Texto oficina navisual

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Heróis-personagens e antropólogos-narradores a partir da roteirização de imagens
fotográficas
Rojane Brum Nunes
O deslocamento dos grupos e indivíduos entre as ‘províncias e territórios de
significação’ nas cidades, segundo Eckert e Rocha (2005), é uma das questões cruciais para se
compreender o fenômeno da memória coletiva e das estéticas urbanas. Sob essa perspectiva, a
“etnografia de rua”, prática antropológica de investigação proposta pelas autoras, deve
contemplar uma reflexão sobre o forte componente narrativo que encerra os deslocamentos
humanos, que possibilitam metamorfosear a articulação temporal dos lugares em uma
sequência espacial de pontos (De Certeau, 1994).
Alguns antropólogos que assim como James Clifford (1991) empreenderam críticas
pós-modernas á escrita etnográfica, assinalando que a mesma implica na construção da
autoridade etnográfica, apontaram o caráter ficcional do texto etnográfico.
A maioria dessas críticas, de acordo com Eckert e Rocha (2005) nos instigam a pensar
no desencaixe espaço-tempo que transcorre do trabalho de campo á escrita etnográfica,
atentando-nos para a importância da reinvenção de técnicas e de procedimentos
metodológicos, como por exemplo, os atuais estudos de narrativas empreendidos pelas
autoras, a partir do uso de recursos audiovisuais.
A partir das considerações benjaminianas acerca da morte do narrador em decorrência do
advento do romance, essas antropólogas problematizam a figura do antropólogo enquanto um
certo tipo de narrador, cujo “ato de narrar possui um valor simbólico de construção de sentido
de uma vida, de uma história vivida entre tantas outras (2005:105)”.
Haja vista, o “antropólogo-narrador”, constitui-se enquanto tal através do deslocamento
efetuado pelo espaço-tempo no decorrer do encontro etnográfico, configurando a etnografia
como uma narrativa, ou ainda, tal propõe Edward Brunner (2000) como uma etnografia da
experiência, subsequentemente trazida à comunidade interpretativa que constitui a nossa
matriz disciplinar(Cardoso de Oliveira, 2000). Assim sendo, o antropológo deve proporcionar
aos leitores o processo de reconfiguração, que nos termos de Paul Ricouer (1991), equivale à
possibilidade de que esta história seja (re)contada e (re)interpretada de outras formas.
Na medida em que a etnografia como narrativa é produtora e crítica do seu sentido,
torna-se crucial empreendermos diferentes recursos teórico-metodológicos em prol da história
que se pretende contar, como por exemplo, a utilização da narrativa imagética fotográfica e a
roteirização prévia das imagens a serem captadas na etnografia fotográfica.
Tendo em vista as considerações acima e as leituras e discussões transcorridas na oficina
Etnografias fotográficas - estudo de roteiro de pesquisa, promovida pelo NAVISUAL/UFRGS
semestre 01/2009, buscou-se construir um roteiro para produção de imagens fotográficas, cujo
enfoque é o deslocamento de um dos interlocutores de pesquisa1 pelo bairro onde mora.
A construção do roteiro intitulado Espaços habitados: a casa, a rua e o bairro, inspirouse, sobretudo, na obra de Christopher Vogler, renomado analista de histórias e roteiros, que ao
apropriar-se do legado teórico do mitólogo Josefh Campbell, mapeou uma estrutura narrativa
denominada A jornada do herói, enumerando as etapas de construção de personagens e
situações necessárias para se escrever uma boa história.
O mapeamento dessa jornada, segundo Vogler (2006) consistiu em uma missão de
descoberta para explorar e mapear os limites fugidios entre o mito e a narrativa moderna de
histórias, as quais “possuem alguns elementos estruturais comuns, encontrados universalmente
em mitos, contos de fadas, sonhos e filmes (2000:28)”.
A proposta de contar uma história através de uma narrativa visual fotográfica, nos termos
de uma jornada do herói, que sai de um mundo comum pra adentrar em um mundo especial,
mostrou-se profícua para uma proposta de pesquisa antropológica com vistas à realização de
uma etnografia da duração 2. Ao definir em que consiste a jornada, Vogler diz que esta pode
ser “uma viagem pelos caminhos subterrâneos da cidade moderna, mesmo que estes caminhos
só conduzam o herói para dentro de sua própria mente(2006:28)”. Segundo ele, é necessário
que o narrador mostre o herói em seu mundo cotidiano, antes de mostrá-lo no mundo
especial,a fim de criar um contraste com o estranho mundo novo. Nesse sentido, o roteiro
prevê inicialmente a produção de imagens do “herói-personagem” em sua ambiência
doméstica, sendo que o chamado aventura corresponde ao início do itinerário empreendido
pelo bairro, previsto na segunda parte do roteiro.
