Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em Música Área de Concentração em Práticas Interpretativas - Violão O VIOLÃO NO FREVO: UMA LINGUAGEM EM CONSTRUÇÃO Daniel Marques de Aguiar Contato: [email protected] Visite na web: www.myspace.com/danielmarques1 Rio de Janeiro ii Junho de 2009 O VIOLÃO NO FREVO: UMA LINGUAGEM EM CONSTRUÇÃO Daniel Marques de Aguiar Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em música com concentração em práticas interpretativas (instrumento: violão). Orientador: Turíbio Santos Rio de Janeiro Junho de 2009 iii O VIOLÃO NO FREVO: UMA LINGUAGEM EM CONSTRUÇÃO Daniel Marques de Aguiar Orientador: Turíbio Santos Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em música com concentração em práticas interpretativas (instrumento: violão). Aprovada por: Presidente, Prof. Turíbio Santos (PPGM/UFRJ) Prof. Dr. Marcelo Oliveira Verzoni (PPGM/UFRJ) Prof. Dr. Luiz Paulo de O. Sampaio (PPGM/UNIRIO) Rio de Janeiro Junho de 2009 iv Ao violão brasileiro v AGRADECIMENTOS À Carla, minha família, Orquestra Frevo Diabo, Armando Lôbo, Ademir Araújo, Henrique Annes, Bozó, Lygia Falcão e a todos os músicos, pernambucanos ou não, que contribuíram com sua generosidade. Agradecimentos especiais a Turíbio Santos e Regina Meirelles. vi RESUMO O VIOLÃO NO FREVO: UMA LINGUAGEM EM CONSTRUÇÃO Daniel Marques de Aguiar Orientador: Turíbio Santos Estudo técnico interpretativo de três peças solo de violão frevísticas de três compositores de diferentes gerações e origens, além de transcrições para violão de acompanhamento da Orquestra Frevo Diabo e sugestões de ostinatos rítmicos para violão. Informações sobre o gênero foram incluídas para esclarecê-lo e fornecer dados que poderão ser úteis para novas interpretações destas composições e de outras do mesmo gênero. A produção esporádica de material violonístico de frevo foi discutida em função de entendermos melhor a sua importância. Palavras-chave: acompanhamento, frevo, música brasileira, solo, violão. Rio de Janeiro Junho de 2009 vii ABSTRACT The Guitar on Frevo: a language under construction Daniel Marques de Aguiar Dissertation Adviser: Turíbio Santos Interpretative technical study for guitar solo of three frevo pieces of three composers from different generations and origins, besides transcriptions for guitar accompaniment of the Orchestra "Frevo Diabo" and suggestions of rythmic patterns for guitar. Information about this kind of rythm was included to make it clear and provide data which may be useful for new interpretations of these compositions and others of the same kind. The sporadic production of guitar material for frevo was discussed in order to have its importance better understood. Key words: accompaniment, frevo, brazilian music, solo, guitar. Rio de Janeiro June 2009 viii Sumário Introdução……………………………………………………………………………......1 Capítulo 1: O Frevo................................................................................................5 1.1 A vibração paroxística do Frevo e o violão........................................................5 1.2 Etimologia........................................................................................................10 1.3 Música: características gerais..........................................................................14 1.4 Frevo-de-rua....................................................................................................21 1.5 Frevo-canção...................................................................................................23 1.6 Frevo-de-bloco.................................................................................................25 1.7 Modernização versus Tradição........................................................................28 1.8 Cem Anos de Frevo: Patrimônio do Brasil.......................................................34 1.9 Rozenblit..........................................................................................................39 Capítulo 2: O Violão no Frevo.............................................................................45 2.1 Orquestrações..................................................................................................45 2.2 Violonistas........................................................................................................52 2.3 Repertório........................................................................................................59 2.4 Acompanhamento............................................................................................62 2.5 Solo..................................................................................................................68 Capítulo 3: Análise de três obras frevísticas para violão solo........................70 3.1 Frevo: terceiro movimento da Petit Suite.........................................................70 3.1.1 Radamés Gnattali...............................................................................70 3.1.2 Análise de Frevo........................................................................... .....71 3.2 Henriquieto.......................................................................................................78 3.2.1 Guinga................................................................................................78 3.2.2 Análise de Henriquieto.......................................................................80 3.3 Festival dos Destinos.......................................................................................85 3.3.1 Armando Lôbo....................................................................................85 3.3.2 Análise de Festival dos Destinos........................................................85 Capítulo 4: Transcrições de três acompanhamentos a partir da Orquestra Frevo Diabo..........................................................................................................95 4.1 Orquestra Frevo Diabo.....................................................................................95 4.2 Edu Lobo......................................................................................................... 98 ix 4.3 Cordão da Saideira........................................................................................100 4.4 Frevo Diabo....................................................................................................105 4.5 Frevo de Itamaracá........................................................................................110 4.6 Exemplos rítmicos de acompanhamento para a mão direita.........................116 Conclusões gerais.............................................................................................120 Bibliografia.........................................................................................................123 Anexo 1: Entrevistas...........................................................................................127 Anexo 2: Arranjos Integrais da Orquestra Frevo Diabo......................................141 x Lista de Figuras 1 Agenda do Centenário do Frevo.................................................................35 2 Frevo – Petit Suíte (terceiro movimento) - Cp.1-17 /Radamés Gnattali......72 3 Frevo – Petit Suíte (terceiro movimento) - Cp. 18-36 /Radamés Gnattali..73 4 Frevo – Petit Suíte (terceiro movimento) - Cp. 37-54 /Radamés Gnattali..74 5 Frevo – Petit Suíte (terceiro movimento) - Cp. 55-71 /Radamés Gnattali..75 6 Henriquieto - Cp. 1-19 / Guinga e Aldir Blanc.............................................81 7 Henriquieto - Cp. 20-45 / Guinga e Aldir Blanc...........................................82 8 Festival dos Destinos – Cp. 1-30 / Armando Lôbo......................................86 9 Festival dos Destinos – Cp. 31-66 / Armando Lôbo....................................87 10 Festival dos Destinos – Cp. 67-99 / Armando Lôbo....................................88 11 Festival dos Destinos – Cp. 100-159 / Armando Lôbo................................89 12 No Cordão da Saideira – Cp. 1-32 / Edu Lobo - Arr. Armando Lôbo........101 13 No Cordão da Saideira – Cp. 33-68 / Edu Lobo - Arr. Armando Lôbo .....102 14 No Cordão da Saideira – Cp.69-108 / Edu Lobo - Arr. Armando Lôbo.....103 15 No Cordão da Saideira – Cp.109-142 / Edu Lobo - Arr. Armando Lobo...104 16 Frevo Diabo – Cp.1- 54 / Edu Lobo e Chico Buarque - Arr. Banda Armando Lôbo e Arr. Guitarra - Daniel Marques.....................................106 17 Frevo Diabo – Cp.55-108 / Edu Lobo e Chico Buarque............................107 18 Frevo Diabo – Cp.109–162 / Edu Lobo e Chico Buarque.........................108 19 Frevo Diabo – Cp.163-164 / Edu Lobo e Chico Buarque..........................109 20 Frevo de Itamaracá Cp.1-45 / Edu Lobo – Arr. Daniel Marques...............111 21 Frevo de Itamaracá Cp.46-90 / Edu Lobo - Arr. Daniel Marques..............112 22 Frevo de Itamaracá Cp.91-135 / Edu Lobo - Arr. Daniel Marques............113 23 Frevo de Itamaracá - Cp.136-180 / Edu Lobo - Arr. Daniel Marques........114 24 Frevo de Itamaracá - Cp.181-201 / Edu Lobo - Arr. Daniel Marques........115 25 Frevo – Levadas Rítmicas - Frevos 1 a 5 / Daniel Marques.....................117 26 Frevo – Levadas Rítmicas – Frevos 5 (cont.) a 8 / Daniel Marques.........118 27 Frevo – Levadas Rítmicas –Frevo-de-bloco 9 / Daniel Marques..............119 xi Lista de Quadros 1 Frevos para violão: Originais............................................................60 2 Frevos para violão: Arranjos.............................................................61 INTRODUÇÃO “... eu pensei assim: ‘Ninguém faz frevo, aqui ninguém faz frevo.’ ” (Edu Lobo apud ALBUQUERQUE, 2006:143) Completando o centenário no ano de 2007, é interessante indagar por que uma manifestação musical e sócio-cultural tão importante como o frevo não tem recebido, de certa forma, maior atenção por parte dos pesquisadores e músicos. Há muita dificuldade de encontrar material acadêmico que discuta o frevo de maneira formal. São raríssimas as dissertações não sendo encontrada, também, nenhuma tese de doutorado sobre o gênero musical. Faltam discussões técnicomusicais e análises formais de frevos, sobretudo em relação ao violão. Não existe material algum, seja didático ou acadêmico, dedicado, exclusivamente, ao frevo nesse instrumento, ainda mais no que diz respeito à sua função de acompanhador. A pesquisa discute as razões que fizeram com que o frevo e sua linguagem violonística fossem pouco explorados e tornados tão inacessíveis, pretendendo, com isso, contribuir para o incentivo do registro formal do frevo. Serão analisadas três obras para violão solo e observadas três transcrições de violão de acompanhamento. Analisaremos alguns aspectos técnicos das obras escolhidas com o intuito de elaborar algum material para um futuro estudo ao violão. Discutiremos como funcionam essas aplicações no instrumento (articulação, dinâmicas, timbres etc.) tentando traduzir, da maneira mais próxima possível, a qualidade plural de uma orquestra. Reconstituiremos o caminho do gênero através de suas raízes e seu nascimento até o desenvolvimento fragmentado de sua linguagem ao violão. Qualificamos de fragmentado porque, como solista, o instrumento se sustenta até hoje devido a compositores, violonistas ou não, que deram contribuições esporádicas compondo na maioria das vezes somente uma ou duas peças frevísticas durante toda a sua carreira. A despeito de algumas iniciativas frutíferas dos músicos de trabalhar o gênero com novos arranjos, mesclando e somando diferentes elementos musicais 2 brasileiros e estrangeiros, como o jazz, o frevo, de maneira geral, devido à falta de material impresso e de divulgação, ficou reservado aos seus próprios criadores: os pernambucanos. Por conta disso, chamaremos a atenção, na parte de análise, para um repertório de violão solo que visa ressaltar, também, outras formas de compor frevo para discutirmos diferentes abordagens técnicas do instrumento. Assim, além do compositor pernambucano Armando Lôbo, foram escolhidos, também, compositores de outras regiões do Brasil: Guinga, do Rio de Janeiro - RJ e Radamés Gnattali, de Porto Alegre - RS. As possibilidades de diversificação e renovação do gênero incluem a discussão sobre novas propostas para o desenvolvimento da linguagem frevística ao violão. De acordo com essa idéia de apontar diversificações da linguagem do frevo, foi escolhida a Orquestra Frevo Diabo, do Rio de Janeiro (primeiro grupo não pernambucano dedicado exclusivamente ao frevo), como principal referência no que diz respeito ao violão de acompanhamento. As três transcrições para esse tipo de prática violonística foram feitas a partir de canções do compositor Edu Lobo, gravadas no primeiro CD do grupo (“Frevo Diabo”, 2009), exemplificando o contraste que existe entre a função de solista e de acompanhador que o violão pode exercer. A tradição das grandes orquestras sobrevive, mas são poucas as iniciativas de inovação do gênero. Isso se reflete no desenvolvimento e na construção da linguagem do violão no frevo, tendo em vista que por não ter se firmado como um instrumento tradicional das orquestras de rua, também não se desenvolveu e se solidificou em sua linguagem solista. Sua prática melódica não foi muito desenvolvida e quando apresenta um caráter moderno é por conta da maneira de compor e interpretar de violonistas que muitas vezes não são profundos conhecedores do gênero e, naturalmente, acrescentam outras influências a essa linguagem. A função de acompanhador se consolidou, o que não aconteceu com a solista, por conta das agremiações ligadas ao frevo-de-bloco, porém, a falta de conhecimento formal desses violonistas dificulta a pesquisa. Assim, escolheu-se pesquisar o grupo Frevo Diabo porque, além de trabalhar com a guitarra e o violão de acompanhamento muito presentes, tem sido considerada por importantes compositores de frevo referência de sonoridade inovadora no gênero 3 e porque é um grupo de músicos com formação acadêmica, o que facilitou a pesquisa. Para colhermos informações a respeito da técnica utilizada pelos instrumentos de cordas no frevo foram realizadas entrevistas com diversos músicos pernambucanos e violonistas brasileiros que compuseram frevos. Fez-se também necessário um levantamento básico de partituras e gravações. Daí surgiram as informações mais importantes sobre o violão no frevo e suas possibilidades de interpretação que aplicaremos na análise das peças escolhidas. O material colhido nas entrevistas permitiu constatar, por exemplo, que existe uma problemática presente na diferença técnica de execução dos fraseados melódicos entre os instrumentos de corda e de sopro, principalmente quando se trata de articulação das notas. Por isso, observaremos possibilidades de adaptações da escrita dos sopros para o violão. Em virtude das comemorações do centenário do frevo em 2007, foram reeditados e lançados livros a respeito do gênero. A Prefeitura do Recife investiu muito nas comemorações. Essas festividades ocorreram em nível nacional e, nesse mesmo ano, o frevo foi reconhecido como Patrimônio Histórico Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)1. Apesar disso, o estudo formal e musical do frevo pouco avançou, além de que o conhecimento geral em relação ao frevo do grande público, e mesmo da maioria dos músicos não pernambucanos, até hoje é muito superficial. Por conta de certos sucessos esporádicos de alguns frevos cantados criou-se uma idéia muito limitada do gênero enquanto música. Por isso se faz necessário, também, conceituar e explicar suas complexidades visando melhor compreensão das análises aqui apresentadas dos frevos de violão. Esta pesquisa tem o seguinte objetivo: observar possibilidades técnicas de interpretação do frevo no violão nunca discutidas antes, investigando as hipóteses 1 O IPHAN define como Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO: "as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural." (disponível em: http://:portal.iphan.gov.br) 4 que justificam a ausência de material de frevo violonístico e que se refletem em sua produção. O trabalho está dividido da seguinte forma: Capítulo 1: Apresenta-se uma breve introdução à parte musical do frevo, conceituando-o e observando complexidades essenciais para analisar alguns aspectos das dificuldades de traduzi-lo para a linguagem violonística. Serão discutidas questões sociológicas do frevo que refletiram em suas qualidades, imprescindíveis para a compreensão desse trabalho. Capítulo 2: Observa-se como e o quanto o violão se inseriu e se desenvolveu no universo frevístico, chamando a atenção para as diferenças e dificuldades de se adaptar um gênero essencialmente orquestral para um instrumento só. São analisadas, também, as características que diferenciam as qualidades do instrumento como acompanhador e como solista. São apontados alguns violonistas que constituem referência para o gênero. Capítulo 3: Contém uma análise musical de três peças frevísticas para violão solo de três compositores de gerações diferentes: Frevo, terceiro movimento da Petit Suíte de Radamés Gnattali, Henriquieto de Guinga e Festival dos Destinos de Armando Lôbo. É feita uma breve apresentação de cada compositor. Capítulo 4: São transcritos três arranjos comentados de acompanhamento para violão gravados no CD da Orquestra Frevo Diabo. São composições de Edu Lobo: Frevo Diabo, Frevo de Itamaracá e Cordão da Saideira. É apresentada uma breve introdução ao trabalho do grupo Frevo Diabo e do compositor Edu Lobo. 5 CAPÍTULO 1 O Frevo 1.1 A vibração paroxística do frevo2 e o violão Os três principais referenciais teóricos utilizados na pesquisa foram os livros “Frevo, Capoeira e Passo” (OLIVEIRA, 1971), “Frevos de Rua” (MENEZES, 2006) e “Frevo: 100 anos de Folia” (CASSOLI, 2007). O primeiro é um pioneiro no assunto, o mais antigo trabalho encontrado, e o último um dos mais recentes. Os dois se complementam porque apresentam abordagens distintas do assunto: a pioneira e a atual. No decorrer da pesquisa bibliográfica, nenhum livro ou método de violão no frevo foi encontrado. Em Oliveira (1971), além de exemplos impressos em pequenos trechos de partituras com detalhes técnicos sobre a música, encontramos dados sociais importantes sobre as origens do frevo. Já o livro “Frevo: 100 Anos de Folia” faz um panorama do frevo desde seu nascimento até os dias de hoje, apresentando depoimentos de muitos músicos e estudiosos, assim como fotos e informações significativas na sua trajetória. E o livro do maestro José Menezes é a primeira edição completa de arranjos para frevo-de-rua3 por ele compostos e arranjados. Suas partituras estão muito bem editadas com indicações de dinâmica e articulações, raras de se encontrar no material frevístico em geral. Apesar do maestro não ter se aprofundado na escrita dos instrumentos de corda e sim essencialmente nos de sopro, tomaremos suas sugestões interpretativas como referência principal para analisarmos as peças escolhidas para a presente pesquisa. Esse referencial teórico foi essencial para ilustrar a complexidade e diversificação desta manifestação cultural que é o frevo. Somente sua dança, por exemplo, já justificaria sua importância. Aqui escolhemos a música, especificamente no que diz respeito ao violão. Usaremos também, como apoio à pesquisa, as informações técnicas colhidas em entrevistas, que muitas vezes 2 3 Termo definido por Mario de Andrade (1947). Serão explicados na pesquisa os diferentes tipos de frevo. 