Advérbios Monossilábicos na Periferia Direita do PB: Sobre a Relação entre Sintaxe e Prosódia Sergio Menuzzi, IEL/UNICAMP [1a. versão, ainda bastante imprecisa! Outubro/Novembro de 2005] 1. Introdução Há um fato básico que caracteriza a correlação entre foco e ordem de palavras na periferia direita do português, como em muitas outras línguas, e que serve de ponto de partida para este trabalho: quando o foco é um complemento ou um adjunto da frase (portanto, um NP, um PP, um AdvP, mas não VP ou a própria frase, i.é, IP – isto é, mas não no caso de “projeção” do foco), este complemento ou adjunto tende a ocupar a posição final da frase, na qual recebe o acento mais proeminente da frase, o seu “acento nuclear”. O paradigma é bem conhecido; os exemplos abaixo são adaptados de João Costa (1998, 161) (maiúsculas indicam o acento principal, ou “nuclear”, da frase; ‘#’ indica frase imprópria para o contexto; de resto, usam-se as convenções normais para julgamentos): (1) A: Que língua o Paulo fala bem? B: a) Ele fala bem FRANCÊS. b) #Ele fala francês BEM. c) ?Ele fala FRANCÊS bem. (2) A: O Paulo é um fracasso no inglês. B: E no francês, como ele é? A: a) (Que eu saiba,) ele fala francês RAZOAVELMENTE. b) #(Que eu saiba), ele fala razoavelmente FRANCÊS. c) ?(Que eu saiba), ele fala RAZOAVELMENTE francês. Note-se que complementos ou advérbios podem ser focalizados mesmo quando não estão em posição final, sem que o resultado seja “terrível”, fato que colocarei de lado aqui; na discussão que segue, me concentrarei na generalizações básicas ilustradas por (1a) e (2a), esquematizadas em (3) abaixo: (3) a. Foco no adjunto: b. Foco no complemento: [V [V Compl ADJUNTO ] Adjunto COMPL ] As questões mais gerais por trás de (3a,b) que me interessam aqui são: (a) qual a sintaxe destas ordens? (b) como ela se relaciona com a atribuição de acento nuclear ao constituinte em posição final? Portanto, não estarei discutindo aqui as relações entre sintaxe/prosódia e os aspectos informacionais da frase – no caso, a expressão de foco em português; antes, estarei me concentrando num aspecto particular da relação entre sintaxe e prosódia em português: especificamente, estarei discutindo um argumento desenvolvido por João Costa (1998), baseado no que chama de “advérbios monossilábicos”, a favor de uma análise sintática específica das ordens em (3). 1 A questão que guiará minha discussão é basicamente uma: o comportamento de tais advérbios justifica uma relação mais íntima entre sintaxe e prosódia, como a assumida por João Costa, seguindo Cinque (1993), ou indica, ao contrário, justamente um grau maior de autonomia da organização prosódica? Isso, é claro, tem conseqüências para a análise sintática proposta, pois sugere que o comportamento “sintático” prosodicamente condicionado pode não ser um bom diagnóstico para a identificação das estruturas sintagmáticas correspondentes. Antes de iniciar a discussão, eu gostaria de fazer uma ressalva: o presente trabalho toma como ponto de partida a descrição que João Costa (1998) faz da relação entre foco, acento nuclear e ordem de palavras à direita do verbo no português europeu (PE); mas trata-se de um trabalho sobre meus próprios julgamentos, portanto, sobre o português brasileiro (PB, variante gaúcha). Me sinto autorizado a tomar a descrição e a análise de João Costa como bons pontos de partida porque o PB e o PE se comportam de modo semelhante em relação a paradigmas como (1) e (2); entretanto, a discussão de João Costa envolve também estruturas de inversão do sujeito que não possuem correspondentes em PB (ver, especialmente, seu capítulo 3), o que pode indicar que o PB e o PE não são gramáticas completamente correspondentes no que trata das ordens em (3). Portanto, é possível que as observações descritivas que faço aqui não se estendam ao PE, e, do mesmo modo, as conclusões teóricas a que chego baseadas nelas também não se apliquem àquela língua. 2. Duas análises João Costa (1998) propõe, para a sintaxe da ordem interna ao VP em português europeu, uma análise semelhante à proposta por Reinhart (1995) e Neeleman & Reinhart (1996) para o holandês. Ambas as análises são, por sua vez, baseadas na teoria de Cinque (1993) para a relação entre sintaxe e a atribuição do acento nuclear, segundo a qual recebe o acento nuclear o constituinte que estiver “mais encaixado” na estrutura sintagmática da frase. Assim, segundo João Costa, no caso da ordem [ V Adjunto COMPLEMENTO ], temos em português europeu a seguinte estrutura sintagmática: (4) IP 3 NP | 3 Paulok Infl | falai I’ VP 3 AdvP VP | 3 bem NP | 3 tk V | ti V’ NP | francês Como se vê, em (3) todos os constituintes exceto V (que se moveu para Infl) estão em sua posição de base; e o complemento é o constituinte “mais encaixado” na estrutura da frase e recebe, portanto, o acento nuclear do modo previsto pela teoria de Cinque. Observe-se ainda que, nesta análise, os adjuntos estariam adjungidos à esquerda do VP. 2 Seguindo a teoria de Cinque, é preciso que, na ordem [ V Complemento ADJUNTO], o adjunto se torne o constituinte “mais encaixado” da frase. A análise tradicional, segundo a qual esta ordem resulta do fato de o adjunto estar adjungido à direita do VP “na base”, como em (5) abaixo, não é compatível com este modo de conceber a relação entre sintaxe e a atribuição de acento nuclear. Por esta e por outras razões, na análise de João Costa, a ordem [ V Complemento ADJUNTO ] é derivada por scrambling, isto é, por movimento à esquerda do complemento e sua adjunção ao VP – essencialmente do mesmo modo em que a ordem [ Complemento Adjunto V] é derivada em holandês –, como em (6) abaixo: (5) IP 3 NP | 3 Paulok Infl | falai I’ VP 3 VP AdvP 2 | NP V’ bem | 2 NP tk V | | ti francês (6) IP 3 NP | 3 Paulok Infl | falai I’ VP 3 NP VP | 3 VP francêsi AdvP | 3 bem NP | 3 tk V | ti V’ NP | tj Em (6), o adjunto é o constituinte “mais encaixado” da estrutura sintagmática da frase; assim, de acordo com a teoria de Cinque, ele pode receber o acento nuclear da frase, como desejado. Notese que, em (6), novamente o adjunto aparece adjungido à esquerda do VP, embora neste caso, em princípio, poderíamos conservar essencialmente a mesma análise – a ordem de superfície seria a mesma e o nível de encaixamento do adjunto também – se o adjunto estivesse adjungido à direita do VP. Neste caso, portanto, o argumento à favor da posição do adjunto – e da adjunção à esquerda – é de simplicidade, mas não empírico. Mais abaixo, veremos que João Costa apresenta um argumento empírico a favor da adjunção à esquerda de bem