O Sensível Partilhado: Estética e Política na Cena Riot Grrrl

Propaganda
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo O Sensível Partilhado: Estética e Política na Cena Riot Grrrl
Cristiano Nascimento Oliveira 1
Daniele Moitinho Dourado Valois Rios 2
Leonardo Trindade Araújo 3
Resumo
O artigo propõe um diálogo entre a noção de cena musical e o
conceito de partilha do sensível, desenvolvido pelo filósofo
francês Jaques Rancière. A sugestão é compreender as cenas
como espaços dinâmicos, marcados por processos de
identificação e diferenciação entre grupos de indivíduos que se
relacionam em função de determinadas referências sonoras e
identitárias. Dessa forma, as experiências musicais se tornariam
partilhadas, por meio de ações coletivas, envolvendo estética e
política. Para materializar tais considerações, analisaremos a cena
Riot Grrrl, vertente feminista do punk rock, buscando pensar
como as alianças que se estabelecem no campo musical são
também formas de enunciação coletiva e de conferir visibilidade
a indivíduos que não eram considerados como protagonistas nos
territórios sonoros.
1
Mestrando pelo PPGCOM/UFPE e integrante do Laboratório de Análise de
Música e Audiovisual (L.A.M.A), coordenado pelo Prof.º Dr. Jeder Janotti
Jr.Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
2
Mestranda pelo PPGCOM/UFPE.Graduada em Comunicação Social, com
habilitação em Jornalismo em Multimeios, pela Universidade do Estado da
Bahia e especialista em MBA de Administração e Marketing.
3
Mestrando pelo PPGCOM/UFPE e integrante do Laboratório de Análise de
Música e Audiovisual (L.A.M.A), coordenado pelo Prof.º Dr. Jeder Janotti
Jr.Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 91
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Palavras-chave: Cena Musical; Estética; Política; Riot Grrrl
Abstract
The article proposes a dialogue between the notion of music
scene and the concept of sharing sensitive, developed by the
French philosopher Jacques Rancière. The suggestion is to
understand the scenes as dynamic spaces, marked by processes of
identification and differentiation between groups of individuals
who are related due to certain sound and identity references.
Thus, the musical experiences become shared, through collective
actions involving aesthetics and politics. To materialize these
considerations, we analyze the Riot Grrrl scene, feminist aspect
of punk rock, trying to think how the alliances that are established
in the music field are also forms of collective enunciation and
give visibility to individuals who were not considered as
protagonists in the sound territories.
Keywords: Musical Scene; aesthetics; policy; Riot Grrrl
Introdução
A noção de cena musical tem sido utilizada nos estudos
comunicacionais
como
uma
importante
ferramenta
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 para
92
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo compreender os modos de produção, circulação e consumo da
música popular massiva na contemporaneidade. A expressão
busca apreender a complexidade das relações que se estabelecem
em torno das práticas musicais em diferentes contextos urbanos e
reforça a presença significativa da música na vida cotidiana.
Como apontam Janotti Jr e Pires (2011, p.10):
Consumir música nos dias de hoje é estar
conectado a uma rede cultural que une o
usuário que baixa álbuns de seus artistas
favoritos na internet, o fã que vai aos shows
de música de artistas da sua cidade, o jovem
que, influenciado por seus ídolos, decide
iniciar a prática de determinado instrumento
musical, o músico que grava um disco inteiro
em casa fazendo o uso de um computador, um
grupo de amigos que monta uma banda,
produtores culturais locais que promovem
shows e amigos que se reúnem para conversar
sobre suas bandas e álbuns favoritos. Enfim
todas essas ações colaboram para que a
música se afirme como um produto de forte
presença em diferentes espaços do mundo
atual.
Essa ampla rede cultural construída em torno da música
envolve o compartilhamento de valores, interesses e afinidades,
como também a emergência de disputas e negociações entre
artistas, público, críticos, produtores culturais e demais atores que
integram diferentes cenas ou fazem parte de um mesmo
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 93
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo agrupamento musical. Logo, as cenas possuem um caráter
dinâmico, constituindo-se como associações nas quais os
participantes estabelecem códigos que marcam as práticas
individuais e coletivas, elaboram estratégias de visibilidade e de
ocupação de espaços e desenvolvem posicionamentos em relação
a outros grupos.