6 revelaram detalhes sobre o violão no frevo que não estão registrados em nenhum livro ou método encontrado que incluem o gênero. O gênero se subdivide, tradicionalmente, em três tipos de frevo que possuem naturezas, ao mesmo tempo, muito diferentes e complementares. Muito se pensa a respeito do frevo como um gênero menor, e que só aparece no carnaval, sem força fora da época festiva. Essa percepção é tão limitada e a falta de debate sobre esse assunto é tanta que se coloca a necessidade de conceituar o frevo desde seus primórdios, tendo como base o referencial teórico citado, passando sobre as diferentes vertentes de sua música, para que nossa discussão a respeito do violão, no frevo, seja compreendida de forma mais aprofundada. Assim sendo, um tópico sobre etimologia da palavra “frevo” se fez necessário. A carência de informação também se deve à inexistência de materiais acadêmicos sobre frevo à disposição. Pouco se formalizou a discussão sobre seus paradoxos sociais e musicais. Isso inclui o violão diretamente, pois justamente essa falta de reflexão pode ter resultado na falta de uma linguagem consistente de frevo desenvolvida no violão. O instrumento foi pouco integrado ao gênero, a ponto de não fundar uma tradição como solista. Como acompanhador, não acrescentou tanto ao universo violonístico e não gerou interesse, por parte dos violonistas em geral, de abarcá-lo. É comum que muitos violonistas nem tomem conhecimento da existência dessa tradição de acompanhador de frevo. As dificuldades de se adaptarem as técnicas de um tipo de instrumento em outro são evidentes. Tanto é que, geralmente, o compositor quando concebe uma melodia, arranjo etc. já pensa em um instrumento específico interpretando-o de acordo com suas qualidades técnicas. O instrumento, com sua identidade, faz parte da criação da música. Essa não existe por si só. Para interpretar o frevo no violão, o instrumento deve se desmembrar ao máximo para soar plural dentro de sua identidade singular, transcendendo a técnica para dar conta das exigências expressivas de cada obra. Devem-se utilizar os recursos de diferentes timbres no violão para ser capaz de traduzir o frevo, que nasceu na orquestra com diferentes instrumentos, que sugerem um colorido sonoro típico. Na presente pesquisa, interessa discutir a linguagem do 7 violão e aplicá-la a esse gênero pouco explorado no instrumento. O violão é raro na condição de solista e pouco ousado e difundido na sua pequena tradição de acompanhador na época carnavalesca. Serão discutidas as possibilidades de tradução do frevo ao violão observando-se três aspectos para o seu estudo: a linguagem do instrumento e suas peculiaridades; a linguagem do frevo que se desenvolveu, sobretudo, nos instrumentos de sopro; e o que já foi produzido de material frevístico dedicado ao violão. Foi levantada uma lista do repertório de violão solo no frevo com seus respectivos autores no capítulo dois, onde percebemos que os autores, em sua maioria, compuseram um ou dois frevos cada um. Com isso reforça-se a idéia de sua produção ter sido esporádica, sempre sendo trabalhado pelos autores como um gênero de certa forma experimental, ou ainda, exótico e idealizado, por conta da falta de aprofundamento no mesmo. Parece existir atualmente um movimento de reafirmação de identidade brasileira de certos artistas a partir da prática de alguns gêneros musicais que haviam sido deixados de lado em função da música estrangeira nas últimas décadas. Como exemplo de dificuldades passadas por um músico que vivenciou essas mudanças, citamos o violonista Dino Sete Cordas, já falecido e integrante do grupo “Época de Ouro”, que foi obrigado a tocar guitarra elétrica nos bailes do Rio de Janeiro para sobreviver, deixando o violão de lado durante determinada época de sua vida quando o choro e o samba foram desvalorizados, por conta da influência da música americana dominante nas rádios (BECKER, 1996). Agora, certos gêneros musicais considerados “de raiz”, como o samba, o choro, o forró e o maracatu, floresceram e retornaram ao interesse do público e conseqüentemente do mercado. Desenvolveu-se uma vontade, principalmente das novas gerações, de se afirmar brasileiro pela incorporação dessa música. O frevo também se destacou recentemente na mídia em função das comemorações de seu centenário. Esse destaque reflete a intencao de alguns de fazer com que esse venha a se somar aos outros gêneros citados que retornaram ao gosto popular. Essa necessidade de se afirmar brasileiro a partir de uma música supostamente “popular”, que representa de forma figurativa uma luta de opostos - 8 que podem ser representados pelos seguintes clichês: o dominado e o dominador, o intelectual e o sem formação acadêmica, ou ainda o “erudito” e o “popular” - acaba gerando uma falta de elaboração na estética da música e, conseqüentemente, o uso superficial de uma linguagem regional, o que resulta em uma música utilizada à forma de maneirismos, como o frevo, por exemplo. Nesse caso o gênero musical serve a um fim não diretamente o artístico, quando é incorporado e recriado com o intuito de representar uma atitude política: afirmarse brasileiro acolhendo parâmetros de identidade musical construída no passado, sem necessariamente reinventá-lo à sua época. Assim, muitos se utilizam de certos elementos típicos de um gênero, principalmente regional, para justificar essa identidade brasileira, livrando-se da influência estrangeira mas sem um estudo aprofundado do mesmo. No início da década de 1990 surgiram muitos grupos dedicados a gêneros musicais brasileiros, e a tendência, dada a criação de rádios e programas televisivos desde então dedicados à música chamada “MPB”, parece ser a de que essa música considerada “popular” está em uma nova fase de ascendência. Mas näo necessariamente está sendo recriada. Em relação ao frevo essa falta de aprofundamento se faz presente pelo fato de que sua música, embora tenha servido de inspiração para muitos compositores, inclusive violonistas, não recebeu dedicação exclusiva de nenhum. Vale ressaltar que nenhum grupo, fora as orquestras de frevo pernambucanas, se dedicou exclusivamente ao frevo. A “Orquestra Frevo Diabo”, que inclui o violão em sua formação, é a primeira iniciativa nesse sentido. Os grupos não pernambucanos que trabalharam com o frevo o fizeram de forma esporádica, em sua maioria como pequenos blocos carnavalescos e tocando arranjos de maestros pernambucanos executados também por outras orquestras. O “Frevo Diabo” trabalha com seus próprios arranjos, o que proporcionou um estudo singular do violão de acompanhamento de frevo, observando sua integração ao grupo através das transcrições feitas a partir de CD gravado (2009). A linguagem desenvolvida do frevo é essencialmente orquestral, apresenta uma pluralidade característica de orquestra. Essa estrutura coletiva tem como identidade a variedade de complexos timbres, ritmos, melodias e harmonias. Nessa pesquisa também propomos o violão como um tradutor alternativo do 9 frevo, simplificando-o em relação à diversidade original do gênero com sua dimensão orquestral. É interessante simplificá-lo tecnicamente, mas não poeticamente, mantendo sua grandiosidade. Para isso se faz necessário um estudo das características de orquestração trabalhadas pelos compositores junto as suas respectivas bandas. A possibilidade de incluir o violão no frevo foi mínima se comparada à grande tradição das orquestras e grupos de frevo e, por isso, pretendemos colaborar e dialogar com essa tradição. Como traduzir uma linguagem de rua como a do frevo para o universo intimista do violão, mantendo sua alma festiva? Discutiremos a idéia de que o frevo é mais complexo que a impressão geral que se tem do mesmo, e o quanto essa constatação deve ser levada em consideração ao interpretá-lo no violão. É importante observar que parte da música brasileira ainda está em fase de assimilação nas academias de música, tendo em vista que os registros formais de certos gêneros musicais ainda são raros. Essa lacuna existente no estudo formal da música brasileira, que inclui o frevo, é um problema para quem quer se aprofundar em seus estudos, restando, quase como opção única, o trabalho de campo para colher informações sobre a maneira de se executar o frevo ao violão. O que se revela um paradoxo: um gênero essencialmente orquestral, de certa forma inacessível pelo estudo formal. Discutimos aqui a parte musical do frevo traduzida para a linguagem do violão, procurando entender sua trajetória e seu desenvolvimento, que ainda está em construção, já que o instrumento sempre esteve à margem da prática orquestral frevística. Por conta da literatura de frevo violonística ser quase inexistente, ainda mais se comparada à literatura orquestral, são abordadas, de forma complementar, através de nosso referencial teórico acima citado, certas qualidades do gênero que não são exclusivas do instrumento ou que simplesmente não dizem respeito ao violão no frevo de maneira direta. O intuito é enriquecer o estudo dessa forma sócio-musical para entendermos as suas questões na esfera instrumental, sobretudo violonística. O frevo é uma música de paradoxos, onde opostos dialogam o tempo inteiro. Seja nos contrapontos, nos conflitos entre orquestras rivais, no seu ritmo 10 que se desloca no tempo, em altos e baixos de sua dinâmica ou representando uma luta para se definir “popular” ou “erudito”. “Paradoxo” parece ser a melhor palavra para definir esse gênero que nasceu na rua e tem a essência sofisticada e intelectual da música de concerto. 1.2 Etimologia Para enriquecer esse estudo se faz necessário conceituar a palavra “frevo”, que anteriormente a substantivo, tem natureza adjetiva que traduz a alma de sua música. A data de nascimento do gênero foi fixada quando a imprensa divulgou, pela primeira vez, a palavra, em 09 de fevereiro de 1908. Não coincidentemente, um período de atmosfera carnavalesca. Foi em uma publicação do Jornal Pequeno do Recife que seu registro estreou na imprensa pernambucana. Em Ribeiro (1949, apud Rabello4, 2004:14) foi encontrado o registro de uma chamada para um baile da época: “Clube Carnavalesco Empalhadores do Feitosa”. O texto se chamava “Olha aí o Frevo”, escrito pelo jornalista Osvaldo de Almeida, cujo pseudônimo era Paula Judeu. Essa reportagem informava ainda a respeito do repertório executado na noite de festa: “O seu repertório é o seguinte: Marchas - Priminha, Empalhadores, Delícias, Amorosa, O Frevo, O Sol, Dois Pensamentos e Luiz do Monte, José de Lyra, Imprensa e Honorários; Ária - José da Luz; Tango - Pimentão.” 5 Esse registro foi muito bem aceito como data oficial do nascimento da palavra frevo. É o primeiro registro encontrado ou, ainda, o registro mais antigo descoberto até então. Vale observar que quando foram feitas as primeiras gravações do gênero, na década de trinta, ainda não se chamavam frevo, e sim marcha-nortista. Hoje se considera que essas gravações já eram frevo. Ou seja, a palavra já tinha sido utilizada na imprensa por volta de trinta anos antes, mas seu uso formal e definitivo pelos músicos ainda levaria algum tempo como aconteceu 4 5 Historiador Evandro Rabello O grifo é nosso. 11 com diversos outros gêneros brasileiros. Segundo Souza (2004), o frevo foi lançado em disco por Francisco Alves, em 1930, ao gravar Frevo Pernambucano6, composição de autoria de Luperce Miranda e Oswaldo Santiago, dois pernambucanos. Antes disso a palavra frevo não tinha sido utilizada pela indústria fonográfica. Um ano depois foi gravado “Vamo se Acabá” (Nelson Ferreira) pela Orquestra Guanabara que recebeu a classificação de “frevo”. As duas canções foram gravadas no Rio de Janeiro. Nos primórdios do frevo na indústria fonográfica, a base das gravações feitas era no Rio. Essa indústria será discutida no tópico “Rozenblit”. Vale ressaltar que o nome frevo foi inaugurado em gravações por uma composição de um bandolinista, que é um instrumentista de cordas, Luperce Miranda. Segundo o bandolinista entrevistado Marco César (2007), Luperce Miranda e os irmãos Nelson e Romualdo Miranda foram os primeiros a gravar frevos em instrumentos de corda. Ou seja, Luperce fez duas inaugurações no gênero. O violão poderia ter ocupado esse lugar, já que a natureza dos instrumentos de corda é semelhante, não sendo uma limitação o fato de não ser o compositor um instrumentista de sopro. Para melhor compreensão do significado da palavra frevo, foram encontradas algumas definições em dicionários e pesquisas etimológicas, que expressam a alma da música e de sua festividade. Abaixo, relato de Mário de Andrade no “Dicionário Musical Brasileiro” (ANDRADE, 1911:233).7 “Dança instrumental, marcha em tempo binário e andamento rapidíssimo, popular especialmente no carnaval do Recife, seu lugar de origem. Alguns autores datam seu aparecimento no ano de 1909, mas todos concordam que sua ascendência é a polca militar, ou polca-marcha. É dançado na rua ou nos salões, em roda ou em marcha; neste primeiro caso admite a entrada de um passista que sola coreografias com saca-rolhas, chã de barriguinha, tesoura, parafuso, dobradiça e outras inventadas conforme o dançarino (...). Pelo ritmo sincopado ser extremamente contagiante, admite-se que o nome frevo seja 6 7 É freqüente o uso da palavra “frevo” no nome de músicas desse gênero. Vale notar que, à época, o registro mais antigo da palavra frevo datava de 1909, um ano depois da recente descoberta que oficializou seu nascimento. Assim, nada impede que em algum momento outra descoberta proponha uma nova data de aniversário. Os registros históricos, ao que tudo indica, não são definitivos. 12 derivado de frever (ferver), por alusão ao comportamento da multidão dançante.” A Fundação Joaquim Nabuco define: “FREVO: A palavra frevo vem de ferver, por corruptela frever, dando origem à palavra frevo, que passou a designar: ‘Efervescência, agitação, confusão, rebuliço; apertão nas reuniões de grande massa popular no seu vai-e-vem em direções opostas como pelo Carnaval’, de acordo com o ‘Vocabulário Pernambucano de Pereira da Costa’. Divulgando o que a boca anônima do povo já espalhava, o Jornal Pequeno, vespertino do Recife, que mantinha a melhor secção carnavalesca da época, na edição de 12 de fevereiro de 1908, faz a primeira referência a palavra frevo.” (LIMA, 2007)8 Todas essas definições são extensas, o que nos leva a concluir que não é simples definir o que é frevo. O dicionário Houaiss define e ainda explica porque seu aparecimento foi datado anteriormente em 1909: “FREVO: dança em compasso binário e andamento rápido, surgida no final do século XIX, na qual os dançarinos, portando guarda-chuvas fantasiosos, executam coreografia individual, marcada por ágil movimento de pernas que se dobram e se estiram freneticamente. Espécie de marcha em ritmo frenético que acompanha essa dança. Folia agitada, brincadeira calorosa, agitação, bulício, confusão. Corruptela da palavra ferver por alusão à agitação e ao calor da dança e da música. Um filme antigo da Agência Nacional datava esta palavra de 1909, dizendo ter sido a primeira vez que ela foi usada no sentido musical que tem hoje.” (HOUAISS, 2007:113) Nota-se que Houaiss afirma ter o frevo surgido no final do século XIX. Essa afirmação não parece errada no que se refere às evidências de nascimento do gênero, porém não diz respeito à palavra "frevo" diretamente. É evidente que a palavra tenha surgido depois da estética musical já ter se formado e o registro formal na mídia naturalmente não garante que a palavra já não tivesse sido criada muito antes. O folclorista Joaquim Ribeiro talvez tenha sido o que mais se aprofundou na discussão da origem da palavra frevo em seu livro “Etimologia do Frevo" (RIBEIRO, 1949). Ele nega a hipótese da origem africana, como no samba e 8 Informação disponível em: (http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationC ode=16&pageCode=303&textCode=923). Acessada em 20 de dezembro de 2007. 13 outros gêneros, reafirmando sua origem local recifense. Nota-se que ele se refere à origem do vocábulo, e não do frevo enquanto gênero: “(...) O ‘localismo’ do vocábulo afasta a origem negra. Os vocábulos negros, de regra, possuem áreas-geográficas amplas e não se fixaram exclusivamente numa órbita urbana. O fato de ‘frevo’ ser batismo genuinamente recifense, urbano por excelência nos permite sugerir no étimo algo literário. A expressão ‘marcha frevo’ deve se entender ‘marcha ligeira’, como de fato é, aceitando-se ‘frevo’ como corruptela de ‘frívolo’, cujo significado geral é ligeiro, volúvel, etc.. Este étimo que surgiu só é admissível e defensável, enquanto estiver assentado que o ‘frevo’ é criação exclusivamente urbana de Recife.”9 Em todas as definições e hipóteses encontramos uma qualidade em comum: a referência ao calor. Temperatura alta que se refere ao encontro das multidões em pleno verão para festejar ao som da música singular que não deixa ninguém descansar. Sejam os músicos em desfile, que vão à exaustão em função do alto nível técnico e físico exigido pela música, ou os passistas junto à multidão, que fazem coreografias acrobáticas que também os levam ao cansaço e ao suor. É comum inclusive a perda da audição devido ao alto volume de som gerado nos desfiles. Volume comparado ao de um show de rock. Resultados de uma pesquisa na “Revista Brasileira de Otorrinolaringologia” revelam que “As queixas auditivas mais freqüentemente citadas pelos músicos foram tontura e zumbido.” (ANDRADE, A. et al, 2002:4) Dessa maneira, o nome frevo parece perfeito para designar tudo que engloba essa manifestação cultural. Sua natureza quente reflete toda a energia despendida para fazê-lo acontecer. É notável o virtuosismo de todos seus executantes, músicos instrumentistas e compositores, e seus dançarinos. É um evento que exige energia de todos os participantes. E o mais surpreendente é o quanto se ouve pessoas analfabetas ou semi-analfabetas a cantarolar melodias instrumentais complexas, inclusive seus contrapontos. 9 Texto também publicado em Jangada Brasil, Ano IV. Edição 75. Fevereiro de 2005. Disponível em (http://www.jangadabrasil.com.br/revista/fevereiro75/fev75002a.asp). Acessada em dez/2008. 14 1.3 Música: características gerais O frevo é considerado um gênero exclusivamente urbano de Pernambuco, tendo nascido em Recife, especificamente nos bairros de São José, Santo Antônio e Boa Vista, sendo totalmente ligado à tradição carnavalesca. Apesar de o gênero ser considerado nascido do “povo” (OLIVEIRA, 1946), o frevo não pode ser considerado folclore porque tem seus compositores reconhecidos, com suas maneiras pessoais de escrevê-lo e arranjá-lo. O frevo não surgiu de melodias populares disseminadas pela tradição oral. Não pode ser considerado uma música primitiva e nem é praticada somente por um restrito grupo étnico. Logo, não se pode atribuir a isso a falta de estudo formal sobre o gênero: a raiz de suas orquestrações é européia. Sua música foi elaborada sempre de forma complexa e não ao acaso de uma situação festiva. Aqui não se está questionando sua legitimidade enquanto gênero musical não pertencente ao folclore brasileiro, e sim chamando a atenção para um fato que sugere uma discussão: o frevo, apesar de não ser folclore, se limitou a um regionalismo, ou ainda, aos limites de seu estado de nascença: Pernambuco. Embora tenha se expandido para alguns estados vizinhos como, por exemplo, Alagoas, não criou tradição em nenhum deles. “O povo do Recife nunca fez, nunca compôs um frevo” (OLIVEIRA, 1946:42). Seus autores sempre foram reconhecidos, desde a época de “Vassourinhas” (1909), de autoria reconhecida de Mathias da Rocha e Joana Baptista. “O autor do frevo nunca é anônimo (...) como sucede na música folclórica (...). É a obra de um homem, aceita por uma coletividade (...). A categoria frevo se estabilizou, já, como expressão da índole própria e exclusiva de um corpo social.” (OLIVEIRA, 1971:43) Tendo origem na tradição militar com a criação da Guarda Nacional (1831), as bandas pernambucanas executavam no carnaval os seguintes gêneros europeus: marchas, polcas, dobrados, galopes, tangos e quadrilhas. E o brasileiro maxixe (CASSOLI et al, 2007:46). Devemos incluir também a influência da capoeira através da dança que se refletiu na música e vice-versa. Sua coreografia muitas vezes chega a ser uma demonstração acrobática, virtuosismo que expressa as acrobacias técnicas exigidas também ao tocar o instrumento. Essas 15 bandas militares do séc. XIX ajudaram a desenvolver a linguagem orquestral de instrumentos de metal e percussão do frevo que conhecemos hoje. O violão nunca pertenceu à instrumentação tradicional desse tipo de banda. Sua raiz enquanto concertista e solista é fundamentada na escola da música clássica européia, onde se pode citar como referência a obra de Villa-Lobos para violão que tem a linguagem brasileira, porém os formatos europeus de estudos e concertos. Logo, o fato da parte essencial da linguagem melódica e harmônica do frevo ter nascido nos instrumentos de sopro faz ser necessário um trabalho de adaptação para o violão. Para entender os primórdios do frevo, voltemos a atenção para a sua natureza violenta que se evidencia desde o início da história dessas bandas pernambucanas. Os maestros e as orquestras por eles lideradas muito rivalizavam entre si, numa espécie de competição comparada à dos clubes de futebol atuais. “As bandas rivais do Quarto (4o. Batalhão) e da Espanha (Guarda Nacional) desfilavam no carnaval pernambucano protegidas pela agilidade, pela valentia, pelos cacetes e pelas facas dos façanhudos capoeiras que aos saracoteios desafiavam os inimigos: 'Cresceu, caiu, partiu, morreu!'” (CARNEIRO, 1971:22) O frevo surgiu da interação entre música e dança, a ponto de não se poder distinguir “se o frevo, que é a música, trouxe o passo ou se o passo, que é a dança, trouxe o frevo” (OLIVEIRA 1946:158). Abrindo caminho para o cortejo das bandas, vinham os capoeiristas, cujas gingas e rasteiras deram nascimento ao passo (SOUZA, 2004). Essa rivalidade e conflito se transferem diretamente para a música quando melodias e ritmos brigam na forma de contrapontos ligeiros, síncopes e mudanças súbitas de dinâmica, onde o violonista solista tem que usar os recursos técnicos do instrumento ao máximo. “O violão possui grande riqueza tímbrica e de ruídos” 10 (PEREIRA, 2003) que podem ser inclusive pancadas em seu tampo de madeira. Ele dá conta de exprimir agressividade se preciso. 