em (6). Neste ponto, importa enfatizar aquele aspecto da teoria do acento nuclear de Cinque que motiva, ao menos parcialmente, a análise de João Costa: como a atribuição do acento nuclear é diretamente dependente da estrutura sintagmática da frase, ela exige que esta estrutura seja 3 arranjada de modo que o acento nuclear sempre corresponda ao constituinte mais encaixado; assim, como o próprio João Costa afirma, o movimento de scrambling dos complementos é “prosodicamente motivado” porque é ele que permite que o complemento seja “defocalizado”, e o adjunto se torne o foco. Como Samek-Lodovici (2005) apontou, este tipo de abordagem (Zubizarreta 1994, 1998 segue linha similar) divorcia o tratamento dado ao acento nuclear dos demais processos de estruturação prosódica da frase, como por exemplo o da construção dos sintagmas fonológicos e a localização dos demais acentos (secundários) da frase (que, como Cinque reconhece, cria um problema para seu sistema). É claro que este modo de conceber a relação entre sintaxe e prosódia/acento nuclear não é necessário. Aliás, não é a sustentada pela maioria dos fonólogos desde que Nespor & Vogel (1986) argumentaram que a estrutura sintática determina a organização prosódica da frase apenas indiretamente; em particular, a idéia corrente é a de que não há correspondência direta entre sintagmas sintáticos e sintagmas fonológicos, e que a atribuição de acentos à frase depende dos últimos, e não dos primeiros. Por exemplo, o algoritmo de formação de sintagmas fonológicos por Nespor & Vogel (1986, p. 168) poderia ser expresso, para o português, como em (9a) abaixo; (9b) seria a regra de acentuação do sintagma fonológico (concebida como uma regra de construção de grade, isto é, de atribuição de asterisco à linha superior da grade); e (9c), a do grupo entoacional – o constituinte prosódico imediatamente superior ao sintagma fonológico; para os fins deste trabalho, este constituinte prosódico pode ser tomado como o correspondente fonológico da frase; portanto, a regra em (9c) seria a de atribuição do acento nuclear:1 (9) a. Um sintagma fonológico é um constituinte P que contém um núcleo lexical X (= V, N, Adj ou Adv) e todos os constituintes à esquerda de X até o P’ que contenham um outro núcleo lexical X’não contido na projeção máxima de X (ou, alternativamente, que não seja um “modificador” – um argumento ou adjunto – de X.). b. Um sintagma fonológico é núcleo-final (ing. head final); c. Um grupo entoacional é núcleo-final (= Regra do Acento Nuclear). Note que, de acordo com (9a), um sintagma prosódico não corresponde diretamente a um sintagma sintático em português; em particular, em regra um sintagma prosódico não conterá o material à direita de um núcleo lexical (salvo casos de “reanálise”, que mencionarei a seguir). A idéia por trás de (9) é que uma frase como (10a) abaixo receba a análise em constituintes prosódicos em (10b); e, pelas regras de atribuição de acento em (9b,c), teríamos então a grade métrica em (10c) (note que os acentos secundários, sinalizados por ‘.’ na grade, são simplesmente os acentos dos sintagmas prosódicos que não recebem o acento nuclear da frase): 1 Os mesmos fatos poderiam, evidentemente, ser analisados por teorias mais recentes da correspondência entre constituinte sintáticos e prosódicos, baseadas na idéia de que há alinhamento entre as fronteiras de ambos os tipos de constituintes, como em Selkirk (1995), Truckenbrodt (1999) e Samek-Lodovici (2005). Isso não alteraria as hipóteses fundamentais comum a estas abordagens e a Nespor & Vogel (1986): (a) a correspondência entre constituintes sintagmáticas e prosódicos é indireta e (b) é com base na estrutura prosódico que a atribuição de acentos da frase é realizada. A fim de enfatizar a diferença em relação à abordagem de Cinque e Zubizarreta, e ao mesmo tempo de evitar a apresentação de outras assunções mais complicadas (envolvendo a teoria da otimidade), preferi aqui adotar a análise de Nespor & Vogel. 4 (10) a. Paulo já conhecia uma das irmãs de Maria. b. (Paulo) (já conhecia) (uma das irmãs) (de Maria) ( . . . * ) grupo entoacional ( * )( . * )(. * )( * ) sintagma fonológico ( * .)( *)( . . * )(* .)( . . * )( . . * ) palavra fonológica c. Paulo já conhecia uma das irmãs de Maria No caso específico do tipo de frase que estamos discutindo neste trabalho, como por exemplo (2a) acima, o algoritmo de Nespor & Vogel teria como objetivo atribuir a seguinte estrutura prosódica (note que, embora francês pudesse, pelo algoritmo de N&V, aparecer como um sintagma fonológico independente, na análise delas também é possível integrá-lo ao sintagma prosódico do verbo fala, por meio do processo de “reanálise”, ao qual retornaremos mais adiante): (11) ( . . * ) ( * )( . * )( * ) ( * . )( * .)( . * )( . . . . . * .) Paulo fala francês satisfatoriamente grupo entoacional sintagma fonológico palavra fonológica O ponto fundamental aqui é que a construção da representação prosódica pertinente – por meio da qual é atribuído o acento nuclear e, portanto, é identificado o foco “não-marcado” da frase – é, no essencial, independente da derivação sintática da frase: a representação em (11) pode ser obtida seja com uma derivação “tradicional” em (5), seja com a derivação proposta por João Costa em (6), com scrambling do objeto. Assim, numa teoria em que o acento nuclear da frase é determinado por sua estrutura prosódica e em que esta estrutura é apenas indiretamente determinada pela estrutura sintagmática, não se pode tomar a localização do acento nuclear como um critério para determinação da estrutura sintagmática. Em outras palavras, admitida a tese de que há alguma autonomia na relação entre estrutura prosódica e estrutura sintagmática, não há razão para que o acento nuclear sobre adjuntos focalizados exija uma representação com scrambling do objeto; poder-se-ia muito bem continuar com a análise tradicional. Em particular, não haveria razão para dizer que a ordem [V Compl Adjunto] é necessariamente derivada por scrambling, como em (6), e não, simplesmente, por adjunção do advérbio à direita do VP, como em (5). A questão, então, é: há outros argumentos a favor de scrambling e contra a adjunção à direita? 