ambição, compromissos falsos e morte de Roma, com a misericórdia e justiça de Deus. Desafia os interesses pessoais apesar do conflito, divisão, sofrimento e rejeição. Oferece uma alternativa para a missão de Roma que utiliza a violência militar e o imperialismo cultural a fim de governar as nações “com seu poder”. A resposta à missão envolve consequências escatológicas de vindicação ou condenação (CARTER, 2002, p. 304) 90 Esta é a condenação no dia do julgamento (CARTER, 2002, p. 316). Exemplos focais de rompimento familiar pela aceitação de Cristo, se dava quando um grupo familiar, composto por parentes, servos e escravos, com normas comportamentais religiosas e cultuais eram determinadas pela família e algum membro dessa grande família divergia do outro acontecia o rompimento (Mt 10,35-37). Reconhecer Jesus como Messias, por exemplo, seria causa de rompimento num grupo só de Judeus. Aceitar a renovação proposta por Mateus ao judaísmo seria outra (SALDARINI, 2000, p. 172). No decorrer da narrativa do capítulo (10), conhecido como o sermão do “envio” o foco da narrativa é desviado da missão dos discípulos para a missão do próprio Jesus 10, 34-36. “A missão dos discípulos imita a missão de Jesus e deriva dela. Esta missão reivindica lealdade exclusiva contínua a Jesus. Seu impacto demolidor sobre as famílias significa perseguição” (CARTER, 2002, p.316). Ao desviar o foco da missão dos discípulos para a de Jesus, Mateus nos leva para a característica profética da mensagem de Cristo, cuja finalidade é primeiro anunciar e denunciar. A segunda característica é consolar e confortar. Os romanos são os saqueadores do mundo.... se o inimigo é rico, eles usurpam; se é pobre, eles ambicionam dominá-lo. Não se sacia o Leste nem o Oeste... Eles roubam, massacram, pilham, e dão a isso o nome de ‘império”; e onde implantam a desolação, dão-lhe o nome de “paz”. (HORSLEY, 2004 p. 21). Ao negar que viera trazer a paz e sim a espada, Jesus estaria deslegitimando a pax romana e consequentemente denunciando sua violência contra os fracos e desfavorecidos (Mt 5). Ao mesmo tempo o anúncio da espada nesse cenário evoca não a violência por si só, mas o julgamento de Deus, a justiça Divina, a reviravolta nas estruturas sociais, políticas e religiosas. A espada interfere nas relações pois traz comprometimento por parte de quem ouve e recebe a mensagem do Cristo. A espada como arma de guerra é símbolo da palavra de Cristo que divide, que provoca, que questiona, que exige posicionamento. Diante de uma paz imposta pela violência, para beneficiar apenas uma camada da elite, a justiça de Deus, que ouve o grito dos oprimidos, entra em cena e Jesus vem oferecer uma paz, não como a de Roma (Jo 14,27), por isso essa paz encontraria resistência. Essa resistência é no sentido de não permitir o confronto, não permitir sua implantação, mas a mensagem profética de Jesus encontrou eco na fé dos seus 91 seguidores e como um grão de mostarda vai se avolumando e aglutinando cada vez mais seguidores. A espada divide, mas este é o caminho da verdadeira paz. A palavra sobre a paz (vv. 11-15) indica pela primeira vez a dimensão escatológica da ação dos discípulos: são portadores do bem messiânico por excelência, a paz. Realizam a bem-aventurança dos que promovem a paz. Mas, mesmo este bem não se impõe. Ele deve ser recebido livremente. Entretanto, quem o recusa, torna-se seriamente responsável por esta recusa. A missão é portadora de um julgamento: os missionários são portadores da verdade que entra em confronto, e encontra resistência (v. 15) (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p. 106). Os seguidores de Jesus deveriam estar firmes e seguros na verdade da sabedoria de Jesus para enfrentar os ataques dos grupos que representam o sistema da Lei Mosaica (V. 16) (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p. 107) Os fariseus, os saduceus e os escribas são comparados a serpentes venenosas. O confronto com esses grupos suscitará a perseguição que poderá ser no campo religioso e ideológico