10 Prof. Marco Pereira, em depoimento em sala de aula na Escola de Música da UFRJ. 16 Contrariando a imagem lúdica que se fixou no imaginário popular através da imagem do dançarino que roda sua mítica sombrinha, que muitos identificam como mero instrumento usado para manter o equilíbrio durante a performance, vale acrescentar: “A utilização da sombrinha, símbolo inquestionável do frevo, também remonta a esta época e aos capoeiras. Com a proibição da capoeira e a ação do Estado no sentido de controlar o carnaval e sua agitação, a sombrinha é uma espécie de arma branca, disfarçada – como o são, aliás, os símbolos de muitas agremiações carnavalescas, onde um cabo, cassetete em potencial, é muito recorrente: a pá, o machado (onde o que importa é o cabo, pois a “lâmina” era confeccionada em papel), o pão (feito de madeira), o abanador, a vassoura (...) se o samba diverte, o frevo fere; e isto está expresso nos símbolos, na expressão visual, na música e na dança do frevo.” (IPHAN11, 2007) O violão também precisa se transformar em arma de guerra musical poeticamente se quiser captar essa essência frevística. Essa explicação sobre as sombrinhas expressa a natureza agressiva do chamado “frevo-de-rua”. O “frevode-bloco”, mais lírico, se formou como alternativa a essa prática dos clubes pedestres. Poderemos a partir daí entender um pouco melhor o motivo das conseqüentes divisões sociais que existem nos diferentes tipos de frevo que podem ser representadas pelas duas formas quase opostas de se tocar o frevo no violão: solo e acompanhamento. O primeiro é associado aos clubes pedestres, de rua, de trabalhadores da classe baixa. O segundo aos blocos líricos, organizados pela classe média em ambiente familiar. Esses serão analisados no próximo tópico. A maioria dos historiadores identifica um compositor como sendo o responsável pela fixação do gênero: José Lourenço da Silva. Maestro Zuzinha, como era chamado, foi regente da banda do 40º Batalhão de Infantaria do Recife. Pernambucano de Paudalho, Zona da Mata do estado, “estabeleceu a linha divisória entre o que depois passou a chamar-se frevo e marcha-polca” (MELO in TELES, 2000:37). Zuzinha teve esse mérito por conta de uma composição 11 Disponível no portal do Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional (IPHAN): (http://www.portal.iphan.gov.br), relativo ao dossiê de candidatura do frevo a patrimônio histórico, aprovado em 2007. 17 específica. Anteriormente sem título identificado, o maestro Nelson Ferreira batizou essa de “Divisor de Águas”. Zuzinha veio ao Rio de Janeiro na década de vinte, época em que as gravadoras cariocas começaram a lançar frevos. Sua função era fazer com que as gravações soassem mais “pernambucanas”, pois muitos conhecedores do repertório estranhavam sua execução (CASSOLI, 2007). Valdemar de Oliveira criticou: “...Houve tempo em que mandávamos ao Rio o maestro Zuzinha para cuidar dessas coisas. E o que nos chegava satisfazia. Hoje deixamos plena liberdade aos executantes e intérpretes cariocas, e o resultado é desastroso...” (OLIVEIRA apud TELES, 2000:). Esse resultado classificado de desastroso exemplifica a idéia que alguns pernambucanos tinham de como deveria ser interpretada a própria música. Notase a polêmica constante em relação a “verdadeira” estética do frevo. Por exemplo: com opinião adversa a Valdemar, o maestro José Menezes afirmou: “Não tenho muito do que me queixar, o meu ‘Freio a Óleo’ foi muito bem gravado no Rio, em 1950, pela orquestra de Zacarias” (apud TELES, 2000:28). Os exemplos de disputas e discordâncias sobre formas de execução poderiam ser infinitamente multiplicados, mas o que nos interessa aqui é notar que as discussões nunca se referiam ao violão e ao seu papel. O violão solista simplesmente não participou dessas orquestras; portanto, se o frevo já possuia uma linguagem desenvolvida com identidade própria e de certa forma cristalizada, como lidar com a inserção do violão no gênero? Por essa lógica, traduzir o frevo para o violão seria uma deturpação? Ao transformar o repertório original para instrumentos de sopro e adaptá-lo para o violão perde-se o seu caráter original, mas ganha-se uma nova proposta de interpretar o gênero. Diante da impossibilidade de imitar a performance dos metais, é preciso inventar novas maneiras de traduzir a linguagem do frevo no universo do violão. Isso seria inovação. José Ramos Tinhorão (1978:60) não postula um marco inicial, mas faz referência à maneira espontânea e popular de seu nascimento: “A prova de que esse fenômeno da criação do frevo se deu realmente assim, é que até hoje não se conseguiu uma composição capaz de merecer as glórias de primeiro frevo.” 18 Contudo, o Vassourinhas, provavelmente composto em 1889 por Joana Batista Ramos (versos) e Teodoro Matias da Rocha (melodia), é uma das mais antigas músicas do carnaval pernambucano. Matias da Rocha tocava e compôs “Vassourinhas” no violão; isso nos leva a concluir que o frevo mais antigo que ainda faz parte do repertório das bandas de hoje, além de ser executado como frevo instrumental, nasceu com o auxílio de um violão. Talvez essa seja a maior prova da vocação frevística do violão. Ora, se Vassourinhas foi originalmente composta como tema instrumental, então o violão já estava inserido na linguagem dos frevos-de-rua (ver seção 1.2). No próximo capítulo a relação de Matias com o instrumento será abordada. É evidente a maneira caótica como nasceu o frevo, sendo uma conseqüência natural, entre as muitas transformações e recriações de gêneros que ocorriam em Pernambuco na época. Não é necessário eleger uma composição específica para entender o processo que o originou. Os primeiros compositores de frevo foram aproveitando o material musical com que tinham contato. “A pena corria ao gosto popular da época. E o que mais se fazia era apelar para os instrumentos de metal e para um aligeiramento dos desenhos melódicos, em certas partes da obra, destinadas à dança” (OLIVEIRA,1971:27). Se os músicos atribuem ao frevo um caráter democrático e este nasceu de forma caótica, discutir as possibilidades de suas adaptações ao violão solista se torna essencial à sua inovação e continuidade. Incluir o frevo no repertório de violão parece ser um caminho natural, desenvolvendo uma nova linguagem de frevo derivada dos sopros, mas reinventada no violão. Com o cuidado e o estudo necessário do intérprete, o frevo mantém sua essência em qualquer instrumento que não pertença ao universo da banda militar. Embora nenhum músico tenha afirmado de maneira direta que o frevo não funciona no violão, a presente pesquisa tem também o interesse de questionar porque as tentativas de adaptá-lo ao violão foram mínimas. O segundo capítulo debate essa questão de forma direta. Sua música influenciou compositores de todo o Brasil como Tom Jobim e Vinícius de Moraes, que compuseram “Frevo de Orfeu”; Radamés , Guinga, 19 Armando Lôbo e Edu Lobo, que têm seus frevos analisados nos últimos capítulos; e, ainda, Marlos Nobre, Chico Buarque, Pixinguinha, Guerra-Peixe, Francisco Mignone, Egberto Gismonti, Marco Pereira, Canhoto da Paraíba, Baden Powell, Sivuca, Gilson Peranzzetta, Moraes Moreira, Nelson Faria, Thiago Amud e Romero Lubambo. Hermeto Pascoal, por exemplo, alagoano que morou uma temporada em Recife, desenvolvendo um conhecimento sobre o frevo por ter observado as orquestras de perto, é um dos poucos que, apesar de não se dedicar, exclusivamente, a gênero brasileiro algum, compôs um número significativo de frevos. Em seu livro de partituras, “Calendário do Som”, relembra os momentos de inspiração para seus frevos: “Aprendi muito escutando os ensaios com os grandes maestros Clóvis Pereira, Guerra-Peixe, maestro Duda e muitos outros.” (PASCOAL, 2000:215) Mesmo assim, nenhum desses músicos brasileiros se dedicou completamente aos estudos do frevo. Não há nenhuma metodologia de orquestração baseada nos maiores compositores do gênero que possa ser utilizada como referência para a presente pesquisa. Se fosse o caso, poderia servir como proposta para aplicá-la no violão. Quem quiser aprender tem que estudar as partituras por conta própria, como um autodidata. Esse é um dos paradoxos do frevo: é de uma orquestração complexa, porém não possui nenhum estudo ou livro editado sobre a composição e orquestração de suas obras mais importantes. No entanto, quanto mais se pesquisa o frevo, mais se revela seu peso artístico e cultural. Justifica-se assim a dificuldade técnica de traduzi-lo ao violão. Se a tradição instrumental do frevo foi criada nas orquestras e essas até hoje não receberam o cuidado de preservação através da edição de métodos e análises técnico-musicais, então o violonista tem que inventar o frevo no violão por conta de sua própria criatividade. De certo modo, a falta de informação e aprofundamento do gênero pode ser positiva, pois quem cria o frevo no violão acaba misturando-o com a linguagem de outros gêneros já explorados no instrumento ou cria de forma muito pessoal. Porém seria muito positivo se um violonista, assim como outros instrumentistas, tivessem a oportunidade de estudar as possibilidades do frevo de uma maneira completa, com detalhes de sua 20 instrumentação e com as diferentes maneiras de compôr já realizadas por mestres do gênero. Seria possível, assim, recriar o frevo com uma base estética enraizada no que já foi feito. É claro que alguns maestros pernambucanos de hoje têm esse enraizamento, porque além de terem uma ligação enquanto músicos que praticam o gênero, possuem uma vivência do frevo comum ao pernambucano que participa do carnaval. A dedicação à prática intensiva do frevo, na sua forma tradicional, talvez não tenha favorecido uma reflexão, em grande escala, a respeito de sua estética musical ao ponto de incluir o violão para além do que já foi feito. Assim, não se deram conta de que, comparado à prática orquestral, o frevo no violão quase não existiu. Será que não houve nenhum violonista que tenha tentado suprir essa necessidade? Ou tal necessidade não existiu porque não houve uma reflexão maior a respeito da questão, que poderia, inclusive, ter culminado num ato de transformação? Não há nenhum registro ou depoimento afirmando que algum violonista tenha tentado dedicar-se a uma obra frevística e não tenha obtido êxito. As duas maneiras de criar o frevo no violão apontadas no parágrafo anterior (solo e acompanhamento) não estão em conflito. Quanto mais frevo se crie no violão naturalmente, mais sua linguagem se constrói e amadurece, como acontece a todo gênero em sua trajetória de formação. O fato é que faltou quantidade e consequentemente qualidade na produção violonística, o seu repertório escasso de violão não amadureceu a ponto de haver uma peça solo de frevo que tenha grande destaque na prática do violonista. O frevo de Radamés (Pequena Suíte), por exemplo, não era do conhecimento de grandes violonistas brasileiros da atual geração até serem informados através da presente pesquisa. Dentre eles podem ser citados: Yamandú Costa, Marcelo Gonçalves, Nando Duarte, Zé Paulo Becker e Guinga. Nem os maestros pernambucanos Clóvis Pereira e Ademir Araújo conheciam essa obra. Assim como no choro, no frevo o violão apresenta duas vertentes de linguagem com naturezas quase opostas, mas também complementares: o solista e o acompanhador. Como cada uma está ligada a um tipo de frevo diferente, se 21 faz necessário conceituá-los: frevo-de-rua, em que o violão reflete sua qualidade de solista; frevo-de-bloco, no qual está inserido como acompanhador e; frevocanção, que consideramos um caso diferente, conforme será explicado mais adiante. Essa tipologia se deu a partir da década de trinta, quando o gênero se tornou popular através das rádios e gravações em disco. 1.4 Frevo-de-Rua Primeiro tipo de frevo surgido, estritamente instrumental e acelerado que se mistura à evolução dos passistas (dançarinos) numa espécie de coreografia improvisada. Admite somente instrumentos de sopro e percussões. A disposição dos instrumentos lembra uma big band americana, divididos em náipes de trompetes, trombones, saxofones e tubas 12. Somam-se a isso as percussões que são comuns em todo o tipo de frevo, sendo as principais: tarol, surdo e pandeiro. Vale chamar a atenção para o pandeiro que possui a pele de náilon com uma sonoridade mais estridente, diferente do pandeiro de pele de couro usado no choro. Algumas orquestras acrescentam a requinta, tipo de clarineta com tamanho menor e extensão maior na região aguda. Segundo CASSOLI et al (2007), o número de integrantes dos conjuntos varia em torno de 36 músicos. Sua forma tradicional "desdobra-se em duas partes, cada uma com 16 compassos, raramente chegando a 24" (OLIVEIRA,1946:49). Originalmente, não possui letras que possam ser cantadas, o que sugere dança e movimentos apenas com suas melodias e ritmos sincopados. As composições acabam num acorde longo perfeito e os instrumentos de percussão continuam tocando sem interrromper o cortejo. Com isso, dão um tempo de descanso para os instrumentistas de sopro começarem um outro frevo13. Assim acontece nos desfiles no meio da rua, que pode ser chamada de “habitat natural” do gênero. 12 13 Conforme observado em mais de 30 orquestras em Recife e Olinda: Spock Frevo, Orquestra Popular do Recife, Orquestra da Pitombeira, entre outras. Observado em Recife e Olinda 22 Nas gravações, entretanto, os frevos simplesmente terminam após o acorde final, seguido de silêncio total14. Os frevos-de-rua possuem suas subdivisões de acordo com a intenção e a maneira de sua escrita15: Frevo-abafo: É chamado também de frevo-de-encontro. Tipo de frevo que dá ênfase aos metais ou que requisite timbres estridentes: trombones, pistons, clarinetas etc.. É tocado com o intuito de abafar o som da orquestra rival, com muitas notas longas, quando coincidentemente se encontram no meio de um desfile, “deixando de lado o esmero com a afinação” (IPHAN, 2007). Segundo Rodrigues “o frevo de abafo é muito alto para os trombones e pistons, porém sua execução é relativamente fácil, somente dependendo da força dos músicos” (1991:71, apud VILA NOVA, 2007:43). Frevo-coqueiro: marcado especialmente pelos tons agudos, exaltado pelos trompetes. É chamado assim porque as notas agudas são escritas com linhas suplementares no pentagrama, lembrando o desenho de um coqueiro. Andamento acelerado com notas curtas. Frevo-ventania: se caracteriza pela presença de um andamento bastante rápido, exaltado pelos saxofones. Muitas notas em semi-colcheias seguidas. Exige muita habilidade técnica dos instrumentistas. Exemplo: Mexe Com Tudo, de Levino Ferreira. Frevo-de-salão: são frevos destinados aos bailes, com a sonoridade menos agressiva, com predominância dos instrumentos de palheta em vez dos metais. São exemplos famosos de frevo-de-rua: Vassourinhas (Matias da Rocha/ Joana Baptista), Último Dia (Levino Ferreira), Come e Dorme e Gostosão (Nelson Ferreira), Corisco (Lourival Oliveira) e Duda no Frevo (Senô). 14 Vide lista de CDs consultados. 15 Dicionários Houaiss (2002:65) e Cravo Albin (2007:41). 23 É importante ressaltar que o frevo se desenvolveu como música instrumental no que diz respeito a sua melodia (IPHAN, 2007). É notável como as subdivisões do frevo-de-rua são definidas com base nas peculiaridades dos instrumentos de sopro. Além disso, a identidade de cada tipo de frevo foi gestada no contexto dos encontros das orquestras nas ruas e suas rivalidades. Assim, os estilos de frevo se tornam definições artísticas a partir da objetividade prática inscrita no evento e seus acasos, encontros, acontecimentos, dinâmicas etc. Sua melodia “essencialmente instrumental” revela uma complexidade técnica que a diferencia da melodia vocal, podendo ser traduzida para outros instrumentos que não fazem parte de sua tradição diretamente. O frevo-de-rua não foi concebido para ser apresentado em uma sala de concerto, e sim onde o próprio nome indica. Por isso mesmo apresenta-se o desafio de transformar essa linguagem, originalmente estranha à sala de concerto, em outra mais intimista e contemplativa traduzida pelo violão, mas sem perder seu calor e agressividade essencial. A diferença melódica entre o frevo instrumental e o cantado é esclarecida no próximo tópico, onde se conceitua um tipo de frevo que pode ser considerado derivado do frevo-de-rua. 1.5 Frevo-Canção Geralmente com a mesma orquestração do frevo-de-rua, o frevo-canção acrescenta um cantor para a melodia principal. Assemelha-se à marchinha carioca, com introdução da orquestra antecedendo uma parte cantada derivada da ária (SILVA apud NOVA, 2006:75), com estribilho no início ou no fim. Um dos frevos-canção mais populares é O Teu Cabelo Não Nega Mulata dos Irmãos Valença (SOUZA, 2004). Esse frevo foi gravado na RCA no Rio de Janeiro e na época acabou sendo registrado como de autoria de Lamartine Babo. Ficou famoso com arranjo de marchinha. Foi adaptada talvez tanto por falta de conhecimento dos maestros do Rio de janeiro para fazer um arranjo com a linguagem do frevo, como observou Guerra-Peixe (1978), quanto pela soberania 24 da marcha no carnaval carioca em relação ao frevo-canção. Esse episódio histórico evidencia o conflito regional representado pela diferença na linguagem musical de cada estado. A composição pernambucana foi aproveitada mas seu arranjo foi reinventado para se adequar ao gosto da época, mais especificamente do carioca. Vale lembrar que o Rio era capital do Brasil e tinha maior representatividade cultural em relação a Pernambuco. Alguns músicos pernambucanos entrevistados16 afirmaram que na rádio o que se ouvia era praticamente a música carioca: o samba, o choro e a bossa-nova. A própria música de seu Estado não era comumente tocada na rádio tanto quanto a da capital, na década de 1950 e 1960. Analisaremos melhor essa questão no tópico sobre a gravadora especializada Rozenblit, que trabalhou com a música nordestina em geral, dando maior destaque ao frevo. Percebe-se que nesse episódio foi fechada uma porta de divulgação para o frevo, evidenciando a falta de conhecimento do grande público em relação às especificidades do gênero. Poucos conhecem a verdadeira origem de Seu Cabelo Não Nega. O violão também perdeu muito com isso, porque ao passo que os violonistas pernambucanos conheceram o gênero choro e desenvolveram sua linguagem ao ponto de terem seus próprios compositores e intérpretes, o mesmo não aconteceu com o frevo. O violonista pernambucano que teve estudo formal em geral domina e sola choros, mas raramente frevos. Atualmente, podem-se encontrar muitas partituras bem editadas de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e tantos outros, sem falar na bossa-nova e nos compositores cariocas como Chico Buarque e Tom Jobim, porém, quase nenhuma de frevo. Para o violonista pernambucano o acesso à música carioca editada para violão esteve e ainda está mais acessível. São exemplos de frevo-canção: É de amargar, Chapéu de Sol Aberto e Oh Bela (Capiba); Hino de Elefante (Clídio Nigro); e Hino de Pitombeira (Alex Caldas). 16 O bandolinista Marco Cesar e os violonistas Henrique Annes e Bozó. 25 1.6 Frevo-de-Bloco “Escuta Apolônio o que eu vou relembrar: os Camponeses, Camelo e Pavão, Bobos em Folia do Sebastião, também Flor da Lira com seus violões...” (João Santiago, Relembrando o passado)17 Aqui se encontra o que pode ser considerada a tradição do violão no frevo de Pernambuco. Ainda chamado de marcha-de-bloco por alguns, possui como características o andamento lento, por volta de 110bpm e 120bpm, e instrumentação de madeiras e cordas (violões de sete e seis cordas, banjos, cavaquinhos, bandolins, violinos, flautas, clarinetes, bombardinos e, em alguns casos, até contrabaixo). Suas assim chamadas “orquestras de pau e corda” (OLIVEIRA, 1946:19) acompanham um coro feminino de pastoras, geralmente cantando em uníssono, que interpretam canções líricas repletas de nostalgia carnavalesca, falando de amor e saudade, ou que exaltam seus clubes e agremiações. Esse foi “o início da efetiva participação feminina no carnaval de rua do Recife” (VILA NOVA, 2007:76). “Recebeu influência musical dos saraus e serenatas e obedece a uma forma igual a do frevo-canção: uma introdução, parte A e B, tocado duas vezes no total. Por vezes são chamadas também de marcha-regresso, termo usado para designar as músicas cantadas no final do cortejo, de volta à sede” (IPHAN, 2007). Tradicionalmente, era tocado nos clubes em festas fechadas, em que as famílias de classe média preferiam pagar para se divertir, em vez de sair à rua e participar do carnaval dos clubes pedestres e maracatus, que com suas raízes no entrudo18, era considerado perigoso e de “pouco respeito” (VILA NOVA, 2006:76). “Nesta brincadeira (...), a distinção entre os espaços privados – o lugar das classes mais abastadas – e os públicos – o lugar do povo – era nítida.” (IPHAN, 2007) 17 João Santiago dos Reis: compositor do Bloco Batutas de São José, instrumentista e folclorista, nascido no Recife, em 1928. Em 1982, a Fábrica Rozenblit produziu um disco em sua homenagem e os 50 anos do Bloco Batutas de São José (LP 90021), reunindo diversos frevos-de-bloco. 