3. Contra a adjunção à direita de advérbios monossilábicos Uma das linhas de argumentação de João Costa a favor de sua análise é a de mostrar que a ordem [V Compl Adjunto] em português apresenta propriedades semelhantes às das estruturas de scrambling em holandês e alemão. Especificamente, são três as propriedades relevantes destas estruturas: (a) só são possíveis com NPs e PPs, mas não com APs predicativos; (b) envolvem movimento-A’ (portanto, adjunção ao VP), já que licenciam lacunas parasitas; e (c) só se aplica no caso de o complemento ser “específico”, ou de não ser informação nova – justamente porque, segundo Reinhart & Neeleman, o que motiva scrambling é que o complemento é “defocalizado”. Observe-se, antes de mais nada, que, para nossos fins aqui, a propriedade (c) não pode ser tomada como um argumento, pois é precisamente ela que está sob judice: como vimos antes, é possível conceber a interface entre sintaxe e prosódia de tal modo que o adjunto receba “acento nuclear” na ordem [V Compl Adjunto] sem que, para isso, ele precise ser o constituinte “mais 5 encaixado” da frase; e é justamente o acento nuclear que o faz ser o foco – e, portanto, faz com que o complemento possa ser defocalizado. Assim, permanecem – da argumentação por analogia com scrambling em holandês e alemão – as propriedades em (a) e (b) acima indicadas. Entretanto, parece-me que os contrastes que levam João Costa a dizer que o português europeu possui scrambling não se reproduzem em português brasileiro (para o PE, ver Costa 1998, p.162-3): (12) a. O Paulo acha sempre a Maria simpática b. O Paulo acha a Maria simpática sempre (OK em PE, OK em PB) (ruim em PE, OK em PB) (13) a. O Paulo é sempre muito simpático b. O Paulo é muito simpático sempre (OK em PE, OK em PB) (ruim em PE, OK em PB) (14) a. O Paulo conhece a Maria bem mesmo sem nunca ter visto __ (OK em PE, ruim em PB: comparar com “... sem nunca ter visto ela”) b. O Paulo conhece bem a Maria mesmo sem nunca ter visto __ (ruim em PE e em PB: de novo, comparar com “... sem nunca ter visto ela”) (Para um exemplo de construção de lacuna parasita em PB: “Que pessoa o Paulo conheceu bem sem nunca ter encontrado __ ?) Em resumo, a linha de argumentação por analogia com scrambling em holandês e alemão não se estende ao português brasileiro, pelo menos. A segunda linha de argumentação João Costa é a que mais me interessa aqui, porque é ela que aponta para relevância da interface entre sintaxe e prosódia. Por essa linha, João Costa procura mostrar que – ao contrário do que se postulava tradicionalmente e do que Pollock (1994) argumentou para o inglês –, a ordem [ V Adjunto Complemento ] não pode ser derivada a partir de (5) por movimento-à-direita do complemento, como em (15): (15) IP 3 NP | 3 Paulok Infl | falai I’ VP 3 VP 3 NP | VP AdvP francêsj 2 | NP V’ bem | 2 NP tk V | | ti tj O debate com Pollock surge em função do fato de que João Costa adota a posição de Pesetsky (1989) e Johnson (1991) quanto à exigência de adjacência estrita entre V e o NP objeto em inglês (cf. Costa 1998, p.29 e ss.). Como se sabe, para Pollock, esta adjacência estrita se deve ao fato de que o verbo não se move para fora do VP em inglês. Para Pesetsky, Johnson e João Costa, entretanto, o efeito de adjacência tem outra explicação: resulta do fato de o verbo se 6 mover, em inglês, para uma posição funcional imediatamente superior a AgrO, e do NP objeto necessariamente mover-se para Spec-de-AgrO. O principal argumento de Pesetsky, Johnson e João Costa para esta análise é o fato bem conhecido de que não existe o requisito de adjacência em inglês para complementos que são PPs (cf. (17) e (18) abaixo, por exemplo): como PPs não precisam se mover para Spec-de-AgrO para receber Caso, podem ficar em sua posição de base, e a ordem [ V Adv PP ] é derivada. Para Pollock, por outro lado, o que mostra que é uma derivação como (15) que está por trás da ordem [ V Adv PP ] em inglês é que ela só é possível com adjuntos/advérbios que podem, independentemente, ocorrer à direita do VP (exemplos adaptados a partir de J. Costa 1998, p.31): (16) a. Bill (hardly) knocked (*hardly) on it (*hardly) b. Harry (sure) relies (*sure) on Mary (*sure) (17) a. Bill (carefully) knocked (carefully) on it (carefully) b. Harry (frequently) relies (frequently) on Mary (frequently) Para João Costa, por outro lado, as posições pós-verbais dos advérbios em (17) resultam exatamente dos mesmos processos que em português: (a) movimento de V (para AgrO em inglês) por sobre o advérbio, necessariamente adjunto à esquerda do VP, resulta na ordem [V Adv Compl]; e (b) scrambling do complemento por sobre o advérbio resulta na ordem [V Compl Adv]. Advérbios sentenciais como hardly e sure não podem ocupar posições pós-verbais porque estas são sempre posições de adjunção à esquerda do VP, e advérbios sentenciais não podem se adjungir ao VP.2 O principal argumento de João Costa contra a análise de Pollock para casos como (17) reside no comportamento de uma classe específica de advérbios, que João Costa identifica como a classe dos advérbios monossilábicos:3 advérbios como well, hard, fast em inglês, e bem, mal e, talvez, já em português. Estes advérbios podem ocorrer na posição pós-verbal intermédia entre o verbo e o PP complemento, cf. (18a) abaixo, mas ou são excluídos ou fortemente desfavorecidos na posição final, cf. (18b); nesta posição, só podem ocorrer se estiverem sob “heavy stress” (p.37), ou, em outros termos, se forem “prosodically marked” (p.103), cf. (18c) (exemplos – e juízos para o português – meus): 2 Na verdade, João Costa oferece uma outra análise para a distribuição dos advérbios nas seções finais de seu capítulo 2; mas não discutirei esta análise alternativa porque envolve assunções não canônicas sobre a derivação das estruturas de modificação adverbial [...] 3 João Costa apresenta outro argumento, baseado em propriedades de extração dos complementos em posição final em inglês; entretanto, como não apresenta fatos do português correspondentes aos do inglês, ignorarei este argumento aqui, observando que ele deve ser reavaliado no caso das observações feitas no presente artigo serem estendidas à análise do inglês. 