pelo confronto com a sinagoga e no nível político com reis e governantes. “Os discípulos não agirão por si mesmos, terão a força do Espírito do Pai (vv. 19,20). O confronto que os discípulos enfrentam é uma luta de Espírito a espírito (Mt 12,28), como a própria experiência de Jesus com seus adversários” (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p. 107). A verdade revela que a ideologia dos escribas e fariseus encobria a vontade de Deus, e eles a realizavam em interesse deles mesmos, e para manter o povo em dominação (GORGULHO e ANDERSON, 1981, p. 107). A ação missionária é uma espada (vv. 34-36). Assim como a missão de Jesus é um julgamento decisivo, conforme a palavra do profeta (Mq 7,5), do mesmo modo será a ação do discípulo. A espada é a verdade que liberta. Ela provoca a divisão por causa da resistência e da defesa que os ouvintes lhe apresentam. A ação missionária dirige-se à liberdade e provoca uma tomada de posição. Ela desarticula as mentiras e as verdades aparentes que cimentam os interesses e o poder absoluto de pessoas e grupos na sociedade (GORGULHO, e ANDERSON, 1981, p. 110). O aspecto escatológico deve ser considerado na expressão: “Não vim trazer paz à terra, mas espada”. Importante consideração feita por Carter quanto a este aspecto, sob o argumento de que: A plenitude dos propósitos de Deus, o reinado de paz, ainda não alvorecera no ministério de Jesus. Ainda havia a necessidade da espada, evocando conflito, guerra, violência antes do estabelecimento do império do Reino dos Céus, que se daria num tempo futuro (CARTER, 2002, p. 316) 92 A terra como cenário da implantação deste Reino não estaria, portanto, madura para sua chegada. O evangelho não só propõe a ilegitimidade das estruturas construídas com base na dominação, como apresenta a alternativa vinda das margens. O Evangelho critica o patriarcado romano, e sugere um patriarcado Divino. Com este dito Jesus recusa-se decididamente a legitimar e abençoar o status quo de um mundo injusto e sumamente impacífico. Não foi para isso que ele veio. Pelo contrário, ele trouxe a “espada” para dentro de tal “paz”, que é apenas pseudopaz. Como o contexto mostra, espada é imagem sugestiva para a divisão da casa, que procede de “baixo”; é metáfora para a dissolução, a partir de “baixo”, da ordem estruturada hierarquicamente e do domínio baseado na propriedade, para o desmascaramento e a destruição da paz aparente. (WENGST, 1991, p. 92). O evangelho encerrou a série de milagres constatando que, por onde Jesus passava, nas cidades e povoados, a multidão estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor (Mt 9,36). Era preciso agir, ir ao encontro do povo. Mas Jesus adverte que o que espera os missionários são: perseguições, hostilidades, rivalidades (VASCONCELOS, et al, 1999, p. 62). Neste contexto, a espada de dois gumes, que é a palavra de Deus, traz o julgamento e anuncia a reviravolta histórica. Não ficará pedra sobre pedra até que venha o Reinado de Deus. Jesus disse que não veio trazer a paz, mas a espada (Mt 10,34). O contexto indica claramente que a espada significa a hostilidade provocada pela fé nele. Mas em Mt 26, 52, fica claro que Jesus rejeita com veemência o uso da violência em sua defesa. Não é só isso, espada é não aceitação da situação vigente, é resistência. Espada é confronto exige decisão, exige adesão, não comporta conformismo. 3.2 Interpretando Mateus (10,34-36) Cada época privilegia um tipo de interpretação da Bíblia. Geralmente, quem interpreta está inserido em determinados momentos históricos, dentro de um contexto onde se encontram cristãs e cristãos envolvidos em determinadas comunidades (FERREIRA, 2011, p. 12). Outras considerações acerca de interpretação podem ser levantadas. Como a sociedade palestinense à época de Jesus e dos Evangelhos era uma sociedade estratificada, os escritos produzidos ou interpretados a esse tempo também sofreram essa influência. Ou seja, é preciso determinar a origem das interpretações, a partir do exame dos contextos no qual foram produzidos. 