Fungos: amigos ou inimigos?

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BIOLOGIA Espécies que vivem dentro de plantas podem ser úteis para estas e para os humanos
Fungos: amigos ou inimigos?
Alguns fungos que vivem no interior das plantas (chamados de endofíticos) melhoram o crescimento
destas e contribuem para sua defesa contra pragas e doenças. Eles convivem com os hospedeiros sem
causar doenças, auxiliando-os a sobreviver diante de mudanças climáticas e adversidades ambientais,
além de serem importantes para a indústria de medicamentos. Por Yumi Oki e Geraldo Wilson Fernandes, do Laboratório de Ecologia Evolutiva e Biodiversidade (LEEB), do Departamento de Biologia Geral
da Universidade Federal de Minas Gerais, e Ary Correa Junior, do Laboratório de Mecanismos Gerais de
Infecção Fúngica, do Departamento de Microbiologia da mesma universidade.
O
Colônias de fungos endofíticos encontrados
em folhas de alecrim-do-campo e cultivados
em laboratório, em placas com meio de cultura
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(CRÉDITO) FOTOS CEDIDAS PELOS AUTORES
s fungos apresentam grande variedade de formas
e tamanhos. Os cogumelos, o fermento biológico usado na culinária, a infecção bucal conhecida
como ‘sapinho’, a ‘ferrugem’ que ataca as folhas do
cafeeiro e o bolor de pão são alguns fungos bem conhecidos no nosso cotidiano. Estima-se que
existam em torno de 1,5 milhão de espécies de fungos, mas apenas cerca de
72 mil já foram descritas (figura 1).
Os fungos vivem em praticamente
todos os ambientes, mas principalmente onde há matéria orgânica em
abundância, já que, diferentemente
das plantas, precisam de uma fonte
externa de alimento.
Nas florestas tropicais, uma simples folha
está sujeita à invasão de milhares de esporos de
fungos, e estes podem se desenvolver na superfície
dos órgãos das plantas ou penetrar nos tecidos. Fungos que invadem os tecidos, ao menos em uma
fase do ciclo de vida das plantas, sem causar
doenças, são chamados de endofíticos, e
estudos revelam uma diversidade cada vez
maior desse grupo. A questão é: o que esses
invasores estão fazendo ali?
primeira
Figura 1. Número de espécies conhecidas nos cinco reinos
em que se dividem os seres vivos (dados até 2002). Embora
estejam registradas apenas 72 mil espécies de fungos,
estima-se que existam mais de 1,5 milhão
Muitos desses fungos tiveram um papel crucial na
adaptação e seleção de diferentes espécies vegetais.
Ao longo da evolução, a presença de alguns deles em
determinadas plantas permitiu que estas se desenvolvessem melhor e fossem mais resistentes tanto a
ataques de insetos e outros animais herbívoros (que
consomem partes vivas de vegetais) e de organismos
que causam doenças quanto a condições ambientais
adversas, como baixa umidade e/ou elevadas temperaturas.
Em geral, a transmissão desses fungos de uma
planta para outra ocorre verticalmente ou horizontalmente (figura 2). A transmissão vertical se dá de
uma planta para suas ‘filhas’ por meio de sementes
infectadas com material genético do fungo. Algumas
plantas, em especial as gramíneas (capins, por exemplo), podem ter maior proteção contra herbívoros
graças à presença de fungos endofíticos em suas
sementes, pois estes produzem substâncias tóxicas
denominadas alcalóides (do grupo da cafeína e da
cocaína, entre outras). Já a transmissão horizontal
acontece quando uma planta é infectada por esporos de fungos liberados por outra e dispersos por
ventos, chuvas, animais (insetos, por exemplo) e
outros meios.
Quase todas as espécies vegetais têm algum tipo
de associação com fungos endofíticos. A maioria das
pesquisas, porém, aborda espécies associadas a
plantas de regiões temperadas. No Brasil, devido à
extensão territorial e à variedade de ecossistemas,
estima-se que seja alta a diversidade de fungos endofíticos, embora a maioria seja desconhecida. Estudos com algumas espécies vegetais nativas registraram grande número desses fungos: cerca de 500 espécies em palicourea (Palicourea longiflora, nativa
da Amazônia), 340 em cacaueiro (Theobroma cacao,
nativa de florestas tropicais úmidas), 130 em mororó
(Bauhinia brevipes, de cerrado) e 70 em alecrim-docampo (Baccharis dracunculifolia, amplamente
distribuída no cerrado).
O número de espécies de fungos endofíticos pode
variar de acordo com a espécie de planta, a parte onde
o ‘invasor’ se instala (folha, caule, raiz etc.) e a fase
de desenvolvimento dessas partes. Em geral, a riqueza desses fungos é maior nas folhas, e o número aumenta à medida que a folha se desenvolve, como revelaram estudos com o alecrim-do-campo.
Outro fator que pode influenciar a quantidade
desses fungos em uma planta é a estação do ano. Em
carvalhos (árvores do gênero Quercus) de regiões
temperadas a riqueza é maior no período de chuvas.
