ensaio sobre função social da propriedade no brasil

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ENSAIO SOBRE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO BRASIL
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ENSAIO SOBRE FUNÇÃO SOCIAL
DA PROPRIEDADE NO BRASIL
Andréa Cristina Rodrigues Studer1
Álvaro Borges de Oliveira2
Resumo: O artigo inicia-se introduzindo o leitor no questionamento quanto à amplitude da expressão “função social da
propriedade”. Após, relata a classificação dos “novos direitos”, segundo Bobbio, os quais surgiram com a evolução da
sociedade. Segue-se, com um breve resumo histórico do nascimento e evolução da função social no Brasil, com o objetivo de demonstrar que, a partir do Brasil colonial, iniciam-se
os problemas inerentes à divisão das terras agrárias, os quais,
atualmente são representados através de manifestações acerca da reforma agrária, que tem como pedra basilar a função
social da propriedade. Em paralelo, existe o uso da propriedade em respeito ao meio ambiente ou ao plano diretor de
um município, a fim de configurar restrição, posto que ao
contrário, se o proprietário não faz uso correto do imóvel,
trazendo prejuízo para a sociedade, estará desrespeitando o
Juíza de Direito; mestranda do Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI;
especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade do Paraná – UNIPAR.
Formada pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina. E-mail:
[email protected]
2
Graduado e Mestre em Direito; Graduado em Ciência da Computação; Mestre e Doutor em
Engenharia de Produção; Professor da Graduação das disciplinas de Direito das Coisas e Informática Jurídica, na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Professor do Mestrado da disciplina Informática, Propriedade e Transnacionalidade, no Curso de Pós-Graduação em Ciência
Jurídica – CPCJ/UNIVALI. E-mail: [email protected]
1
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uso social do bem. Descrevem-se as características, evolução
e conceitos da função social da propriedade, segundo a legislação e doutrina, a fim de introduzir o leitor neste tema
polêmico e inevitável ao operador do direito.
Palavras-chaves: Propriedade; Função social; Função social
da propriedade; Novos direitos.
Abstract: The article is initiated, introducing the reader in
the questioning of how is the amplitude of the expression
“social function of the property”. Then, it reports the
classification of the “new rights”, that according to Bobbio,
had appeared with the evolution of society. It is followed,
with a brief historical summary of the birth and evolution of
the social function in Brazil, with the purpose to demonstrate
that from colonial Brazil, the inherent problems of the
division of agrarian lands are initiated, which, currently are
represented through manifestations concerning the agrarian
reform, that has as fundamental rock the social function of
property. In parallel, there is the use of property in respect
to the environment or to the city managing plan, in order to
configure restriction, in contrast, if the proprietor does not
make correct use of the property, bringing damage for the
society, he would be disrespecting the social use of the good.
The characteristics, evolution and concepts of the social
function of property are described, according to legislation
and doctrine, in order to introduce the reader in this
controversial and inevitable subject to the operator of the law.
Key words: Property; Social function; Social function of the
property; New rights.
Sumário: Resumo – 1 Introdução – 2 Novos direitos – 3
Breve relato histórico da função social no Brasil – 4 A constituição federal de 1988 e o código civil – 5 Características,
conceito e evolução da função social – 6 Conclusão – Referências.
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1 Introdução
A questão da função social da propriedade no Brasil, com o
advento do Código Civil, passou a ser objeto de pesquisas,
reacendendo os questionamentos sobre a polêmica matéria, que,
apesar de estar em voga, não são recentes seus estudos, pois se
começa a aceitar que a propriedade não é mais um direito intocável, mas um poder-dever. A dificuldade reside em conceituar
a expressão “função social da propriedade”, bem como delimitar o seu alcance, posto que a função social não reside apenas
nas terras agrárias, ou na propriedade imóvel, mas também na
propriedade móvel, seja ela material ou imaterial. Ab initio, a
função social da propriedade para efeito deste trabalho é uma
obrigação, uma prestação positiva, e um dever.
2 Novos direitos
O entendimento de que cada homem, como indivíduo, possui direitos inalienáveis, ou direitos naturais que nascerem
antes que qualquer sociedade política se mostrou mais evidente a partir da Declaração de Virgínia de 1776 e da Declaração Francesa de 1789. Até que referidos direitos fossem
considerados “fundamentais”, a sociedade teve que se adaptar às novas mudanças que ocorriam na época, como, na visão de Bobbio3 : a) o aumento de bens considerados merecedores de tutela; b) a extensão da titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) a concepção do
homem na sua especificidade ou status desempenhado na
3
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 73.
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sociedade, como criança, velho, mulher etc. Assim, junto
com a evolução da sociedade, surgiram novas exigências
dessa mesma sociedade, a fim de tutelar os bens que considerava prioridade, e com essas exigências, nasceram novos direitos.
Segundo Wolkmer4,
...em face da universalidade e da ampliação desses ‘novos’ direitos, objetivando precisar seu conteúdo, titularidade, efetivação e sistematização, certo grupo de doutrinadores têm consagrado uma
evolução linear e cumulativa de ‘gerações’ sucessivas de direitos. Tal reflexão compreende várias
tipologias (três, quatro ou cinco gerações de direitos), desde a clássica de T. H. Marshall até alcançar as formulações de Norberto Bobbio, C. B.
Macpherson, Maria de Lourdes M. Covre, Celso
Lafer, Paulo Bonavides, Gilmar A. Bedin, Ingo W.
Sarlet, José Alcebíades de Oliveira Jr. e outros.