93 Os evangelhos são considerados literatura popular e foram pensados e elaborados com este critério. Mosconi (2004, pp. 18-20) apresenta algumas características da literatura popular, presente nos evangelhos: lê o passado em função do presente, é existencial; é feita de pequenos textos. É fragmentária; não aparecem nomes de autores; gostam de enfeites para salvar a verdade dos fatos, usa linguagem simbólica e parabólica, pois isso ajuda a gravar mais os recados; Os evangelhos são textos compostos por militantes do Reino e a eles se destina, bem como a pessoas que queiram nele entrar. Quem lê os Evangelhos segundo os critérios da literatura moderna e racional, corre o perigo de manipular e violentar os textos. Não vai sintonizar-se com o estilo e o coração dos evangelhos. A literatura popular é científica e séria, tanto quanto a literatura clássica e moderna (MOSCONI, 2004, p. 21). Este capítulo traz uma interpretação do dito atribuído a Jesus, no Evangelho de Mateus (10, 34-36) considerando o contexto político, social, religioso no qual a comunidade mateana estava inserida, mas também considerando outras possiblidades de leituras e interpretações de textos bíblicos tidos como literatura55. É com esse olhar sobre os Evangelhos como literatura popular, produzido pelo povo pobre, cuja única riqueza era a esperança, que serão feitas considerações sobre a perícope de Mateus 10-34-36. Toda criação humana leva consigo, inevitavelmente, o selo da história. E a literatura não é uma exceção. Nasce e se desenvolve em estreita relação com um país e seu processo histórico. Está escrita por e para homens de uma sociedade concreta e, por isso, reflete de algum modo sua organização social, sua cultura e o conjunto de suas crenças. Para compreender uma obra literária, portanto, será preciso levar em conta todo esse pano de fundo (ABADÍA, 2000, p. 29). Enquanto a pax romana tinha a finalidade de trazer a acomodação, a ordem, deixar as coisas confortáveis para os romanos, a mensagem de Cristo, ao contrário sugeria a desacomodação, a desordem, a investida contra a ordem imposta. Nesse sentido a espada seria um instrumento essencial para essa desacomodação. Enquanto os não seguidores de Cristo encontram o desconforto pela desarmonia proposta pela Paz de Cristo, os seus discípulos encontram a segurança no Reino dos 55 Além de ser uma manifestação estética, a literatura é, pois, um fenômeno social. A ação da sociedade manifesta-se: na própria obra, que, direta ou indiretamente, dá testemunho dessa sociedade; no autor, que deve tomar partido diante do sistema de instituições, convenções, sentimentos, crenças e doutrinas que o cercam; e na aceitação de tais ou tais obras por parte do conjunto da sociedade (ABADÍA, 2000, p. 29) 94 Céus. Essa segurança se torna uma tônica devido ao ingrediente indispensável à paz que é a Nova Justiça (Mt 5). A nova Justiça (dikaiosyné), a eirene (paz), e o Reino dos Céus (Basiléia ton Ouranon) são temas que confrontam o projeto de paz de Roma. Nesse contexto a espada, quanto à sua natureza denota divisão e julgamento de Deus à elite, Para Gallazzi (2002, p. 202) paz não tem nada a ver com neutralidade, com ausência de confrontos, com estar em cima do muro, portanto o conflito seria inevitável, pois a decisão por Cristo, por si só já seria suficiente para dividir as famílias. Este conflito, naturalmente, encontraria sua última instância nas famílias, tendo iniciado, nas cidades, nas relações interpessoais indo desde o alto escalão do poder até se refugiar nas casas e nas famílias. Isto fica claro em todo o capítulo (10) do Evangelho de Mateus. A missão confronta o mundo de injustiça, poder, ambição, compromissos falsos e morte de Roma, com a misericórdia e justiça de Deus. Desafia os interesses pessoais apesar do conflito, divisão, sofrimento e rejeição. Oferece uma alternativa para a missão de Roma que utiliza a violência militar e o imperialismo cultural a fim de governar as nações “com seu poder”. A resposta à missão envolve consequências escatológicas