O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo O Sensível Partilhado: Estética e Política na Cena Riot Grrrl Cristiano Nascimento Oliveira 1 Daniele Moitinho Dourado Valois Rios 2 Leonardo Trindade Araújo 3 Resumo O artigo propõe um diálogo entre a noção de cena musical e o conceito de partilha do sensível, desenvolvido pelo filósofo francês Jaques Rancière. A sugestão é compreender as cenas como espaços dinâmicos, marcados por processos de identificação e diferenciação entre grupos de indivíduos que se relacionam em função de determinadas referências sonoras e identitárias. Dessa forma, as experiências musicais se tornariam partilhadas, por meio de ações coletivas, envolvendo estética e política. Para materializar tais considerações, analisaremos a cena Riot Grrrl, vertente feminista do punk rock, buscando pensar como as alianças que se estabelecem no campo musical são também formas de enunciação coletiva e de conferir visibilidade a indivíduos que não eram considerados como protagonistas nos territórios sonoros. 1 Mestrando pelo PPGCOM/UFPE e integrante do Laboratório de Análise de Música e Audiovisual (L.A.M.A), coordenado pelo Prof.º Dr. Jeder Janotti Jr.Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. 2 Mestranda pelo PPGCOM/UFPE.Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo em Multimeios, pela Universidade do Estado da Bahia e especialista em MBA de Administração e Marketing. 3 Mestrando pelo PPGCOM/UFPE e integrante do Laboratório de Análise de Música e Audiovisual (L.A.M.A), coordenado pelo Prof.º Dr. Jeder Janotti Jr.Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 91 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Palavras-chave: Cena Musical; Estética; Política; Riot Grrrl Abstract The article proposes a dialogue between the notion of music scene and the concept of sharing sensitive, developed by the French philosopher Jacques Rancière. The suggestion is to understand the scenes as dynamic spaces, marked by processes of identification and differentiation between groups of individuals who are related due to certain sound and identity references. Thus, the musical experiences become shared, through collective actions involving aesthetics and politics. To materialize these considerations, we analyze the Riot Grrrl scene, feminist aspect of punk rock, trying to think how the alliances that are established in the music field are also forms of collective enunciation and give visibility to individuals who were not considered as protagonists in the sound territories. Keywords: Musical Scene; aesthetics; policy; Riot Grrrl Introdução A noção de cena musical tem sido utilizada nos estudos comunicacionais como uma importante ferramenta Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 para 92 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo compreender os modos de produção, circulação e consumo da música popular massiva na contemporaneidade. A expressão busca apreender a complexidade das relações que se estabelecem em torno das práticas musicais em diferentes contextos urbanos e reforça a presença significativa da música na vida cotidiana. Como apontam Janotti Jr e Pires (2011, p.10): Consumir música nos dias de hoje é estar conectado a uma rede cultural que une o usuário que baixa álbuns de seus artistas favoritos na internet, o fã que vai aos shows de música de artistas da sua cidade, o jovem que, influenciado por seus ídolos, decide iniciar a prática de determinado instrumento musical, o músico que grava um disco inteiro em casa fazendo o uso de um computador, um grupo de amigos que monta uma banda, produtores culturais locais que promovem shows e amigos que se reúnem para conversar sobre suas bandas e álbuns favoritos. Enfim todas essas ações colaboram para que a música se afirme como um produto de forte presença em diferentes espaços do mundo atual. Essa ampla rede cultural construída em torno da música envolve o compartilhamento de valores, interesses e afinidades, como também a emergência de disputas e negociações entre artistas, público, críticos, produtores culturais e demais atores que integram diferentes cenas ou fazem parte de um mesmo Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 93 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo agrupamento musical. Logo, as cenas possuem um caráter dinâmico, constituindo-se como associações nas quais os participantes estabelecem códigos que marcam as práticas individuais e coletivas, elaboram estratégias de visibilidade e de ocupação de espaços e desenvolvem posicionamentos em relação a outros grupos. Tais questões são o foco do presente artigo, no qual tentamos abordar as cenas musicais como territórios culturais que proporcionam, simultaneamente, experiências comuns e relações tensivas com grupos que possuem referências sonoras e identitárias distintas. Para tanto, na primeira parte do texto, propomos compreender a lógica de formação de alianças em uma cena musical a partir do que o filósofo francês Jacques Rancière (2005) denomina “partilha do sensível”, no