preço marginais

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O velho mal do novo século
Geraldo (todos os nomes citados são fictícios) é, quase sempre, um
sujeito simples e pacato. É também um excelente pedreiro, o que
poderia lhe garantir uma razoável qualidade de vida, uma vez que
profissionais como ele estão muito procurados e valorizados no
mercado.
Miriam é uma mulher bem sucedida na sua profissão. Ou era,
até algum tempo atrás. Trabalha no mercado de capitais, vive a
tensão diária da Bolsa que sobe e desce, refletindo “a força da grana
que ergue e destrói coisas belas...”. Tem uma família legal, marido e
dois filhos, uma casa bonita, dois carros na garagem, viagem de
férias para o exterior, uma vida boa. Quase sempre.
Marcos trabalha num laboratório farmacêutico. É coordenador de uma equipe de vendas. À noite,
dá aulas no curso de Administração de uma faculdade particular. Trabalha muito, “rala” muito, para
garantir um padrão de vida razoável para sua família.
Conheço Geraldo, Miriam e Marcos. São gente como a gente. Geraldo, apesar de simples, ou até
em razão disso, quando não bebe vive e compartilha em sua família valores preciosos no dia a dia:
amizade, respeito, honestidade, dignidade. Quando não bebe...
Miriam, com seu bom nível econômico e social, tem a vida que muita gente queria ter. Marcos,
apesar da correria e da trabalheira, também não pode reclamar.
Mas, eles têm um problema em comum. Um imenso problema. São alcoólatras.
Geraldo sabe, Marcos desconfia e Miriam ainda não se deu conta.
No mundo e na vida de Geraldo o álcool sempre existiu.
As vagas lembranças de infância que têm do pai, sumido no mundo, cheiram
a cachaça. No caminho de casa, da obra, há sempre um boteco, um “colega
de copo e de cruz”, uma saideira.
Miriam começou com uma taça de vinho, à noite, prá relaxar antes
de dormir. Passou para a caipirinha, agora bebe vodka pura.
Marcos adora o happy hour com a turma, nas sextas-feiras. Aos poucos, todo dia passou a ser
sexta-feira...
O alcoolismo é geralmente definido como o consumo constante, consistente e excessivo de
bebidas alcoólicas num nível em que este comportamento interfere na vida pessoal, familiar, social ou
profissional de uma pessoa.
É formalmente reconhecido como doença pelo Código Internacional de Doenças (CID),
referência F-10.2, e tem enorme impacto social e econômico no mundo inteiro. Com exceção do
tabagismo, o alcoolismo gera aos governos um prejuízo econômico maior do que todos os problemas de
consumo de outras drogas combinados. Mas como o álcool age no cérebro humano?
As substâncias (drogas) que interferem e afetam o funcionamento das células cerebrais podem ser
agrupadas em três categorias, de acordo com o tipo de efeito desencadeado nos neurônios:
1- Drogas psicolépticas são aquelas que sedam,
inibem o funcionamento dos neurônios como, por exemplo,
os calmantes, os indutores de sono, ansiolíticos, remédios
para convulsões, epilepsia, etc.
2- Drogas psicoanalépticas são aquelas que excitam,
estimulam o funcionamento dos neurônios. Cafeína,
encontrada no café, em chás, em alguns refrigerantes, nos
chamados “energéticos”, na cocaína, no crack, etc.
3- Drogas psicodislépticas são aquelas que podem
estimular e inibir áreas e funções cerebrais distintas. São os
alucinógenos como o LSD, os chás de cogumelo, xaropes,
mescalina, heroína, maconha, entre outros.
Pensando nesse quadro, podemos nos perguntar: em qual desses três grupos o álcool se enquadra?
A resposta mais comum é que o álcool é uma substância excitante. Pessoas quando bebem, em
geral, ficam desinibidas, falantes. O tímido fica extrovertido, o retraído se abre, o cauteloso se arrisca.
É comum ouvir depoimentos de pessoas que dizem: “comecei a beber na adolescência para me
desinibir, me enturmar, me sentir a vontade, e acabei virando alcoólatra”. Imenso engano. O álcool, na
verdade, é uma droga exclusivamente inibidora do funcionamento cerebral.
Do ponto de vista biológico e social, somos organismos em constante evolução. E a central de
controle desse processo evolutivo é o cérebro humano, onde são gerados os nossos pensamentos, desejos,
impulsos, a capacidade de julgar, o senso de responsabilidade e culpa, enfim, o nosso temperamento e
comportamento social. O cérebro humano evoluiu do nosso antepassado humanoide, estruturando-se em
áreas anatômicas com funções distintas e interações curiosas entre elas. A maior parte do cérebro humano
é composta por células (os neurônios) que têm função excitatória, ou seja, que disparam continuamente
impulsos, desejos, vontades, pensamentos em direção à satisfação das nossas carências e necessidades.