Tais questões são o foco do presente artigo, no qual
tentamos abordar as cenas musicais como territórios culturais que
proporcionam, simultaneamente, experiências comuns e relações
tensivas com grupos que possuem referências sonoras e
identitárias distintas. Para tanto, na primeira parte do texto,
propomos compreender a lógica de formação de alianças em uma
cena musical a partir do que o filósofo francês Jacques Rancière
(2005) denomina “partilha do sensível”, no intuito de mostrar que
as experiências musicais se tornam partilhadas quando resultam
na articulação de ações coletivas, envolvendo a estética e a
política.
Em um segundo momento, passamos a refletir sobre como
a ideia de cena, desde o seu surgimento nos anos 1940 até tornarse uma perspectiva acadêmica na década de 1990, aponta para
processos de identificação e diferenciação entre grupos de
indivíduos que se relacionam em função de determinados gêneros
musicais. Assim, buscamos mostrar que as interações e
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 94
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo experiências que emergem entre os sujeitos a partir da música
conformam também uma atividade política.
Por
fim,
escolhemos
vislumbrar
a
formação
de
comunidades de partilha na música com base na análise da cena
Riot Grrrl que, desde meados da década de 1990, levanta a
bandeira do feminismo por meio do punk rock. Interessa-nos,
sobretudo, compreender como as integrantes dessa cena
conquistaram espaços e reconhecimento, integrando música e
política como forma de reivindicar os direito das mulheres e a
igualdade entre os sexos. A escolha do objeto de análise parte do
reconhecimento de que não estamos diante de um mero exemplo
dos processos de “politização da estética” ou “estetização da
política”. A cena Riot Grrrl permite pensar como as alianças que
se estabelecem no campo musical são também formas de
enunciação coletiva e de conferir visibilidade a indivíduos que
não eram considerados como protagonistas nos territórios
sonoros.
Da Partilha do sensível
A obra de Jacques Rancière tem como principal
proposição a relação indissociável entre estética e política. Para
apresentar sua tese, o autor formulou o conceito de “partilha do
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 95
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo sensível”, no qual estão presentes as ideias de compartilhamento
de algo comum e de divisão do todo em partes distintas. Dessa
forma, a noção expressa, de forma ambivalente, a tensão entre a
participação e a separação existente dentro de uma comunidade.
Denomino partilha do sensível o sistema de
evidências sensíveis que revela, ao mesmo
tempo, a existência de um comum e dos
recortes que nele definem lugares e partes
respectivas. Uma partilha do sensível fixa,
portanto, ao mesmo tempo, um comum
partilhado e partes exclusivas. Essa repartição
das partes e dos lugares se funda numa
partilha de espaços, tempos e tipos de
atividades que determina propriamente a
maneira como um comum se presta à
participação e como uns e outros tomam parte
nessa partilha (RANCIÈRE, 2005, p.15).
Logo, a expressão “partilha do sensível” sugere também
um espaço de disputas por esse comum, um terreno em que
conflitos são estabelecidos a partir da pluralidade das práticas
humanas. Como consequência dessa configuração, são instituídas
divisões entre os que estão integrados na ordem do discurso
compartilhado e aqueles que permanecem excluídos do espaço
previamente definido como coletivo. Rancière reforça que a
partilha do sensível “faz ver quem pode tomar parte no comum
em função daquilo que faz, do tempo e do espaço que essa
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 96
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define
competências ou incompetências para o comum. Define o fato de
ser ou não visível no espaço comum, dotado de uma palavra
comum etc”. (2005, p.16). O resultado dessa definição de
posições é uma partilha de caráter sempre desigual, que define a
exclusão ou o pertencimento dos campos de visibilidade e
enunciação.