18 Folguedo carnavalesco violento, aconteceu desde meados do século XVI, persistindo, com esse nome, até as primeiras décadas do século XX. 26 Aparentemente, os resquícios dessa distinção de classes sociais ainda estão vinculados aos diferentes tipos de frevo no dias de hoje. De acordo com Vila Nova (2007:35), as origens sociais do frevo-de-bloco e do frevo-de-rua foram diferentes. O frevo-de-rua está “(...) de modo geral vinculado às camadas mais baixas da sociedade e às categorias profissionais ligadas ao trabalho proletário, a partir dos clubes pedestres; enquanto o frevo-debloco tem sua origem relacionada à classe média residente nos bairros centrais do Recife, como São José, Santo Antônio e Boa Vista.” Hoje em dia, as troças que executam frevo-de-bloco saem às ruas com freqüência, mas seu público continua sendo, predominantemente, famílias que evitam as confusões das grandes orquestras. Essa aura familiar, de bons costumes, se reflete diretamente na linguagem de acompanhamento desenvolvida no violão. O frevo-de-bloco não é necessariamente uma música cheia de conflitos como o frevo-de-rua. O violão tem sua função bem delimitada nos blocos, que é a de executar a parte rítmica dobrando algumas linhas de baixo com as tubas ou os trombones. O instrumento aqui não trabalha os contrapontos nele mesmo: toca-se as harmonias ou os fraseados graves em diferentes momentos. Valdemar de Oliveira descreve algumas características típicas do frevo-debloco, incluindo o violão em seu universo: “invenção de violonista, brincadeira para as jovens que não agüentam rojão do frevo, grêmios familiares para moças, braço com braço, o pai por perto pegado num violino ou um violão.” (apud VILA NOVA, 2007:51). Nota-se que o violino e o violão são instrumentos usados nas serenatas pernambucanas até os dias de hoje. Uma característica exclusiva do frevo-de-bloco é começar tradicionalmente com um apito do maestro, ao que a orquestra responde com o acorde do tom da música. Logo após o término do acorde, o surdo toca uma nota que sugere o andamento da música e começa a introdução. São exemplos de frevo-de-bloco: “Madeira que Cupim Não Rói” (Capiba); “Evocação No. 1” e “Frevo de Saudade” (Nelson Ferreira). 27 Segundo o IPHAN (2007): “As diferenças melódicas entre estes tipos de frevo podem ser vistas como relacionadas com o ethos viril do frevo-de-rua (associado ao masculino), em contraste com o ethos lírico do frevo-de-bloco (associado ao feminino). O frevo-canção seria um intermediário entre os dois modelos, embora mais próximo do frevo-de-rua. Assim, é no frevo-de-rua que encontramos o caráter melódico mais típico do frevo. As melodias dos outros tipos de frevo são de fato vocais.” Essa colocação é a que melhor esclarece as diferentes naturezas do frevo, que devem ser observadas ao serem transferidas para o violão. O instrumento não trabalha como os sopros ou a voz, cujas notas, emitidas pelo ar, podem ser controladas em sua dinâmica e duração. O violão não pode interpretar uma melodia cantabile com a mesma eficiência. Porém, sua técnica de ataque das notas não depende do fôlego do intérprete, que pode tocar notas sem interrupção, quase ilimitadamente. “O violão é um instrumento macho” (ALAN, 2002) 19 . Pode- se concluir que o frevo-de-rua, que não criou uma tradição ao violão, mesmo assim é compatível com o mesmo, devido, por exemplo, às suas melodias ligeiras. Por não ter a mesma preocupação com o andamento, o violão, assim como outros instrumentos de corda, pode executar suas melodias com maior precisão. Assim, o “caráter melódico mais típico do frevo” pode ser totalmente adaptado ao violão. Muito de sua linguagem ainda não foi traduzida para esse instrumento. Isso resultaria naturalmente em uma modernização do gênero, porque seria criada uma nova maneira de interpretá-lo. Alguns aspectos técnicos e sonoros mudam, mas sua essência permanece. A resistência de alguns em relação à possibilidade de renovação do frevo talvez também contribua para que esse não fosse mais experimentado no violão. A seguir discutiremos o caráter conservador que sempre esteve presente no frevo. 19 Graça Alan é violonista, professora do Bacharelado em Violão da UFRJ. Depoimento em sala de aula. 28 1.7 Modernização versus Tradição “... os conflitos e tensões que também constituem o frevo, e/ou são constituídos por ele...” (IPHAN, 2007) Mário de Andrade (1944:31) afirmou que o frevo “É um verdadeiro título de glória, que o país ignora”. Essa afirmação parece ser atual quando lembramos que não foi encontrada nenhuma orquestra de frevo fora de Pernambuco além da Frevo Diabo. O interesse dentro da academia pelo frevo ainda é pequeno nos dias de hoje. São quase inexistentes as dissertações e teses encontradas fora de Pernambuco e mais ainda fora do Nordeste. Isso se reflete também na edição de partituras. Poucos compositores tiveram a iniciativa de editar suas próprias músicas, o que torna o acesso restrito a esse material. São poucos os arranjos de orquestra disponíveis na internet. É necessário ir até Recife ou Olinda para se aventurar a descobrir algumas partituras, não acessíveis em livrarias e raramente em bibliotecas, que estejam, eventualmente, na posse de alguns poucos músicos que trabalham com o frevo. Para divulgá-lo seria preciso que alguma editora, com distribuição nacional, se interessasse por esse trabalho. Partituras de violão são ainda mais raras e boa parte de seus arranjos estão conservados apenas na memória de quem os elaborou. Em Pernambuco, também o maracatu rural, o caboclinho e vários outros gêneros musicais ainda se encontram isolados no local de nascimento, com raríssimas gravações e partituras editadas. A inconteste falta de divulgação de alguns gêneros regionais está ligada à questão do perigo de seu desaparecimento e de como evitá-lo, o que suscita muitos debates e disputas. Com relação ao frevo, apresentam-se três opiniões de importantes músicos sobre essa questão: Guerra- Peixe, Antônio Maria20 e Ulisses de Aquino21. Segundo Guerra-Peixe: “Infelizmente a notável tradição do frevo está condenada a desaparecer, quando o carioca começar a produzi-lo e quando os recifenses começarem a dar ouvido a essas banalidades – como 20 21 Compositor de frevos-canção, autor de “Frevo No. 1 do Recife”. Compositor de frevos-de-rua. 29 aconteceu no ano passado (...) com o frevo que nos veio de... São Paulo” (apud CASSOLI et al., 2007:68) Antônio Maria pensava o oposto: “(...) é preciso encontrar uma maneira de levá-lo ao mundo. Isto é, descobrir um modo de simplificá-lo (mesmo adulterando-o), até torná-lo possível ao gosto e aos nervos do mundo.” (apud CASSOLI et al., 2007:67) E para Ulisses de Aquino: “O nosso frevo precisa sair de onde está e apresentar-se ousado e inédito. Anos a fio, o frevo ostenta uma uniformidade alarmante.” (in CASSOLI et al., 2007:67) O próprio jornalista José Teles, recentemente, afirmou: “Embora no carnaval de Recife e Olinda, com um número de foliões que aumenta a cada ano, o frevo seja a música predominante (apesar de dividir espaço com outros ritmos pernambucanos, inclusive com o manguebeat), a verdade é que o frevo não se renovou em três décadas. (...) E o frevo, além de não se modernizar _ ou por isso mesmo _, distanciou-se das novas gerações de músicos.” (TELES, 2000:38) Ao que tudo indica, essa questão sempre foi polêmica e aponta um tabu em relação ao frevo que pode ter ajudado a deixar uma lacuna na história de sua divulgação no país. Acredito ser essa questão um dos motivos mais importantes para a falta de registro e debate em relação ao gênero que tem por sua vez consequências no repertório violonístico. Alguns músicos pernambucanos chamam a atenção para o fato de que os tradicionalistas ainda não consideram como frevo aquele que não satisfaz ao gosto “popular”, classificando os frevos de concerto como música “erudita” 22 . Segundo o mesmo raciocínio, talvez os “Choros” de Villa-Lobos não seriam choro. Alguns festivais de frevo já desclassificaram ou deram notas baixas a composições de alto nível, que segundo o júri eram sofisticadas demais para ser “frevo”. Isto aconteceu uma vez ao compositor pernambucano Armando Lobo23, que teve um frevo de sua autoria não classificado para o festival Recifrevo, mas, no entanto, foi convidado a fazer parte do júri. Também Ademir Araújo sofreu com esse tradicionalismo no 22 23 Marco César (2007) em depoimento pessoal. Armando Lôbo (2005) em depoimento pessoal. 30 Concurso da Prefeitura, em 1965, com o frevo “No Ano 2000”, obtendo nota baixa do júri, de que fazia parte o pesquisador Valdemar de Oliveira. Oliveira explica esse episódio: “Chamou-me particularmente a atenção o frevo ‘No Ano 2000’, de Ademir Araújo. Dei-lhe, como a maioria dos juízes, nota baixa. E isso simplesmente porque não é um frevo de rua típico, o capaz de arrastar multidões, o que atiça o passista. Transcende do popularesco para chegar ao semi-erudito, por força dos seus caprichos de composição, seus ousados acordes, sua fatura de qualidade superior.” (OLIVEIRA apud ARAÚJO24, 2007) Há uma clara separação entre “erudito” e “popular”. Nestes exemplos, ao contrário do que era comum no século XIX, o aparente preconceito é do músico “popular”, que exclui e não agrega o “erudito”. O conservadorismo também existe na música popular, impedindo-a de se desenvolver na própria linguagem, fechando portas para iniciativas de pessoas talentosas. Consta que “a separação entre a música erudita e a música popular” também chamou a atenção do compositor pernambucano Marlos Nobre, “... que ele não entendia, mas que, posteriormente, seria objeto de profunda reflexão e teria um papel central em sua estética” (SILVA, 2007:10). Nobre, que compôs frevos inclusive para sinfônica, ao ingressar no Conservatório Pernambucano de Música foi advertido pelo diretor: “aqui é lugar de música séria, você não pode tocar essa música de rua” (SILVA, 2007:10). Nesse caso o preconceito é do “erudito” que exclui o “popular”. As idéias de Mário de Andrade despertaram o interesse de Marlos Nobre e o fizeram concluir que, para o melhor da música no Brasil, “a separação da música popular e da clássica ou tradicional (...) cabia aos compositores amalgamá-las em um todo resultante. Quer dizer, pra mim era a solução de um problema que me angustiava.” (Marlos Nobre apud SILVA, 2007:11). Essa idéia parece ser a mais interessante do ponto de vista da presente pesquisa, pois acreditamos ser a mais construtiva para o aprofundamento e compreensão da música brasileira. A fundição dos estereótipos “popular” e “erudito” 24 e, conseqüentemente, o desaparecimento desses termos Fonte: encarte do CD “E o Frevo Continua ...”, gravado em 2007 pela Orquestra Popular de Recife, sob a batuta do Maestro Ademir Araújo. 31 definitivamente, parecem ser o caminho mais coerente com a essência da música nascida no Brasil: a junção de tantas outras. Acreditamos que o violão, pelo histórico de tantos violonistas bem sucedidos em integrar o instrumento em diversas situações musicais, pode se adequar a qualquer gênero nesse país. Se Armando foi convidado a fazer parte do júri e Ademir teve um frevo chamado de “qualidade superior”, é porque são considerados músicos de gabarito no que diz respeito ao frevo. Mas parecem transbordar as delimitações para o gênero criadas por alguns em função de uma suposta qualidade “popular”. Onde está a democracia, alma do frevo, como definem estudiosos, nesse raciocínio? Por que existe o interesse de alguns em que o frevo se mantenha “popular”? É notável a maneira como os universos “erudito” e o “popular” buscam sempre delinear seus espaços muitas vezes um querendo excluir o outro. Em 2001, o musicólogo dos Estados Unidos, Larry Crook, durante a temporada de oito meses que passou no Recife pesquisando ritmos nordestinos para a Universidade da Flórida, notou o quanto a questão tradição versus modernização ainda existe. À época, O Caderno C do Jornal do Commércio relatou: “... Crook agora focaliza sua pesquisa no frevo. No Recife, entrevista vários arranjadores. ‘Quero saber como funciona o frevo hoje’, diz. Numa primeira análise, pareceu surpreso com a tensão que há entre tradição e modernidade. Crook acredita que o frevo deva ser conservado como algo tradicional, mas abrindo espaço para músicos criativos. ‘Daqui a uns cinco anos, uma pessoa vai fazer algo muito interessante com o frevo.’ “(TOLEDO, 2001:19) A visão do estrangeiro pode ser interessante porque expõe a análise distanciada de alguém que não tem o frevo como parte de sua cultura. Sua surpresa com a “tensão que há entre tradição e modernidade” confirma a impressão obtida através de nossas entrevistas. Se em torno do frevo existe resistência por conta dos músicos tradicionalistas, então começa a ficar clara uma das hipóteses para o fato de o mesmo não ter se desenvolvido profundamente ao violão. Sua tradição é de instrumentos de sopro solistas, logo, por que transformá-la ao violão? Inevitavelmente, quanto mais se desenvolver o frevo no instrumento, mais se 32 criarão elementos novos da própria linguagem violonística no gênero e, claro, vice-versa. Assim como a guitarra elétrica propôs uma nova linguagem em tantos gêneros musicais no mundo todo, inclusive no frevo, o violão pode propor novos caminhos. Basta imaginarmos se um violonista de importância revolucionária, como incontestavelmente foi Baden Powell, tivesse se dedicado ao frevo. Certamente haveria uma nova maneira de fazer frevo, como Baden criou uma nova maneira de tocar o samba. É importante notarmos que o frevo ainda se encontra reservado a Pernambuco. A ampliação de suas fronteiras geográficas implica na divulgação e inevitável transformação do gênero, compreendidas aqui como um desenvolvimento positivo da sua linguagem. Tal desenvolvimento pode não significar descaracterização do frevo, mas recriação da maneira de fazê-lo, para que sobreviva. Alguns músicos25 expressaram em entrevista suas insatisfações quanto à falta de divulgação e interesse de renovação do gênero. Ademir Araújo, por exemplo, declarou não ter ouvido até hoje alguém fazer o frevo que ele gostaria de ouvir: mais ousado e transcendendo as barreiras entre a rua e as salas de concerto. Armando Lôbo chamou a atenção para o fato de as formas frevísticas serem ainda as mesmas, e as harmonias idem. Segundo ele falta explorar mais os contrapontos que a linguagem do frevo oferece. Marco César explicou que faltou aos maestros darem mais atenção aos instrumentos de corda, principalmente o violão. Bozó acha que a música tradicional pernambucana de forma geral merece mais cuidado, assim como seus músicos. Alguns observaram que a tendência das novas bandas de rock ao misturarem elementos eletrônicos e instrumentos elétricos, apesar de agradar a nova geração, não necessariamente representa uma renovação da linguagem como um todo. Essa renovação foi feita de maneira parcial e ainda estão em aberto muitas possibilidades de criação e ousadia que possa apontar outros caminhos. Isso não diz respeito à instrumentação de tais bandas, tendo em vista que guitarras elétricas deixaram de ser novidade há cinquenta anos atrás. Falta um comprometimento maior com o aprofundamento estético-musical que não aponte somente os caminhos da música “pop”. Talvez compositores como Marlos Nobre e outros que tenham 25 Em depoimento pessoal. 33 como objetivo em geral a sala de concerto, tenham feito um trabalho diferenciado. Mas mesmo assim ainda há caminhos que não foram tentados. Essa instigação de criação encontrada nesses músicos citados acima é bem retratada por Pablo Picasso quando diz que: "Só um sentido de invenção e uma necessidade intensa de criar levam o homem a revoltar-se, a descobrir e a descobrir-se com lucidez” 26 . Chamamos a atenção para o conceito de inovação de Jacob do Bandolim para esclarecer esse raciocínio: “... o que Jacob sempre repudiou não foi a inovação em música, visto que ele era um inovador, mas a deturpação do gênero em função de influências externas impostas muitas vezes pela massificação cultural.” (CARRILHO apud BECKER, 1996:82) Essa questão é interessante porque independentemente de qual seja a opinião de cada um, às vezes os limites entre inovação e deturpação são controversos e é importante termos em mente que essa discussão não acabe paralisando a criatividade artística. Um ideal de inovação muito radical pode ser limitador. O que pode ser considerado inovação ou deturpação? Depende se o resultado da criação tem valor artístico. Essa discussão corre o risco de parecer muito subjetiva e acabar sendo como as críticas do filósofo Nietzsche ao compositor de óperas Wagner: por mais que Nietzsche tivesse bons argumentos filosóficos contra Wagner, sua música é reconhecidamente inovadora e genial27. Dessa forma o violão pode fazer sentido em qualquer gênero musical, dependendo do talento e da sensibilidade de quem o traduz e o transforma no instrumento. Poeticamente falando é simples: um poema pode ser apenas simples palavras ou poesia profunda, dependendo da qualidade do poeta. Por fim, o dossiê apresentado ao IPHAN como proposta para inclusão do frevo como registro de bem imaterial conclui nossa discussão: “Se em sua origem o frevo representava, ou condensava as resistências de classe e de raça, a análise do frevo de hoje não deixa de apontar para uma outra forma de resistência: a de formas de expressão tradicionais num contexto de culturas de massas e de globalização de produtos culturais.” (IPHAN, 2007) 26 Frase encontrada no site português “CITADOR” (http://www.citador.pt/citacoes.php?Pablo_Picasso=Pablo_Picasso&cit=1&op=7&author=95&firstrec=20) 27 “Nietzsche contra Wagner” (Nietzsche,1889). 34 Essa declaração mostra que as tensões relativas ao frevo mudaram de plano. Se antes era no plano da classe e da raça, agora é no plano da cultura: tradição versus globalização. Várias manifestações culturais, que antes tinham outros significados, recentemente ganharam esse significado de “tradição” por causa da globalização. Não é só com o frevo, é no mundo todo. Manifestações artísticas de um povo vão ganhando significados político-identitários, o que, se por um lado lhes dá visibilidade pública (“Cem anos de Frevo”, festividades, registro de bem imaterial, “expressão cultural autêntica do Brasil”, e vários outros acontecimentos e discursos que dão visibilidade ao frevo), por outro podem funcionar um pouco como uma camisa de força, restringindo a criatividade e inovação. Atender aos princípios tradicionais do frevo eternamente ou modernizálo de acordo com referências massificadoras não dão a dinâmica que um gênero precisa para se perpetuar. 1.8 Cem Anos de Frevo: Patrimônio do Brasil “Estamos difundindo o frevo como uma importante expressão cultural do Brasil, fruto da criatividade nordestina e vocacionado para ultrapassar limites, divisas, fronteiras, irradiando a sua força e o seu encanto dentro e fora do país - antes, durante e depois do ciclo carnavalesco.” (FALCÃO, 2008:4) Como foi citado no subtítulo “Etimologia” (seção 1.1), a partir do reconhecimento da data 9 de fevereiro de 1908 como sendo o primeiro registro da palavra “frevo”, a data passou a ser simbolicamente a refêrencia para o nascimento do gênero. A partir disso deu-se, esse ano, o seu centenário com investimentos oficiais do governo para que o mesmo fosse divulgado e comemorado. A declaração acima deixa clara a intenção de levar o frevo para além de Pernambuco e da época carnavalesca, inclusive divulgando-o internacionalmente. Foram gravados e remasterizados CD´s de frevo, lançados livros como "Frevo: 100 Anos de Folia" (CASSOLI et al., 2007) promovidas festas e sobretudo concertos com muitas orquestas no dia 9/02/2008. Segue a agenda elaborada para o dia de seu aniversário publicada no Boletim Diário da Prefeitura do Recife, coordenadoria de comunicação social: 35 Agenda do Centenário 6h - Acorda Povo com orquestras de frevo nas seis RPAs e queima de fogos; 6h30 - Clarinada com 12 clarins no Marco Zero; 8h – Atrás da Orquestra: diversas orquestras itinerantes e de tradicionais blocos líricos do carnaval do Recife percorrerão 19 pontos do Recife (Conde da Boa Vista, Praça da Independência, Praça do Carmo, Pátio de São Pedro, Guararapes, Sete de Setembro, Rua Nova, Duque de Caxias, Rua Direita, Rua do Sol, Mercado de São José, Rua do Hospício, Rua da Imperatriz, Parque da Jaqueira, Aeroporto, Parque 13 de maio, Av. Brasília Formosa e no bairro de Boa Viagem, estará entre o 1º e o 3º jardim, além da Praça de Boa Viagem); 9h - Lançamento do Paço do Frevo, uma parceria entre a Prefeitura do Recife e a Fundação Roberto Marinho, no prédio da Western, nº 91, Praça do Arsenal da Marinha; 10h – Homenagem a 100 personalidades ligadas ao frevo no Teatro do Parque; 14h – Reunião fechada do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), na Sacristia da Igreja São Pedro dos Clérigos, no Pátio de São Pedro, bairro de São José, para análise do pedido da Prefeitura do Recife para que o Frevo obtenha o Registro de Patrimônio Imaterial do Brasil; 16h30 – Concentração para o Arrastão do Frevo sob o comando de Antônio Nóbrega; 17h – O Ministro Gilberto Gil anuncia o resultado do Registro do Frevo como Patrimônio Imaterial do Brasil; 17h30 – Saída do Arrastão do Frevo; 19h30 – Chegada do Arrastão do Frevo no Marco Zero com Queima de Fogos; 20h – Show de lançamento do CD duplo 100 Anos do Frevo – É de perder o sapato, produzido pela Prefeitura do Recife em parceria com a Biscoito Fino; 22h – Show com a banda A Troça, resultado do projeto O Frevo, com participação de 22 músicos da nova cena pernambucana tocando frevo Fonte: Boletim Diário - Prefeitura do Recife, Coordenadoria de Comunicação Social, 9 de fevereiro de 2007 Figura 1: Agenda do Centenário do Frevo 36 Segundo Lygia Falcão28, a Prefeitura “... vem desenvolvendo, desde 2006, um projeto que não se limita às comemorações festivas e ao período do Carnaval, mas se desdobra em programas e ações voltados para a preservação, a difusão, o estudo, o apoio aos compositores e intérpretes e às agremiações carnavalescas.” (FALCÃO, 2007:6) O principal CD gravado nesse projeto chama-se “100 Anos do Frevo. É de perder o Sapato". Um CD duplo que se divide em instrumental (CD 1) e cantado (CD 2) e conta com a participação de vários artistas populares brasileiros interpretando frevos-canção e frevos-de-bloco. São eles Gilberto Gil, Lenine, Maria Rita, Alceu Valença, Maria Betânia, Vanessa da Mata, Elba