Possivelmente a classificação dos direitos civis,
políticos e sociais feita por T. H. Marshall, em sua
obra Cidadania, classe social e status, tornou-se
referencial paradigmático enquanto processo
evolutivo de fases históricas dos direitos no Ocidente. (...) Desse modo, segundo T. H. Marshall, o cenário europeu (particularmente o inglês), do século
XIX, consagrou os direitos políticos, e a primeira
metade do século XX consolidou as reivindicações
de direitos sociais e econômicos.
4
WOLKMER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Organizadores). Os “novos” direitos
no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São
Paulo: Saraiva, 2003. p. 5.
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Bonavides e Sarlet5 substituíram os termos geralmente usados pelos outros doutrinadores, como: “gerações”, “fases” ou
“eras”, pelo termo “dimensões”, sob o argumento de que referidos direitos são conseqüências de um sistema em evolução
permanente, sem fases alternadas ou distintas.
As cinco dimensões de direito, estariam, resumidamente,
assim classificadas:
a) os direitos de primeira dimensão: chamados de direitos
civis e políticos, são os relativos à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança e à oposição aos vários tipos de opressão;
b) os direitos de segunda dimensão: nominados como direitos sociais, econômicos e culturais, possuem alcance positivo,
ou seja, não são contra o Estado, mas este tem que assegurar a
concessão a todos, ex.: direito ao trabalho, à saúde, à educação;
c) direitos de terceira dimensão: são os direitos metaindividuais, direitos coletivos e difusos, direitos de solidariedade, seu
titular não é mais o homem individual (tampouco regulam as
relações entre os indivíduos e o Estado). Dizem respeito à proteção de categorias ou grupos de pessoas (família, povo, nação), não se enquadrando nem no público, nem no privado6 ,
podemos classificar a função social da propriedade como um
direito de terceira dimensão;
d) direitos de quarta dimensão: dizem respeito à vida humana, tratam de questões como a reprodução, contracepção,
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p.
514-528: SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 46-58.
6 Conforme WOLKMER, obra já citada, p. 9.
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aborto, pesquisas com células-tronco, eutanásia assistida, e
outros se referem à bioética, biotecnologia e engenharia genética; segundo Bobbio, tais direitos refletem “efeitos cada vez mais
traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações
do patrimônio genético de cada indivíduo”7.
e) direitos de quinta dimensão: nasceram com a Internet e
as demais tecnologias para informação ciberespaço ou virtual.
3 Breve relato histórico da função social no Brasil
O Brasil não passou pela passagem da propriedade feudal à
privada, no modelo napoleônico-pandectista, sendo que aqui a
propriedade privada formou-se a partir da propriedade pública,
pertencente à Monarquia Portuguesa, que possuía o domínio
integral de todo o território. Com a colonização, aos poucos foi
sendo permitida a apropriação dessas terras pelos colonizadores, que se deram através da usucapião, as cartas de sesmarias e
as posses sobre as terras devolutas.
As sesmarias consistiam em uma cessão do domínio da terra,
aos particulares, mediante o cumprimento de algumas obrigações,
como o cultivo de determinados produtos, criação de animais etc.8 .
Em 1446, o instituto das sesmarias foi incorporado às Ordenações Afonsinas, e em 1521 às Manuelinas e às Filipinas
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 6.
“Sua origem remonta à lei de D. Fernando de Borgonha, de 1375, quando surgira como resposta jurídica à crise de abastecimento e à queda demográfica vivenciada pelo reino luso, no
período em que se segue à Grande Peder. Nessa celebre lei, ordenava o soberano que as
terras, que se encontrassem incultas e abandonadas deveriam ser distribuídas a quem as quisesse aproveitar. Essa tarefa competia aos “sesmeiros”, homens-bons encarregados pela Coroa tanto da distribuição quanto da fiscalização do uso feito pelos beneficiados”.
7
8
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em 1603, “mantendo, em essência, a obrigatoriedade do cultivo, fundamento do domínio sesmarial, e a possibilidade de
expropriação das terras por parte da Coroa”9 , caracterizandose em uma cessão de uso, com a obrigação do cultivo. No
Brasil colonial, esse instituto sofreu adaptações, conservando-se apenas o que interessava ao modelo econômico-escravagista da época10 .
Judith Martins Costa comenta que não foram as sesmarias
as responsáveis pela concentração de terras e que teriam originado o modelo de grandes latifúndios que continuam definindo
nossa distribuição territorial. Os latifúndios são produtos da
dinâmica do sistema colonial, posto que houvesse sempre parcelas de terras reservadas à expansão das culturas e para dar
suporte a todas as demais necessidades da fazenda, o que gerava abusos e tornava difícil o controle da terra não cultivada,
sendo que a Coroa sempre cedia à pressão da elite local, responsável pela defesa das fronteiras. No final do século XVIII, a
distribuição das terras do Brasil estava desorganizada, com
muitas sesmarias sem demarcação ou registro. Em julho de 1822,
através de uma Resolução, extinguem-se as doações de sesmaria,
dando-se início ao debate da necessidade da regulamentação
da propriedade privada, posto que a referida extinção ocorreu
em plena expansão da economia cafeeira.
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 751.
10
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 753, citando Gorender: “A história do regime territorial no Brasil colonial permite
aferir como a instituição portuguesa da sesmaria foi amoldada aos interesses dos senhores de
escravos, mesmo quando, sob certos aspectos, se lhes opunha a orientação do governo metropolitano. Da forma jurídica original se conservou na Colônia apenas o que convinha ao novo
conteúdo econômico-social-escravagista”.