Em um cenário de divisões do ambiente comum, de
repartição de papéis, espaços e modos de ser, encontra-se a
relação entre estética e política. Para o filósofo, a estética referese a “um sistema de formas ‘a priori’ determinando o que se dá a
sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do
invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o
lugar e o que está em jogo na política como forma de
experiência” (2005, p.16). A política, por sua vez, teria como
atribuição principal alterar essa configuração, intervindo sobre o
que pode ser enunciável e visível.
A política ocupa-se do que se vê e do que se
pode dizer sobre o que é visto, de quem tem
competência para ver e qualidade para dizer
sobre o que é visto, de quem tem competência
para ver e qualidade para dizer sobre o que é
visto, de quem tem a competência para ver e
qualidade para dizer, das propriedades do
espaço e dos possíveis do tempo.
(RANCIÈRE, 2005, p.16 e 17)
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 97
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Nessa perspectiva, a política tem um caráter estético
intrínseco, um modo simultâneo de dividir e compartilhar a
experiência sensível comum. Da mesma forma, a estética também
traz consigo uma base política, pois as formas de percepção
resultam das divisões e fronteiras estabelecidas em determinada
realidade social.
Dentro dessa lógica, existe a possibilidade de redefinição
da comunidade e do comum. A reconfiguração da partilha do
sensível ocorre pela inclusão de novos sujeitos no comum, de
forma a tornar visíveis e audíveis os indivíduos até então
desconsiderados e cuja participação era tida como inócua para o
coletivo. Nesse momento, as ações desses atores promovem um
novo arranjo das percepções sobre o mundo ou estabelecem
ambientes favoráveis para novos olhares sobre o coletivo.
Para Rancière, as práticas artísticas favorecem essa
mudança, porque são formas de produzir ação e partilhar o
comum, são “‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição
geral das maneiras de fazer e nas relações com maneiras de ser e
formas de visibilidade” (RANCIÈRE, 2005, p. 17). Por isso, cabe
reconhecer o campo artístico também como essencialmente
político, como responsável pela reconfiguração de uma esfera
comum.
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 98
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo É possível identificar nos diversos fazeres artísticos a
pretensão de construir estratégias de oposição à regras que,
consolidadas no senso comum, preservam uma separação de
corpos, espaços e vozes e dificultam as possibilidades de
reconfiguração do mundo sensível. Rancière (2005, p.26)
pondera:
As artes nunca emprestam às manobras de
dominação ou emancipação mais do que lhes
podem
emprestar,
ou
seja,
muito
simplesmente, o que têm em comum com
elas: posições e movimentos dos corpos,
funções da palavra, repartições do visível e do
invisível. E a autonomia de que podem gozar
ou a subversão que podem se atribuir
repousam sobre a mesma base.
Como a finalidade do presente artigo é pensar a relação
entre estética e política na música popular massiva (e, mais
especificamente, na cena Riot Grrrl) cabe reconhecer as
diferenças entre o campo musical e as artes visuais, que são o
foco da abordagem de Rancière. Ao abordar a ideia de partilha
do sensível, o filósofo aponta três regimes históricos da arte:
ético, poético e estético. Como afirma, Janotti Jr. (2012, p. 9), tais
categorias não podem ser relacionadas aos fenômenos ligados ao
universo da “cultura pop”.
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 99
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Em minha opinião sua proposta agrega sem
contradições fenômenos como o cinema
documental de bordas e obras performáticas
contemporâneas, ressaltando assim a ligação
de seu pensamento com o regime das artes
visuais e com uma tradição de definição da
estética a partir da noção de obra (que não
contemplaria fenômenos midiáticos como
seriados e música popular massiva).
Cenas musicais como partilhas de escutas
Com base nas proposições de Ranciére, partimos para o
debate sobre a natureza das cenas musicais, buscando
compreender como ocorre a relação entre estética e política
nesses grupos. Aqui, cabe retomar as origens do termo, cujas
primeiras referências podem ser localizadas na década de 40.
Trata-se de uma expressão nativa, criada pelos jornalistas norteamericanos da época para caracterizar a efervescência cultural em
torno do Jazz. Posteriormente, a ideia de cena ganhou projeção e
passou a figurar na imprensa como uma referência recorrente às
práticas musicais presentes em determinados espaços urbanos e
suas relações com os campos econômicos, culturais e sociais.