7 (18) a. John looked well at the picture João olhou bem pro retrato b. *John looked at the picture well ??João olhou pro retrato bem c. John looked at the picture WELL ?João olhou pro retrato BEM (19) a. João argumentou mal contra a tua posição b. ??João argumentou contra a tua posição mal c. ?João argumentou contra a tua posição MAL Assim, João Costa conclui que estes advérbios só ocorrem em posição final em último recurso; para ele, isso ficaria inexplicado se sua posição “normal”, de base, fosse a adjunção à direita do VP, como em (15); portanto, a posição de base dos “advérbios monossilábicos” é necessariamente a de adjunção à esquerda do VP, e a ordem [V Adv PP] resulta de movimento do V para fora do VP em inglês. Como João Costa discute, esta posição fixa dos advérbios monossilábicos faz com que tenham uma distribuição restrita, o que é relativamente incomum para advérbios; por esta razão, os monossilábicos se tornam muito importantes para ele, que os toma como diagnóstico para a identificação da posição dos demais constituintes na frase: todos os que estão à esquerda de um advérbio monossilábico estão em alguma posição acima de VP; todos os que estão à direita, estão em uma posição interna ao VP (cf. Costa 1998, p.39; ver especialmente o capítulo 3, onde os utiliza várias vezes para identificar a posição do sujeito e do objeto na periferia direita do VP em português europeu). Mas a questão central – aquela que me interessará daqui em diante – é: por que os “advérbios monossilábicos”, contrariamente aos demais advérbios que pertencem, ao menos aparentemente, à mesma classe semântica (dos advérbios de modo), possuem uma distribuição tão limitada? Como João Costa aponta, as razões são muito provavelmente de natureza prosódica; e, como procurarei mostrar, têm conseqüências para o modo como devemos conceber a relação entre sintaxe e prosódia. 4. Advérbios monossilábicos e sintagmas prosódicos Pode-se identificar, na discussão de João Costa, três argumentos para sustentar que a restrição na distribuição dos advérbios monossilábicos está relacionada com a prosódia da frase: (a) o que caracteriza a classe não é sua categoria semântica mais geral (de advérbio de modo), mas sua constituição silábica, uma propriedade fonológica sabidamente relevante para a organização prosódica da frase; (b) o fato de que podem ocupar a posição final em caso de receberem um “acento marcado”, cf. (18c), também indica que o problema em (18b) está na integração prosódica do advérbio à frase, que pode ser obtida por uma “operação prosódica de último recurso”; (c) confirmando o fato de que a restrição está relacionada com a constituição silábica do advérbio, João Costa aponta para o fato de que os mesmos advérbios, quando modificados – e, portanto, tornados mais complexos silábica e prosodicamente – podem ocupar a posição final, como os demais advérbios de modo, cf. (20) a. ??João olhou pro retrato bem: afinal, ele sabia quem estava lá... b. João olhou pro retrato muito bem: afinal, ele sabia quem estava lá... 8 (21) a. ??João argumentou contra a tua posição mal; afinal ele podia ter mostrado que... b. João argumentou contra a tua hipótese muito mal; afinal, ele podia... Uma outra observação de João Costa pode ser interpretada como um argumento a favor do condicionamento prosódico na distribuição dos advérbios monossilábicos: em inglês, há um contraste entre complementos PPs e NPs – com estes últimos, a única posição possível seria a final, justamente a desfavorecida por complementos PPs, cf. (22) a. John looked well at the picture *John looked at the picture well b. *John speaks well French John speaks French well Segundo se infere da discussão de João Costa, well é obrigado a “tolerar” a posição final em (22b) porque não há outra posição possível em inglês, em virtude do movimento obrigatório do NP para Spec-de-AgrO em inglês; em português, justamente porque o movimento do NP é scrambling, isto é, adjunção ao VP (e não movimento obrigatório para Caso, como o movimento para Spec-de-AgrO em inglês), é possível ter ambas as ordens (dependendo do foco da frase, cf. (1) e (2) acima). Entretanto – e aqui, a meu ver, se revela o condicionamento prosódico deste contraste –, mesmo em português há diferença de aceitabilidade conforme o elemento interveniente seja um NP ou um PP (exemplos meus): (23) a. ?João fala francês bem b. ??João olhou pro retrato bem (24) a. ?João entendeu Maria mal b. ??João argumento contra a tua posição mal Em (23-24a), segundo João Costa, o movimento do NP é de scrambling; portanto, não se pode apelar para a ausência de uma derivação sintática alternativa como a razão para o contraste de aceitabilidade entre (23-24a) e (23-24b). Há, entretanto, uma explicação prosódica para ele: a operação de “reanálise” de sintagmas fonológicos, que mencionei na discussão de (10) e (11) acima. Como eu mostrei antes, o algoritmo de construção de sintagmas fonológicos proposto por Nespor & Vogel tem como finalidade básica formar um constituinte prosódico a partir de um núcleo lexical e todos os “dependentes semânticos” deste núcleo que estão à sua esquerda, cf. (10). Entretanto, sintagmas fonológicos pertencem à hierarquia superior da prosódia da frase e, por isso, devem ter uma constituição minimamente complexa – algum grau de ramificação prosódica – para poderem ser constituídos. Para dar um exemplo, considere (11) acima, agora repetida como (25) abaixo: (25) ( . . * ) ( * )( . * )( * ) ( * .)( * .)( . * )( . . . . . * .) Paulo fala francês satisfatoriamente grupo entoacional sintagma fonológico palavra fonológica 9 Como se vê em (25), o agrupamento prosódico mais natural desta frase coloca o verbo fala e o substantivo francês num mesmo sintagma fonológico. Entretanto, pelo algoritmo apresentado em (9a), fala e francês deveriam cada um formar um sintagma fonológico separado. O que permite que sejam unidos num só? Intuitivamente falando, o que acontece é que ambos apresentam complexidade ou ramificação prosódica relativamente pequena e podem, portanto, ser agrupados em um único sintagma prosódico. Em que condições este processo de reanálise ocorrerá? Nespor & Vogel formulam a regra do seguinte modo (ligeiramente adaptado de Nespor & Vogel 1986, p. 173): (26) Re-estruturação de sintagmas prosódicos (opcional): Um sintagma prosódico não-ramificado C que é o primeiro modificador de X à direita pode ser integrado ao sintagma prosódico C’ de X.. Com (26), fica claro por que os agrupamentos prosódicos em (25) são do jeito que são: francês conta como “não-ramificado” para os fins de (26) e, sendo um “modificador” de V, pode ser reanalisado como parte do sintagma prosódico de V.4 Note-se que, do modo como a regra de reanálise está formulado em (26), embora houvesse a alternativa de integrar Paulo ao sintagma prosódico de fala (já que Paulo é um modificador fala à sua esquerda, o que segue o padrão normal de constituição prosódica, cf. (9a)), não haveria a possibilidade reanalisar francês e satisfatoriamente em um único sintagma prosódico; portanto, (25) não pode ser segmentado prosodicamente como “(Pàulo fála) (francès satisfatoriaménte)”5 (compare-se com “(Pàulo fála) (mùitas línguas) (satìsfatoriaménte)”; daqui por diante, utilizarei acento grave “`” para acento secundário e