Ramalho, Claudionor Germano, Ney Matogrosso entre outros. O CD instrumental contém frevos-de-rua tradicionais interpretados pela orquestra Spok Frevo e, inclusive, uma faixa sinfônica intitulada “Fantasia de Carnaval”. Nota-se que ao dividir esse projeto em dois CDs, divide-se o frevo em suas duas vertentes discutidas nessa pesquisa que refletem no violão: solo (instrumental) e acompanhamento (cantado). No caso foi utilizada mais a guitarra do que o violão nas gravações em função da identidade jazzística da “Spok Frevo”. A divisão entre os frevo-de-bloco e frevo-de-rua ainda se faz presente nos dias de hoje. Foi feito um convênio junto a Fundação Roberto Marinho para fundar o “Passo do Frevo”, espaço que contará com “... um centro de pesquisa, auditório, estúdio de gravação, salas de aula para a música e o passo, além de manter uma exposição permanente sobre a história do frevo.” (FALCÃO, 2008:6) A iniciativa mais ousada foi a parceria com a Estação Primeira de Mangueira, que no ano do centenário promoveu um concurso de sambas-enredo com o tema “100 Anos do Frevo, é de Perder o Sapato. Recife Mandou me Chamar.” O samba vencedor foi cantado durante o desfile da Mangueira no Sambódromo do Rio de Janeiro no dia 04/02/2008 durante o carnaval. Durante as festas prévias que anteciparam essa semana foram promovidos eventos na quadra da Escola que chegou a receber a Orquestra Popular do Recife sob a batuta do maestro Ademir Araújo, o “Formiga”. Cantores como 28 Secretária de Gestão Estratégica e Comunicação Social da Prefeitura do Recife (2007) 37 Claudionor Germano e o Coral Edgar Moraes também participaram cantando frevos clássicos do carnaval pernambucano para uma platéia que pouco conhecia tal repertório. Para dirigir o Coral, principalmente, nos frevos-de-bloco, o bandolinista e maestro Marco César esteve presente. Os personagens carnavalescos Pernambucanos, assim como a referência a blocos tradicionais e às orquestras de frevo na Avenida, foram destacados nos carros alegóricos e fantasias da Estação Primeira de Mangueira. Observa-se assim o processo oficial de valorização e resgate do frevo, que pela primeira vez teve sua cultura elevada a esse nível de exposição na mídia: em seu centenário. A idéia de lançá-lo ao Sambódromo carioca reafirma sua essência carnavalesca, cheia de tradições, personagens e costumes que caracterizam seus rituais festivos, fundindo assim dois dos maiores caranavais do Brasil. A Apoteose, que chega a ser o maior símbolo do carnaval brasileiro no exterior, é um palco de celebração do samba de carnaval que também tem suas raízes na marcha. Logo, o frevo ocupa seu espaço dentro dessa festa, reclamando pra si, também o posto de uma cultura símbolo do carnaval brasileiro, e que reafirma sua tradição centenária. Pode-se dizer que é uma contribuição didática do que ele representa porque se traduziram alegoricamente os detalhes sociológicos e simbólicos que estão agregados em sua música. Falar de frevo dificilmente é falar somente de música. O processo que se iniciou nos cem anos do frevo pretende criar uma espécie de renascimento do gênero a nível nacional. A assimilação é lenta, mas se aposta que sua música seja praticada e desenvolvida cada vez mais para que se possa chegar ao nível de ser legitimada na alma do músico brasileiro de maneira profunda, e não seja utilizada somente como um maneirismo, como se observa na prática musical de muitos. O violão pode ganhar muito em linguagem com isso. Em 2007 ocorreu o pedido formal de inclusão do frevo no Livro das Formas de Expressão como Patrimônio Cultural Brasileiro, que foi aprovado no ano seguinte, na data de seu centenário, registrando um capítulo histórico em sua trajetória. Pertence agora a uma lista de quatorze Patrimônios Imateriais, que 38 inclui o Jongo e a Roda de Capoeira, por exemplo. O dossiê com 270 páginas que foi entregue ao IPHAN (2007) junto a um vídeo-documentário, dentre tantas qualidades do frevo discutidas nessa pesquisa, exaltou algumas dimensões sócioculturais como justificativa para a aprovação: “O parecer da Superintendência Regional afirma suas razões favoráveis ao registro: a riqueza de uma expressão artística ao mesmo tempo popular e erudita diversidade cultural condensada no frevo, num processo dinâmico de diálogo entre várias tradições, não de um grupo étnico específico, mas como símbolo de “pernambucanidade”, e, num sentido mais amplo, de “brasilidade”. (...) História que não é apenas recifense, mas do Brasil, embora tenha sido aqui que estes elementos tenham culminado nesta expressão artística tão rica como é o frevo. Conhecer o frevo é conhecer um pouco mais do Brasil. (...) Reconhecê-lo é corroborar para preservar e ampliar os canais de participação, expressão, necessidades e visões de mundo, profundamente internalizadas e traduzidas numa manifestação tão singular musical e coreograficamente.” É interessante observar que o dossiê o caracteriza como “popular” e “erudito” ao mesmo tempo. Apesar do emprego dos termos “popular” e “erudito” soarem ultrapassados para alguns, essas expressões ainda são utilizadas por muitos. Isso sugere que uma segregação musical ainda existe e se expressa através desses termos interpretados como opostos: erudito, a prática musical decorrente da formalidade; e popular, decorrente da informalidade. No Brasil, essa concepcão pode ser observada pelo fato de determinados instrumentos tocados por muitos músicos, ainda não fazerem parte dos cursos de graduação em música. Podemos citar a guitarra elétrica e o contrabaixo elétrico como exemplo. Quando o IPHAN utiliza “popular” e “erudito” como qualidades do frevo, isso reafirma nossa discussão a respeito de como o gênero abarca tantos universos num só, característica revelada ainda quando diz que o frevo vem de um diálogo de diversas tradições e não pertence a um grupo étnico específico. Sua identidade plural traduz uma característica essencialmente brasileira revelando que seria limitador supor que sua natureza não seja sofisticada, atribuindo essa qualidade a uma suposta elitização da música, o que pode ser um equívoco já que, tendo nascido no “povo” em meio a festividades, se conclui que o mesmo o sofisticou. Ou seja, o frevo já nasceu sofisticado e a idéia de recriar sua sofisticação não deveria ser encarada como uma forma de transformá-lo em 39 erudito e elitizado, e sim como seu caminho natural. A inserção do violão não deveria ser um problema e sim uma consequência: para o instrumento que é considerado o mais popular do país e para um gênero que reclama para si a democracia. Ao obter o aval do IPHAN, houve uma legitimação formal do frevo obtida com o intuito de preservá-lo para que se torne parte da memória das novas gerações. Vale ressaltar que nossa pesquisa se dá num momento de transição, onde a história do frevo dá um salto na tentativa de se transformar em história do brasileiro, para que o mesmo não seja lembrado somente pelos seus pais criadores. Pergunta-se: será que o registro no IPHAN pode ampliar o interesse, as gravações e o registro formal, resultando em uma produção violonística? Será que vai reforçar a linguagem tradicional, já que a preservação é um dos objetivos fundamentais do registro, ou vai abrir portas para novas linguagens e experimentações, já que a divulgação também é uma das motivações do registro? O resultado desses esforços de preservação e divulgação só serão observados com o passar do tempo. 1.9 Rozenblit É imprescindível discutir a importância da gravadora e fabricante de discos que tinha o sobrenome de seu fundador José Rozenblit, lojista da “Loja do Bom Gosto” na Rua da Aurora em Recife, para entendermos como o frevo teve um suporte formal e comercial para sua produção e desenvolvimento resultando em sua época áurea. Foi graças a essa gravadora que o frevo teve a oportunidade de ser registrado em suas diversas facetas e, posteriormente, deixado de lado quando a fábrica faliu na década de 1980. Considerada a “única grande gravadora brasileira fora do eixo Rio-São Paulo” (apud SOBRINHO, 1993:14) tinha sua matriz em Recife e filiais no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Obteve uma grande abrangência para uma gravadora que trabalhava com gêneros regionais de um pequeno estado que não pertencia à produção musical feita no Sudeste. A idéia de um regionalismo, idealizada inclusive pelo sociólogo Gilberto Freyre, ajudou a dar impulso a tal iniciativa. Se compararmos com o início 40 do século XXI, onde o ideal de globalização é romper barreiras regionais, podemos entender essa diferença. Anteriormente ainda havia a necessidade de construir e afirmar uma identidade regional para que possamos sugerir que, talvez hoje, tenha sido substituída pela necessidade de reafirmar essa identidade já construída: reafirmar-se brasileiro confirmando um regionalismo idealizado no passado, exaltando-o romanticamente. “... alguns empresários nordestinos acreditaram no discurso desenvolvimentista nacional e regional (..) e investiram em seus estados, criando obras importantes, mas que não puderam suportar a concorrência com os empreendimentos do centro-sul, notadamente após o golpe de 1º de abril de 1964. Como explicar esta loucura? Esta ‘loucura’ tem nome: regionalismo; e no caso de Rozenblit, sobrenome: pernambucanidade” (SOBRINHO, 1993:15) A iniciativa do empresário Rozenblit não deixa de ter sido um investimento ousado numa época em que o Nordeste estava economicamente em baixa após a Segunda Guerra e o samba já fazia sucesso. Segundo Antonio Sobrinho (1993), a gravadora teve importância fundamental na formação da memória fonográfica de artistas nordestinos que vieram depois como Elba Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, Carlos Fernando, Zé Ramalho, Amelinha, Fernando Filizola e tantos outros. Hoje ainda seu catálogo raro é a maior referência na discoteca dos interessados no gênero. Como quase nenhum LP foi relançado no formato de CD, é possível encontrar uma grande quantidade deles sendo vendida de forma clandestina nas ruas de Recife em camelôs, todos a preço bem abaixo do mercado, como pudemos observar no local. A Rozenblit “marcou toda uma geração de pernambucanos: maestros, arranjadores, músicos, compositores, autores, intérpretes e consumidores que dedicaram parte de suas vidas ao funcionamento deste projeto. O frevo se tornou conhecido nacionalmente graças a Rozenblit...” (SOBRINHO, 1993:15). Como os EUA tiveram a gravadora Blue Note, que foi fundamental na descoberta de novos artistas de jazz e registro de suas carreiras musicais, temos a Rozenblit que abarcou toda a produção frevística em Pernambuco durante sua 41 existência de 1953 a 1984 com seu selo “Mocambo”. Diz-se inclusive que “José Rozenblit, presidente da gravadora, monopolizou o mercado (exigia, inclusive, exclusividade, de cantores e compositores)...” (TELES, 2007:32). Segundo Teles a disputa entre a música pernambucana e carioca no carnaval era acirrada, exigindo da gravadora um investimento alto em divulgação. José Rozenblit distribuía os discos junto às emissoras de rádio e, fato importante, “(...) espalhava as partituras dos lançamentos para o carnaval com as centenas de orquestras que animavam a folia, na rua e clubes do Grande Recife.” (TELES, 2007:33) Onde estariam essas partituras agora? Talvez difundidas pelas bibliotecas, escolas de música ou guardadas por alguns músicos? Perguntas essas que não foram respondidas nessa pesquisa, pois as partituras (para sopros e para violão) encontradas não informavam nenhuma ligação com a gravadora. Com preocupação mercadológica parecida com a dos dias de hoje, os discos eram lançados em setembro para que tivessem um período de prédivulgação comercial e atingir seu auge no carnaval, quando um número significativo de pessoas já teriam memorizado as composições. E no caso das instrumentais? O povo também decorava as melodias dos sopros na época? Provavelmente, porque atualmente podemos encontrar desfiles de orquestras instrumentais onde o povo canta junto suas sofisticadas melodias. Segundo o maestro Oséias29 (2007) sempre foi assim, é surpreendentemente comum. Portanto, é possível que no auge de sua divulgação as pessoas cantassem muito mais qualquer tipo de frevo, resultando num grande processo de musicalização em massa, rompendo na prática com qualquer tipo de preconceito entre música instrumental e cantada. “Erudito” e “popular” muito menos cabiam nesse contexto. Mas os tempos mudaram: “Os discos de frevos continuam sendo lançados, sem divulgação, e sem execução no rádio e TV, portanto, não chegam ao povo. O frevo foi perdendo espaço para a música da moda, o sucesso pop de meio-de-ano acaba sendo o sucesso do carnaval. A culpa não é só dos meios de comunicação. Os músicos não têm acesso fácil 29 Em depoimento pessoal em sua casa em Olinda durante o carnaval de 2007. 42 ao frevo, música que exige conhecimentos formais, de orquestração, arranjo, e livros com partituras de frevo são praticamente inexistentes no mercado.” (TELES, 2007:33) Assim como o compositor Edu Lobo já foi um dos artistas brasileiros que mais tiveram discos vendidos em outras épocas, segundo Teles (2007), o frevo já foi uma das músicas campeãs de vendagem e de execução nas rádios. Isso não é uma mera coincidência, o nosso país já teve um período em que uma música considerada de boa qualidade era reconhecida e vendida pelas grandes gravadoras. Edu Lobo (apud ALBUQUERQUE, 2006:148) critica o momento atual para o mercado de música em geral: “ (...) Nenhuma música do "Cambaio" (disco da peça teatral homônima com canções de Edu Lobo e Chico Buarque) tocou no rádio, nenhuma. O disco do Chico, o último(...)não tocou no rádio, porque a gravadora não estava a fim de pagar sei lá o quê, hoje em dia tudo é pago. Não tava a fim de pagar porque a edição também não é dela e, enfim, é um jogo...(...) Quando eu falo isso, que essa época é muito pior do que foi a censura de 64, eu tenho certeza disso. Eu acho que a gente vive uma época quase que stalinista, quase ou exatamente, em que existe um master, um dono, que regula, e fala: "Isso aí não pode." Por diversas razões, ou porque ele não vai ter controle sobre esse trabalho, ou porque é um trabalho considerado sofisticado demais, ou por uma coisa mais vagabunda ainda, desculpe o termo, que é uma coisa assim: "Eu não vou participar disso aí." Por exemplo, chega um grupo novo de pagode, os compositores todos dão as edições para as editoras das gravadoras e essas músicas então são tocadas no rádio porque são compradas, quer dizer, os horários são comprados(...) Você paga, você compra aqueles três minutos para aquela música tocar, então você pode comprar 30 execuções daquela música por rádio por dia, ela vira um sucesso nacional, de tanto tocar, ela vira. Então eu acho que é isso. Quando eu comecei as pessoas eram contratadas pelas gravadoras(...)O cara cantava e era contratado no dia seguinte para fazer três discos. Aí o primeiro não vendia, vamos fazer o segundo, o terceiro, e vamos recontratar...(...) fazendo paralelo em arte, você vê muita gente que dá bico para trás e está supostamente em primeiro lugar, entre aspas.(...) o que eu acho mais grave ainda é que na própria indústria você vê, você sente a falta de pessoas do nível do Aluísio de Oliveira(...)pessoas que você pode falar de música... e você tá falando com um cara de gravadora de música, ele não sabe nem o que você está dizendo, porque ele entende de mercado. Como você não entende de mercado, o papo fica impossível, você fala uma coisa, ele ouve outra. Parece que os dois estão certos, mas é japonês com holandês, sei lá... é a chamada conversa impossível." 43 Se compararmos com a crítica do músico Ulysses de Aquino, já em 1941, as insatisfações em relação a excessiva preocupação comercial que existe no negócio da música, onde se chega muitas vezes a comprometer a essência artística de um trabalho musical em função de suas vendas, têm muito em comum com a época atual: “Os representantes das casas de música acostumaram-se a só procurar ou dar preferência aos valores consagrados pela certeza do êxito do negócio, esquecendo que vão surgindo novos compositores que estão precisando de divulgação, de propaganda” (apud TELES, 2007:40). Insatisfação essa que talvez tenha sido transformada com o surgimento da Rozenblit. Pode-se observar então que a música brasileira teve uma época áurea onde se somava, com mais equilíbrio, gravações de qualidade artístico-musicais aos interesses comerciais. Houve a partir da década de 1960 o surgimento de músicos como Edu Lobo e Tom Jobim, com reconhecimento internacional, e uma valorização da nossa música incluindo tantos outros artistas que foram registrados em LPs. Vários movimentos e iniciativas nesse sentido ajudaram a elaborar alguma identidade musical popular brasileira aqui e no exterior. A Rozenblit cumpriu essa tarefa com alguns gêneros de música nordestinos, mas essencialmente com o frevo, chegando a ter até o compositor Nelson Ferreira como diretor-artístico: “O auge do sucesso radiofônico do frevo coincide com o apogeu da Rozenblit – de 1956 a 1970. A gravadora, no entanto, foi vitimada pelas constantes inundações do Rio Capibaribe, pela modernização do mercado de disco e pela entrada de multinacionais no País. Acabou fechando as portas em 1984. O frevo continuou sendo gravado, mas perdeu espaço no rádio e na TV. Paradoxalmente, o advento do CD, inicialmente, não trouxe mais discos do gênero.” (TELES, 2007:40). Infelizmente a combinação de interesses entre ter qualidade artística e ser comercial acontece pouco hoje em dia na indústria da música brasileira. Ou ainda, o que é “sofisticado” é logo taxado de difícil, não comercial. Seria então o frevo, que já foi sucesso popular no passado, hoje em dia considerado sofisticado demais para nossa época? Teria sido perdida aí no meio do caminho a chance de reinventá-lo no violão? Lembremos que o frevo realmente é uma música difícil de 44 ser tocada e que mesmo assim foi praticada nas ruas tanto por músicos amadores quanto profissionais. Em muitos casos foram, e ainda são, pessoas de baixa escolaridade que tocam frevo. Muitas aprendem em cursinhos de música ou por conta própria tendo aula com amigos. No caso do violão de acompanhamento sua “escola” é tocar “de ouvido”. Notavelmente uma música difícil de ser executada, e que não necessariamente se consolidou nas academias, teve sua época áurea de vendagem comercial e agora não recebe atenção por parte da mídia. Reportagens em jornais e televisão não fizeram o frevo ser incluído na programação das rádios. Pelo menos não por enquanto. Talvez possamos contabilizar mais um aspecto que tornou o frevo distante e pouco acessível, e consequentemente sem significativa renovação: o preconceito. “Ao final da década de 1980, o noticiário local foi sacudido pela decretação de falência da Fábrica de Discos Rozenblit Ltda....” (SOBRINHO, 1993:13). 45 CAPÍTULO 2 O Violão no Frevo 2.1 Orquestrações Apesar das limitações que o instrumento possui em relação a uma orquestra e até mesmo se comparado a um piano, o violão é grandioso em seu universo único de possibilidades, dando conta de adaptar gêneros musicais que não tem raízes na prática violonística, muitas vezes transcendendo seus limites. Podemos citar Baden Powell com sua linguagem original, desenvolvida no samba. Baden é influência para a maioria dos músicos que, de sua geração em diante, tocaram samba ou outros gêneros brasileiros. Ele reafirmou a vocação que o violão tem para se inserir e se desenvolver em qualquer tipo de música brasileira. Aliás, vocação que Villa-Lobos30 já havia evidenciado em sua maneira de compôr ao violão. Baden fundou praticamente uma “escola” violonística, desenvolvendo a música popular carioca da época em seu instrumento e somando-a à linguagem tradicional européia do violão clássico, onde este se apresenta como solista, funcionando como uma pequena orquestra. Além disso, evidenciou uma nova maneira de pensar o instrumento, fazendo-o funcionar também como se fosse um instrumento de percussão. Logo, Baden deu conta de adaptar um universo orquestral, onde várias percussões somam-se exercendo diferentes funções rítmicas de acordo com sua altura e timbre. Por exemplo, num momento o violão imita o agogô, em outro o tamborim e, às vezes, mais de uma percussão ao mesmo tempo. Baden Powell influenciou também Edu Lobo, ícone da geração bossa-nova e que tem algumas de suas canções frevísticas como objeto desta pesquisa: 30 Ver Estudos, Prelúdios, Suíte Popular Brasileira e Concerto. 