intuito de mostrar que as experiências musicais se tornam partilhadas quando resultam na articulação de ações coletivas, envolvendo a estética e a política. Em um segundo momento, passamos a refletir sobre como a ideia de cena, desde o seu surgimento nos anos 1940 até tornarse uma perspectiva acadêmica na década de 1990, aponta para processos de identificação e diferenciação entre grupos de indivíduos que se relacionam em função de determinados gêneros musicais. Assim, buscamos mostrar que as interações e Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 94 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo experiências que emergem entre os sujeitos a partir da música conformam também uma atividade política. Por fim, escolhemos vislumbrar a formação de comunidades de partilha na música com base na análise da cena Riot Grrrl que, desde meados da década de 1990, levanta a bandeira do feminismo por meio do punk rock. Interessa-nos, sobretudo, compreender como as integrantes dessa cena conquistaram espaços e reconhecimento, integrando música e política como forma de reivindicar os direito das mulheres e a igualdade entre os sexos. A escolha do objeto de análise parte do reconhecimento de que não estamos diante de um mero exemplo dos processos de “politização da estética” ou “estetização da política”. A cena Riot Grrrl permite pensar como as alianças que se estabelecem no campo musical são também formas de enunciação coletiva e de conferir visibilidade a indivíduos que não eram considerados como protagonistas nos territórios sonoros. Da Partilha do sensível A obra de Jacques Rancière tem como principal proposição a relação indissociável entre estética e política. Para apresentar sua tese, o autor formulou o conceito de “partilha do Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 95 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo sensível”, no qual estão presentes as ideias de compartilhamento de algo comum e de divisão do todo em partes distintas. Dessa forma, a noção expressa, de forma ambivalente, a tensão entre a participação e a separação existente dentro de uma comunidade. Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividades que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (RANCIÈRE, 2005, p.15). Logo, a expressão “partilha do sensível” sugere também um espaço de disputas por esse comum, um terreno em que conflitos são estabelecidos a partir da pluralidade das práticas humanas. Como consequência dessa configuração, são instituídas divisões entre os que estão integrados na ordem do discurso compartilhado e aqueles que permanecem excluídos do espaço previamente definido como coletivo. Rancière reforça que a partilha do sensível “faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço que essa Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 96 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível no espaço comum, dotado de uma palavra comum etc”. (2005, p.16). O resultado dessa definição de posições é uma partilha de caráter sempre desigual, que define a exclusão ou o pertencimento dos campos de visibilidade e enunciação. Em um cenário de divisões do ambiente comum, de repartição de papéis, espaços e modos de ser, encontra-se a relação entre estética e política. Para o filósofo, a estética referese a “um sistema de formas ‘a priori’ determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência” (2005, p.16). A política, por sua vez, teria como atribuição principal alterar essa configuração, intervindo sobre o que pode ser enunciável e visível. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer sobre o que é visto, de quem tem a competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. (RANCIÈRE, 2005, p.16 e 17) Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 97 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Nessa perspectiva, a política tem um caráter estético intrínseco, um modo simultâneo de dividir e compartilhar a experiência sensível comum. Da mesma forma, a estética também traz consigo uma base política, pois as formas de percepção resultam das divisões e fronteiras estabelecidas em determinada realidade social. Dentro dessa lógica, existe a possibilidade de redefinição da comunidade e do comum. A reconfiguração da partilha do sensível ocorre pela inclusão de novos sujeitos no comum, de forma a tornar visíveis e audíveis os indivíduos até então desconsiderados e cuja participação era tida como inócua para o coletivo. Nesse momento, as ações desses atores promovem um novo arranjo das percepções sobre o mundo ou estabelecem ambientes favoráveis para novos olhares sobre o coletivo. Para Rancière, as práticas artísticas favorecem essa mudança, porque são formas de produzir ação e partilhar o comum, são “‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (RANCIÈRE, 2005, p. 17). Por isso, cabe reconhecer o campo artístico também como essencialmente político, como responsável pela reconfiguração de uma esfera comum. Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 98 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo É possível identificar nos diversos fazeres artísticos a pretensão de construir estratégias de oposição à regras que, consolidadas no senso comum, preservam uma separação de corpos, espaços e vozes e dificultam as possibilidades de reconfiguração do mundo sensível. Rancière (2005, p.26) pondera: As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a mesma base. Como a finalidade do presente artigo é pensar a relação entre estética e política na música popular massiva (e, mais especificamente, na cena Riot Grrrl) cabe reconhecer as diferenças entre o campo musical e as artes visuais, que são o foco da abordagem de Rancière. Ao abordar a ideia de partilha do sensível, o filósofo aponta três regimes históricos da arte: ético, poético e estético. Como afirma, Janotti Jr. (2012, p. 9), tais categorias não podem ser relacionadas aos fenômenos ligados ao universo da “cultura pop”. Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 99 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Em minha opinião sua proposta agrega sem contradições fenômenos como o cinema documental de bordas e obras performáticas contemporâneas, ressaltando assim a ligação de seu pensamento com o regime das artes visuais e com uma tradição de definição da estética a partir da noção de obra (que não contemplaria fenômenos midiáticos como seriados e música popular massiva). Cenas musicais como partilhas de escutas Com base nas proposições de Ranciére, partimos para o debate sobre a natureza das cenas musicais, buscando compreender como ocorre a relação entre estética e política nesses grupos. Aqui, cabe retomar as origens do termo, cujas primeiras referências podem ser localizadas na década de 40. Trata-se de uma expressão nativa, criada pelos jornalistas norteamericanos da época para caracterizar a efervescência cultural em torno do Jazz. Posteriormente, a ideia de cena ganhou projeção e passou a figurar na imprensa como uma referência recorrente às práticas musicais presentes em determinados espaços urbanos e suas relações com os campos econômicos, culturais e sociais. Na academia, a noção de cena musical foi introduzida a partir dos estudos do pesquisador canadense Will Straw, mantendo o sentido original do termo. Em artigo publicado no Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 100 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo periódico Cultural Studies, como resultado da conferência The Music Industry in a Changing World, Straw (1991, p. 373) afirma que uma cena musical “é aquele espaço cultural no qual uma série de práticas culturais coexiste, interagindo entre si dentro de uma variedade de processos de diferenciação”. O autor captura a produtividade da acepção jornalística, apontando para a possibilidade da convivência de diferentes práticas musicais em um mesmo espaço e para o estabelecimento de fronteiras entre as diferentes práticas de escuta, a partir das alianças e confrontos estabelecidos entre os atores do campo da música. Dessa forma, os processos de sociabilidade que emergem nas cenas proporcionam interações, disputas e articulações do indivíduo com seus pares e com a tessitura urbana. Isso ocorre porque os agrupamentos musicais negociam de forma permanente com o espaço através das práticas de escuta ou de processos criativos. A relevância das cidades para a articulação das cenas musicais é defendida por Straw (2006, p. 6), para quem a noção de cena pode sugerir: 1) Congregação de pessoas num lugar; 2) O movimento destas pessoas entre este lugar e outro; 3) As ruas onde se dá este movimento; 4) Todos os espaços e atividades que rodeiam e nutrem uma preferência cultural particular; 5) O fenômeno maior e mais disperso geograficamente do qual este movimento é Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 101 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo um exemplo local; 6) As redes de atividades microeconômicas que permitem a sociabilidade e ligam esta cena à cidade. Logo, os espaços contribuem efetivamente na configuração das cenas, como também são redesenhados pelos atores sociais que integram os agrupamentos musicais. Cabe ressaltar que, além dos espaços físicos, os ambientes virtuais também permitem a conexão entre os ouvintes de determinados gêneros musicais, mesmo que eles estejam dispersos geograficamente. Sá (2011) acredita que a articulação entre essas diferentes modalidades espaciais é essencial para a consolidação de uma cena musical na contemporaneidade. (...) neste início de século, a apropriação dos lugares realizada pelas cenas se dá não só através de circuitos urbanos, mas também através das redes imateriais da cibercultura – nos sites, listas, blogs e redes sociais diversas, que desempenham muito fortemente o papel de construção de comunidades de gosto atual (SÁ, 2011, p.156). As alianças entre os sujeitos que compartilham preferências sonoras podem ser estabelecidas nos circuitos culturais da cidade ou da internet, mas são acompanhadas, Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 