de vindicação ou condenação (CARTER, 2002, p. 304) Para melhor compreensão, portanto, do contexto vital do livro de Mateus, devese considerar que a comunidade e o grupo fragmentado que restou do judaísmo lutavam para estabelecer, ordenar e definir suas crenças e sua vida. (OVERMAN, 1997, p. 79). O grupo dos fariseus se impunha na disputa pelo poder e na reconstrução do judaísmo e o grupo de Mateus tentava sobreviver entre eles com suas diferenças. Crucial para compreender a comunidade judaica de Mateus comprometida com Jesus, é o reconhecimento de estar envolvida numa luta local no interior de uma sinagoga por um lugar em uma tradição comum. Eles partilham as mesmas tradições bíblicas. Eles partilham o mesmo interesse sobre a presença divina, em conhecer a vontade divina, em encontrar favor e perdão divinos, no culto, em viver fielmente. Contudo, existe um motivo que causa divisão, a saber, a pretensão de que Jesus ocupa um papel central nessas tradições, que as interpreta definitivamente e que manifesta a presença salvadora do império de Deus. (CARTER, 2002, p. 63). O evangelho de Mateus enfatiza que Jesus perdoa os pecados, que Ele manifesta a presença de Deus e que interpreta a sua vontade. Tais pretensões a respeito de Jesus entrará em choque com as pretensões dos líderes judeus. Os atritos 95 se tornam constantes e inevitáveis e Mateus começa a considerar a possibilidade de uma separação, uma divisão. 34 "Μη`νομισητε οτι ηλθον βαλειν ειρηνην Não penseis que vim trazer paz επι την γην. Ουκ ηλθον βαλειν ειρηνην sobre a terra; não vim trazer paz, σλλα μαχαιραν mas espada. Neste logion, cuja situação original não é transmitida56, encontra-se expressamente o termo paz, dito por Jesus, que se recusa ao papel de pacificador. De que espécie de paz Jesus falava? (WENGST, 1991, pp. 90-91). Considerando a origem do movimento de Jesus, que era galileu, seus seguidores e discípulos57 certamente não pertenciam à nobreza, nem à elite religiosa. Então a paz proclamada por Jesus e anunciada juntamente com a chegada iminente do Reino dos Céus, não poderia ser a paz do mundo. Naturalmente, mundo aqui simboliza o poder de Roma e todos os seus aliados. Como o domínio do mundo parece não conhecer limites, ele se imiscui nos assuntos íntimos da fé judaica, provocando reação por parte dos adoradores de Javé, agora presente em Jesus, o Cristo. Esses adoradores, que conservaram sua fé, são os simples, os excluídos do sistema. A reação vem por parte desse grupo. A espada era a forma de Jesus anunciar que Deus estava lutando ao lado desse povo, e que o juízo viria para os transgressores. Ao povo caberia a fidelidade no seguimento, pois o Emanuel, estaria ao lado deles, ao lado da comunidade, até à consumação dos séculos. Importante observarmos que sempre houve resistência por parte de grupos e movimentos, por interesses diversos, na história de Israel. Basta observarmos a quantidade de grupos e movimentos que surgiram no período pós-exílio, (Cap. 2). Ora, se Israel sempre lutou, por meio de seus representantes, porque agora Mateus acha oportuno enfatizar que Jesus traria a espada, antes da paz? Se o anúncio de Jesus, na abertura do Evangelho era a chegada do Reino dos Céus e da Nova Justiça, significando em última análise a paz em sua plenitude, conforme esperada por todo Israel, então qual a razão desse dito em Mateus? Entre 56 Mateus e Lucas oferecem-no em contextos muito diferentes. Lucas o traz no final de um longo discurso, enquanto em Mateus está inserido no discurso do envio. Daí surte que, na fonte de discursos, ele estava em conexão frouxa, sem enquadramento especial (WENGST, 1991, p. 91). 57 Também aqui estão incluídos os membros da comunidade mateana. 