46 “(...) fosse seguir aquelas influências eu estaria frito; foi com o violão de Baden que eu achei uma linguagem mais próxima inclusive da minha história pessoal, as coisas de Recife” 31 Não precisamos ir muito longe na história musical de nosso país para concluirmos que o violão é um dos instrumentos que mais simboliza nossa música popular. Thomas Cardoso o define como “instrumento central em nossa música popular” (CARDOSO, 2006:23). As qualidades do violão, assim como seu significado histórico, são evidentes. Basta dizer que Villa-Lobos, Garoto, Dilermando Reis, Zé Menezes, Cartola, Tom Jobim, Chico Buarque, Gilberto Gil, João Bosco, Edu Lobo, Canhoto da Paraíba, Radamés Gnattali, Marlos Nobre, Guerra-Peixe e tantos outros tocaram e compuseram no violão. O instrumento se desenvolveu na maioria dos gêneros musicais brasileiros: maxixe, choro, chula, samba, frevo, afoxé, baião... Um trabalho importante que inspirou essa pesquisa é o livro editado em 2006 por Marco Pereira sobre ritmos brasileiros adaptados ao violão. Em alguns casos, Marco transcreve a maneira popular como são executados e, em outros exemplos, onde o violão não faz parte da cultura musical de um gênero, cria maneiras de executá-lo propondo adaptações bem sucedidas. Ou seja, ainda é possível abrir novos caminhos para o violão, e principalmente para a nossa música, a partir da pesquisa, somando seus elementos musicais à linguagem de qualquer instrumento. O frevo se inclui nesse livro junto a tantos outros gêneros. Marco Pereira introduz esse trabalho justificando: “... percebi a variedade de movimentos, tanto de mão direita quanto de mão esquerda, característicos do acompanhamento rítmico-harmônico dos diferentes tipos de canções populares e folclóricas. Constatei que havia uma série de conduções rítmicas que não estavam catalogadas ou registradas. Paralelamente notei que havia uma série de ritmos, praticados somente por percussionistas, não possuíam tradução para a linguagem violonística. Diante disso surgiu um forte desejo de registrar e adaptar essa particular expressão.” (PEREIRA, 2006:5). Podemos apontar no Brasil inúmeros gêneros musicais que se associam a danças e eventos festivos e, para o nosso interesse, vale identificar a diferença de 31 Citação de Edu Lobo disponível em: (http://www.petrobrasinfonica.com.br/opes/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=781&sid=28) 47 complexidade entre eles. O frevo, por preencher requisitos de qualidade harmônica, rítmica, poética, instrumentação, entre outras, é passível de estudo exclusivamente musical. É uma música concebida originalmente através da prática orquestral, logo, de maior complexidade para seu estudo. Uma dificuldade é a sua tradução para a linguagem violonística, onde teoricamente se reduz um universo plural ao singular quando o violão é solista. O desafio é um único instrumento manter essa natureza plural. Para isso, é necessário levar o calor do gênero em sua qualidade festiva e popular para a sala de concerto. Segundo Guinga, “a sala de concerto carece, precisa de rua.” (apud CARDOSO, 2006:82) O conhecimento técnico e teórico sobre o frevo é fundamental para interpretá-lo. O violonista executante do frevo deve pensar o violão necessariamente como se fosse uma orquestra. Turíbio Santos, em depoimento pessoal (2007) a respeito do Frevo da Petit Suite de Radamés Gnattali, sugeriu: “Você deve dividir as vozes como se fossem os instrumentos de uma orquestra de frevo. Nas partes agudas estão os trompetes, na resposta dos baixos, os trombones e as tubas, e nos médios, as palhetas. Cada acorde dissonante deve soar como se fosse um ataque da caixa barulhenta junto às percussões. Se você conseguir tirar esse tipo de som do violão então ele começará a soar frevo.” Henrique Annes, também em depoimento pessoal (2007), sugeriu como forma de criar novos arranjos: “... você pode pegar uma partitura para orquestra (...) separar o primeiro trompete, analisar e depois vê o que faz com o resto. (...) Pega os saxofones... junta tudo e faz a sua parte”. Fica evidente o conhecimento mínimo sobre orquestração que o intérprete deve desenvolver. O violonista deve ter o mesmo cuidado que um maestro tem ao reger sua banda. O violão é sua orquestra e o violonista é o regente. Esse conhecimento é o fundamento de sua música. Guerra-Peixe era categórico: 48 “Uma particularidade tem feito com que o frevo conserve seu vigor rítmico, a importância de sua orquestração e as características de sua forma: é o fato de seu compositor ser, não um 'orelhudo', mas, sempre, um músico, que o imagina numa orquestra que, imediatamente, dá forma gráfica musical à sua inspiração – o resultado é que, na composição de frevo, a própria instrumentação é a composição. A não ser em raras exceções, o compositor de frevo é o seu orquestrador.” (apud TELES, 2000:27). Ou ainda: “...não basta saber bater numa caixa de fósforos ou solfejar para compor um frevo. Antes de mais nada o compositor de frevo tem de ser músico. Tem que entender de orquestração, principalmente. Pode até, não ser um orquestrador dos melhores, mas, ao compor, sabe o que cabe a cada seção instrumental de uma orquestra ou banda. Pode, inclusive, não ser perito em escrever pautas, mas, na hora de compor, ele sabe dizer ao técnico que escreverá a pauta, o que ele quer que cada instrumento faça e em que momento. Se ele não tiver esta capacidade musical não será um compositor de frevo". (GUERRAPEIXE, 1978). Essa capacidade musical a que Guerra-Peixe se refere é essencial. Segundo ele, mesmo que o compositor não tenha profundo conhecimento técnico ou formação acadêmica no estudo de orquestração, deverá saber as funções que os instrumentos têm no frevo. Se o intérprete tiver esse conhecimento aprofundado, poderá traçar um paralelo entre o violão e a orquestra com mais propriedade. É fundamental para qualquer gênero musical que o intérprete tenha conhecimento da música que está tocando, principalmente se propondo a ouvi-la. A parte técnica representa um tipo de dificuldade, mas o conhecimento estético é primordial para que a técnica seja usada a favor do gênero em questão. Essa discussão é sempre levantada quando, por exemplo, um estrangeiro tenta interpretar um gênero brasileiro e, apesar de dar conta da técnica exigida por uma peça, a obra não soa brasileira. A falta de intimidade com um gênero pode transformá-lo numa leitura meramente técnica da partitura. Ou ainda, pode soar como se fosse outro gênero que não o que a composição pede. Em entrevista cedida ao Fórum Violão Erudito, em 2000, a guitarrista barroca Cristina Azuma 49 fala da importância do conhecimento geral de um gênero para a sua interpretação: “Para explicar um pouco o que esse estudo representa em termos de interpretação, uso de uma analogia com a música brasileira. No exterior ouvimos muita música brasileira tocada sem um maior interesse da parte dos intérpretes pela música original. Um frevo por exemplo: às vezes podemos ouvir frevos tecnicamente muito bem tocados, musicalmente aceitáveis para alguém que não sabe o que é um frevo, mas mais lentos ou mal acentuados, ou seja, são tudo menos um frevo. Com a música que estudei é a mesma coisa. Só pelo título (gavotas, sarabandas, chaconas, jácaras, etc) já se tem uma idéia do resultado sonoro em termos de tempo, articulação, forma, antes mesmo de abordar a peça que revela então suas qualidades individuais. E esse conhecimento é indispensável para poder abordar o repertório.”32 Reafirmando essa idéia, o violonista Marcus Llerena afirmou uma vez, em entrevista ao periódico Apolon Musagete, a respeito da suíte Reminiscências de Marlos Nobre que contém um movimento chamado Frevo: “Foi escolhida como ‘Peça de confronto’ de um dos mais importantes concursos de violão da França e tenho certeza que o violonista que não for brasileiro terá muita dificuldade na interpretação do frevo.” (LLERENA apud SILVA, 2007:64) Marlos Nobre chamou atenção para a mesma obra: Frevo. Informou que “também nesse caso é necessário um conhecimento prévio de como se tocam os frevos pelas orquestras típicas de frevo de Pernambuco.” (NOBRE apud SILVA, 2007:65) Talvez a dificuldade de execução seja também um dos fatores que contribuem para que o frevo não saia do domínio de seus “pais” pernambucanos. É essencial que, entre seus intérpretes, o virtuosismo seja qualidade primordial, o que exige uma dedicação formal a seu estudo. Foram muitos os maestros de frevo que frequentaram escolas de música: Ademir Araújo, Spok, Maestro Nunes, Clóvis Pereira, José Menezes, Duda e tantos outros. Os que não estudaram orquestração, pelo menos fizeram parte das orquestras como instrumentistas e foram aprimorando seu conhecimento na prática durante anos. O maestro 32 Disponível em: http://www.geocities.com/Vienna/Waltz/3039/azuma.html 50 Oséias33, em depoimento pessoal em 2007, falou a respeito da época em que era estudante: “Naquele tempo era diferente... meu pai me obrigou a estudar música. Na época eu não gostava, mas hoje sou agradecido a ele. (...) posso reger minha orquestra.” Desenvolvendo-se o frevo a partir das bandas militares, que por sua vez vieram da Europa, é possível fazer um paralelo com a tradição européia de escrita para as orquestras sinfônicas. Tanto é que grandes músicos que compuseram frevos de qualidade escreviam para sinfônicas. É o caso de Radamés e Marlos Nobre. Sempre foi considerado pelos grandes mestres bom orquestrador aquele que concebesse uma obra que explorasse bem os recursos da orquestra, dando ao ouvinte a sensação de um grupo coeso funcionando em equilíbrio. Sobre orquestração, Stravinski afirmou: “Ela é boa quando você não percebe que é instrumentação (..) a verdadeira música para piano (...) é a mais difícil de ser instrumentada. Até Shoenberg, que sempre foi um bom mestre nesse ramo (...) tropeçou quando tentou transferir para orquestra o estilo pianístico de Brahms. (...) Geralmente não é um bom sinal quando a primeira coisa que observamos numa peça é a instrumentação.” (STRAVINSKY e CRAFT,1959:53) Uma boa obra musical corre o risco de perder sua qualidade original tanto ao ser reduzida para um instrumento só quanto ao tentarmos o caminho contrário. As peculiaridades encontradas na linguagem de um instrumento solista ou de um pequeno grupo também podem se diluir e se perder em uma orquestra com mais de cinquenta músicos. Partindo dessa constatação podemos entender que o violão enquanto instrumento harmônico e melódico exige, assim como o piano ou uma orquestra, um cuidado de arranjador que já pense a composição criada com os recursos do instrumento. A composição deve preferencialmente ser concebida no violão, ou pelo menos na mente de quem conhece bem seus recursos. Todas as composições violonísticas de autores ilustres como Villa-Lobos, Garoto e Radamés Gnattali dificilmente soariam tão bem se tocadas em outros 33 Maestro de Olinda ainda em atividade. 51 instrumentos sem um arranjo bem adaptado, porque eles revelaram a identidade do violão. Ou seja, é preciso compôr de acordo com as necessidades técnicas do instrumento para fazê-lo soar em sua plenitude. Radamés tinha uma afinação diferente usando a sexta corda como nota ré solta, que predominou por toda sua obra para violão. Ele tem estudos para violão que propõem afinações mais inusitadas ainda, imitando até a sonoridade de uma viola caipira. Sobre a obra violonística de Villa-Lobos, Marco Pereira escreveu: “Villa-Lobos foi, seguramente, o primeiro a utilizar aquilo que lhe era exclusivo [ao violão], a essência do instrumento, como material temático. Ele se serviu, frequentemente, de evidências digitais para construir sua matéria musical, partindo de uma digitação prefixada para obter certos resultados sonoros. Isto é de suma importância visto que sua atitude não era só de impor ao instrumento os sons que estavam em sua mente mas também de fazer com que ele soasse com sua linguagem própria.” (apud CARDOSO, 2006:51) A vantagem do violão, ao pensarmos orquestralmente, é a quantidade de timbres que apresenta o que o torna um candidato natural às adaptações do frevo. Assim, para fins de análise das possibilidades do violão nesse aspecto, algumas de suas características são descritas a seguir. O violão mais comum, de seis cordas, chamado também de “guitarra clássica” (classical guitar), possui dois tipos de cordas: três agudas de náilon (mi, si e sol) e três mais graves revestidas com metal (ré, lá e mi). A diferença entre o metal e o náilon divide a princípio o instrumento em dois timbres básicos: graves (baixos), geralmente tocados com o polegar, e agudos (complemento da harmonia e melodia), tocados com os dedos indicador, médio e anelar. Ainda assim, nada impede que as cordas sejam tocadas com qualquer dedo, se preciso. Como acontecem em uma palheta ou uma boquilha em que podem fazer muita diferença no timbre gerado nos instrumentos de orquestra, no violão temos a mão direita que usa tradicionalmente esses quatro dedos diferentes, podendo ou não fazer o uso de unhas. Ainda existe a possibilidade de se escolher entre as seguintes técnicas de ataque dos dedos: “com apoio”, muito presente na escola flamenca de guitarra, muito usada para dar potência e destaque às melodias, ou “sem apoio”, dando um som mais doce e com menos volume. Vale observar 52 também a diferença de timbres que a mão direita pode oferecer, ao se colocar próxima ao braço do instrumento, gerando um som mais aveludado, ou próxima ao cavalete, que tem uma sonoridade média, anasalada. A maior parte das notas que são geradas no braço do violão apresenta cinco timbres diferentes na mesma altura, porém em cordas diferentes. Uma mesma nota varia do timbre mais agudo e estalado ao mais grave e encorpado. Podemos utilizar todos esses recursos timbrísticos do instrumento na análise das peças de frevo escolhidas com o intuito de ir além da sua estrutura harmônica e melódica e dar-lhe uma dimensão orquestral. Sua qualidade percussiva será observada também. É importante entendermos a técnica como um processo dinâmico sempre em construção, onde novas possibilidades podem e devem ser tentadas sempre. O instrumento revela novos caminhos de acordo com seu tocador. É muito comum que os grandes arranjadores e compositores de peças para orquestra sejam pianistas e não tenham o conhecimento necessário para escrever para o violão. Nosso instrumento escolhido é muito peculiar em sua escrita pois, assim como a harpa, é um instrumento harmônico que possui muitas limitações técnicas em relação ao piano. Temos alguns casos especiais, como o do já citado maestro Radamés Gnattali, que se propôs a estudar o violão e compôs um frevo grandioso, peça que faz parte da “Pequena Suíte” para violão e que é analisada ao final dessa dissertação. Concluímos que para adaptarmos o frevo ao violão é preciso que tanto o compositor quanto o intérprete tenham o conhecimento bem apurado do instrumento e do gênero orquestral. Todos esses aspectos discutidos serão levados em conta ao analisarmos as peças para violão no capítulo seguinte. 2.2 Violonistas “Fui ver Olinda onde o frevo faz Uma alegria a mais Nas ruas que eu vivi Ao som de um pinho em noite enluarada Por madrugadas que eu não esqueci” (Revendo Olinda, frevo-de-bloco de Getúlio Cavalcanti, apud NOVA, 2007:31) 53 Foram muitos os violonistas que fizeram parte da trajetória do frevo. A maioria participava de agremiações e saía no carnaval junto às troças, acompanhando a banda que executava os frevos-de-bloco. Ainda é assim até hoje. No “Bloco da Saudade”, por exemplo, muitos já têm mais de quarenta anos e, como pude presenciar, desfilam com pequenos amplificadores que são carregados como mochilas em suas costas. Mesmo assim, o volume sonoro dos outros instrumentos e principalmente a presença física e o barulho da multidão abafam o som dos violões. Para ouvi-los, é preciso estar dentro do cordão que separa os músicos do público ou a uma distância muito próxima. A maioria toca com “dedeira” seus violões de sete cordas, feitas de aço. Poucos tocam o comum seis cordas, sempre feitas de náilon. De maneira geral, também se podem encontrar apresentações ou ensaios de diferentes agremiações em palcos onde os violões são amplificados de acordo com a necessidade da apresentação. Nesse caso, podemos ouvir o violão com mais facilidade. A verdadeira tradição do violão no frevo é a de acompanhador. Isso faz sentido se considerarmos que o frevo é um gênero ligado ao carnaval. Muitos são músicos que tocam de forma amadora, praticando seu instrumento somente no verão, quando começam os ensaios para o carnaval. Assim como no gênero choro, encontramos o violão de sete cordas presente na maioria das agremiações pernambucanas que incluem o violão em sua banda. No Rio de Janeiro podemos citar o expoente do instrumento, o já falecido Dino Sete Cordas, que é referência para todo violonista que almeja estudar esse instrumento peculiar. No Recife, Bozó é a grande referência. Bozó tocou e gravou com a maioria dos instrumentistas pernambucanos e é hoje o diretor musical de uma das mais importantes agremiações pernambucanas: o já citado “Bloco da Saudade”. Apesar de, na maior parte do tempo, tocar violão de sete cordas de nylon, ele também chama a atenção para a importância do instrumento com cordas de aço. Como os violões não eram amplificados, as cordas de aço tinham melhor projeção e um som mais “rasgado”. Em depoimento pessoal (2007), Bozó explica que antigamente se tinha menos barulho de motores de carros e máquinas nas ruas, portanto, se ouvia melhor as bandas quando 54 desfilavam. As próprias ruas estreitas ajudavam, proporcionando uma boa acústica. Marco César34 (depoimento pessoal, 2007) ressalta a característica típica do frevo-de-bloco que o violão cumpre, após a introdução instrumental e uma pausa, ao tocar uma frase nos baixos, introduzindo a voz para o tom da canção. Essa frase geralmente é do quinto grau ao primeiro. Ver o exemplo 1. Exemplo 1 O falecido Edgar Moraes, um dos mais importantes compositores de frevode-bloco, autor do clássico “Bloco da Saudade”, que deu nome ao bloco homônimo, era violonista e compunha suas orquestrações a partir desse instrumento. “A formação dele não foi a de um músico de sopro, era um compositor de violão. Ele orquestrava com o violão, apesar de não ter tido professor. Foi aprendendo assim na força de vontade: analisando partituras, vendo alguém escrever para orquestra... então tudo que ele fazia era com base nesse instrumento. Ele tinha na cabeça dele os baixos do violão como sendo o tuba.” (CÉSAR, depoimento pessoal, 2007) Marco César mostrou que Edgar Moraes tocava o violão em pizzicato, ou pinicato na linguagem popular de Recife, abafando as cordas com sua mão direita para imitar o som de marcha a que o tuba remete. “É uma forma que ele encontrou na cabeça dele de que o frevo deveria ser tocado assim no violão, imitando os baixos do tuba” (CÉSAR, depoimento pessoal, 2007). Evidencia-se que o violonista deve ter certa ousadia para o trabalho de adaptação. 34 Bandolinista, pesquisador e maestro do Coral Edgard Moraes. 55 Edgar era irmão do também falecido compositor Raul Moraes, citado na letra de “Evocação No. 1”, de Nelson Ferreira. Era comum sua presença em serenatas que o tinham como figura principal, “que ao som do seu violão, interpretava as mais líricas e românticas marchas-de-bloco compostas pelo próprio...” 35 Outro artigo relembra seu irmão Raul Moraes, além de sugerir a presença do violão entre as principais personalidades musicais da época: “Do Jornal Commercio de 19 de fevereiro de 1924, na coluna Carnaval: 'Guilherme de Araújo, com toda a saliência de sua barriga monstruosamente paquidérmica, dançava no meio da sala, fazendo admiravelmente o passo do urubu malandro. O Felinto puxava pela prima... do violão que fazia Fenelon Moreira dar com os quartos para trás que nem bode em tempo de chuva'. A notinha referia-se a uma festa dos integrantes do bloco Apois Fum. Os três pândegos a que se refere a nota são Felinto, Guilherme e Fenelon, citados nos versos iniciais do frevo-de-bloco Evocação nº1, de Nelson Ferreira. No mesmo frevo são ainda lembrados Pedro Salgado, presidente do Bloco das Flores, e “o velho Raul Moraes”, compositor falecido em 1937, com 45 anos anos.” 36 Somado aos muitos compositores de frevo-de-bloco que cantavam e se acompanhavam ao violão, citamos Getúlio Cavalcanti, que é compositor e famoso cantor de frevos com inúmeras gravações. Getúlio, “autor de algumas das mais belas músicas do carnaval de Pernambuco como 'Boi Castanho' e 'Último Regresso', é presença marcante durante os ensaios e desfiles do Bloco da Saudade, dedilhando seu violão em meio à orquestra.” 37 Percebemos, assim, que o instrumento se fez presente na evolução do frevo. Apesar de ser uma música orquestrada, o frevo-de-bloco é sempre uma canção, portanto, pode nascer de modo independente de sua orquestração. Eis uma característica que diferencia totalmente a natureza dos frevos: instrumental e cantado. O frevo cantado se utilizou notoriamente do violão como instrumento de acompanhamento. Canções de vários gêneros no Brasil nasceram assim. 