Na academia, a noção de cena musical foi introduzida a
partir dos estudos do pesquisador canadense Will Straw,
mantendo o sentido original do termo. Em artigo publicado no
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 100
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo periódico Cultural Studies, como resultado da conferência The
Music Industry in a Changing World, Straw (1991, p. 373) afirma
que uma cena musical “é aquele espaço cultural no qual uma
série de práticas culturais coexiste, interagindo entre si dentro de
uma variedade de processos de diferenciação”. O autor captura a
produtividade da acepção jornalística, apontando para a
possibilidade da convivência de diferentes práticas musicais em
um mesmo espaço e para o estabelecimento de fronteiras entre as
diferentes práticas de escuta, a partir das alianças e confrontos
estabelecidos entre os atores do campo da música.
Dessa forma, os processos de sociabilidade que emergem
nas cenas proporcionam interações, disputas e articulações do
indivíduo com seus pares e com a tessitura urbana. Isso ocorre
porque os agrupamentos musicais negociam de forma permanente
com o espaço através das práticas de escuta ou de processos
criativos. A relevância das cidades para a articulação das cenas
musicais é defendida por Straw (2006, p. 6), para quem a noção
de cena pode sugerir:
1) Congregação de pessoas num lugar; 2) O
movimento destas pessoas entre este lugar e
outro; 3) As ruas onde se dá este movimento;
4) Todos os espaços e atividades que rodeiam
e nutrem uma preferência cultural particular;
5) O fenômeno maior e mais disperso
geograficamente do qual este movimento é
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 101
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo um exemplo local; 6) As redes de atividades
microeconômicas
que
permitem
a
sociabilidade e ligam esta cena à cidade.
Logo,
os
espaços
contribuem
efetivamente
na
configuração das cenas, como também são redesenhados pelos
atores sociais que integram os agrupamentos musicais. Cabe
ressaltar que, além dos espaços físicos, os ambientes virtuais
também permitem a conexão entre os ouvintes de determinados
gêneros
musicais,
mesmo
que
eles
estejam
dispersos
geograficamente. Sá (2011) acredita que a articulação entre essas
diferentes modalidades espaciais é essencial para a consolidação
de uma cena musical na contemporaneidade.
(...) neste início de século, a apropriação dos
lugares realizada pelas cenas se dá não só
através de circuitos urbanos, mas também
através das redes imateriais da cibercultura –
nos sites, listas, blogs e redes sociais diversas,
que desempenham muito fortemente o papel
de construção de comunidades de gosto atual
(SÁ, 2011, p.156).
As
alianças
entre
os
sujeitos
que
compartilham
preferências sonoras podem ser estabelecidas nos circuitos
culturais da cidade ou da internet, mas são acompanhadas,
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 102
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo necessariamente, por exercícios de autorreflexão. Os participantes
destacados das cenas são “militantes” engajados na defesa de
suas preferências e práticas musicais. Para Janotti Jr. (2012, p.
115), uma cena “pressupõe a construção de modos específicos de
mapear o terreno urbano através de práticas musicais autoreflexivas, ou seja, os participantes de uma cena musical se
reconhecem na cena ao mesmo tempo em que demarcam, de
modo dinâmico, seu alcance”.
Assim, vemos que as cenas não são associações estáticas,
mas em constante redefinição. A partir dos exercícios
autorreflexivos dos integrantes de uma cena é possível
compreender a formação dos grupos, seus limites, lógicas de
pertencimento, definições estéticas, posicionamentos etc. Nesse
processo, também são desenhadas as fronteiras que separam os
agrupamentos musicais e vínculos são enfatizados a partir da
comparação com outras cenas.
Os críticos musicais, por exemplo, estariam diretamente
ligados à afirmação e reconstrução constante desses grupos, em
um período no qual os limites entre eles são cada vez mais
fluídos, efêmeros e transitórios. Janotti Jr e Pires (2011, p. 10)
afirmam que, “geralmente, quando existe certa efervescência na
produção musical em determinado local, ela é logo nomeada, ou
legitimada, pelo discurso da crítica cultural, que procura delimitar
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 103
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo a existência de uma cena em torno de expressões musicais
distintas”. Além dos críticos, os demais atores que fazem parte de
uma cena também buscam conferir visibilidade às suas práticas e
definir distinções culturais subsequentes.