102 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo necessariamente, por exercícios de autorreflexão. Os participantes destacados das cenas são “militantes” engajados na defesa de suas preferências e práticas musicais. Para Janotti Jr. (2012, p. 115), uma cena “pressupõe a construção de modos específicos de mapear o terreno urbano através de práticas musicais autoreflexivas, ou seja, os participantes de uma cena musical se reconhecem na cena ao mesmo tempo em que demarcam, de modo dinâmico, seu alcance”. Assim, vemos que as cenas não são associações estáticas, mas em constante redefinição. A partir dos exercícios autorreflexivos dos integrantes de uma cena é possível compreender a formação dos grupos, seus limites, lógicas de pertencimento, definições estéticas, posicionamentos etc. Nesse processo, também são desenhadas as fronteiras que separam os agrupamentos musicais e vínculos são enfatizados a partir da comparação com outras cenas. Os críticos musicais, por exemplo, estariam diretamente ligados à afirmação e reconstrução constante desses grupos, em um período no qual os limites entre eles são cada vez mais fluídos, efêmeros e transitórios. Janotti Jr e Pires (2011, p. 10) afirmam que, “geralmente, quando existe certa efervescência na produção musical em determinado local, ela é logo nomeada, ou legitimada, pelo discurso da crítica cultural, que procura delimitar Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 103 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo a existência de uma cena em torno de expressões musicais distintas”. Além dos críticos, os demais atores que fazem parte de uma cena também buscam conferir visibilidade às suas práticas e definir distinções culturais subsequentes. Dentro dessa lógica, podemos afirmar que as cenas não são territórios estáticos que guardam práticas sociais, significados e sentidos fixos, mas sim um amplo espectro que nos permite olhar para uma multiplicidade de fenômenos, reconfigurações e manifestações ligadas ao campo musical. Neste sentido, as cenas não comportam uma conceitualização definitiva, pois estão em constante movimento, contribuindo efetivamente para a conformação de contextos sociais e culturais, nos quais os sujeitos atuam e assumem posições. Assim, entender a cena se dá no sentido muito mais produtivo de um processo que se desenvolve e se reconfigura através da história, e toma corpo na sociedade. Não é algo unitário ou transparente. Mas é coerente, no sentido de ser constituído por um conjunto permanentemente remoldável de interesses, conceitos, práticas, virtudes, compromissos, identidades, desejos e aspirações. Ou seja, uma cena não pode ser pensada como uma vida sem conflito, alteração, tensionamentos ou instabilidade, como o é a própria cultura. (CARDOSO FILHO E DE OLIVEIRA, 2012, p.11). Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 104 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Dessa maneira, o que mais interessa em uma cena musical é a multiplicidade de tensionamentos e interstícios possíveis, que surge pela ação dos atores sociais ou pela influência dos contextos. Trata-se de um processo contínuo de incorporação e excorporação de sujeitos e práticas que promove novas formações culturais e assimetrias. Portanto, as cenas musicais instauram laços, circuitos e engajamentos cada vez mais instáveis, marcados principalmente por negociações, diálogos e afirmações que envolvem a música e a disposição das sonoridades pelos territórios urbanos e virtuais. Para compreender essa lógica, Janotti Jr. (2012) propõe um diálogo com o trabalho de Rancière. As cenas podem ser consideradas “enquadramentos sensíveis” que, por meio de agenciamentos e tensões, possibilitam a afirmação de territórios sonoros, articulados por sonoridades e experiências musicais que permitem a identificação cultural dos seus participantes. Pensar, como propõe Rancière (2005) em partilha do sensível, ou em nosso caso, uma partilha de escutas, pressupõem imaginar a “existência de um comum”, de territórios sonoros que possibilitam mapeamentos do mundo através das sonoridades e de suas materializações na urbe, e também de exclusões, que garantem à singularidade dessas ocupações em relação à “música Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 105 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo corriqueira”, a outras sonoridades e a outros modos de construção de territórios sonoros, ou seja, as cenas musicais podem ser pensadas na perspectiva das identidades. (JANOTTI JR, 2012, p.9) As apropriações da música popular massiva nos diversos territórios viabilizam o encontro de interesses e gostos comuns, criando “partilhas sensíveis” que são as bases para as cenas musicais. Dessa forma, os participantes desses agrupamentos constroem percepções sobre si e sobre os outros, através de vivências e valorações musicais, que relacionam fruições estéticas, práticas de consumo e identificações sociais. Da cena Riot Grrrl A cena Riot Grrrl constitui um movimento político e cultural criado no início da década de 1990 nos Estados Unidos, nas cidades de Olympia e Washington. Questionando o mito de que as mulheres seriam incapazes de tocar corretamente os instrumentos musicais e formar bandas como os homens, o movimento surge como uma reação das garotas à soberania masculina no rock e, mais especificamente, na cena punk, onde o Riot Grrrl se desenvolveu e ganhou corpo. Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 106 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Constituído por garotas com idade entre 14 e 25 anos, de classe média e média alta, o movimento desenvolve-se sob forte influência do feminismo radical, apresentando como finalidade “denunciar tanto a falta de validação das experiências femininas na sociedade quanto o sexismo presente no movimento punk” (CAMARGO, 2008, p.01). De acordo com Melo (2013), O termo riot grrrl aparece pela primeira vez em um zine de Tobi Vail, Jigsaw, publicado em 1993. Riot significa revolta, motim e grrrl é a um só tempo, um trocadilho com a palavra girl (garota) e uma onomatopéia semelhante ao barulho de ranger de dentes, uma expressão de raiva (p.164). Movimento que em pouco tempo adquiriu um caráter internacional, ganhando adeptas, inclusive, no Brasil, o Riot Grrrl destaca-se por apresentar um feminismo de “feições novas”, desenvolvido por jovens e para jovens. Diretamente associado à cultura e às artes, o movimento caracteriza-se por utilizar letras de músicas, fanzines e a própria estética corporal como formas de expressão, constituindo uma rede onde as garotas podem compartilhar livremente suas experiências mais íntimas. Temas como violência contra a mulher, abuso sexual, sexualidade, homossexualidade, xenofobia, ditadura da moda e distúrbios alimentares, dentre muitos outros, são tratados de forma bem Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 107 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo espontânea, com uma linguagem própria e um tom biográfico constante. Segundo Melo (2006), as Riot Grrrls adotam um feminismo exaltado, numa clara crítica à meiguice e à fragilidade que comumente (e culturalmente) são esperadas das garotas. De acordo com a pesquisadora, “suas músicas, barulhentas como convém ao punk, carregam letras em que vociferam palavrões, falam de sexo, sadomasoquismo e pornografia” (p.02). Como destacam Azevêdo, Cunha e Dornelas (2009), bandas como a americana Bikini Kill, uma das precursoras do movimento, destacam-se por apresentar letras “carregadas de protesto contra tudo que a sociedade poderia fazer contra a mulher” (p.05), sendo imitadas por centenas de outros grupos formados por garotas em diversas partes do mundo. Esse discurso de forte carga emocional também constitui uma das marcas dos fanzines, pequenas publicações confeccionadas e distribuídas gratuitamente (ou disponibilizadas na internet - os e-zines) pelas próprias garotas. Feitos de forma artesanal e apresentando um formato livre, com muitas colagens, imagens e textos digitados junto a textos escritos à mão, os fanzines constituem uma das principais formas de expressão no movimento Riot Grrrl. Segundo Rodrigues (2006), os temas tratados nessas publicações estão diretamente associados ao diaRevista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 108 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo a-dia das garotas (falam da família, das amigas, das relações amorosas, trazem dicas de leitura e audição, dão conselhos de como ter atitude diante de certas situações, apresentam entrevistas com bandas da cena punk ou do rock alternativo, divulgam festas, letras de músicas e ações relacionadas ao movimento). De acordo com a pesquisadora, através de sua escrita em primeira pessoa, as garotas abordam estes temas a partir de situações supostamente vividas por elas, envolvendo tais temas. Experiências de discussões com colegas na escola sobre a legalização do aborto, confissões de ressentimento com amigas que só pensam em seus namorados, de admiração ao pai, e assim por diante (RODRIGUES, 2006, p.38). Nessa busca constante pela livre expressão de ideias e anseios, a estética corporal das garotas também apresenta uma importância fundamental. Como defendem Ribeiro e Costa (2012) “as estratégias riot passam pelo uso do corpo como discurso político” (p.06). No movimento, as maneiras de se vestir e se portar são mais que meros detalhes estéticos, são uma forma de agir, de construir identidades, transmitir ideais e se diferenciar/aproximar de outros grupos. Como uma forma de tentar superar o paradoxo entre “masculinidade punk e feminilidade”, as riot grrrls acabam por Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 109 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo reiterar um comportamento já característico das garotas punks: a adoção de um estilo que definem como “bissexual ou unissex, uma androgenia definida através das roupas” (CAMARGO, 2008, p.04). Observando a indumentária das garotas do movimento (tanto no palco como nas platéias dos eventos riot), Facchini (2011) aponta para uma cena em que as riots mesclam visuais que apontam tanto para o feminino, quanto para o masculino: fazem e desfazem diferentes estilos (ora aparecendo como pin-ups, ora como rock stars junkies; ora como garotos de boybands, ora como garotas maquiadas e de salto) “com uma leveza que dá um tom lúdico e deixa evidente uma intencionalidade de brincar, citando ou ironizando referências” (p.140). Como sugere a pesquisadora, prevalece entre as garotas do movimento riot grrrl o pensamento “eu vou fazer o que eu quiser!”