35 Artigo sobre Maurício Cavalcanti, consultado em 07/06/2006, disponível em (http://www.musicadepernambuco.pe.gov.br/release.php?idArtista=37) 36 Disponível em (http://jc3.uol.com.br/jornal/2007/02/09/can_290.php) 37 Em visita ao site do “Bloco da Saudade” em 04/05/2007. (http://www.blocodasaudade.org.br/frevodebloco/index2.html) 56 Podemos observar também que os violonistas profissionais que fizeram parte da trajetória do frevo, quando são considerados exímios instrumentistas, foram músicos de choro. Ainda hoje em dia, ser músico de choro é sinônimo de ser músico de qualidade. Porém, para Marco César (depoimento pessoal, 2007), o frevo ainda se ressente de pessoas especializadas na área e, por isso, é a favor de se montar cursos de frevo para orquestra de cordas dedilhadas. Mas, segundo ele, para formalizar esse ensino, levar-se-ia tempo porque a cada dia se descobrem novos materiais, divisões rítmicas e articulações. Henrique Annes38, violonista de carreira internacional e diretor da “Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco”, explica: “Não existiu um violonista pernambucano que se dedicou a compor frevo. Existiram muitos violonistas de choro, que já se foram, e um ou dois faziam frevos. Zé do Carmo, por exemplo, fez uns três frevos pra violão. O Romualdo Miranda, irmão do Luperce, tocava frevos tradicionais no violão... “Fogão”, “Vassourinhas”... tocava inclusive as variações (...) tudo em violão solo nos tons agradáveis para o instrumento: lá maior, mi maior, ré maior... Quem quiser que o acompanhasse. (...) Eu era menino e só queria andar com eles. Aprendi tudo com eles, todos os macetes. A batida da mão direita é diferente, tem que seguir a percussão senão não funciona (...) A gente tocava o domingo inteiro na casa dos amigos e depois ia pra rádio para um programa chamado ‘Onde os violões se encontram’. Eram valsas e choros. Frevos a gente tocava de brincadeira. Foram lá Canhoto da Paraíba, Ernani Reis... (...) Tinha muito frevo-de-bloco na rádio naquela época.” Chamamos a atenção para a maneira como Annes revela o tratamento diferenciado entre valsa e choro, e o frevo. Afirmar que o frevo era tocado “... de brincadeira”, dá a entender que a valsa e o choro eram gêneros que possuíam maior status artístico e de maior interesse na rádio. O conflito entre gêneros em determinada época traduz o olhar que a sociedade tem sobre um tipo de música. Em cada tempo uma música foi sempre considerada maior que outra. No caso, o frevo não era necessariamente levado a sério como música grandiosa que talvez merecesse um tratamento formal. Talvez fosse difícil imaginar um violonista tocar frevo numa sala de concerto ou incluir frevo na programação de uma rádio sem ser de maneira despretensiosa. 38 Em depoimento pessoal, 2007. 57 Annes ganhou experiência na linguagem de acompanhamento por ter feito várias gravações com orquestras de “pau e corda”. Declarou a respeito das “baixarias” (fraseados nos baixos): “Eu lia cifra e cabeça de nota, então, o maestro Nelson Ferreira me chamava pra gravar os LP’s. Era um bom dinheiro, uma maravilha... época boa.” (ANNES, depoimento pessoal, 2007). Quem muito gravou nesse período (década de 1960) foram os violonistas do grupo regional de Nelson Miranda: China, no violão de seis cordas, e Adalcir, no de sete cordas. Henrique Annes tinha que gravar os violões aos sábados de manhã, porque era menor de idade e os pais não permitiam que saísse à noite. Ele afirma que os violões eram, às vezes, curiosamente afinados um tom abaixo, e não em 440Hz. No grupo de Luperce era assim, pois o violão ficava com uma sonoridade mais grave. Annes recorda choros como “Delicado”, que é originalmente em sol maior e eles tinham que tocar como se fosse em lá maior. Entretanto, a diferença era só no braço do instrumento, pois o tom acabava sendo o mesmo. Só mudava o timbre. Para Annes, se o músico de choro for bom não terá dificuldades de executar o frevo, justamente por causa da proximidade entre os dois gêneros. O chorão que já estiver familiarizado com a marcha-rancho terá menos dificuldade ainda. Jacob do Bandolim, por exemplo, compôs alguns frevos como “Toca pro Pau”, “Busca Pé”, “Pimenta no Salão”, “Rua da Imperatriz” e “Sapeca”. Esse último inclusive foi gravado com arranjo para orquestra do maestro Duda39. Como foi comentado antes, em todo o Brasil alguns violonistas têm composto frevos para violão solo sem o compromisso de se especializar no gênero. São em geral frevos bem compostos, desde os que mostram um conhecimento básico do gênero até os que o conhecem muito bem. Pode-se observar também algumas raras gravações onde o violão interpreta alguns clássicos do frevo executando quase que exclusivamente a principal parte melódica. Uma curiosidade é que o artigo de Evandro Rabelo no site da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco) revela Matias da Rocha, o compositor de 39 Renomado maestro que teve seu auge de atuação entre as décadas de 1980 e 1990. 58 “Vassourinhas”, talvez o frevo mais antigo e tradicional executado, como sendo um violonista: “Olhando um retrato existente na sede, Matias da Rocha era afilado, negro, trajado com elegância. Joana chamou-o "maestro". Em outro documento encontrado no Clube, respondendo a uma carta do Sr. Mário Leite em 1949, o ex-presidente Severino Oliveira adianta que Vassourinhas ‘foi tirada por Matias da Rocha e Sua Prima Joana Batista Ramos no dia 6 de janeiro de 1909 e que compoz com seu violão no arrabalbe de Beberibe em um mucambo (...) Matias além de tocar violão, fazer farras, tocava flauta e tinha uma voz bonita. (...) Quando Vassourinhas foi ao Rio, em 1951, o Clube pediu para Joana cantar a marcha famosa. Assim foi feita uma orquestração."40 Conclui-se que uma das mais significativas composições do gênero nasceu no violão. Não temos como saber se Matias da Rocha era um exímio violonista, provavelmente não, porém, vale ressaltar a importância do instrumento que serviu de base para o compositor. No caso, o processo se deu à maneira inversa: sua orquestração veio depois. É bem possível que outras composições tenham nascido da mesma maneira. Fato curioso é que o frevo mais famoso, “Vassourinhas”, apesar de ter tido posteriormente uma letra, virou um clássico tema instrumental e poucos sabem cantar seus versos originais. Nos desfiles, o público canta solfejando sem letra alguma. Seria isso uma vocação do gênero para ser instrumental ou a fama de “Vassourinhas” deve-se à sua raiz na melodia cantável? O importante é entendermos que a história do frevo se mistura entre canções, orquestrações, erudito, popular... é naturalmente uma música dinâmica e plural, por isso mesmo aberta a elementos novos e adaptações. A trajetória do violão obedece a essa dinâmica. O violonista Maurício Carrilho (1998) deu uma explicação a respeito do desenvolvimento do choro que podemos aplicar ao frevo: “... Essa forma nova de tocar choro surgiu naturalmente. Foi um casamento de algo novo com a tradição. Isso e' que e' legal. O que existe e' a seqüência de trabalho. Você tem que pôr o pe' em cima de alguma coisa, pisar no chão, que e' a sua tradição, e se trabalhar vai chegar uma hora em que estará' fazendo algo diferente, naturalmente. Não tem que tirar nada da cartola.” (In Revista Teoria e Debate, n.37, 1998:7). 40 Disponível em: (http://www.fundaj.gov.br/) 59 2.3 Repertório Pesquisando, encontramos frevos de compositores não pernambucanos para violão. Os primeiros originalmente feitos para violão encontrados na pesquisa foram “Vô Alfredo” e “Henriquieto” do violonista e compositor Guinga. O primeiro possui letra de Aldir Blanc e foi gravado pela cantora Fátima Guedes no CD “Delírio Carioca” (1993) dos compositores. Também foi gravado em outro CD de Guinga, “Suíte Leopoldina” (2000), com uma versão para orquestra de frevo do saxofonista paulistano Nailor Proveta. O segundo, “Henriquieto”, foi gravado pelo compositor ao violão, acompanhado de percussão e bandolim. Encontramos essa gravação no CD “Simples e Absurdo” (1991). Foi registrado também pela Orquestra Frevo Diabo (2009) com o tema dividido entre a guitarra e os sopros, fazendo uma espécie de diálogo frevístico. Ambos os frevos foram também gravados pelo violonista Marcus Tardelli (2006), com uma interpretação próxima ao original e muito elogiada por Guinga. Durante a pesquisa, aos poucos foram sendo encontradas peças frevísticas de violão solo devidamente editadas. São, como observado nos outros capítulos, composições esporádicas ou únicas de compositores, em sua maioria violonistas. Quase todas foram gravadas ao violão e não foram encontrados arranjos para orquestra, com exceção dos realizados por Guinga. Chamamos a atenção especial para o CD de Raphael Rabello tocando Capiba (2002) que, embora não seja exclusivamente de frevos, merece ser mencionado por ser dedicado a um dos mais significativos compositores do gênero. Os frevos tocados ao violão encontrados serão enumerados com as suas respectivas gravações como referência41 e apresentados a seguir nos Quadros 1 e 2. 41 Alguns possuem mais de um registro gravado, porém apenas um será citado. 60 ORIGINAIS Intérprete Obra CD Compositor Pixaim; Seu Tonico na Ladeira O Samba da Minha Terra o próprio Frevo Rasgado Em Duo com Nico Assunção (sem título) Egberto Gismonti Marco Pereira Edimar Fenício Frevo o próprio Erisvaldo Borges Frevo Estação das Cordas o próprio Paulo Bellinati Sai do Chão Lira Brasileira o próprio Paulinho Nogueira Frevinho Doce Tons e Semitons o próprio Zé Paulo Becker Frevo Um Violão na Roda de Choro o próprio Raphael Rabello (disco integral) Mestre Capiba Capiba Turíbio Santos Suíte Teatro do Maranhão: “V. Dança dos Aflitos” Fantasia Brasileira o próprio Marcus Llerena Suíte Reminiscências: III. Frevo Turíbio Santos Petit Suite: III. Frevo Marlos Nobre O violão brasileiro de Turíbio Santos Radamés Estudo Número 8 Francisco Mignone José de Oliveira Queiroz Frevo Nos. 1, 2 e 3 o próprio Edvaldo Cabral Frevo Daniel Marques Festival dos Destinos André Siqueira Frevo Múcio Sá Frevo das Crianças Francisco Araújo Frevo Capibano; Na Magia do Frevo; Capibano; Eletrizante; Frevo Siplório o próprio Nonato Luiz Frevereiro o próprio Celso Machado Frevo Bajado Cristina Azuma Carnaval de Perneta Quadro 1: Frevos para violão: Originais Armando Lôbo o próprio 61 ARRANJOS Intérprete Turíbio Santos Raphael Rabello Enéas Barbosa Marcell Baden Powell Obra CD Compositor Último Dia O violão brasileiro de Turíbio Santos Levino Ferreira Duda no Frevo O violão brasileiro de Turíbio Santos Senô Gostosão O violão brasileiro de Turíbio Santos Nelson Ferreira Taiane Osmar Macedo Fogão Songbook Sérgio Lisboa Vassourinhas Songbook Matias da Rocha/ Joana Baptista Oh! Bela Songbook Capiba Hino do Elefante de Olinda Songbook Clídio Nigro e Clóvis Vieira Duda no Frevo Songbook Senô Evocação no.1 Aperto de Mão Nelson Ferreira Quadro 2: Frevos para violão: Arranjos Um caso especial é uma composição de Egberto Gismonti que foi originalmente composta e gravada ao piano e arranjada para orquestra pelo próprio: “Frevo Rasgado”. Essa peça foi adaptada ainda para violão pelo trio estrangeiro “Guitar Trio”, do qual fazem parte Paco de Lucia, John Mclaughing e Al di Meola. Essa versão foi gravada nos EUA. Curiosamente, Marco Pereira (depoimento pessoal, 2002) afirma ter sido o primeiro violonista a fazer uma adaptação de “Frevo Rasgado” para violão solo. É interessante observar que esses músicos estrangeiros interessaram-se em fazer uma adaptação violonística da peça, sem talvez conhecer a iniciativa de Marco Pereira. Poderíamos atribuir esses arranjos para violão ao fato de o compositor, Egberto Gismonti, ser pianista e violonista ou também ao fato de “Frevo Rasgado” ter uma vocação violonística. Não há como tirar conclusões definitivas a respeito, pois não foi possível entrevistar os músicos do “Guitar Trio”. Fato é que “Frevo Rasgado” ficou famoso 62 como peça violonística e é executado hoje em dia por vários intérpretes como Zé Paulo Becker e Gabriel Improta. Há exemplos de outras adaptações, como a que o compositor Armando 42 Lôbo fez de um de seus frevos para orquestra, “Festival dos Destinos”, transformado em peça de violão solo, analisada no terceiro capítulo. Isso se deve ao conhecimento profundo do instrumento pelo compositor que, apesar de não ter a prática de se apresentar como concertista, é um exímio violonista. Marlos Nobre também adaptou Remiscências, originalmente para piano. A versão para violão ficou famosa e o frevo foi inclusive escolhido como peça de confronto em um concurso de violão internacional, como já citado. Ou ainda citamos Turíbio Santos, que adaptou alguns frevos clássicos tocando essencialmente a parte da melodia. O frevo, embora ainda “tímido” ao violão, revela possibilidades de abrir novas portas no instrumento. Quando um músico se propõe a conhecer um gênero e adaptar suas peculiaridades a um instrumento, vencendo desafios técnicos, acaba por se tornar referência. Um exemplo já citado é o trabalho de Baden Powell com o samba. Portanto, é possível que muitas adaptações tenham sido feitas e vale a pena continuar pesquisando seus registros para facilitar o acesso a essas gravações e divulgar esse repertório, estimulando novas composições, arranjos e interpretações. 2.4 Acompanhamento O violão, por ser um instrumento harmônico, fez parte do desenvolvimento da maioria dos gêneros musicais nascidos no Brasil. O choro e o samba podem ser citados como alguns dos mais representativos, com seus violões de seis e sete cordas caracterizando funções diferentes. No geral, o primeiro se preocupa em executar a parte rítmica e harmônica, enquanto o segundo se dedica a tocar os baixos com seus fraseados típicos. Isso também acontece no frevo. 42 Compositor pernambucano residente no Rio de Janeiro. 63 Marco César (em depoimento pessoal, 2007) chama a atenção para maneira que alguns violonistas desenvolveram de tocar os frevos-de-bloco atualmente, adiantando alguns acordes junto aos sopros. Maneira que alguns músicos tradicionais desaprovam, porque acham que tira o “chão” necessário da base, que mantém um ostinato em 4/4, embora alguns escrevam em 2/4 por causa da acentuação em marcha feita pelo surdo. O maestro Duda43, por exemplo, escreve em suas partituras as antecipações rítmicas dos acordes para a guitarra. Segundo Marco César, manter a base linear seguindo estritamente a percussão ou antecipar os acordes talvez seja a principal diferença entre o acompanhamento moderno e o antigo, principalmente nos frevos-de-bloco. Referindo-se ao adiantamento dos acordes, Marco opina (depoimento pessoal, 2007): “Eu particularmente gosto... para não ficar muito monótono. Por exemplo, se você faz uma noite de frevo tocando tudo do mesmo jeito, cansa. Então, tem a questão do tom, do arranjo, das antecipações, dos breques... É importante ter essa variação para não cansar (...) Como as pessoas não conhecem, então acham que é tudo a mesma coisa. É como dizem com o choro e com o samba. Tem gente que acha que é tudo a mesma coisa, e não é. Tem sempre uma pequena nuance, uma particularidade.” Podemos ouvir em gravações antigas que o violão está fazendo os baixos como um bombardino ou dando ênfase à parte rítmica, feita de ostinato, junto aos cavaquinhos e banjos. Segundo Henrique Annes (em depoimento pessoal, 2007), na época em que começaram as gravações, os baixos eram improvisados a partir das cifras escritas, cabendo ao violonista dobrar algumas frases dos instrumentos de sopro graves, de ouvido, se quisesse. A maneira de se tocar as “baixarias” utilizadas no frevo ao violão são similares à do gênero carioca choro, principalmente por causa das seqüências harmônicas semelhantes, que têm raiz na música européia. Ouvimos também em gravações que a caixa não se inclui em algumas orquestras de pau e corda, gerando uma sonoridade mais leve, dando maior espaço para os instrumentos de corda e às madeiras. Uma hipótese é que essa instrumentação sem caixa existia devido à falta de tecnologia na época, que só permitia gravações ao vivo com todos os músicos tocando ao mesmo tempo, 43 José Urcisino da Silva 64 diferente de agora, quando é possível cada um gravar sua parte separadamente do resto da orquestra e mixar seus volumes posteriormente. Aliás, gravações atuais de frevos-de-bloco quase sempre incluem a caixa. Na orquestra Spok Frevo, que se dedica mais aos frevo-de-rua, a guitarra, quando exerce o papel de acompanhador, adianta a maioria dos acordes junto aos sopros. No frevo-de-rua, diferente do frevo-de-bloco, a música caminha de uma maneira geral como uma unidade, sem ter necessariamente um ostinato rítmico obrigatório. Neste caso, não se tratam de variações rítmicas em cima de um ostinato, como podemos encontrar no samba ou no baião. É como Carlos Malta44 definiu (depoimento pessoal, 2008): “o frevo é uma brincadeira com a gravidade o tempo todo. A gente perde o chão...”. No frevo-de-rua quase só temos o surdo e o pandeiro em ostinato, mesmo assim cumprindo quase todas as convenções rítmicas, chamadas também de “obrigações”, que são muitas no gênero. A caixa acentua as frases dos sopros o tempo todo e ainda faz variações de acordo com a maneira pessoal de cada percussionista tocar. Nos poucos momentos em que o ostinato acontece, pode ser dividido em quatro ou dois tempos. A caixa é inspirada nos desenhos básicos da marcha e do dobrado: Marcha Exemplo 2: Marcha. 44 Multi instrumentista de sopros, líder do grupo “Pife Muderno”. 65 Frevo Exemplo 3: Ostinato 1. Exemplo 4: Ostinato 2. O Pandeiro, derivado da polca, permanece com seu desenho rítmico até hoje: Exemplo 5: desenho rítmico do Pandeiro. O Surdo é tocado como na marcha. É assim também em alguns tipos de samba e na marchinha carioca: Exemplo 6: Ostinato. Não é possível afirmar quando se passou a tocar o acompanhamento rítmico da maneira que conhecemos hoje, visto que este veio da música de banda 66 militar, mas o fato é que a maneira de executar os ritmos contemporâneos do frevo se aplica às composições mais antigas, como é o caso de “Vassourinhas”. Existe uma notável diferença entre a maneira de executar algumas composições antigas que posteriormente vieram a ser consideradas frevos e aquelas que já nasceram sendo chamadas de frevo. As antigas têm mais espaço para o ostinato como forma de acompanhamento constante, pois suas orquestrações são mais simples, assim como seus contrapontos. As composições recentes possuem mais síncopes e frases que quebram a estrutura do ostinato, obrigando a percussão a cumprir essas quebras. Logo, ouve-se um grupo coeso, onde seu fraseado é acentuado por vários instrumentos ao mesmo tempo, criando uma potência extraordinária. Pode-se fazer um paralelo com um tipo de escrita para bigbands nos EUA, principalmente no jazz bebop, onde o baterista acentua os fraseados virtuosísticos cheios de nota tocados pelos sopros. Essa comparação não é feita a partir de uma coincidência: os dois gêneros têm suas raízes nas bandas militares, de onde herdaram sua instrumentação. O que faz alguns músicos brasileiros, que não têm intimidade com o gênero, pensarem que existe um ostinato predominante nesse tipo de frevo são suas referências principalmente no frevo cantado. O Frevo cantado é a única referência de frevo que se tem na maior parte do país, inclusive por causa dos frevos baianos que ficaram famosos na voz de Caetano Veloso e Moraes Moreira, entre outros. Ainda pode-se citar o Quintento Violado, conjunto pernambucano cantado que tem um trabalho de dimensão nacional, e a canção “Evocação No 1” de Nelson Ferreira que teve projeção nacional na época de sua gravação, em 1957. O músico brasileiro geralmente não conhece os tipos diferenciados de frevo. Podemos confirmar isso ouvindo as gravações e composições existentes no mercado de músicos não pernambucanos, que costumam interpretar seus frevos instrumentais com arranjos similares aos dos frevos cantados. Entre as composições instrumentais, chamamos a atenção novamente para “Vassourinhas”, que é um caso de orquestração simples, onde os metais e as palhetas têm funções bem claras de pergunta e resposta. Sendo originalmente uma canção com letra de Joana Baptista, com orquestração feita posteriormente, “Vassourinhas” pertence à época em que o frevo estava nascendo e é tocada 67 hoje baseada nos ostinatos presentes nas músicas cantadas, possuindo características bem diferentes de um frevo, como por exemplo, “Gostosão”, de Nelson Ferreira. Infelizmente, não se sabe ao certo como era tocada "Vassourinhas" na época em que foi composta. O violão como acompanhador não é parte da tradição dos frevos-de-rua, portanto, é necessário que o executante entenda a diferença entre acompanhar um frevo-de-bloco ou uma orquestra de rua. No segundo caso, é uma função mais cumprida pelos guitarristas elétricos, pois o instrumento permite ajustes de timbre e volume, obtendo uma sonoridade mais presente junto à explosão sonora de uma orquestra completa. O mesmo podemos observar em relação aos baixos elétricos. Mesmo assim, em alguns casos, quando a sonoridade da guitarra elétrica é mais jazzística em vez de roqueira, vale notar que sua maneira de acompanhar pode ser tocada ao violão integralmente. Funciona. É freqüente o violão participar de pequenos grupos, como no caso da "Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco", onde se toca versões dos frevos-de-rua em arranjos para instrumentos de corda (bandolim, cavaquinhos, violões...), mas que geralmente não incluem a caixa. Concluindo, observam-se duas maneiras básicas de acompanhamento: 1) Frevo-de-bloco e canção: baseado em ostinato e executando as convenções mais importantes. O violão se ocupa dos baixos e pode ser de sete ou seis cordas, respectivamente aço ou náilon, tocado com dedeira ou não. Frases de “baixaria” de choro são utilizadas. 