9
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Em 1850 foi promulgada a Lei de Terras (Lei 601), que tinha como objetivo a organização do quadro fundiário brasileiro (regulando a posse do sesmeiro e posseiro), definir os critérios para a compra da terra pública, e a separação do público do
particular, surgindo assim a proibição da aquisição gratuita das
terras devolutas11 . Outra conseqüência, da mais suma importância, foi que a mencionada lei serviu como base para a “disciplina jurídica do direito de propriedade nos moldes liberais,
ou seja, um direito absoluto, exclusivo, perpétuo, exercido sobre limites precisos, não condicionados pela gama de deveres
que caracterizava o domínio sesmarial”12 .
Mas a demarcação das sesmarias não foi feita de maneira organizada, além de ser o procedimento demasiadamente burocrático,
culminando na existência, no final do século XVIII, de muitas
sesmarias sem demarcação ou registro. Assim, a posse tornou-se a
prática mais usada para a aquisição de terras. Como visto, a primeira lei de terras no Brasil que introduz o direito de propriedade
é de 1850, a Lei nº 601 (mas o fracionamento do solo brasileiro
começou com as capitanias hereditárias e o sistema sesmarial).
Daí até a Constituição de 1934, o direito de propriedade tinha caráter absoluto. Cedia apenas para a desapropriação pelo poder
11
Teixeira de Freitas conceitua as terras devolutas como: “1º As que não se acharem aplicadas
a algum uso público. 2º As que não se acharem no domínio particular por algum título legítimo,
ou que não foram havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial.
3º As que foram havidas por sesmarias ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial,
mas incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e
cultura. 4º As que foram havidas por sesmarias ou pelas ditas concessões, incursas em comisso;
se as sesmarias ou concessões não forem revalidadas. 5º As que foram ocupadas por meras
posses, se estas não foram legitimadas” (Código Civil – Esboço, Ministério da Justiça e Negócios Interiores/Serviço de Documentação, 1952, p. 206).
12
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 758.
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público, mediante justa indenização. Evolui lentamente a partir
da primeira Constituição de 1824, que manteve as idéias da revolução francesa em detrimento dos nobres derrotados13 .
No direito brasileiro, não há registros relevantes quanto à
questão da função social da propriedade até meados dos anos
5014 . A primeira menção constitucional com referência à função social da propriedade consta na Constituição de 1934, e,
após, nas Constituições de 1946, 1967, 1969 e 198815 .
Na Constituição Imperial constava em seu inciso XXII do
artigo 17916 , a garantia ao direito de propriedade em toda a sua
13
TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São
Paulo: LTr, 2000. p. 14.
14
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 774-776. “Nem Pontes de Miranda, nem manuais como nos de Luiz da Cunha
Gonçalves, Limongi França, Washington de Barros Monteiro, Caio Mario da Silva Pereira, Silvio
Rodrigues ou Maria Helena Diniz abordam a questão, a não ser de modo um tanto temeroso.
Carvalho Santos chega a mencionar a idéia do interesse social, e Clóvis Beviláqua, na quinta
edição de seu Código Civil comentado, alude brevemente à função social da propriedade prevista no artigo 113 da Constituição de 1934 (...) É Orlando Gomes que, em 1970, em artigo
pioneiro na civilística pátria, traz a lume a discussão sobre a superação do modelo individualista
da propriedade, propondo então a categoria da ‘propriedade-empresa’”.
15
“Só a Constituição de 1934 inovou, acompanhando um pouco a Constituição alemã de Weimar,
introduzindo o conceito de função social. A Carta de 1937 ensaiou uma tímida limitação ao
direito de propriedade. A Carta Constitucional de 1946 foi que, na realidade, respirando já outros
ares de redemocratização, restaurou a necessidade de cumprimento da função social da propriedade, incluindo-a entre os princípios regentes da ordem econômica e social. A Emenda Constitucional nº 10/64 acresceu parágrafos ao art. 147, prevendo a possibilidade da União promover
a desapropriação de imóveis rurais. A Constituição de 1967 manteve a função social. A situação
foi mantida pela Emenda Constitucional nº 1/69. A Constituição de 1969, também em seu art.
160, cita a função social da propriedade com as mesmas restrições anteriores. Finalmente, a
Constituição de 1988 inova, avança e insculpe a função social da propriedade entre os direitos
e garantias individuais e coletivos, conferindo-lhes status de cláusula pétrea” (TANAJURA, Grace
Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São Paulo: LTr, 2000. p. 14).
16
Constituição Política do Império do Brasil (1824): Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e
Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, são garantidas pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. “XXII. É garantido o
Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso,
e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará
os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação”.
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plenitude. A Constituição Republicana de 1891 manteve o mesmo princípio constitucional, dispondo em seu artigo 72, § 17:
O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude,
salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública,
mediante indenização prévia. As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas
por lei a bem da exploração deste ramo de indústria.
A primeira inovação importante ocorreu com a Constituição de
1934, em seus artigos 113, nº 17, e 11817 , onde se passou a considerar as minas e demais riquezas do solo, bem como as quedas
d’água como propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial, e que o direito à propriedade
não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo. Verifica-se que, embora não houvesse um direito especificamente
tutelado, havia a proibição constitucional em exercer o direito de
propriedade contra o interesse social ou coletivo. Referidos princípios foram mantidos nas Constituições de 1937 e de 1942, não
havendo evolução quanto à função social da propriedade.