96 outras coisas podemos dizer que a comunidade mateana parece que estava precisando de um sopro de avivamento, de esperança. Com o soerguimento dos líderes fariseus, com as perseguições por toda parte, a rigidez do sistema do mundo, a expulsão deles das sinagogas, parece que houve um certo recuo por parte de alguns e uma certa incerteza por parte de outros. Parece ser esta a justificativa para a colocação desse dito justamente no capitulo missionário (10) que enfatiza a missão dos discípulos. Era preciso fortalecer as consciências já cansadas de tanta luta e ao que parece muitas quedas. Agora seria necessário reunir todas as forças e enfrentar o inimigo, pois o próprio Deus estaria com eles, na pessoa de Jesus ressuscitado. Com este dito, o foco do capítulo 10, (a missão dos discípulos) se move da missão dos discípulos, para a missão de Jesus com três frases: Eu não vim (Mt 5,17; 9,13). A abertura não penseis contraria uma visão errada (5.17) que vim trazer paz à terra. Essa negativa é surpreendente depois da benção de Jesus aos fazedores de paz (5,9) e a instrução a estender a paz (10,13). Várias tradições entendiam que Deus inauguraria uma era futura de paz e plenitude (Is 8,23-9.7; 11,6; 66,25; Zc 9,9-10). Uma segunda declaração negativa enfatiza a contradição (Não vim trazer a paz) (CARTER, 2002, p. 316). A plenitude dos propósitos de Deus, o reinado de paz, ainda não alvorecera no ministério de Jesus, antes disso viria a espada do juízo para os transgressores. Para alguns a espada, nesse contexto, seria a punição da parte de Deus sobre Israel, por terem transgredido as Leis da Aliança. Parece não ser esta a mensagem de Mateus, ela estaria fora do contexto. Mateus estava considerando como transgressores, não Israel, pelo menos, não os seguidores de Cristo, os judeus/cristãos, mas os infiéis, os aliados de Roma e dos líderes falsos. 35. Ηλθον γαρ διχασαι ανθρωττον Após Vim, pois, para interpor/ virar o homem 70 d.C. as comunidades cristãs existentes na Palestina se dispersaram e deram origem a várias outras comunidades em diferentes regiões do Império. Os membros da comunidade mateana, em dado momento, não serão mais bem-vindos nas sinagogas dos judeus também dispersos. As pretensões a respeito de Jesus entrarão em choque com as pretensões dos líderes judeus. Os atritos se tornam constantes e inevitáveis. 97 Nesse ambiente de divisão, a primeira lealdade haverá de ser com Jesus; não se pode renunciar a ela por fidelidade a vínculos familiares. Essa segunda parte desse dito revela com mais clareza qual a espécie de paz Jesus se referia; a família, no modelo patriarcal-hierárquico aqui, representa a revolução provocada pela parte que sofre as tiranias do poder. Uma família se organiza tendo o pai no vértice do poder, de onde emanavam as ordens. Surpreendentemente não se diz agora que Jesus traz um tempo de decisão, no qual não haverá discussões em casa e, então, também separação (WENGST, 1991, p. 91) Em Mateus Jesus fala de modo unilateral; a divisão vai apenas de “baixo” contra “cima”: Os costumes tradicionais, o direito e a ordem estão dissolvidos. Visto a divisão ser o fim explícito da sua atuação, ela não deve ser compreendida de modo negativo (WENGST, 1991, p. 91)58. A reformulação, em Lc 12, 51-53, baseia-se, seguramente, nas experiências da comunidade segundo as quais, por causa da profissão de fé em Jesus, havia separações dolorosas na esfera mais íntima. A isto corresponde a formulação no estilo de profecia e a isto corresponde também a reciprocidade. Um dito paralelo, expressão das mesmas experiências e formulado com base nelas encontra-se em Mc 13,12s par. Lucas 12,52s, reflete-se sempre aqui à experiência da comunidade. Mt 10,34s é caracteristicamente diferente. Como poderia esta formulação, que não correspondia à experiência da comunidade, ter sido formulada nela? Ela, tem, portanto, que remontar ao próprio Jesus (WENGST, 1991, p. 92). 