acento agudo “´” para acento nuclear). Considere-se, agora sob esta ótica, o contraste entre PPs e NPs com relação à possibilidade dos advérbios monossilábicos ocorrerem em posição final, cf. (23) e (24) acima, abaixo repetidas: (23) a. João fala francês bem b. ??João olhou pro retrato bem (24) a. João entendeu Maria mal b. ??João argumentou contra a tua posição mal O padrão pode perfeitamente ser reduzido aos efeitos da regra em (26) se, adicionalmente, supusermos que a principal restrição em jogo em frases como (23) e (24) é justamente aquela contra os efeitos da qual a regra em (26) atua: 4 Evidentemente, é preciso definir de modo preciso o que conta como “ramificado” em (26). Na discussão de Nespor & Vogel, o que parece contar é “ramificação sintática”; mas, como veremos a seguir, isso não pode estar certo – nem faria sentido, em se tratando da constituição de “sintagmas prosódicos”. O que é preciso é determinar alguma noção de “peso prosódico” – isto é, que constituintes prosódicos contariam como “pouco ramificado prosodicamente”, ou, ainda, “não demasiadamente ramificados prosodicamente”. É claro que não terei condições de dar atenção a esta questão aqui. 5 Salvo, talvez, no caso de o foco da frase ser justamente francês satisfatoriamente, como em “(Pàulo fála) (francès satisfatoriaménte) e (inglès terrìvelménte)”. 10 (25) COMPLEXIDADE RÍTMICA MÍNIMA: Todo sintagma fonológico deve ser minimamente ramificado (prosodicamente). É fácil de compreender intuitivamente a natureza de (25): sintagmas fonológico são constituintes da estrutura superior da prosódia da frase; são, em particular, os constituintes a partir dos quais o ritmo métrico da frase se organiza em termos de acentos secundários e primário ou nuclear. Obviamente, para haver alternância rítmica entre o acento de um sintagma fonológico e outro, e preciso que cada um deles disponha de algum material fonológico que preceda seu acento: ou seja, para se obter alternância rítmica entre o acento de um sintagma fonológico P e o acento do sintagma fonológico seguinte P’, é preciso que P’ tenha pelo menos uma sílaba que preceda à sua sílaba acentuada; concretamente, (25) tem como efeito básico que sintagmas fonológicos devem ser minimamente constituídos de duas sílabas. Considere agora (23a): das várias possibilidades de organização prosódica em (26) abaixo, a mais natural é, evidentemente, é (26d), sendo as demais, em diferentes graus, desfavorecidas: (26) a. ?? (Joáo) (fála) (francés) (bém) b. * (Joào fála) (francès bém) c. ? (Joáo) (fàla francés) (bém) d. (Joáo) (fàla frances bém) Embora (26a) esteja de acordo com o algoritmo de formação de sintagmas prosódicos proposto por Nespor & Vogel, é desfavorecida porque possui vários sintagmas prosódicos com pequena complexidade rítmica, resultando em baixa integração prosódica do material fonológico (efeito contra o qual algo como (25) deveria atuar, embora (25), do modo como a formulei não o faça). (26b) resolveria este problema; entretanto, o sintagma fonológico (francès bém) não pode ser construído, seja pelo algoritmo regular de formação de P’s, seja por meio da regra de reestruturação. (26c) resulta da aplicação do algoritmo regular de formação de P’s juntamente com a reanálise de francês como parte do P de fala. A frase é “marcada” e corresponde, evidentemente, aos casos em que João Costa diz que o advérbio monossilábico, em posição final, recebe “acento pesado”. Na configuração em (26c), fica claro o que significa este “acento pesado” e por que ele é marcado: o acento é “pesado” não apenas porque é o acento nuclear da frase, mas porque ocorre num sintagma prosódico sem estrutura própria para integração à organização rítmica da frase – bem formando um sintagma prosódico por si próprio viola a restrição em (25). Finalmente, consideremos (26d), que é a configuração prosódica na qual os advérbios monossilábicos são melhor aceitos em posição final com um NP intervindo entre eles e o V. Por que esta configuração é menos “marcada”? A razão é óbvia: porque nela bem não é um constituinte prosódico por si próprio, mas foi integrado a outro sintagma fonológico, permitindo uma melhor organização rítmica. Mas, e como esta melhor organização prosódica pode ser obtida? Pela aplicação sucessiva da regra de re-estruturação em (26): francês pode ser integrado ao sintagma fonológico de fala porque é “não-ramificado” no sentido relevante de (26) e é “modificador” à direita de fala; uma vez constituído este sintagma fonológico, a regra de reestruturação pode se aplicar novamente a bem: é também um sintagma fonológico “nãoramificado” e é modificador à direita de fala. Em suma, advérbios monossilábicos são “desfavorecidos” em posição final porque, pela operação do algoritmo regular de formação de sintagmas fonológicos, teriam que formar um sintagma fonológico por si próprios; no entanto, não possuem constituição prosódica satisfatória 11 para isso, cf. (25). Há, por outro lado, a possibilidade de ocuparem a posição final se puderem ser integrados a algum outro sintagma fonológico; e isso acontece se o NP objeto for “pouco ramificado prosodicamente”, em cujo caso a regra de re-estruturação de sintagmas prosódicos poderá se aplicar recursivamente. Desta perspectiva, é possível compreender por que os advérbios monossilábicos são quase que invariavelmente “marcados” quando o complemento interveniente é um PP, cf. (23-24b). PPs são, via de regra, “ramificados” e, por isso, normalmente bloqueiam a operação da regra de reestruturação em (26): uma vez que os PPs não são integrados ao sintagma fonológico do verbo, não há como integrar a este mesmo sintagma o advérbio monossilábico. Também não há a possibilidade de integrá-lo ao próprio sintagma prosódico formado pelo PP, já que a operação não é permitida seja pelo algoritmo regular de formação de sintagmas prosódicos (o PP não é um “modificador” do advérbio à sua esquerda), seja pela regra de reestruturação (o advérbio é “nãoramificado”, mas não é um modificador do PP à sua direita). Assim, só resta ao advérbio formar um sintagma fonológico por si próprio, como acontece em (26c): neste caso, de novo temos o sintagma fonológico que recebe o acento nuclear da frase pouco integrado à sua estrutura rítmica; por isso, a estrutura inevitalmente “marcada” de casos como (23-24b). Para encerrar a discussão deste ponto: explica-se, também, por que os demais advérbios de modo e mesmo os advérbios monossilábicos, quando modificados, podem ocorrer sob o acento nuclear em posição final,cf. (27) a. (Joáo) (fàla francés) (satìsfatoriaménte) b. (Joáo) (fàla francés) (mùito bém) A razão é simples: em ambos os casos, há material fonológico suficiente para a constituição do sintagma fonológico que receberá o acento nuclear. 