Contudo, a Constituição de 1946, muito mais ampla e clara
quanto ao direito que pretendia tutelar, determinava que o uso
da propriedade estivesse atrelado ao bem-estar social, dispondo em seus artigos 141, § 16 e 14718 , que se promovesse a justa
17
Constituição Federal do Brasil de 1934, artigo 113, nº 17: É garantido o direito de propriedade,
que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar.
A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante
prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina,
poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o
exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. E, art. 118: As minas e demais riquezas do
subsolo, bem como as quedas d’água, constituem propriedade distinta da do solo para o efeito
de exploração ou aproveitamento industrial.
18
Constituição Federal do Brasil de 1946: Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à
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distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. No mesmo segmento, a Constituição Federal de 1967 e
1969 dotaram a propriedade de uma função social, não havendo, porém, grandes inovações. Somente na Constituição de 1988
é que houve um avanço significativo, ao conferir-se a função
social da propriedade, status de cláusula pétrea.
Assim, no Brasil, iniciou-se através do texto constitucional
a difusão de um novo prisma da propriedade privada, que também teria que atender a sua função social. Judith Martins Costa
coloca que o Código e a Constituição eram esferas fechadas em
si mesmas e com perspectivas dicotômicas, sendo que o direito
privado, como ícone da liberdade burguesa, tinha primazia sobre o direito constitucional, sendo a regra a ausência de vínculos entre os dois campos jurídicos, acompanhada de uma interpretação restritiva dos direitos fundamentais. A partir da Constituição alemã de Weimar19 , iniciou-se no direito alemão, uma
nova fase onde a Constituição passou a atuar como guia e garante do direito privado, obstando o legislador ordinário de abolir
os institutos jurisprivados, sendo que pode ser observado um
processo análogo no direito brasileiro, onde também caminhasegurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 16 - É garantido o direito de
propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente,
como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade
particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito à indenização
ulterior. Art. 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá,
com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade,
com igual oportunidade para todos.
19
A Constituição de Weimar, de 1919, adotou a função da propriedade como condicionada ao
bem da sociedade. O artigo 153 da Constituição dispôs, em apenas três palavras, um princípio
que se tornou amplamente conhecido: a propriedade obriga. E ainda acrescentou-se: Seu uso
constitui, conseqüentemente, um serviço para o bem comum. Portanto, já naquela época, o
cultivo e a exploração da terra era um dever a ser cumprido perante a comunidade.
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mos para uma nova readequação das relações entre os princípios constitucionais e o direito privado20 . No final do século XX,
podemos verificar o direito de propriedade assegurado ao indivíduo, em quase todas as legislações do mundo, e em relação a
todas as formas de propriedade, mobiliária ou imobiliária, urbana ou agrária, porém de acordo com a consideração da função social que lhe é inerente21 .
4 A constituição federal de 1988 e o código civil
Os direitos fundamentais estão dispostos dentro dos princípios constitucionais fundamentais, posto que são elementos que
servem de sustentação e edificação da Constituição. Para
Norberto Bobbio22:
...os direitos do homem, por mais fundamentais que
sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em
certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em
defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e
nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e
nem de uma vez por todas.
O alicerce desses direitos e a sua efetiva proteção estão garantidos pelas Constituições democráticas modernas, nas quais se
observa o “crescimento das ideologias sociais-democratas que
20
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 776.
21
TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São
Paulo: LTr, 2000. p. 23 e 24.
22
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5.
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têm como característica comum a limitação do direito de propriedade, vinculando-a ao cumprimento de sua função social”23.
Segundo Tanajura, o precursor doutrinário da função social
da propriedade foi León Duguit, na França, em 1911, “que foi o
primeiro jurista a combater a concepção de propriedade como
direito absoluto”. Em 1912, publicou um livro, em Paris, que
expunha suas idéias assim sintetizadas:
Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma função social, em razão direta do lugar
que nela ocupa. Por conseguinte, o possuidor de riqueza, pelo fato de possuí-la, pode realizar certo trabalho que somente ele pode cumprir. Só ele pode
aumentar a riqueza geral e assegurar a satisfação
das necessidades gerais, ao fazer valer o capital que
possui. Está, pois, obrigado socialmente a cumprir
esta tarefa, e só no caso de que a cumpra, será socialmente protegido. A propriedade não é um direito
subjetivo do proprietário. É a função do possuidor da
riqueza24.
É na Constituição da República Federativa do Brasil, também conhecida como “Constituição Cidadã”, que a propriedade tem seu alicerce, sendo disciplinada em diversos artigos. No
que concebe à propriedade privada, a previu como direito individual, vinculando-a ao cumprimento de sua função social:
VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária: o direito face aos novos
conflitos sociais. Leme: Editora de Direito, 1997. p. 216.
24
TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São
Paulo: LTr, 2000. p. 13.
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Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança, à propriedade, nos termos seguintes:
...
XXII - é garantido o direito de propriedade.
XXIII - a propriedade atenderá à sua função social.
O princípio da função social da propriedade, como atributo
incidente no conteúdo da propriedade em geral, faz-se presente
em qualquer das acepções existentes e juridicamente reconhecidas (autoral, urbana, rural, pública, agrícola, industrial etc.).
O sistema econômico está, em nosso ordenamento jurídico,
constitucionalizado nos arts. 170 a 192, evidenciando, assim, a
existência de uma constituição econômica formal, a qual, segundo vertente doutrinária, relaciona-se com a regulação do
fato econômico e seus efeitos no seio social.