Dentro dessa lógica, podemos afirmar que as cenas não
são territórios estáticos que guardam práticas sociais, significados
e sentidos fixos, mas sim um amplo espectro que nos permite
olhar para uma multiplicidade de fenômenos, reconfigurações e
manifestações ligadas ao campo musical. Neste sentido, as cenas
não comportam uma conceitualização definitiva, pois estão em
constante
movimento,
contribuindo
efetivamente
para
a
conformação de contextos sociais e culturais, nos quais os
sujeitos atuam e assumem posições.
Assim, entender a cena se dá no sentido muito
mais produtivo de um processo que se
desenvolve e se reconfigura através da
história, e toma corpo na sociedade. Não é
algo unitário ou transparente. Mas é coerente,
no sentido de ser constituído por um conjunto
permanentemente remoldável de interesses,
conceitos, práticas, virtudes, compromissos,
identidades, desejos e aspirações. Ou seja,
uma cena não pode ser pensada como uma
vida sem conflito, alteração, tensionamentos
ou instabilidade, como o é a própria cultura. (CARDOSO FILHO E DE OLIVEIRA, 2012,
p.11).
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 104
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Dessa maneira, o que mais interessa em uma cena musical
é a multiplicidade de tensionamentos e interstícios possíveis, que
surge pela ação dos atores sociais ou pela influência dos
contextos. Trata-se de um processo contínuo de incorporação e
excorporação de sujeitos e práticas que promove novas formações
culturais e assimetrias. Portanto, as cenas musicais instauram
laços, circuitos e engajamentos cada vez mais instáveis, marcados
principalmente por negociações, diálogos e afirmações que
envolvem a música e a disposição das sonoridades pelos
territórios urbanos e virtuais.
Para compreender essa lógica, Janotti Jr. (2012) propõe
um diálogo com o trabalho de Rancière. As cenas podem ser
consideradas “enquadramentos sensíveis” que, por meio de
agenciamentos e tensões, possibilitam a afirmação de territórios
sonoros, articulados por sonoridades e experiências musicais que
permitem a identificação cultural dos seus participantes.
Pensar, como propõe Rancière (2005) em
partilha do sensível, ou em nosso caso, uma
partilha de escutas, pressupõem imaginar a
“existência de um comum”, de territórios
sonoros que possibilitam mapeamentos do
mundo através das sonoridades e de suas
materializações na urbe, e também de
exclusões, que garantem à singularidade
dessas ocupações em relação à “música
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 105
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo corriqueira”, a outras sonoridades e a outros
modos de construção de territórios sonoros,
ou seja, as cenas musicais podem ser
pensadas na perspectiva das identidades.
(JANOTTI JR, 2012, p.9)
As apropriações da música popular massiva nos diversos
territórios viabilizam o encontro de interesses e gostos comuns,
criando “partilhas sensíveis” que são as bases para as cenas
musicais. Dessa forma, os participantes desses agrupamentos
constroem percepções sobre si e sobre os outros, através de
vivências e valorações musicais, que relacionam fruições
estéticas, práticas de consumo e identificações sociais.
Da cena Riot Grrrl
A cena Riot Grrrl constitui um movimento político e
cultural criado no início da década de 1990 nos Estados Unidos,
nas cidades de Olympia e Washington. Questionando o mito de
que as mulheres seriam incapazes de tocar corretamente os
instrumentos musicais e formar bandas como os homens, o
movimento surge como uma reação das garotas à soberania
masculina no rock e, mais especificamente, na cena punk, onde o
Riot Grrrl se desenvolveu e ganhou corpo.