5. Outras evidências Assim, uma razão muito plausível para a “distribuição limitada” dos advérbios monossilábicos – em particular, o fato de que “não gostam” da posição final da frase em alguns casos – é de razão puramente fonológica: eles não possuem conteúdo fonológico próprio, nos contextos pertinentes, para a constituição de um constituinte da estrutura prosódica da frase, o sintagma fonológico. Essa explicação é natural: uma propriedade fonológica da classe pertinente de advérbios – ser monossilábicos – faz com que tenham distribuição limitada em função da estrutura prosódica da frase. Nessa explicação, não há apelo direto a conceitos sintáticos; a sintaxe entra indiretamente na explicação: (a) por meio da distribuição dos advérbios de modo, que, por sua natureza sintático-semântica, ocorrem em certas posições (por hipótese, são adjuntos de VP); advérbios de modo monossilábicos ocorrerão em um subconjunto destas posições, já que estão sujeitos a uma condição adicional (a posição deve permitir que sejam integrados a um sintagma fonológico); e (b) por meio das regras de formação e re-estruturação dos sintagmas fonológicos, que são sensíveis à informação sintático-semântica relativamente genérica (em particular, à noção de “núcleo lexical” e de “modificadores” do núcleo, i.é, elementos relacionados sintaticamente com o núcleo – especificadores, complementos, adjuntos). Em particular, é importante ressaltar que, nesta concepção, há alguma correspondência entre constituintes prosódicos e sintáticos, mas ela é parcial, resultante do fato de que sintagmas prosódicos não são reflexos diretos dos sintagmas sintáticos, mas são definidos a partir de informações sintáticas genéricas. 12 Na análise de João Costa, qual é a propriedade fonológica dos advérbios monossilábicos que determina a sua distribuição? como se relaciona com a sintaxe? Para João Costa, o fundamental é que, sendo monossilábicos, são palavras “too light to bear the main stress of the sentence by default”, razão pela qual “they will be dispreferred in the syntactic position where the sentence falls” (p.39). Colocando, temporariamente, de lado, a questão de saber se a propriedade fonológica identificada está correta, note-se que neste trecho o raciocínio é semelhante ao que desenvolvi anteriormente: por causa de suas propriedades fonológicas, advérbios monossilábicos possuem uma distribuição restrita. A diferença: esta “restrição” se reflete diretamente na sintaxe e faz com que os advérbios só ocorram numa posição sintática fixa, única – como adjuntos à esquerda de VP – na qual, na maioria dos casos, podem evitar a posição final, de acento nuclear, da frase. Na abordagem que estou sugerindo, a distribuição restrita dos monossilábicos deve ser caracterizada diretamente em termos prosódicos, e não fornece evidência direta sobre suas possíveis posições sintáticas – esta é uma matéria de sintaxe-semântica e, SMJ, advérbios como bem e mal deveriam poder ocupar exatamente as mesmas posições que muito bem e muito mal. Quanto à análise das propriedades fonológicas relevantes de bem e mal, é importante enfatizar que, para João Costa, estes advérbios são desfavorecidos na posição final – o que motivaria sua adjunção à esquerda – por serem “leves” demais para receber acento nuclear por default. Há, entretanto, razões para acreditar que esta ponto da análise não está correto. A primeira delas é que advérbios como bem e mal não são palavras átonas, mas tônicas, isto é, possuem acento lexical primário (ainda que, possivelmente, em pé degenerado porque constituído de uma única sílaba). Assim, não há qualquer impedimento, em princípio, para que portem acento. A restrição, então, teria de ser – como João Costa a formula – de portar acento nuclear, especificamente. Entretanto, como o próprio João Costa observa, os advérbios monossilábicos também podem portar acento nuclear, como acontece em estruturas com NPs complementos (em, por exemplo, “John speaks French well”). Pode-se argumentar que, nestes casos, é necessário recorrer a alguma estrutura prosódica “marcada”; mas, em outros contextos, não creio que isso seja sustentável. Por exemplo, a palavra bem é freqüentemente utilizada como um “marcador discursivo”, uso em que ocorre como grupo entoacional independente – portanto, no qual necessariamente carrega acento nuclear próprio: (28) A: (...) O que você acha disso? B: Bem... não sei se devo me meter nisso... Um contexto ainda mais claro são aqueles em que o VP é constituído apenas pelo verbo e pelo advérbio: nesses casos, ambos podem formar um sintagma fonológico sem qualquer problema – e o advérbio recebe acento nuclear final muito naturalmente, cf. (29) A: Puxa, você ‘tá com uma cara... O que aconteceu? B: (Meu fìlho pequéno) (dormìu mál). (30) A: Por que o João anda com aquele sorriso largo? B: É que ele aplicou na bolsa e (se dèu bém). Na análise que propus das restrições sobre a distribuição de advérbios monossilábicos, não há nada de excepcional em casos como (29) e (30): são casos análogos à estrutura prosódica que faz com estes advérbios sejam naturais na ordem [V Adv Compl]. Nesta configuração, como em (29) 13 e (30), os advérbios monossilábicos não precisam formar um sintagma prosódico sozinhos, podendo fazer parte do sintagma fonológico do verbo, integrando-se à cadeia rítmica do enunciado. A diferença entre a ordem [V Adv Compl] e (29) e (30) é que, nestes últimos casos, os advérbios recebem o acento nuclear da frase – o que, mostra, a meu ver, que não há nada que os desfavoreça como portadores deste acento. Outros casos mostram que mesmo a adjacência ao verbo é desnecessária para que os advérbios monossilábicos sejam apropriadamente integrados à prosódia da frase em posição de acento nuclear: aparentemente, isso só é necessário quando precisam ser integrados ao sintagma fonológico do verbo. Os casos relevantes são aqueles em que o advérbio não é interpretado apenas como modificador do verbo, mas é também relacionado semanticamente ao complemento – na função de predicativo, como em (31) e (32): (31) a. Quando soube do acidente, João correu pra casa. Mas nada tinha acontecido: chegando lá, (èncontróu) (tòdo mùndo bém). b. ?? ..., (èncontròu bém) (tòdo múndo). (32) a. João viveu como um playboy, gastou todo dinheiro que tinha guardado, e, quando faleceu, (dèixóu) (à famìlia mál) b. ..., (deixòu