A ordem econômica embora alicerçada em valores de natureza
capitalista prioriza o trabalho humano e a iniciativa privada, fundamentos da nossa República, tendo como conseqüência a proteção econômica à propriedade privada e, ainda, à função social da
propriedade, e por meio da intervenção estatal ao domínio econômico, devem ser assegurados os direitos econômicos, em prol de
uma existência digna a todos. Pinto Ferreira coloca que o sistema
capitalista e o socialista são os sistemas atualmente responsáveis
pela estruturação da ordem econômica. O último baseando-se na
propriedade coletiva dos meios de produção e o primeiro orientado pela propriedade privada de bens de produção, livre concorrência e iniciativa privada. Daí a enunciação ideológica econômica
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constitucional, atualmente com interpretação neocapitalista, na
qual há redução da intervenção estatal nas atividades econômicas em proveito do convite a que o particular atue mais ativamente nas expressões econômicas financeiras, em prol do desenvolvimento social, conciliada à ideologia assumida por toda a
ordem constitucional, de vir a instituir condições materiais que
possibilitem a consagração dos direitos econômicos e sociais.
Para Cruz, a regulação do direito de propriedade é um dos
expoentes mais claros da evolução do constitucionalismo.
Inicialmente, sob a influência das teses liberais mais ortodoxas, a propriedade aparecia como um direito ‘inviolável e sagrado’, concepção que servia de base e fundamento para a ordem social. Mais especificamente,
um dos principais objetivos revolucionários do século
VXIII foi definir e reconstruir o Direito de Propriedade,
livrando-a das vinculações e limitações que, no Antigo
Regime, dificultavam seu livre uso e disponibilidade25 .
Constata-se no artigo 5º da Constituição a existência da função individual, consistente em uma proteção ao indivíduo e sua
família. Por outro vértice, verifica-se também a existência da
relativização desse conceito individual e absoluto da propriedade, ao dispor no mesmo artigo que a propriedade atenderá a
sua função social26 .
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. Curitiba: Juruá, 2002. p. 274.
Artigo 5º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e garantido aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o direito
de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá sua função social; XXV - no caso de iminente
perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao
proprietário indenização ulterior, se houver dano”. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. (Ed. atualizada até a Emenda 43).
25
26
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O princípio constitucional da função social da propriedade,
para Cássia Celina Paulo Moreira da Costa27 :
...dotado de eficácia plena e imediata, enquanto norma de direito, impõe ao exercício do direito de propriedade uma função social, sem que esteja discriminada sua definição; e exatamente em decorrência de tal
silêncio é que, diante do contexto ideológico-constitucional atual, deduz-se que a propriedade contemporânea não tem uma função social, mas é uma função
social, e sendo assim, sua abrangência é ampla, genérica, ilimitada. Por conseguinte, a propriedade, conquanto funcionalizada no sistema jurídico atual, no rol
dos direitos fundamentais e reafirmadas como princípio de ordem econômica, constitui-se, simultaneamente, como um direito (por ser considerada uma liberdade individual) e uma garantia28 .
Assim, a interpretação da forma que a propriedade privada é
tratada na Constituição vai além dos limites existentes no Código Civil, e encontra-se sólida nos fundamentos da função
social, sendo que não existe contradição, mas, sim, um elemento norteador para a faculdade de ser proprietário.
Verifica-se que consta no artigo 170, II e III, da Constituição, que a propriedade privada e a função social são princípios
da ordem econômica29 . Tal evidência é classificada pela dou27
COSTA, Cássia Celina Paulo Moreira. A Constitucionalização do Direito de Propriedade Privada. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. p. 196.
28
Não será confiscada a propriedade se o titular do domínio não desperdiçar a potencialidade
do bem.
29
Artigo 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados
os seguintes princípios: [...] II - a propriedade privada; III - função social da propriedade [...]
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trina como “Constituição Econômica”, uma vez que põe em
execução um “conjunto de normas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, estabelece os princípios fundamentais de determinada forma de organização e funcionamento da economia e constitui, por isso
mesmo, uma determinada ordem econômica”30.
Pode-se dividir as propriedades em dois grupos, as consideradas propriedades estáticas, que não se destinam à produção (imobiliárias, créditos etc.) e as propriedades dinâmicas (ou organizadas sob regime empresarial com objetivo de produzir e promover a circulação, a distribuição e o consumo dos bens). Para as
estáticas, a disposição constitucional prevê as hipóteses, por exemplo, de desapropriação e o uso compulsório do solo urbano. Para
as dinâmicas cabe vincular o seu exercício à produção ou atividades econômicas. Verifica-se, assim, que não são apenas os bens
produtivos que têm função social, posto que a Constituição não
prevê exceções à regra (pensamento não pacífico).
Alguns doutrinadores entendem que a propriedade estática
não pode conter função social, posto que garante apenas a subsistência individual e familiar, e que somente às dinâmicas podese conceber uma função social. Orlando Gomes defende que só
os bens produtivos são idôneos à satisfação de interesses econômicos e coletivos que constituem o pressuposto de fato da
função social.
Porém, é sob seu aspecto dinâmico que a propriedade já foi e continuará a ser alvo de disputa ideológi30
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 771.
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ca, visto que, neste campo jurídico-econômico, a
chamada função social da propriedade tem seus contornos, não mais de bens móveis e imóveis, porém
transmudada, funcionalizada em universitas júris
(conjunto de direitos) e universitas facti (conjunto de
objetos). Essa funcionalização da propriedade, albergada no Ordenamento Constitucional, em seu aspecto dinâmico, nos conduz a outros aspectos dessa
funcionalização. Como uma unidade produtiva, as
propriedades em geral, em especial as grandes
corporações, são tidas como um bem de produção a
serviço da sociedade31 .