Ao longo da nossa jornada evolutiva, o
cérebro humano desenvolveu um grupo de
células especiais. Apenas nós, humanos, entre
todas as espécies animais que habitam o
planeta, as possuímos nessa quantidade. Elas
estão localizadas na parte frontal do cérebro,
logo atrás da testa, e têm uma função super
nobre: avaliar, julgar e, principalmente,
INIBIR os estímulos disparados pelos
neurônios
excitatórios,
elaborando
o
sofisticado processo de separar o certo do
errado, o que devo do que não devo fazer, o
que é justo do que é injusto, forjando um
comportamento HUMANO, civilizado, social,
ético, balizado por crenças e valores
transmitidos pela cultura, pelas religiões, pela
tradição, pela Educação familiar e formal.
Na parte frontal do cérebro humano acontece, assim, um processo permanente de julgamento, de
análise crítica, o que nos diferencia da maioria dos animais que são escravos de seus impulsos e instintos.
Agimos, não apenas movidos pelo impulso dos nossos desejos, mas pela capacidade de decidirmos,
levando em consideração se esses desejos são razoáveis, e como afetam os direitos dos outros.
Mas tudo isso tem um preço, como Freud nos ensinou. Aliás, a palavra ensinar (marcar com um
sinal), em se tratando do processo de formar, educar e civilizar um ser humano, desde sua primeira
infância, é caracterizada pelo NÃO!
Não pode, não faça isso, não suba aí, não se arrisque, não matarás, não roubarás, não desejarás a
mulher do próximo, não cobiçarás as coisas alheias...
Para suportar o peso desse controle crônico dos nossos desejos, é preciso ter uma motivação ética,
um sentido maior para a vida, a capacidade de sair do egoísmo em direção ao altruísmo, caso contrário
seremos tão somente vítimas de uma brutal repressão, o que leva à insatisfação crônica, à frustação e ao
adoecimento.
Aí reside o grande atrativo do álcool. Num primeiro estágio, o de bebedor social, ele “inibe as
nossas inibições”, liberando, dessa forma, os impulsos e desejos gerados pelos neurônios excitatórios.
Então, o tímido sobe na mesa e faz um discurso, o inseguro fica ousado, o retraído transforma-se num
sedutor. Esquecemos nossas neuras, culpas, compromissos, limites, etc...
No passo seguinte, o problema não é mais parar de beber, mas o que colocar no lugar da bebida
para me permitir fazer as coisas que não consigo de “cara limpa”. Entramos, então, na fase do vale-tudo!
Um agravante é que inúmeras pessoas têm uma predisposição genética que dificulta o
autodomínio. São os transtornos de impulso, que manifestam-se no consumo descontrolado de comida,
compras, jogo, sexo, no correr riscos, o que pode levar à compulsão.
Ao inibir nossa capacidade de inibição, o álcool atua como um potencializador e liberador de
impulsos, desejos e instintos, sem medir consequências, sem pensar no dia seguinte. Nessa fase, o
alcoólatra, como outros dependentes químicos, têm todas as características de um doente crônico.
Um dos agravantes mais trágicos do
alcoolismo é que ele não é visto pela maioria das
pessoas, a começar pelo próprio alcoólatra, como
doença. É o caso de Miriam e Marcos que ainda
bebem, como dizem, socialmente, com algumas
escorregadas em pileques que, cada vez mais, fogem
ao controle. Para eles, de bebedores sociais à
dependência, uma longa, sofrida e inexorável
trajetória será percorrida.
Até chegarem a este nível, serão rotulados
progressivamente como pessoas inadequadas,
inconvenientes, fracas, indesejáveis, sem caráter,
mentirosas, manipuladoras, desonestas, violentas e até
marginais. E, com o tempo, seu comportamento, sob
efeito do álcool, vai confirmar tudo isso.
O dependente torna-se, aos poucos, um mentiroso profissional e contumaz e, o pior, que precisa
acreditar na própria mentira, uma vez que sua compulsão é mais poderosa que todas as boas intenções, as
promessas de que vai parar, de que pode parar quando quiser, os conselhos, os gestos de ajuda.
Outro problema é que o álcool está presente, desde tempos imemoriais, nos hábitos e na cultura da
maioria das sociedades, o que torna seu acesso fácil e, mais que isso, atraente e incentivado pela mídia.
Apesar de todas as restrições legais, as fábricas de cerveja, por exemplo, continuam sendo as maiores
patrocinadoras dos principais eventos esportivos mundiais, o que é, no mínimo, um contrasenso.
Pesquisas e estatísticas confirmam que o abuso de álcool por tempo prolongado pode causar
inúmeros males, como câncer, hepatite, cirrose, gastrite, úlcera, danos cerebrais, desnutrição, problemas
cardíacos, problemas de pressão arterial, além de transtornos psicológicos.
Com o passar do tempo, percebe-se com clareza a evolução do bebedor social para o dependente.