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1,36 milhão
Animais
72 mil
Fungos
7,9 mil
Bactérias,
archaeas
e vírus
280 mil
80 mil
Plantas
Protistas
Em regiões tropicais, porém, não foram verificadas
variações na quantidade de fungos endofíticos entre
as estações do ano. No alecrim-do-campo, por exemplo, o número desses fungos, em uma área de cerrado do Parque Nacional da Serra do Cipó (MG), foi
maior na estação seca. Em outra área de cerrado, na
Estação Ecológica da Universidade Federal de Minas
Gerais, em Belo Horizonte, a maior riqueza ocorreu
na estação chuvosa (figura 3). Além disso, a composição de espécies desses fungos em alecrim-docampo é diferente nessas duas áreas, o que ressalta
a forte influência do ambiente local na diversidade
desses microrganismos.
Potencial inexplorado
Os fungos endofíticos são conhecidos por sua capacidade de produzir e liberar enzimas digestivas e
acumular substâncias como hormônios, alcalóides
e outras. É de se esperar, portanto, que na interação
com os fungos a planta apresente modificações
Figura 2.
Transmissão
horizontal
e vertical dos
fungos endofíticos
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pimenta infectadas com tais fungos sobreviveram à
seca por 24 horas (tomate) e 48 horas (pimenta) a mais
que plantas sem os fungos. A presença dos ‘invasores’
parece melhorar a tolerância da planta hospedeira a
condições inóspitas. É provável que, diante do anunciado aquecimento do planeta, a manipulação controlada dos fungos endofíticos em plantas agrícolas
seja no futuro uma alternativa viável e indispensável
para garantir a produção de alimentos.
Além de proteger as plantas contra inimigos naturais e condições climáticas ruins, os fungos endofíticos também podem dar a elas maior tolerância ao
alumínio. Em solos com alta concentração desse
metal (situação comum no cerrado brasileiro), observou-se que gramíneas do gênero Festuca infectadas
com fungos endofíticos exibem melhor desenvolvimento que populações não infectadas. Essa descoberta sugere que, no futuro, plantas hoje prejudicadas
pelo alumínio poderão ser cultivadas nessas áreas
sem que seja preciso desenvolver variedades mais
resistentes por meio de técnicas genéticas.
Figura 3.
Número
de fungos
endofíticos em
folhas novas,
intermediárias
e maduras de
alecrim-docampo durante
a estação seca
(março-setembro)
e a chuvosa
(outubro-março)
na Estação
Ecológica
da UFMG e no
Parque Nacional
da Serra do Cipó,
ambos em
Minas Gerais
Proteção contra pragas
fisiológicas. Alguns fungos endofíticos, como os do
gênero Xylaria, têm alta produção de enzimas, como
celulases e ligninases, que degradam a celulose e
a lignina, componentes importantes das paredes
das células vegetais. Essas enzimas auxiliam na
decomposição das folhas, depois que caem, e assim
promovem uma melhor ciclagem de nutrientes na
natureza.
Muitas substâncias produzidas por fungos invasores de vegetais são úteis aos humanos. Talvez o
melhor exemplo seja o paclitaxel, substância usada
desde o início dos anos 90 no tratamento de tumores
malignos (com o nome comercial Taxol). A substância era extraída inicialmente da casca do teixo (Taxus
brevifolia), árvore norte-americana do mesmo grupo
dos pinheiros, e a grande procura e a dificuldade de
obtenção (pois exigia destruir grande quantidade de
árvores) causaram forte aumento nos preços. Alguns
anos depois, estudos com o fungo Taxomyces andreanae, que vive no interior do teixo, mostraram
que ele era capaz de produzir paclitaxel em cultura,
o que reduziu os custos de produção.
As preocupações crescentes quanto às mudanças
climáticas aumentaram o interesse em pesquisas
sobre a adaptação vegetal às altas temperaturas e à
baixa umidade. Vários estudos têm demonstrado que
a introdução de esporos de fungos endofíticos em
plantas de importância agronômica as torna mais resistentes a alterações do clima. Alguns desses fungos
ajudam algumas espécies agrícolas a sobreviver em
solos mais quentes (até 65°C). Em pesquisas no estado
do Arizona (Estados Unidos), plantas de tomate e
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Os fungos endofíticos destacam-se por diminuir
os danos causados à planta hospedeira por outros
organismos. Podem produzir toxinas que tornam as
plantas ‘indigestas’ e/ou enzimas que inibem o crescimento de microrganismos. A atuação protetora
desses fungos estimulou o aumento do número de
pesquisas com esses microrganismos, visando ao
controle biológico de pragas e patógenos em culturas
agrícolas. No entanto, em áreas tropicais, inclusive
no Brasil, ainda são raros os estudos sobre essa relação fungos-plantas.
No cerrado, as pesquisas com o alecrim-do-campo
têm evidenciado que, quanto maior o número de
espécies de fungos endofíticos, menor é o número
de espécies de insetos-pragas encontrado na planta.
Alguns desses fungos podem produzir toxinas e
enzimas que inibem o ataque por insetos. Esse resultado tem uma relevância ecológica particular, já que
chama a atenção para os organismos não ‘perceptíveis’ no dia-a-dia (como os endofíticos), que podem
influenciar fortemente na interação inseto-planta e,
portanto, na dinâmica de um ecossistema.
Embora as pesquisas sobre os fungos endofíticos
ainda estejam no início, estudos recentes com esses
organismos trazem à tona sua influência e sua importância nas interações planta-inseto e na biodiversidade dos ecossistemas. Assim, as investigações
realizadas no cerrado com esses fungos poderão
contribuir muito para o conhecimento sobre esse
bioma e para a conservação de sua diversidade biológica. Além disso, nos mostram que entre o céu e a
terra os fungos são mais benéficos do que imagina
nossa vã filosofia. 
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