Tanajura, ao comentar sobre os direitos previstos no artigo
5º e nos incisos II e III do artigo 170 da atual Constituição,
conclui de forma sintética que32 :
a) admite-se a propriedade privada, de bens e direitos, ao lado da propriedade pública, curvando-se, a
primeira, ao atendimento de sua função social;
b) o princípio da função social da propriedade, não é
simples restrição, mas compõe o próprio fundamento do instituto da propriedade, o qual só é garantido
ao proprietário que cumprir referida função;
c) o termo propriedade é utilizado em sentido amplo,
englobando a titularidade de quaisquer bens ou direitos do particular, de natureza corpórea ou não;
d) trata-se de cláusula pétrea da Constituição;
e) os requisitos para o cumprimento da função da
TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A função social no Código Civil. São Paulo: RT, 2004. p.
12.
32
TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São
Paulo: LTr, 2000. p. 28.
31
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propriedade urbana ou rural são diversos, sendo que
a primeira tem que atender às exigências fundamentais de ordenação das cidades expressas no plano
diretor, e a segunda tem os requisitos arrolados pela
Constituição;
f) quanto à dicotomia existente entre a propriedade
privada e função social da propriedade, a “Constituinte de 1988 deixa claro que os dois direitos estão
em pé de igualdade e que propriedade sem cumprir
sua função social, não é propriedade.
Destarte, entende-se que a propriedade no Brasil deve ser separada em pública ou privada, já que entendemos que a privada não
tem função social e sim inserção social33 , pois é a propriedade
pública que deve ter função social, não importando muito se ela é
dinâmica ou estática, mas cabendo diferenciar certamente que função social ou inserção social é logicamente diferente de restrição.
5 Características, conceituação e evolução da
função social
Com a Revolução Francesa, a propriedade passa a ser fonte
de riqueza e marca de segurança, onde servia exclusivamente
para a satisfação e utilidade de seu proprietário, o qual tinha,
sobre ela, autoridade ilimitada, e atendia às novas exigências
da nascente economia capitalista.
A revolução francesa procurou dar um caráter democrático à propriedade, abolindo privilégios, can33
Para um melhor entendimento, ver artigo em http://www.univali.br/cpcj. A Função (F(X)) do
Direito das Coisas. Álvaro Borges de Oliveira.
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celando direitos perpétuos, porém, este fito da burguesia ficou diretamente condicionado aos seus interesses econômicos e políticos, de forma que a propriedade alterava suas concepções tradicionais para
servir a uma nova classe social em busca do poder:
a burguesia. A nova fórmula de dominação econômica e política do feudalismo, que sucedeu ao Estado
universal dos romanos, foram substituídas pela Revolução Francesa com o império dos princípios de
igualdade, soberania e justiça34 .
A percepção da prevalência dos direitos do indivíduo sobre a sociedade, em relação à propriedade, foi positivada com a
promulgação do Código Civil francês, também conhecido como
Código Napoleão35 , em especial no seu artigo 544, o qual garante ao proprietário o uso absoluto de sua propriedade36 .
A propriedade, para a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, consistiu em direito inviolável
e sagrado. Tanto o Código francês quanto o Código
italiano de 1865, estatuíam que a propriedade é o
direito de gozar e dispor do bem de modo absoluto.
34
FACHIN. Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 16.
35
De acordo com Pereira, “O Código Napoleão traduz os pendores de seu tempo e sintetiza as
idéias-forças do direito do século XIX. E como este foi o grande lago sereno do individualismo
jurídico, aquele foi cognominado com razão o Código da Propriedade. Em torno dela construiuse a economia. Em função de sua extrema valoração, os princípios jurídicos se assentaram.
Ocorreu um certo desprezo pela propriedade da coisa móvel, que o legislador do Consulado
tratou em plano secundário e, acreditando na vilis mobilium possessio, o jurista classificou,
numa espécie de aristocracia bonitária, a coisa móvel como a mais importante, porque a propriedade imobiliária traduz mais que outra qualquer a idéia de assenhoramento, conservação e de
equilíbrio econômico”. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 8. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1994. p. 25.
36
Artigo 544: “lê droit de jouir et disposer de choses de la manieére le plus absolue, pourvu
qu’on n’em fasse pás um usage prohibé par lês lois ou par lês réglemensts”. FRANÇA. Código
Civil, 1803.
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A partir da Constituição Weimar, há progressivo reconhecimento de uma ordem econômica e social com
implicações para a questão da propriedade, de forma a construir uma nova etapa frente ao já superado
laisser faire, laisse passer37 .
Referido dispositivo sobre o regime da propriedade repercutiu em todos os códigos civis do Ocidente38 . No Brasil, ocorreu com o advento do Código de 1916, o qual, através de seu
artigo 524, assegurava aos proprietários o direito de usar, gozar
e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder quem quer que
injustamente o possuísse. O atual Código, em seu artigo 1.228,
manteve idêntica disposição39 .
Porém em contrapartida, na esteira da superação do
modelo proprietário napoleônico-pandectisco, a oferecer bases para a almejada ricostruzione dell’istituto
della proprietá, nas palavras de Rodotá, está a categoria da função social. Desse modo, a apreensão do
conceito de função social - sua autonomia científica é condição necessária tanto para que possa atuar no
interior de outro conceito (o de direito subjetivo) quanto para que não se reduza ao plano das meras motivações morais, políticas e ideológicas40 , 41 .