A jornada do herói-personagem que ao atender chamados à aventura, transita entre
mundos comuns e mundos especiais, enfrentando a travessia de limiares, testes e provações,
encontrando-se com aliados, inimigos e mentores, para finalmente conseguir a aproximação
da caverna oculta, atingir a ressureição e o retorno com o elixir, remete-nos a pensar no
interlocutor de pesquisa, enquanto um sujeito da memória, ou seja, um sujeito de “vários
mundos”. Esse sujeito da memória, enquanto um herói-personagem, parece aproximar-se de
1
Refiro-me aqui ao projeto de dissertação de mestrado Sociabilidade, memória e cotidiano entre Idosos habitués do
centro de Santa Maria, RS, que vem sendo desenvolvido junto ao PPGAS/UFRGS orientado pela prof. Dra. Cornelia
Eckert.
2
A linha de pesquisa sobre Memória e Duração, instaurada pelos estudos de Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia
Eckert, que afiliam-se às reflexões teóricas de Gaston Bachelard e Gilbert Durand, concebe a cidade enquanto objeto
temporal, de modo que narrar a cidade na sua duração é apreender-se ao ritmo de suas estruturas espaciais nas
sobreposições temporais vividas por seus habitantes. Sob essa perspectiva, essas antropólogas propõem realizar uma
etnografia da duração, que busca evocar o movimento das memórias no tempo, vislumbrando a articulação entre a
memória e as imagens narrativas.
uma caverna oculta, atravessando limiares e provações supremas ao realizar uma “fantástica
transcendental” (Gilbert Durand,1997) a partir dos jogos de memória acionados pelos seus
deslocamentos urbanos e pelas diferentes temporalidades e ritmicidades que configuram as
relações cotidianas tecidas com o espaço doméstico, o bairro e a cidade.3 Por outro lado, as
travessias do herói entre diferentes mundos, equivalem às continuidades e rupturas constantes
que se estabelecem entre os jogos de memória e o mundo cotidiano, ou ainda, entre o presente
e o futuro. Após a aproximação da caverna oculta, um “lugar de fronteira, perigoso,
subterrâneo e profundo, onde está escondido o objeto de sua busca”, o herói atinge a
ressureição e o retorno com o elixir ou a recompensa, que pode consistir em uma força
misteriosa, um tesouro, ou em uma espada mágica que pode ser “um conhecimento e uma
experiência que o transformam em um novo ser (2006:40)”.
Ao assinalar a inteligibilidade narrativa da cidade, Walter Benjamin (1989) pontua o
caráter restaurativo da memória, de modo que na cidade, o objeto de redenção não é
unicamente o presente e o futuro, mas também o passado. Pode-se dizer que a redenção
profetizada por Benjamin, é conquistada pelo herói-personagem em suas travessias pelos
labirintos da memória, consistindo em seu elixir e sua grande recompensa.
Nesse sentido, a parte final do roteiro prevê a produção de imagens do interlocutor de
pesquisa em seu caminho de volta, no(do) interior de sua casa, no(do) seu mundo comum,
manipulando a produção fotográfica recentemente produzida pelo antropólogo-narrador e
fotos de seu acervo pessoal, possibilitando, mais uma vez uma jornada do herói rumo a uma
“fantástica transcendental”.
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire: um lírico
no auge do capitalismo. Obras escolhidas, Vol. 3. São Paulo: Brasiliense, 1989, pp.103-149.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Trabalho do Antropólogo. São Paulo: UNESP, 2000.
CLIFFORD, James. Introduccion: verdades parciales. In:CLIFFORD, James y MARCUS,
George (Eds). Retoricas de la Antropologia. Jucar Universidad: Madrid, 1991.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. Lisboa: Presença, 1997.
ECKERT, Cornélia, ROCHA, Ana Luiza Carvalho da O tempo e a cidade. Porto Alegre:
UFRGS, 2005.
RICOEUR, Paul.
Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1991.
VOLGLER, Christopher. A Jornada do escritor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
O espaço urbano aparece, assim, como parte da expressão de uma ‘fantástica transcendental’, onde se situa o fenômeno da
memória, ao permitir aos seus habitantes ‘remontar o tempo’ e perenizar as suas ações no mundo” (Eckert, Rocha, 2005:
90).
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