36 κατα του πατρος αυτου και θυγατερα κατα της μητρος αυτης και νυμφην κατα της πενθερας αυτης και εχθροι τον ανθρωπον οι οικειακοι αντον 36 contra o pai dele/seu, e a filha contra a Mãe dela/sua; e a nora contra a sogra dela/sua. Os inimigos do homem serão os da sua própria casa. (Interlinear, 2008, p 39). Na narrativa de Mateus os adversários de Jesus são os líderes da comunidade judaica, as instituições que eles controlam as interpretações da lei e dos costumes judaicos que propõem. Ao apropriar-se dessa narrativa o autor de “Mateus dirige sua polêmica contra líderes rivais emergentes e seus programas concorrentes para entender e viver o judaísmo no fim do século I. Estes grupos têm em comum a disputa pelo coração do povo judeu (SALDARINI, 2000, p. 317) É provável que a assembleia de Mateus se reunisse em uma casa e tivesse por modelo a família. O uso frequente de terminologia de parentesco para as relações entre os membros e com Deus e Jesus reflete o contexto de uma família (SALDARINI, Jesus não se queixa da divisão vinda de “baixo”, é isso exatamente o que ele quer (WENGST, 1991, p.91). 58 98 2000, p. 318). Os inimigos do homem serão os da sua própria casa, pode ser compreendido como um momento tenso entre os representantes do judaísmo e a comunidade de Mateus, que até então formavam uma única comunidade59. Este momento de tensão se reflete em algumas passagens do Evangelho de Mateus e são constatadas algumas situações conflituosas específicas como: “injúrias verbais, açoitamento em sinagogas, entrega aos sinédrios/tribunais locais, perseguição ou expulsão e casos de homicídio” (STEGEMANN e STEGEMANN, 2004, p. 270). 59 O conflito entre o grupo de Mateus e outros judeus, até mesmo as autoridades comunitárias, sugere que a comunidade maior considera o grupo mateano dissidente. Isto é, não estão fora da comunidade judaica, mas são censuráveis para a maioria da comunidade (SALDARINI, 2000, p. 318). 99 CONCLUSÃO: O JESUS DE MATEUS NÃO SE CONFORMA COM O SISTEMA VIGENTE O Movimento de Jesus foi considerado popular. Surgiu na Galileia, e é de lá que Jesus envia os seus discípulos em missão. O foco principal da missão é sem dúvida “as ovelhas perdidas da casa de Israel”. Por que? Por que os seus atuais representantes, que eram os fariseus, ao tempo de Mateus, estavam distantes do povo. Seus interesses agora, eram interesses de uma classe elitizada. A interpretação que faziam das Escrituras não levavam em conta a questão da justiça e do Reino dos Céus, contidos nas Escrituras desde sempre. No capítulo 10 de Mateus, fica claro que Jesus enviou os discípulos com poderes tais como os Dele, com uma missão bem definida e uma mensagem igualmente importante. Esta mensagem era a chegada do Reino dos Céus e da Nova Justiça. Quando o Evangelho de Mateus foi elaborado, ou finalizado, a comunidade mateana estava fazendo memória. E ao fazer memória relembrava os ditos de Jesus e os colocava em ordem de forma a atender seus objetivos. Este capítulo de Mateus tinha como finalidade esclarecer, enviar, instruir, capacitar e advertir os enviados. Quem eram eles? Eram os discípulos de Jesus, os pobres da Galileia. Eles foram colocados na narrativa para representarem a comunidade mateana. Como eles deveriam ir? Deveriam ir sem dinheiro, sem duas túnicas, sem provisão, sem patrocínio algum. Por quê isso? Para se identificarem com os igualmente sem nada. O que deveria ser anunciado? Primeiramente a chegada do Reino dos Céus e do porta voz de Deus para o povo, Jesus. E depois a Nova Justiça, que nada mais era do que a interpretação correta das Escrituras. O conteúdo dessa mensagem, bem como os seus destinatários, pode ser visto nos capítulos 5 ,6 e 7 do Evangelho de Mateus. Mateus (5, 1- 12) relata o sermão da montanha, onde Jesus esclarece quem são os felizes, os bem-aventurados, os portadores do Reino dos Céus e da Nova Justiça: são eles, os pobres de espírito, os que choram, os misericordiosos, os que tem fome e sede de justiça, os que são perseguidos por causa da justiça, os mansos, os limpos de coração. Por quê haviam ovelhas perdidas na casa de Israel? Em Mateus há uma forte denúncia das práticas dos líderes religiosos comprometidos com o sistema político- 100 social vigente. Essas ovelhas, guiadas por esses líderes, estavam desassistidas, pois ao tempo de Mateus, a liderança dos fariseus, que eram uma classe com pretensões de liderança religiosa, haviam se distanciado do projeto de Deus, de assistência aos pobres