37
FACHIN. Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 16.
38
VAZ, Isabel. Direito Econômico das Propriedades. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 61.
39
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
40 MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 765.
41
“Pressuposto para a construção técnico-jurídica que consagrará a superação do modelo medieval são os conceitos de “sujeito unitário” e o Código Civil – na expressão de Clavero, “lei
constituinte”, eis os alicerces do modelo proprietário iluminista. O direito privado, nesse contexto, reduz-se a um sistema de direitos subjetivos, centrado na técnica do “sujeito de direito único”,
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Não há incompatibilidade entre a proteção da função social
e o direito civilista privado, mas sim uma renovação da concepção quanto aos alcances dos direitos e obrigações relativos
à propriedade. Portanto, a aceitação da função social, como essência dinâmica da estrutura jurídica, importa o afastamento
da tradicional teoria que vincula o direito de propriedade privada aos limites de direito público42 . A concepção ampla de
tudo que envolve o direito de propriedade passa por uma reestruturação, atendendo à dinamicidade das relações civilis, onde
já não há mais espaço para o antigo modelo de proprietário,
com a falsa crença de poder absoluto sobre o bem, muitas vezes positivada, que legitimava a prática de abusos. Portanto,
podemos falar em um novo modelo de proprietário que vem se
firmando43 , ou seja, uma visão de propriedade mais ampla, plural, onde estaria inserida a categoria da função social, abandonando-se o conceito unitário de propriedade. A verdade é que o
reconhecimento da multiplicidade das propriedades rompe definitivamente com o esquema unitário44 .
A pluralidade de propriedades específicas pressupõe,
por um lado, um direito comum de propriedade, en-
ou seja, o homem em qualquer condição social, sujeito abstrato, “proprietário abstracto (...)
destinatário de normas abstractas, y por ello generales” (López y López, Estado social y sujeto
privado: una reflexión finisecular, in Quaderni Fiorentini, v. 25, 1996, p. 412-413; e López y López,
G´ny, Duguit y el derecho subjetivo: evocación y nota sobre una polémica, in Quaderni Fiorentini,
v. 20, 1991, p. 163.
42
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 766.
43
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 770.
44
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 770.
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quanto categoria genérica, e, por outro lado, o reconhecimento dos múltiplos estatutos desse direito de
propriedade. Com efeito, não se cogita de uma simplória multiplicação de noções, que passa a substituir o conceito unitário. Para Rodotá, trata-se antes
de uma renovação metodológica: não mais persistir
num conceito unitário, ou então numa pluralidade de
conceitos unitários relacionados a uma pluralidade
de estatutos proprietários, mas sim trocar uma linha
dogmática por uma linha realista, trocar a estabilidade e a cristalização de um conceito pelo valor do movimento e da abertura45 .
Assim, o direito de propriedade não deverá ser visto de forma isolada, mas sistemático, correlacionado com os demais princípios jurídicos, especialmente os constitucionais, ampliandose a sua interpretação e aplicação.
A idéia do conceito “social” remete sempre o jurista a outros campos de conhecimentos, como o político, o econômico,
o sociológico e também o religioso, entre outros. Tal fato amplia o campo de atuação do intérprete, ocasionando uma mudança de paradigma no direito privado, conforme entendimento de Habermas:
...enquanto os conceitos de direito romano servem,
durante a modernidade, para definir as liberdades negativas dos cidadãos, para garantir a propriedade e
o intercâmbio econômico das pessoas privadas contra intromissões de um poder político exercido admi-
45
MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 771.
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nistrativamente, do qual eles estavam excluídos, a
linguagem da ética e da retórica conserva a imagem
de uma prática política, na qual se realizam as liberdades positivas de cidadãos que participam em igualdade de condições. O conceito republicano da “política” não se refere ao direito dos cidadãos privados à
vida, à liberdade e à propriedade, garantidos pelo
Estado, porém, em primeira linha, à prática de autodeterminação de cidadãos orientados pelo bem comum, que se compreende como membros livres e
iguais de uma sociedade cooperadora que a si mesma se administra46 .
Continuando, expõe Habermas que, paralelo aos interesses
individuais e da expansão econômica, existe uma terceira fonte
da integração social, que seria a solidariedade e a orientação do
bem comum. Essa concepção, apesar de ser extremamente subjetiva, vem devagar e profundamente modificando o pensar e o
agir do mundo jurídico, tanto na fase de criação, como na aplicação e interpretação da lei, onde a transformação social exige,
cada vez mais, que assegurem os direitos relativos ao bem comum, em detrimento dos direitos privados.
Alguns doutrinadores atribuem à função social a natureza
de princípio jurídico47 , o qual norteia o direito privado. Judith
46
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Biblioteca Tempo Universitário. Rio de Janeiro, 1997, p. 331-332.
47 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo, RT,
1991, p. 243-244: “Os incisos II e III do art. 170 enunciam como princípios da ordem econômica,
respectivamente, a propriedade privada e a função social da propriedade, que examinarei conjuntamente. Cuida-se de princípios constitucionais impositivos (Canotilho), afetados, porém, pela
dupla função a que anteriormente referi. Os princípios, pois, consubstanciam também diretrizes
(Dworkin) – normas objetivo – dotadas de caráter constitucional conformador. Justifica-se, aí
também, a reivindicação pela realização de políticas públicas”.
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73
Martins expõe que a propriedade não é uma função social, mas
um direito que deve atender a uma função social, apresentando-se como um poder-função, vertente de direitos e deveres.