. Para Camargo (2008), ao adotarem um estilo alternativo que faz uso de itens da indumentária masculina, as riot grrrls assumem uma postura de “resistência não-verbal a padrões de feminilidade presentes no contexto do rock, conscientemente ou não” (p.4). Trata-se de uma busca pela re-definição da feminilidade, que passa tanto pelo uso dos cabelos curtos e de peças como calças largas e camisetões, quanto pelas transformações no corpo pelo uso de tatuagens e piercings. Como destacam Ribeiro e Costa (2012), elas “vestem coturno com Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 110 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo lingerie e estão pouco se lixando para o que os outros pensam. O que elas querem passar é que pelo fato de ser mulher, não significa que alguém deve ser alguém vulnerável, meiga e usar cor-de-rosa” (p.07). Nessa tentativa de re-definição (não apenas da feminilidade em si, como das próprias identidades “estáveis e fixas” de gênero), as integrantes do movimento conhecidas como “dykes” também apresentam uma importância fundamental. Utilizado tanto pelas garotas do rock dos Estados Unidos, quanto pelas riot grrrls do Brasil, o termo dyke faz alusão a um tipo de xingamento que equivale, em português, à palavra “sapatão”, usada pejorativamente para fazer referência às lésbicas. Convertidas em um dos símbolos do feminismo juvenil, as dykes passaram a ganhar mais destaque com o crescimento dos discursos anti-lesfobia na cena riot, fazendo surgir um cenário em que “a invocação da homossexualidade abre espaço para uma ruptura em relação à coerência entre sexo, gênero e desejo e torna possível pensar em mulheres masculinas ou femininas” (FACCHINI, 2008, p.07 – grifos da autora). Como argumenta a pesquisadora, ocorre uma valorização, tanto das diversas “masculinidades” e “feminilidades”, quanto das variações na composição dos pares afetivo-sexuais. Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 111 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Baseado na premissa “Do It Yourself” ou “Faça você mesmo”, herdada do punk, o riot grrrl atua nessa re-definição das relações de gênero se valendo de muita criatividade e muito ativismo. Longe do aparato da grande mídia e das principais gravadoras, a cena conta com a dedicação das suas integrantes para que os seus materiais e ideais circulem de forma independente, numa “rede” em que a internet e os festivais de cultura feminista (a exemplo do Lady Fest, festival voltado para a cultura juvenil que foi realizado pela primeira vez em Olympia, nos Estados Unidos e posteriormente se espalhou para outros países) apresentam papel de destaque. Nesse movimento político, estético e cultural de produção bastante farta, as garotas são estimuladas a se expressar e produzir, num ambiente libertário em que “não há distinção de quem é autora ou leitora, de quem é banda e de quem é platéia” (RIBEIRO E COSTA, 2012, p.08). Na cena Riot Grrrl, o feminismo é juvenil, pautado no “faça você mesma” e voltado para o fortalecimento da identidade das garotas, numa ação que busca valorizar a autonomia e o protagonismo feminino. Ao constituir esta cena estruturada a partir de rupturas, em que as garotas se opõem ao ambiente machista instaurado no punk e passam a aparecer como sujeitos políticos que se rebelam e instituem sua fala, o movimento Riot Grrrl se coloca como parte Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 112 O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo do que Rancière define como “comunidade de partilha”. Importante tanto sobre o aspecto estético quanto pelo viés político, o movimento criado pelas garotas “entra em choque” com o espaço consensual do rock e ajuda a reconfigurar a cena punk, permitindo uma nova disposição de corpos, vozes e discursos. Até então colocadas à margem e à prova, as garotas dão o seu grito e se fazem ouvir. Referências AZEVÊDO, Amanda Sena Soares de; CUNHA, Araceli Milma Ferreira da; DORNELLAS, Camylla de Oliveira. Movimento Riot Grrrl: Busca Pela Igualdade. In: II Seminário Nacional de Gênero e Práticas Culturais: Culturas, leituras e representações. 2009 CAMARGO, Michelle Alcântara. Riot Grrrls em São Paulo: Estética Corporal na Construção Identitária. In: Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 CARDOSO FILHO, J; DE OLIVEIRA, L. Espaço de experiência e horizonte de expectativas como categorias metodológicas para o estudo das cenas musicais. Anais do XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 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