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 106
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Constituído por garotas com idade entre 14 e 25 anos, de
classe média e média alta, o movimento desenvolve-se sob forte
influência do feminismo radical, apresentando como finalidade
“denunciar tanto a falta de validação das experiências femininas
na sociedade quanto o sexismo presente no movimento punk”
(CAMARGO, 2008, p.01). De acordo com Melo (2013),
O termo riot grrrl aparece pela primeira vez
em um zine de Tobi Vail, Jigsaw, publicado
em 1993. Riot significa revolta, motim e grrrl
é a um só tempo, um trocadilho com a palavra
girl (garota) e uma onomatopéia semelhante
ao barulho de ranger de dentes, uma
expressão de raiva (p.164).
Movimento que em pouco tempo adquiriu um caráter
internacional, ganhando adeptas, inclusive, no Brasil, o Riot Grrrl
destaca-se por apresentar um feminismo de “feições novas”,
desenvolvido por jovens e para jovens. Diretamente associado à
cultura e às artes, o movimento caracteriza-se por utilizar letras
de músicas, fanzines e a própria estética corporal como formas de
expressão, constituindo uma rede onde as garotas podem
compartilhar livremente suas experiências mais íntimas. Temas
como violência contra a mulher, abuso sexual, sexualidade,
homossexualidade, xenofobia, ditadura da moda e distúrbios
alimentares, dentre muitos outros, são tratados de forma bem
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 107
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo espontânea, com uma linguagem própria e um tom biográfico
constante.
Segundo Melo (2006), as Riot Grrrls adotam um
feminismo exaltado, numa clara crítica à meiguice e à fragilidade
que comumente (e culturalmente) são esperadas das garotas. De
acordo com a pesquisadora, “suas músicas, barulhentas como
convém ao punk, carregam letras em que vociferam palavrões,
falam de sexo, sadomasoquismo e pornografia” (p.02). Como
destacam Azevêdo, Cunha e Dornelas (2009), bandas como a
americana Bikini Kill, uma das precursoras do movimento,
destacam-se por apresentar letras “carregadas de protesto contra
tudo que a sociedade poderia fazer contra a mulher” (p.05), sendo
imitadas por centenas de outros grupos formados por garotas em
diversas partes do mundo.
Esse discurso de forte carga emocional também constitui
uma
das
marcas
dos
fanzines,
pequenas
publicações
confeccionadas e distribuídas gratuitamente (ou disponibilizadas
na internet - os e-zines) pelas próprias garotas. Feitos de forma
artesanal e apresentando um formato livre, com muitas colagens,
imagens e textos digitados junto a textos escritos à mão, os
fanzines constituem uma das principais formas de expressão no
movimento Riot Grrrl. Segundo Rodrigues (2006), os temas
tratados nessas publicações estão diretamente associados ao diaRevista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 108
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo a-dia das garotas (falam da família, das amigas, das relações
amorosas, trazem dicas de leitura e audição, dão conselhos de
como ter atitude diante de certas situações, apresentam
entrevistas com bandas da cena punk ou do rock alternativo,
divulgam festas, letras de músicas e ações relacionadas ao
movimento). De acordo com a pesquisadora,
através de sua escrita em primeira pessoa, as
garotas abordam estes temas a partir de
situações supostamente vividas por elas,
envolvendo tais temas. Experiências de
discussões com colegas na escola sobre a
legalização do aborto, confissões de
ressentimento com amigas que só pensam em
seus namorados, de admiração ao pai, e
assim por diante (RODRIGUES, 2006, p.38).
Nessa busca constante pela livre expressão de ideias e
anseios, a estética corporal das garotas também apresenta uma
importância fundamental. Como defendem Ribeiro e Costa
(2012) “as estratégias riot passam pelo uso do corpo como
discurso político” (p.06). No movimento, as maneiras de se vestir
e se portar são mais que meros detalhes estéticos, são uma forma
de agir, de construir identidades, transmitir ideais e se
diferenciar/aproximar de outros grupos.