O alcoólico perde progressivamente a capacidade de controlar a quantidade de bebida que ingere até
chegar a um ponto em que a falta do álcool o leva à síndrome de abstinência, o que gera um círculo
vicioso de bebida, ressaca, mais bebida, mais ressaca.
Geraldo conhece todo esse tortuoso e sofrido
caminho. Ainda conseguia trabalhar, de terça a sexta, mas o
pagamento da semana era bebido no sábado e no domingo.
Segunda-feira era resservado à ressaca. Na terça ele se
apresentava novamente, cada vez mais trôpego, trêmulo,
enfraquecido e incapaz.
As crises constantes, a perda de dignidade, o estigma
social levaram a família de Geraldo a buscar,
desesperadamente, uma ajuda. Primeiro, nos postes do centro
da cidade, onde cartazes anunciam um produto que deve ser
misturado à comida do alcoólatra. Segundo a propaganda é
tiro e queda. Foi mais queda do que tiro.
O pastor de uma igreja identificou uma legião de
demônios em Geraldo e lhe prometeu um milagre. Aumentou
a arrecadação do seu dízimo, mas Geraldo não diminuiu a
dose.
Geraldo pode morrer em breve, de cirrose, de tombo,
de briga ou de uma doença oportunista qualquer. Mas seu
carrasco estará bem identificado: seu cérebro, que não
consegue lidar com o álcool.
O AA (Alcoólicos Anônimos) foi uma esperança real. Lá Geraldo conheceu vários dos seus
iguais. Ouviu sua história contada pela boca e pela vida de muitos e acreditou que era possível vencer a
sede sem fundo que ardia em seu peito.
Por semanas ficou sem beber. Sentiu-se tão forte e seguro que no aniversário de uma sobrinha,
festinha de família (que mal pode ter?) aceitou um copo de cerveja. Amanheceu caído à porta do bar da
esquina, a alma afogada na derrota, as calças encharcadas de urina.
O fundo do poço o levou a uma comunidade terapêutica, uma ONG ligada a uma igreja, que
funciona numa fazenda. Lá se busca a recuperação de dependentes. Iniciou ali um longo processo de
reconstrução do corpo e da alma, ambos destroçados.
Nesse processo de reconstrução o maior desafio passa pelo exercício de re-ligação com nossa
verdadeira essência e dignidade, uma vez que o dependente, em geral, mergulha na mais profunda miséria
física e moral, perdendo qualquer referência de respeito dios outros e de auto-estima.
Seu cerébro, embotado pelo álcool, se esquece que evoluímos e nosso organismo evoluiu conosco,
desenvolvendo a capacidade de inibirmos de forma civilizada nossos impulsos e desejos, integrando,
ordenando (colocando ordem) no corpo, na mente, na alma. Na dimensão espiritual, Inácio de Loyola
dizia que é preciso “ordenar os sentidos”. Em outras religiões e filosofias de vida, encontramos o mesmo
princípio. É o que nos define como humanos.
Re-humanizados, podemos reencontrar o sentido e o prazer de abrirmos mão da realização sem
medida dos nossos desejos (egoísmo), e encontrar prazer e felicidade também na realização do desejo do
outro (altruísmo). Esse é o caminho da cura, nos re-ligarmos (o sentido mais nobre da re-ligião) ao
propósito de sermos humanos, de, mais que viver, aprender a con-viver.
Geraldo está na fazenda. Suas mãos trêmulas, a dor da abstinência, aquela sede implacável, tão
suas conhecidas, estão sendo tratadas com medicação e carinho. Lá, médicos, psicólogos, terapeutas
ocupacionais, voluntários, toda uma equipe especializada sabem que cuidar do corpo é necessário, mas
curar a alma é imprescindível. Por isso, além dos remédios, há quem o ouça com paciência, entenda,
acolha, acalme, oriente. Ali não há porque mentir, esconder, camuflar. Todos sabem de cor os detalhes
mais sórdidos dessa história.
Na fazenda, aos poucos, uma
outra história vai sendo montada e
contada.
Há um horário a ser cumprido.
De dormir e acordar, de trabalhar e
rezar (é, ali se reza) e se alimentar.
Ao lado da capela há uma horta
comunitária, uma carpintaria, uma
oficina de artesanato.
Geraldo, assim que suas mãos
passaram a tremer menos e seu corpo
se recuperou dos pilrques recentes (até
engordou, ficou corado...), se destacou
nos reparos do telhado onde havia
goteiras, no conserto de uma parede
trincada, na construção de um sanitário
novo.
Reconstrução... o novo... a vida, Geraldo parece ter encontrado uma brecha de luz entre as trevas
da dependência. Marcos ainda procura um caminho. Miriam ainda não sabe...
Eduardo Machado – Educador
eduardomachadobh.blogspot.com
[email protected]
Frederico Machado – Psiquiatra
CRM-MG 22856 – 031-32414265
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