e necessitados, de inclusão, de senso de comunidade e buscavam seus próprios interesses, por isso as “ovelhas da casa de Israel” estavam perdidas, sem representantes justos. Essas ovelhas não estão somente perdidas, elas estão massacradas (GALLAZZI, 2012, p. 184). Mateus acrescenta aos poderes dados aos discípulos em missão o de ressuscitar os mortos. A sua visão desse massacre das ovelhas se assemelha à visão de Ezequiel capítulo 37 (Visão do vale de ossos secos). A causa desse massacre são as sucessivas dominações de reis e imperadores. Importante lembrarmos que Mateus está em um nítido conflito com a liderança religiosa judaica. Ele os acusa de serem infiéis a Deus e à interpretação da Lei. Acusa-os ainda, de terem se aliado ao sistema massacrante e injusto de Roma. Mateus os coloca junto dos saduceus e demais líderes do povo, escarnecendo de Jesus (Mt. 27,41); estes se reúnem, em dia de sábado, com Pilatos para solicitarem uma guarda para o tumulo de Jesus, chamando-o de enganador (Mt. 27, 62-66). Jesus é o centro da controvérsia entre os judeus que o seguiam e os judeus representantes do judaísmo nascente. A interpretação da Lei é outro fator de controvérsia, particularmente porque Mateus entendia como legítimo intérprete somente Jesus, o Cristo. Essa pretensão confrontava os interesses dos representantes do judaísmo em formação, os fariseus. O Evangelho de Mateus traduz esse momento de divisão trazendo a tensão da narrativa para o cenário, e a consequente separação desses dois grupos, considerados irmãos: o judaísmo e o cristianismo (Mt 10,36). O sistema imperial romano era cruel, tirano e usava a força das armas para impor seu domínio. Esse sistema age, desrespeitando a religião, a cultura, a fé, a esperança, a história milenar dos seus dominados, especialmente os judeus. Aqui é oportuno perguntarmos pelo judaísmo que desde o início dessa pesquisa, tem sido alvo de interesse, para identificarmos em sua trajetória as principais tradições que deram origem ao cristianismo. São várias tradições conhecidas no Antigo Testamento, eloísta, javista, deuteronomista, cronista, que tentam interpretar o judaísmo no decorrer de sua história. No período de Jesus já não é possível identificar com clareza 101 essas tradições, pois muitas correntes e movimentos com traços de uma ou de outra estão presentes na sociedade palestinense. Desses movimentos, destaca-se o Movimento de Jesus e seu representante. A história de Jesus é contada nos Evangelhos. O Evangelho de Mateus apresenta traços característicos de trabalho de resistência, de denúncia, e ao mesmo tempo de incentivo. Essas características são perceptíveis na narrativa e na interpretação dos textos. Esta pesquisa, cuja finalidade é a interpretação da perícope de Mateus (10,3436), conclui que a hipótese proposta inicialmente, a de que “O Jesus de Mateus não se conforma com o sistema vigente e o subverte”, só foi possível ser constatada, após um prolongado período trabalho, de estudo e de muitas contradições. Ainda acrescentando que a maior parte dos intérpretes de Mateus, quando diante deste texto, se limita a dizer que ele se refere aos sofrimentos de Jesus, pelos quais os seus discípulos também passariam. Contrariando a maioria, esta pesquisa aponta que este texto se refere também, ao caráter profético da missão de Jesus. Este dito de Jesus, usado por Mateus e agora aplicado à missão da sua comunidade, tem a finalidade de denunciar as injustiças do sistema político e religioso-social vigente (v 34), ao mesmo tempo que anuncia as consequências desta missão (v 35). Esta injustiça é o reflexo da má interpretação da vontade de Deus expressa nas Escrituras e interpretada de forma equivocada por líderes que “atam pesados fardos e os colocam sobre o povo” (Mt 11, 28-30; 23,4). Considerando que Mateus, agora, é quem interpreta este dito, temos que considerá-lo dentro de seu contexto. Mais especificamente no capítulo 10, quando parece destoar da missão dos fazedores de paz. O que temos, então? A justaposição entre “paz” e “espada” revela o caráter da missão de Jesus e agora também dos seus discípulos. A paz a ser implantada era aquela ofertada por Deus que se baseava na justiça, na inclusão, no perdão, no acolhimento, na renúncia. Esta paz trazia consigo a oportunidade de uma vida plena com Deus e com o próximo, apesar de Roma e de todo o sistema. Como isto seria possível? Só por meio da resistência. A espada seria um importante instrumento para a desestabilização do sistema vigente. Ela traz desconforto, inspira a resistência, a persistência. O anúncio da chegada do Reino dos Céus, convida ao comprometimento com Jesus. Esse Jesus é o Messias que abre as portas desse Reino. O Reino dos Céus contraria o reino do mundo, portanto quem 102 adere ao Reino dos Céus declara inimizade ao reino do mundo (Roma). Não há a hipótese do meio termo. Em Mateus a chamada ao comprometimento é muito forte. É tempo de formação de identidades. A mensagem do Reino a as ações de seus aderentes, denunciam as injustiças do sistema do mundo e propõe fidelidade ao seguimento até à morte. A firmeza nesse seguimento irá atrair a outros causando divisões, que poderão ocorrer em todos os níveis, indo até ao íntimo da vida das pessoas, a casa. A mensagem é tão forte e tão atrativa que desestabiliza até as instituições mais ligadas às pessoas; nada pode ser maior que a decisão pelo seguimento a Cristo (10,36). Quando Jesus fala que não veio trazer a paz à terra, mas espada, certamente Ele, estava profetizando que tanto nos seus dias, como nos seguintes, e até aos nossos dias, a força de sua mensagem continuaria curando, libertando, salvando e inserindo pessoas no seu projeto de igreja, de comunidade. Os que iam sendo salvos, libertos, curados e inseridos se tornariam propagadores do Reino Eterno dos Céus. Isto justifica a rigidez do seguimento; nada pode vir primeiro. Nem mesmo o amor à vida. Enquanto a paz do mundo (pax) forçava a adesão ao sistema, por meio da força e da coerção, a paz de Cristo, ao contrário oferecia um caminho de liberdade. Liberdade de escolha, de entrega, de seguimento. A paz imposta (pax) não oferecia nenhuma recompensa. A de Cristo oferecia a vida eterna pois a sua base era a comunhão com Deus por meio do perdão. Qualquer espécie de flexibilidade poderia significar a possibilidade de um novo domínio, de um regime de tirania, de opressão. A força da fé e da confiança na intervenção divina sobre a humanidade, fazia com que os discípulos seguissem sem nada levar, sem nada pedir, sem nada temer. Afinal, o Emanuel, o Deus conosco, estaria com eles todos os dias, até à consumação dos séculos (Mt 28 ,20). Paz e espada representam, respectivamente, para o povo judeu, o alvo e a realidade. A mensagem de Mateus diz que esse alvo não é inatingível, mas só será possível por meio da interferência de Deus, através de Jesus, que fazia reviver a fé e a convicção de que a palavra, proferida desde o passado, ainda estava em vigor. É uma chamada para despertar e renovar as forças. 103 REFERÊNCIAS ABADÍA, Jose Pedro Tosaus. A Bíblia como literatura. Trad: Jaime A. Clasen. Petrópolis: vozes, 2000. ALGAYER, Antônio Estevão. Jesus e os excluídos do Reino. Petrópolis: Vozes, 1994. ANCILI, Ermano. Pontifício Instituto de Espiritualidade Teresianum (orgs). Dicionário de Espiritualidade, Vol II, São Paulo: Paulinas, 2012. ARENHOEVEL, Diego. Assim se formou a Bíblia: Para você entender o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1978. ARMSTRONG, Karen. A Bíblia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BARRERA, Júlio Trebolle. A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã. Introdução à história da Bíblia. Trad: Ramiro Mincato. Petrópolis: Vozes, 1995. BAUER, B. Johanes. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo: Loyola, 1973. BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. Trad: Fredericus Antonius Stein. São Paulo: Loyola, 1998. BÍBLIA SAGRADA. Sociedade Bíblica do Brasil: Almeida Revista e Atualizada. BORN. A. Van Den. 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