Como uma forma de tentar superar o paradoxo entre
“masculinidade punk e feminilidade”, as riot grrrls acabam por
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 109
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo reiterar um comportamento já característico das garotas punks: a
adoção de um estilo que definem como “bissexual ou unissex,
uma androgenia definida através das roupas” (CAMARGO, 2008,
p.04). Observando a indumentária das garotas do movimento
(tanto no palco como nas platéias dos eventos riot), Facchini
(2011) aponta para uma cena em que as riots mesclam visuais que
apontam tanto para o feminino, quanto para o masculino: fazem e
desfazem diferentes estilos (ora aparecendo como pin-ups, ora
como rock stars junkies; ora como garotos de boybands, ora
como garotas maquiadas e de salto) “com uma leveza que dá um
tom lúdico e deixa evidente uma intencionalidade de brincar,
citando ou ironizando referências” (p.140). Como sugere a
pesquisadora, prevalece entre as garotas do movimento riot grrrl
o pensamento “eu vou fazer o que eu quiser!”.
Para Camargo (2008), ao adotarem um estilo alternativo
que faz uso de itens da indumentária masculina, as riot grrrls
assumem uma postura de “resistência não-verbal a padrões de
feminilidade presentes no contexto do rock, conscientemente ou
não” (p.4). Trata-se de uma busca pela re-definição da
feminilidade, que passa tanto pelo uso dos cabelos curtos e de
peças
como
calças
largas
e
camisetões,
quanto
pelas
transformações no corpo pelo uso de tatuagens e piercings. Como
destacam Ribeiro e Costa (2012), elas “vestem coturno com
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 110
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo lingerie e estão pouco se lixando para o que os outros pensam. O
que elas querem passar é que pelo fato de ser mulher, não
significa que alguém deve ser alguém vulnerável, meiga e usar
cor-de-rosa” (p.07).
Nessa
tentativa
de
re-definição
(não
apenas
da
feminilidade em si, como das próprias identidades “estáveis e
fixas” de gênero), as integrantes do movimento conhecidas como
“dykes” também apresentam uma importância fundamental.
Utilizado tanto pelas garotas do rock dos Estados Unidos, quanto
pelas riot grrrls do Brasil, o termo dyke faz alusão a um tipo de
xingamento que equivale, em português, à palavra “sapatão”,
usada pejorativamente para fazer referência às lésbicas.
Convertidas em um dos símbolos do feminismo juvenil, as dykes
passaram a ganhar mais destaque com o crescimento dos
discursos anti-lesfobia na cena riot, fazendo surgir um cenário em
que “a invocação da homossexualidade abre espaço para uma
ruptura em relação à coerência entre sexo, gênero e desejo e torna
possível pensar em mulheres masculinas ou femininas”
(FACCHINI, 2008, p.07 – grifos da autora). Como argumenta a
pesquisadora, ocorre uma valorização, tanto das diversas
“masculinidades” e “feminilidades”, quanto das variações na
composição dos pares afetivo-sexuais.
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 111
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo Baseado na premissa “Do It Yourself” ou “Faça você
mesmo”, herdada do punk, o riot grrrl atua nessa re-definição das
relações de gênero se valendo de muita criatividade e muito
ativismo. Longe do aparato da grande mídia e das principais
gravadoras, a cena conta com a dedicação das suas integrantes
para que os seus materiais e ideais circulem de forma
independente, numa “rede” em que a internet e os festivais de
cultura feminista (a exemplo do Lady Fest, festival voltado para a
cultura juvenil que foi realizado pela primeira vez em Olympia,
nos Estados Unidos e posteriormente se espalhou para outros
países) apresentam papel de destaque.
Nesse movimento político, estético e cultural de produção
bastante farta, as garotas são estimuladas a se expressar e
produzir, num ambiente libertário em que “não há distinção de
quem é autora ou leitora, de quem é banda e de quem é platéia”
(RIBEIRO E COSTA, 2012, p.08). Na cena Riot Grrrl, o
feminismo é juvenil, pautado no “faça você mesma” e voltado
para o fortalecimento da identidade das garotas, numa ação que
busca valorizar a autonomia e o protagonismo feminino.
Ao constituir esta cena estruturada a partir de rupturas, em
que as garotas se opõem ao ambiente machista instaurado no
punk e passam a aparecer como sujeitos políticos que se rebelam
e instituem sua fala, o movimento Riot Grrrl se coloca como parte
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 112
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo do que Rancière define como “comunidade de partilha”.