Fachin também expõe que a propriedade não é uma função social, mas “tem uma função social, princípio jurídico aplicado
ao exercício das faculdades e poderes que lhe são inerentes”48 .
Judith Martins ao expor sobre caracterização do direito de
propriedade como direito privado e não público aduz que o fato
da propriedade privada ter sido introduzida no Brasil, pela via
do direito público, seja o responsável por grande parte da doutrina brasileira caracterizar a propriedade como instituto de direito público, e alerta para o fato de que “o falso pressuposto de
que o direito privado nada mais é que a institucionalização do
espírito egoístico dos indivíduos produz conseqüências teóricas lamentáveis – como se ao princípio da autonomia privada
fosse repugnante a categoria da função social, como se a superação da clássica concepção de direito subjetivo (que passa a
abranger a noção de dever, implícita à função social) não ocorresse precisamente no seio do direito privado” e conclui constatando que o direito privado aceita e supõe a coexistência de
fatores sociais, e que se realmente fosse acertada a atribuição
de caráter público à propriedade privada, esta não permaneceria como instituto central do direito privado no Código Civil
brasileiro, o qual, sem mencionar a expressão “função social”,
adicionou deveres na essência do direito de propriedade.
Para Fachin, “a função social relaciona-se com o uso da propriedade, alterando, por conseguinte, alguns aspectos pertinen48
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 19.
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tes a essa relação externa que é o seu exercício”49 . E por uso da
propriedade, segundo Fachin, entende-se o modo com que são
exercitadas as faculdades ou os poderes inerentes ao direito de
propriedade. Aduz, também, que o grau de complexidade atualmente atingido pelo instituto da propriedade advém do grau
de complexidade das relações sociais, e que somente o trabalho
do homem sobre a terra, que não é condição sine qua non para
adquirir a propriedade, é que a torna legítima50 .
Segundo Tanajura, “a partir do momento que o ordenamento jurídico reconheceu que o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido tão-somente para satisfação de
seu interesse, a função da propriedade tornou-se social”51 . Continuando, aduz, ainda, que a “função social da propriedade consiste em uma série de obrigações e encargos, de limitações e de
estímulos que formam parte de sua regulamentação; não se ajusta
a um só encargo de técnica jurídica. É todo um complexo de
recursos mediante os quais, de forma direta ou indireta, o proprietário é levado ao campo da função social”52 .
Além da função social da propriedade imóvel ou móvel, a lei
também defende a propriedade intelectual, porém, em tempos de
Internet aumentou-se a necessidade das pessoas à informação, e a
prontidão em se fazer cópias, sem qualquer compromisso com o
49
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 16.
50
FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 18.
51
TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São
Paulo: LTr, 2000. p. 30.
52
TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São
Paulo: LTr, 2000. p. 30 e 31.
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75
autor intelectual. O acesso à informação e ao uso dessa informação, que, num primeiro momento poderia ser vista apenas como
cópia, em contraposição à proteção dos direitos autorais, faz parte
da nossa estrutura evolutiva, diante do impacto que a Internet tem
sobre as nossas vidas, como ser social e integrado. Portanto vislumbra-se também o aspecto da função social da propriedade intelectual na época da Internet. Com as dianteiras tecnológicas, facilitando a produção de cópias, e a lentidão de nossa legislação quanto
a essa matéria, posto que nossos legisladores primeiro esperam o
surgimento do problema, com conseqüências econômicas, para
depois providenciarem a solução jurídica, que nem sempre consegue acompanhar a evolução dos referidos avanços, assim, estamos
diante de um grande impasse, ou seja, encontrar a proporção devida, entre os direitos do autor e o direito à informação aberta.
6 Conclusão
O social e o bem comum não estão em lados opostos com os
direitos privados, mas em paralelo, porém, os últimos necessitam,
para sobreviverem, respeitarem os limites e restrições impostas
pelos primeiros, cada vez mais presentes e mais crescentes.
Toda revolução social deve ser ao mesmo tempo uma revolução jurídica, sem o que ela não será senão vã desordem política53 .
Portanto, há necessidade de que as transformações sociais tenham
o amparo legal, a fim de se garantir a sua efetividade e o real alcance que se propõem. A função social da propriedade, que num primeiro plano desenvolveu-se nas lacunas da lei, ganhou força e foi
53
RIPERT, Georges. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Campinas: Red Livros, p. 16,
in TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A função social no Código Civil. RT, 2004. p. 1.
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reconhecida no mundo jurídico, após ser devidamente consignada como princípio constitucional. A função social, ou melhor,
inserção social são as transformações sociais do direito privado.
Chegou-se a falar em um direito social autônomo, porém, tratase de mais de uma expressão, de uma variação efetuada na função social dos institutos jurídico-privados. Preserva-se o direito
privado e busca-se uma função protetora do particular cumprindo os ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana”54 .
Hodiernamente, a propriedade, para ser objeto de proteção
do Estado, deve atender a sua função social. Segundo Tanajura,
a propriedade deixa de ser apenas o jus utendi, fruendi, et
abutendi para responsabilizar-se por deveres de vigilância, restrições de ordem pública que acarretam diminuição aos poderes de usar, fruir e dispor destes mesmos bens55 .
A função (inserção) social é diferente das limitações de direitos, no Código Civil a propriedade passa a ser uma “faculdade”,
um poder, enquanto a inserção social e as restrições são dever.
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TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A função social no Código Civil. São Paulo: RT, 2004. p.
38.
55
TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural. São
Paulo: LTr, 2000. p. 29.
54
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77
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