mál) (à família). Pondo de lado uma discussão mais detalhada destes exemplos – e do modo como devem ser incorporados ao algoritmo de formação de sintagmas fonológicos –, o ponto fundamental é: a relação predicativa que bem e mal com o complemento parece autorizar que constituam um sintagma prosódico com o complemento sem necessariamente incorporar o verbo; e, crucialmente, nestes casos os advérbios monossilábicos podem ocorrer naturalmente na posição final, com o acento nuclear da frase. Em suma, há evidência clara de que não há uma restrição geral seja contra a atribuição de acento nuclear aos advérbios monossilábicos, seja contra sua ocorrência em posição final de enunciado; as restrições observadas por João Costa parecem ter a ver com o modo com estes advérbios podem agrupar, prosodicamente, com outros elementos da frase. Uma outra predição feita por esta abordagem é a de que o contraste entre NPs e PPs complementos com relação a possibilidade de advérbios monossilábicos ocorrerem em posição não é a generalização correta; o que deveria, de fato, ocorrer é um contraste entre entre estruturas mais ou menos “ramificadas prosodicamente”; deveria haver, por exemplo, diferença de aceitabilidade entre NPs pouco ramificados, como os apresentados por João Costa, e NPs mais ramificados, cf.(33) versus (34): (33) A: Eu soube que o João fala alemão apenas pra quebrar o galho. E como ele é em francês? B: (Que eu saiba,) ele fala francês bem. (34) A: Eu soube que o João fala alemão apenas pra quebrar o galho. E como ele é nas demais línguas? B: (Que eu saiba,) ele fala todas as línguas que aprendeu bem. Confesso que, para meu ouvido, é difícil detectar diferença entre os dois casos; ambos são aceitáveis, embora a ordem preferencial em ambos, para mim, seja [V Adv Compl]). De qualquer 14 modo, além do contraste entre NPs “curtos” e NPs “longos”, esperar-se-ia também a contraparte deste contraste com PPs, como em (35) versus (36): (35) A: Puxa, mas não era a Maria quem tinha a grana? Como o João ficou depois da separação? B: Ah, ele saiu dessa bem: ficou com o apartamento em que eles moravam. (36) A: Puxa, o João sempre se dá mal na hora de se separar das “ex” dele... B: Nem tanto... Ele saiu da separação com a Maria bem: ... De novo, para mim, o contraste é difícil de detectar, e a ordem preferencial é [V Adv Compl]. A dificuldade de identificar contrastes sutis como os entre (33) e (34), e entre (35) e (36), não nos impede de apontar que aqui há uma diferença entre as duas análises que é verificável empiricamente: pela análise sugerida aqui, deveríamos esperar, num estudo de corpus, por exemplo, uma correlação entre a extensão fonológica/prosódica do complemento, e a possibilidade do advérbio monossilábico ocorrer em posição final: quanto mais extenso o complemento interveniente entre o verbo e o advérbio, menor a probabilidade de ocorrência do advérbio em posição final. Evidentemente, esta predição não pode ser feita na teoria adotada por João Costa. Para encerrar a discussão sobre as diferenças empíricas entre uma análise com a sugerida por João Costa e a que fiz aqui, quero apontar uma última: como a restrição que assumi ser relevante no caso dos advérbios monossilábicos não é específica a eles, mas está relacionada com uma propriedade geral de palavras monossilábicas – a de que não possuem conteúdo fonológico suficiente para formar um sintagma fonológico –, espera-se que a mesma restrição seja encontrada em outros casos: por exemplo, ela deveria também se aplicar a complementos monossilábicos. De fato, esse parece ser o caso, cf.: (37) A: Quantos livros o João comprou semana passada? B: a) (Que eu saiba,) ele só comprou um semana passada. b) ?? (Que eu saiba,) ele só comprou semana passada um. (38) A: Eu sei que o João gostou da visita que fez a São Paulo... Mas onde ele pretende morar no ano que vem? B: a) (Que eu saiba,) ele pretende morar lá no ano que vem. b) ?? (Que eu saiba,) ele pretende morar no ano que vem lá. Para resumir: ainda que alguns dos contrastes preditos pela análise aqui esboçada não sejam nítidos, me parece claro que há evidência satisfatória indicando que: (a) não há restrição que penalize a atribuição de acento nuclear aos advérbios monossilábicos, (b) nem há restrição que penalize, como regra geral, sua ocorrência em posição final de frase; antes, parece mais provável que (c) estes advérbios têm problemas na posição final quando, por algum motivo particular – por exemplo, o fato de o complemento interveniente ser “ramificado demais” – não podem ser apropriadamente integrados a um sintagma fonológico maior que o formado apenas por eles. 15 6. Conclusão Neste trabalho, procurei mostrar que as restrições que encontramos na distribuição dos advérbios monossilábicos em português brasileiro recebem uma análise natural se o que está em jogo é a formação de sintagmas fonológicos. Em particular, parece haver evidência de que não há restrição específica seja contra sua ocorrência em posição final de frase, seja contra a possibilidade de que carreguem o acento nuclear da frase. Esta última conclusão, em particular, é crucial aqui, em que meu interesse é avaliar justamente a evidência disponível para a sintaxe da periferia direita do português: o fato de que os advérbios monossilábicos podem portar o acento nuclear da frase enfraquece substancialmente – ao menos para o PB – a motivação oferecida por João Costa (1998) para postular a adjunção à esquerda do VP como uma posição fixa para aqueles advérbios. E, como mencionei antes, esta “posição fixa” é um dos diagnósticos utilizados por João Costa para a identificação da posição de outros elementos na frase. Assim, se os advérbios monossilábicos podem portar o acento nuclear da frase, então a necessidade de sua adjunção à esquerda do VP não pode ser motivada com base em uma estratégia para evitar justamente que carreguem o acento nuclear. Do ponto de vista da análise aqui defendida, a hipótese deveria ser reformulada nos seguintes termos: advérbios monossilábicos favorecem a posição de adjunção à esquerda do VP porque nela podem fazer parte do sintagma fonológico que melhor os integra à prosódia da frase. Entretanto, como procurei mostrar, não é óbvio que a formação de sintagmas fonológicos precise da adjunção à esquerda do VP; na versão de Nespor & Vogel (1986), por exemplo, isso não é necessário, nem o seria em outras análises mais recentes da correspondência entre constituintes sintáticos e prosódicos (ver, por exemplo, Samek-Lodovici 2005, para observações no mesmo sentido). Ou seja: para sustentar que a adjunção dos advérbios monossilábicos à esquerda do VP é motivada por suas “propriedades prosódicas”, seria preciso desenvolver uma teoria da formação dos sintagmas prosódicos em que aquela posição fosse crucial para integrá-los ao sintagma prosódico do verbo; no presente, entretanto, esta teoria ainda não foi formulada. Mais importante ainda, aqui, é o fato de que a “posição fixa” dos advérbios monossilábicos é justificada por – e simultaneamente fornece um dos mais fortes argumentos de João Costa para – a hipótese de que a derivação sintática da ordem [V Compl Adv] envolve scrambling do complemento. Lembremos o raciocínio: (a) na ordem [V Compl Adv], (ainda que nela desfavorecidos,) os advérbios monossilábicos são o foco da frase e recebem seu acento nuclear; (b) para receberem o acento nuclear, segundo a teoria de Cinque (1993), precisam ser o constituinte “mais encaixado” da frase; (c) isso segue naturalmente se os advérbios monossilábicos estão necessariamente adjuntos à esquerda do VP: neste caso, há scrambling do complemento, como em (6) acima, e os advérbios monossilábicos se tornam os constituintes “mais encaixados” da frase. Note-se que, do ponto de vista da sintaxe da ordem [V Compl Adv], o ponto é que uma análise com a adjunção à esquerda dos advérbios monossilábicos e com scrambling é compatível com teoria de Cinque para a atribuição do acento nuclear; por contraste, uma análise com a adjunção daqueles advérbios à direita do VP, como em (5), não é. Ou seja, pode-se ver a distribuição dos advérbios monossilábicos em português brasileiro como um argumento para a derivação sintática proposta em (6) se for necessário admitirmos a teoria de Cinque para o acento nuclear. Mas ela é necessária, ou geralmente assumida em estudos de prosódica? Como eu indiquei antes, a idéia corrente em fonologia é a de que o acento nuclear da frase – como na análise que esbocei aqui – é atribuído em função da estrutura prosódica/grade métrica do enunciado, que é construída com relativa autonomia em relação à estrutura sintagmática da frase; 16 nas análises que conheço (Selkirk 1984, 1995, Nespor & Vogel 1986, Truckenbrodt 1999, Samek-Lodovici 2005, entre outros), ela certamente não é um reflexo direto da estrutura sintagmática, como na teoria de Cinque. Na verdade, há aqui um argumento contra a teoria de Cinque para a atribuição do acento nuclear: (a) como procurei mostrar, uma teoria fonológica da construção da estrutura prosódica da frase que procure, em particular, caracterizar os agrupamentos prosódicos a partir dos quais o ritmo da frase pode ser identificado, pode, além disso, caracterizar apropriadamente a localização do acento nuclear da frase; (b) pelo contrário, uma teoria como a de Cinque, desenhada especificamente para ligar a atribuição do acento nuclear à estrutura sintática da frase, não pode dispensar uma teoria independente da construção da estrutura prosódica da frase. O próprio Cinque admite isso em sua discussão das várias dificuldades que seu sistema levanta para a localização dos “acentos secundários” da frase, que, como vimos acima, segue naturalmente da identificação dos sintagmas fonológicos. De fato, como na teoria de Cinque a atribuição de acentos reflete, simplesmente, o nível de encaixamento dos constituintes na frase, sua análise não é capaz de identificar os sintagmas fonológicos que caracterizam a curva prosódica da frase. Para ver isso, considere qual seria a grade métrica construída pela teoria de Cinque para uma frase como “Paulo fala bem francês” de acordo com a análise sintática proposta por João Costa (ver (4) acima, e Cinque 1993, p.244-246 para detalhes): (39) ( [IP [NP . ( . ( . . ( . ( . . . ( . * * * Paulo] [I’ falai [VP [AdvP bem] [VP ti * ))) * )) * ) * francês ]]]] É claro que esta grade métrica nem representa os agrupamentos prosódicos mais naturais da frase (por exemplo, bem aparece agrupado com francês, e não com fala), nem a localização correspondente dos “acentos secundários”; como já discuti antes, a representação prosódica da frase deveria ser capaz de caracterizar a seguinte representação, com acento nuclear em francês (abaixo sinalizado por negrito): (40) (Páulo) (fàla bém) (fràncés) Talvez seja bom lembrar que a justificativa para a formação dos sintagmas prosódicos em (40) vem não apenas da localização de acentos, mas de várias outras regras fonológicas encontradas em diferentes línguas (como o Raddoppiamento Sintattico em italiano; ver, mais uma vez, Nespor & Vogel 1986). Parece claro, portanto, que a teoria de Cinque precisará de instrumentos adicionais, especialmente para caracterizar os sintagmas fonológicos da frase. Ou seja, ela não pode dispensar algum algoritmo adicional de formação destes sintagmas; mas, se este algoritmo pode, simultaneamente, localizar o acento nuclear da frase, é claro que a teoria de Cinque perde muito do seu apelo. Para este trabalho, o ponto fundamental é: é provável que a teoria de Cinque para o acento nuclear precise ser subsumida por uma teoria da estrutura prosódica da frase mais abrangente, mais autônoma em relação à sintaxe. Se isso é verdade, também o argumento de que a análise sintática correta da ordem [V Compl Adv] em português deve ser compatível com esta teoria perde apelo; em particular, fica claro que a análise baseada na operação de scrambling do complemento, como sugerida por João Costa, precisa de justificativa independente e não pode se basear na correção da teoria de Cinque para o acento nuclear. Isso não significa que a análise 17 sintática da ordem [V Compl Adv] em PB não envolva simultaneamente scrambling do complemento e adjunção do advérbio à esquerda do VP, como João Costa propôs para o PE; significa, simplesmente, que nem o comportamento dos advérbios monossilábicos, nem a atribuição de acento nuclear baseada na teoria de Cinque (1993), fornecem evidência satisfatória para aquela análise em PB. De um ponto de vista mais positivo, eu gostaria de concluir este trabalho apontando para o fato de que, se a linha de análise que sugeri para a distribuição dos advérbios monossilábicos em PB estiver correta, ela fornece uma evidência muito forte para a maior autonomia da fonologia em relação à sintaxe no que diz respeito à organização prosódica da frase. Precisamente como esta relação entre os dois componentes deve ser expressa, entretanto, é uma contribuição que escapa aos objetivos deste trabalho. Referências Cinque, G. (1993) A Null Theory of Phrase and Compound Stress. 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