Importante tanto sobre o aspecto estético quanto pelo viés
político, o movimento criado pelas garotas “entra em choque”
com o espaço consensual do rock e ajuda a reconfigurar a cena
punk, permitindo uma nova disposição de corpos, vozes e
discursos. Até então colocadas à margem e à prova, as garotas
dão o seu grito e se fazem ouvir.
Referências
AZEVÊDO, Amanda Sena Soares de; CUNHA, Araceli Milma
Ferreira da; DORNELLAS, Camylla de Oliveira. Movimento
Riot Grrrl: Busca Pela Igualdade. In: II Seminário Nacional de
Gênero e Práticas Culturais: Culturas, leituras e representações.
2009
CAMARGO, Michelle Alcântara. Riot Grrrls em São Paulo:
Estética Corporal na Construção Identitária. In: Fazendo Gênero
8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto
de 2008
CARDOSO FILHO, J; DE OLIVEIRA, L. Espaço de
experiência e horizonte de expectativas como categorias
metodológicas para o estudo das cenas musicais. Anais do
XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
Disponível em: < www.intercom.org.br/sis/2012/resumos/R71866-1.pdf>
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 113
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo FACCHINI, Regina. “Não faz mal pensar que não se está só”:
Estilo, Produção Cultural e Feminismo Entre as Minas do Rock
em São Paulo. In: Cadernos Pagu (36), janeiro-junho de
2011:117-153.
________. Dykes numa cena de riot grrrls: uma reflexão sobre
estilos, diferenças, sujeitos e normatividades a partir da cidade de
São Paulo. In: Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder.
Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008.
JANOTTI JR, J. S.; PIRES, V. A. Entre os afetos e os mercados
culturais: as cenas musicais como formas de mediatização dos
consumos musicais. In: JANOTTI JR, J. S.; LIMA, T. R.;
PIRES, V. A. N. (Orgs.). Dez anos a mil: Mídia e Música Popular
Massiva em Tempos de Internet. Porto Alegre: Simplíssimo,
2011.
JANOTTI JR, J. S. “Partilhas do Comum”: cenas musicais e
identidades culturais. Anais do XXXV Congresso Brasileiro de
Ciências
da
Comunicação.
Disponível
em:
<www.intercom.org.br/papers/nacionais/2012/resumos/R7-13881.pdf>.
MELO, Érica Isabel de. O feminismo não morreu – As Riot
Grrrls em São Paulo. In: Revista Ártemis. Vol. XV nº1; jan-jul,
2013. pp. 161-178.
________. Riot Grrrl: Feminismo na Cultura Juvenil Punk. In:
Anais do VII Seminário Fazendo Gênero, 2006.
RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São
Paulo: Exo/ Editora 34, 2005.
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 114
O Sensível Partilhado: Estética e Política... – Oliveira & Rios & Araújo RIBEIRO, Jéssyka Kaline Augusto; COSTA, Jussara Carneiro.
Um Jeito Diferente de Ser Movimento: Em Cena, o Riot Grrrl.
In: IV Congresso Internacional de Estudos Sobre a Diversidade
Sexual e de Gênero da ABEH. 2012.
RODRIGUES, Fernanda Gomes. O grito das garotas. 76 f.
Dissertação (Mestrado). – Brasília: UnB, 2006.
SÁ, Simone Pereira de. Cenas Musicais, Sensibilidades, Afetos
e Cidades. In: Comunicação e Estudos Culturais. GOMES,
Itânia; JANOTTI JR, Jeder. Salvador: Edufba, 2011.
STRAW, W. Systems of articulation, logics of change: scenes
and communities in popular music. Cultural Studies. v. 5, n. 3,
361-375, Oct. 1991.
_________. Scenes and Sensibilities. Revista E-compós, n. 6, p.
1-16, ago. 2006. Disponível em: <http://www.compos.org.br/ecompos/adm/documentos/
ecompos06_agosto2006_willstraw.pdf>.
Revista Diálogos – N.° 12 – Set./Out. ‐ 2014 115
Download