2) Frevo-de-rua: pode ser tocado pela guitarra elétrica ou o violão, dependendo da sonoridade da orquestra. Preocupa-se mais com a harmonia e as acentuações, adiantando ou atrasando os acordes conforme os ataques dos metais. Às vezes dobra melodicamente algum náipe de sopros. Sua função se assemelha a da guitarra nas bigbands de jazz. 68 2.5 Solo Marco Pereira (em entrevista, 2009) 45 declarou: “a adaptação da rítmica e do fraseado do frevo para o violão é muito complexa e resulta sempre em dificuldades técnicas transcendentais. Acho que é o gênero mais difícil de praticar com o violão solo.” Marco César46 (depoimento pessoal, 2007) chama a atenção para as diferenças que existem nas articulações próprias dos instrumentos de sopro que, ao serem adaptadas para o violão e o bandolim, não devem ter tantas ligaduras pois, por não terem a duração da nota controlada pelo sopro e sim pela palheta, dedeira ou dedo, as cordas devem ser atacadas mais vezes para não perderem seu volume e vigor. Essa idéia será aplicada nas análises das peças nos últimos capítulos. Mais uma vez, Marco César comenta os motivos pelo qual o frevo violonístico não se desenvolveu tanto, reafirmando o difícil acesso e a escassez de partituras: “O maior motivo também para o violão não ter se desenvolvido tanto como solista de frevo é a falta de material, a falta de partituras que sejam adaptadas ao instrumento. Nunca houve uma preocupação de se escrever os frevos para os instrumentos de cordas, e quando se escrevia não era nos tons, digamos, ... agradáveis para os músicos de cordas. Você sabe que quanto mais difícil é a música escrita para um instrumento, mais a pessoa vai deixando ela de lado... prefere uma que seja mais fácil. Os maestros e grandes arranjadores sempre escreviam grades de orquestra. Escreviam uma cifra ou outra mas não ao nível de um solista de violão, também por falta de conhecimento desses maestros do instrumento. Até hoje, a gente sabe que esses maestros pouco conhecem os instrumentos de cordas. Talvez o Edson Rodrigues, que toca um pouquinho de violão, tenha uma proximidade maior. Mas os outros... ou é pianista ou instrumentista de sopro. O violonista teria que ouvir uma gravação e tirar uma melodia, talvez trocada porque o ouvido confundiu, e acaba tocando a música sem ter muita certeza (...) partituras, muitas vezes você não tem acesso. Muitos acervos foram perdidos por conta da cheia que teve aqui na "Rádio Jornal e TV" e, além disso, teve uma época em que as partituras da rádio foram jogadas no lixo. Eram carroças e mais carroças levando para a incineração. Capiba foi um desses que sofreu, perdeu-se muita coisa dele... muita coisa se perdeu.” (CÉSAR, depoimento pessoal, 2007) 45 46 Em Anexo 1. Violonista, compositor , arranjador e professor da UFRJ. Pernambucano, bandolinista, arranjador, compositor e professor de música. 69 Para Marco César, nunca houve interesse da parte dos violonistas de seu estado de se dedicarem à sua música de uma forma que não fosse a tradicional de acompanhamento nos blocos. Um motivo proposto é que, na época das grandes rádios, ouvia-se muita música que vinha de São Paulo e do Rio de Janeiro: o samba, o choro, depois a bossa-nova. Não havia interesse geral de se divulgar o que era de Pernambuco, e quando havia, o que se tocava era o baião: Luís Gonzaga. Marco cita Heraldo do Monte como uma referência de solista de frevo. Heraldo é um multi-instrumentista que tocou violão, guitarra, violão de aço, bandolim e cavaquinho. Chegou mesmo a gravar um disco dedicado exclusivamente à viola caipira, porém não se dedicou da mesma maneira ao frevo, fazendo algumas ótimas gravações, porém esporádicas. Com isso, reafirmamos nossa idéia de que o violão como solista de frevo se desenvolveu de maneira fragmentada e não criou uma tradição relativamente sólida como se fez com a função de acompanhador. Portanto, sua linguagem está ainda em construção, deixando evidente que ainda existe espaço para se desenvolver. Por isso, escolhemos as três peças seguintes para análise: peças que representam uma inserção dos compositores no universo frevístico ao violão, sem necessariamente dedicar-se a construir uma obra completa (estudos, suítes, concertos...) baseada no mesmo. Ao violão, Guinga compôs dois frevos, Armando um e Radamés um. 70 CAPÍTULO 3 Análise de três obras frevísticas para violão solo “O compositor, ao criar suas composições, não apenas inventa, ele se reinventa absorvendo a tradição musical, e reinventa assim a própria música brasileira, o que permitirá que os brasileiros anônimos se reinventem ao tomá-la como estímulo estético ao pensar-se brasileiro.” (ANDRADE apud ALBUQUERQUE, 2006:21) A seguir faremos uma análise dando ênfase à parte interpretativa, valorizando o ritmo, ligaduras, dinâmicas, acentuações e articulações. Teremos como principal referência, o livro editado pelo maestro pernambucano José Menezes, “Songbook Frevos de Rua” (2006), onde encontramos grades de suas obras para orquestra, escritas com riqueza de detalhes em termos interpretativos. Grande compositor que nos serve como referência para o gênero, Menezes nos oferece em seu livro exemplos bem diversificados, uma vez que escreve para todos os instrumentos utilizados tradicionalmente em uma orquestra de frevo. Adaptaremos sua escrita para o violão como uma sugestão interpretativa. Eventualmente, obras de outros compositores pernambucanos serão utilizadas também como referência quando necessário. As peças escolhidas a serem analisadas são: “Henriquieto” (Guinga), “Frevo - Petit Suite” (Radamés Gnattali) e “Festival dos Destinos” (Armando Lôbo). Justifica-se essa escolha por serem raros compositores que escreveram frevo para violão e são de diferentes gerações e regiões do país, respectivamente, Sudeste, Sul e Nordeste. 3.1 Frevo: terceiro movimento da Petit Suite 3.1.1 Radamés Gnattali Radamés, nascido em 1906 e falecido em 1988, seria o mais velho. O gaúcho compôs a Pequena Suíte com temas nordestinos _ Pastoral, Toada e Frevo _ dedicada ao violonista Turíbio Santos. Turíbio (em depoimento pessoal, 71 2007) conta que Radamés teve a iniciativa de escrever a Suíte quando, ao perguntar a ele o que faltava em sua obra, o violonista sugeriu que compusesse algo dedicado ao Nordeste. Sobre Radamés, afirmou o maestro Júlio Medaglia: “O Radamés quando escrevia para instrumento solista, para sala de concerto, ele virava realmente um compositor de sala de concerto. A vida dele começou como músico erudito, ele primeiro foi um grande pianista, um grande violinista, depois um grande violonista, tocou cavaquinho tão bem quanto os outros instrumentos. Não é que ele tocava um pouco de violão, ele tocava muito bem. Uma vez na casa dele eu disse: 'como é Radamés, você também mandou brasa no violão?’ , como dizendo ‘foi meio daquele jeito’. Então ele disse: Daquele jeito não! E pegou o violão e estraçalhou na minha frente, eu até fiquei envergonhado.” (MEDAGLIA apud FRANCISCHINI, 2007:5) Com essa declaração do maestro, fica claro o domínio de Radamés sobre o instrumento, muito além de um estudo superficial apenas para compor para o violão. Radamés estudou a sério e conviveu com os grandes violonistas de sua época; dentre outros, foi amigo de nomes como Garoto, compondo um concerto dedicado a ele, Raphael Rabello e o já citado Turíbio Santos, as melhores companhias para um compositor se aprofundar no instrumento e testar suas idéias. Seus onze estudos para violão, além de cinco concertos para violão e orquestra, suítes e tantas outras, o consagram definitivamente como um dos maiores autores de peças para violão do repertório brasileiro de concerto, ao lado de Villa-Lobos. 3.1.2 Análise de Frevo A seguir, a peça “Frevo – Petit Suíte”, terceiro movimento, de Radamés Gnattali seguida da análise realizada na presente pesquisa. 72 Figura 2: Frevo – Petit Suíte (terceiro movimento) - Cp.1-17 Radamés Gnattali 73 Figura 3: Frevo – Petit Suíte (terceiro movimento) – Cp. 18-36 Radamés Gnattali 74 Figura 4: Frevo – Petit Suíte (terceiro movimento) – Cp. 37-54 Radamés Gnattali 75 Figura 5: Frevo – Petit Suíte (terceiro movimento) – Cp. 55-71 Radamés Gnattali 76 Com a afinação da sexta corda em ré, Radamés sugere o andamento Vivo começando com um acorde na região médio grave de D7M como se fosse a pancada da percussão e logo em seguida uma resposta dos trumpetes. No compasso47 2 acontece sua resposta com frase descendente: construção melódica típica do frevo que encontraremos a seguir, nas outras duas peças (Henriquieto e Festival dos Destinos). Nos Cp.3-4 a mesma idéia se repete com a melodia uma quinta abaixo. Observe-se que nesses primeiros compassos é apresentada a idéia principal do tema, que em seguida é desenvolvida durante a peça. Esse início é uma “chamada” frevística onde subentendemos que a percussão só acentuaria os acordes, para começar de fato o ostinato rítmico dançante do frevo no Cp.5 . Nesse compasso começa um movimento de acordes cromáticos, o que sugere baixo, harmonia e melodia sendo tocados juntos. Agora sim uma banda completa representada no violão. Apesar disso notemos que o compositor não escreveu nenhuma passagem da peça em ostinato rítmico básico do frevo. O único trecho em que os baixos são tocados no ritmo do surdo marcial é entre Cp.48-50, e mesmo assim temos um compasso de ¾, o que, de qualquer maneira, não é tradicional. Nas outras peças podemos observar que os ostinatos rítmicos do frevo são muito pouco ou nada presentes. Isso reforça a idéia de que o frevo-de-rua instrumental foge à idéia de um ostinato fixo, como pressupõem muitos livros que abordam o gênero. No Cp.6 temos a primeira quebra de compasso binário para ternário que, como já foi observado, se repete em outros momentos. Temos uma resposta aos acordes, que ascendem de forma cromática com a mesma digitação e o baixo em lá, fazendo um contraste com os baixos descendentes. Nesse frevo, Radamés deixa bem divididas as funções de baixo, acorde e melodia. Não há contraponto polifônico entre as mesmas. Segue compasso binário com resposta dos agudos (Cp.7-8), sugerindo um novo ritmo no fraseado até quebrar novamente para ternário em Cp.9-10. Nesse trecho acrescenta-se um tempo a mais no compasso por conta da idéia melódica anterior, o que transforma o ternário numa junção dos elementos de Cp.8 e 11. No Cp.11 encontramos o acompanhamento em contratempo, característica típica do frevo. Nos Cp.13-16 47 No presente texto foi adotada a abreviação Cp. para compasso. 77 encontramos a melodia nos baixos médios, que poderia ser executada pelos trombones ou até os saxes, mas não necessariamente por um instrumento baixo como a tuba. Chamo a atenção pra isso para demonstrar como Radamés orquestrou bem seu frevo para violão, que poderia ser facilmente transcrito para orquestra. Os Cp.17-18 são idênticos aos Cp.5-6, porém concluindo o baixo em fá sustenido e fazendo uma sequência de acordes dominantes que terminam novamente em D7M. Pode-se observar a acentuação utilizada dessa vez com os agudos no contratempo ao inverso de Cp.11. Em Cp.21-22 é feito um arpejo de D7M, terminando na nota si que faz parte, junto a Cp.23, da frase do tema em Cp.1-2. Há um arpejo semelhante em Cp.24-25, relativos ao desenvolvimento de Cp.3-4. Observa-se um compasso ternário semelhante ao que encontramos em Cp.6. Entre Cp.21-25 é apresentada uma variação do tema principal também se fazendo uma ruptura com um compasso ternário. Em Cp.25-31 o compositor expõe uma nova idéia melódica nos baixos, dessa vez realmente no grave, podendo ser tocado por uma tuba ou trombone baixo. Sua resposta são os ataques nos agudos em forma de acordes dissonantes. Em Cp.32-36 observam-se arpejos do acorde de sol maior dominante (G713) com uma figura rítmica de quatro notas que se repete em síncopes, terminando em um ataque no acorde de “D sus4”. Um fraseado frevístico descendente é seguido de outra frase ascendente em quiálteras (Cp.37-42) com terminação no acorde de “A”, semelhante aos Cp.35-36. Em seguida, temos uma frase no baixo para o ritornello. Em Cp.45-47, nota-se síncope arpejado, semelhante a Cp.32. Segue uma alteração para o compasso ternário em Cp.48-51, onde acordes são arpejados. Nota-se que se separarmos os acordes dos baixos executados nesse trecho, descobrimos que eles estão em ritmo binário. Esse é mais um artifício do frevo para se produzir o efeito de polirritmia. 78 Segundo Turíbio Santos (depoimento pessoal, 2007), em Cp.52-60 Radamés propõe uma Cadenza rítmica em que imita o tarol percussivo do frevo, em que a melodia e os acordes arpejados parecem estar deslocados um do outro. Em um momento a melodia parece antecipar o acorde e vice-versa. Em Cp.58-59 o ritmo do arpejo se modifica em semicolcheias com acentuação na nota mais aguda do acorde: E7/9 – Eb7/9. Em Cp. 61-65 retoma-se a idéia apresentada no Cp. 13, porém acrescentando um acorde a mais, comparado à sua primeira exposição: si bemol maior. A peça se conclui logo após o arpejo em quiálteras do acorde dominante de lá (A 7/#11) a que se segue uma frase ascendente cromática também quialterada de dó sustenido até a nota ré. Após uma pausa de um tempo, a peça acaba com o ataque do acorde D6/9, utilizando todas as cordas do violão. Esse é o acorde utilizado no “Frevo” com o som mais aberto e cheio que finaliza a peça. Nota-se que o compositor nesse caso optou por acrescentar pouquíssimas articulações, o que seria incomum de se encontrar num arranjo para instrumento de sopro. A maioria das partituras pesquisadas para violão não apresenta um cuidado satisfatório com a escrita de articulações. 3.2 Henriquieto 3.2.1 Guinga Guinga nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 10 de julho de 1950. A biografia em seu site o define assim: “Carlos Althier de Souza Lemos Escobar (…) Aprendeu violão intuitivamente aos 13 anos de idade. Mais tarde faria cursos de música, inclusive 5 anos de violão clássico com o professor Jodacil Damasceno. Começou a compor aos 16 anos, classificando a sua primeira canção aos 17 anos no Festival Internacional da Canção. Trabalhou profissionalmente, acompanhando artistas como Clara Nunes, Beth Carvalho, Alaíde Costa, Cartola, João Nogueira, entre outros. Formou-se em Odontologia em 1975. Sempre compondo, teve várias de suas músicas gravadas por nomes importantes: Elis Regina, Michel 79 Legrand, Sérgio Mendes, Leila Pinheiro, Chico Buarque, Clara Nunes, Ivan Lins e outros.” 48 Compositor violonista ainda ativo, fez dois frevos: “Vô Alfredo” e “Henriquieto”. Escolheu-se analisar “Henriquieto” porque explora de forma peculiar uma figura rítmica derivada da polca executada tradicionalmente pelo pandeiro. “Vô Alfredo” possui características que se assemelham às outras duas peças escolhidas, portanto não será analisada aqui. Com “Henriquieto”, Guinga homenageia o violonista pernambucano Henrique Annes, fazendo um trocadilho com seu nome no título da composição. O compositor considera-se com sangue nordestino por conta de sua ascendência materna que é pernambucana e paraibana. Para ele, os ritmos nordestinos sempre estiveram em sua alma, mas o que o inspirou diretamente a compor seu primeiro frevo foi a composição de Egberto Gismonti chamada “Karatê”. Interessante observar que Gismonti divulgou o gênero, em mais de uma composição sua, para diversos compositores e instrumentistas. Guinga lembra-se também da época em que “Evocação No. 1” de Nelson Ferreira tocava na rádio. Para ele, o ato de compor frevo ao violão é um desafio, porque se deve tomar cuidado para não se sofisticar demais, tem que ser na medida. Em suas palavras: “... não pode perder a rua” (depoimento pessoal, 2008). Nota-se que Guinga usa a palavra rua para designar o caráter popular da música, deixando claro que as características de uma prática musical, que nasceram literalmente na rua, não devem ser deturpadas em função de uma eruditização que ignore a alma do gênero. “O frevo não tem nem a obrigação de ser alegre, mas tem que ter rua.” Em sua opinião, é preciso atingir esse equilíbrio entre a sofisticação concertista e a alma da música, que nasceu na rua. Segundo ele “essa riqueza rítmica assombrosa” de Pernambuco devia ser mais divulgada. Atualmente, Guinga não interpreta “Henriquieto” em seus concertos e o justifica por considerar essa peça muito difícil de ser executada. Recorda-se com orgulho da apresentação que fez no extinto Free Jazz Festival em sua edição de 1994, quando a tocou pela última vez ao vivo. 48 Disponível em www.guinga.com 80 3.2.2 Análise de Henriquieto A seguir, a peça Henriquieto, de Guinga, e a análise realizada na presente dissertação. 81 Figura 6: Henriquieto - Cp. 1-19 / Guinga e Aldir Blanc 82 Figura 7: Henriquieto - Cp. 20-45 / Guinga e Aldir Blanc 83 A partitura não evidencia sua forma, portanto, vamos tomar como referência uma gravação feita pelo próprio compositor em um de seus discos (Delírio Carioca, 1993). A música é dividida entre parte “A”, nos Cp.1-24, e “B”, nos Cp.25-44. Sua introdução faz parte do “A”, sendo tocada todas as vezes. A forma é A-B-A-A-B, o que é pouco usual. “Henriquieto” começa com a figura rítmica derivada da polca, geralmente tocada pelo pandeiro em ostinato nos compassos 1-8. Usa aqui inversões nos baixos que caminham de maneira descendente do grave para o agudo, concluindo o primeiro trecho (Cp.1-4) num acorde que sugere o quarto grau com sonoridade suspensa, devido à ausência da terça justa (C/F). Nos Cp.5-8 finaliza na tônica, que é um acorde de Dó maior perfeito (C), como se fosse a casa 2. Esse trecho tem um caráter de introdução em tom de Dó maior e sugere ao ouvinte uma sonoridade parecida com a de uma marcha harmônica, devido à sucessão de acordes maiores e dominantes (C/E – F7/Eb – Eb7/Db – C7/Bb – D7/A – Bb7/Ab – C/F). No Cp.9 começa a exposição do tema no tom relativo menor (Am) em anacruze, como é tradicional nos frevos-de-rua, em forma de pergunta melódica. Em seguida, Cp.11-13a, há uma resposta em forma de acordes numa espécie de “cluster” tipicamente violonístico, com o baixo na corda solta “ré”, gerando intervalos de segunda entre as cordas “si” e “sol” _ recurso utilizado pelo compositor ao final da parte “B” de outra obra sua chamada “Di Menor”. Nesta utiliza-se do baixo na corda solta “lá”. Esse jogo de pergunta e resposta remete ao diálogo dos metais e das palhetas, uma brincadeira entre melodia e massa sonora. O recurso dos clusters provoca essa massa sonora. Temos em seguida uma repetição de pergunta e resposta temática entre Cp.17b-20 e voltamos à figura rítmica da introdução novamente usando inversões dos acordes, porém com outra harmonia (Cp. 21-24 com repetição). Percebemos que, nesse trecho, o compositor reafirma a idéia de pergunta e resposta entre o grave e o agudo dando uma idéia de ida e vinda, sobe e desce, sugerindo movimento entre opostos, que remete às ladeiras de Olinda por onde desfilam as “troças” carnavalescas. Aqui também é feito um jogo de contrastes entre o 84 melódico e a “pancada” dos acordes com intervalos de segunda, se utilizando novamente de cordas soltas explorando muito bem os timbres do instrumento. Guinga segue fazendo uma cadência para o quarto grau (Fá) com um acorde dominante (C7). Repare que em Cp.25-26 ele se utiliza de ligaduras para deslocar as acentuações de seu tempo forte natural. Os acentos são todos no contratempo. Em Cp.29-32a ele transforma o acorde de Fá em dominante, fazendo descer a melodia da tônica para a sétima, com resposta final do acorde com nona _ “sol” _ na melodia. Coloca aqui os baixos sincopados contrastando com os acordes no tempo forte. Em seguida resolve em “si bemol” (Bb6), que repete a mesma idéia entre baixos e acordes terminando no acorde de lá (Am), passando pelo seu dominante com o baixo na terça (E7/G#). Nota-se a melodia cromática nos baixos em ambos os trechos (Cp.29-32a e Cp.33-36). Nos Cp.37-40 volta o ostinato do pandeiro em forma de arpejo, primeiro Am (Cp.37-38) e depois um arpejo diminuto seguido da nota “mi”. Entre Cp.41-44 com repetição é feito um desenho melódico em cima do arpejo de F7M/9 que pode ser entendido também como tríades individuais formando acordes diferentes, inclusive porque a acentuação dos baixos sugere grupos rítmicos de 3 notas. São muito comuns no frevo grupos ímpares de notas sugerindo uma polirritmia e compassos diferentes tocados simultaneamente. No Cp.44 há uma quebra nessa estrutura, terminando em 2 trítonos que resolvem sua tensão na repetição integral da música ou no final com o acorde de Am6, que também possui um trítono entre a sexta e a terça do acorde. Nota-se que a música começa em tom maior e acaba no menor, processo inverso ao da picardia. 85 3.3 Festival dos Destinos 3.3.1 Armando Lôbo Nascido no Recife em 26 de fevereiro de 1971, Armando Lôbo é um dos raros compositores da nova geração que domina a linguagem “erudita”, de concerto, e “popular”, cuja prática se dá fora da sala de concerto. Tem sinfonias e opereta compostas, discos lançados como cantor e arranjador de MPB e é integrante da Orquestra Frevo Diabo. Lôbo possui uma obra vasta para diversas formações em diversos gêneros e vertentes da música, se caracterizando como um dos músicos mais completos de sua geração. Armando possui também um trabalho autoral chamado “O Frevo Bem Temperado”, em que dá tratamento barroco aos seus frevos. Ele está sempre buscando uma linguagem original em sua música. É um dos raros compositores da nova geração de Recife que aponta novos caminhos para o frevo. O próprio compositor fez a adaptação de Festival dos Destinos originalmente escrito para orquestra, atendendo a meu pedido. Isso se deve ao conhecimento profundo do instrumento pelo compositor que, apesar de não ter a prática de se apresentar como concertista, é um exímio violonista. 3.3.2 Análise de Festival dos Destinos A seguir, a partitura de Festival dos Destinos seguida da análise realizada na presente dissertação. 86 Figura 8: Festival dos Destinos – Cp. 1-30 / Armando Lôbo 87 Figura 9: Festival dos Destinos – Cp. 31-66 / Armando Lôbo 88 Figura 10 : Festival dos Destinos – Cp. 67-99 / Armando Lôbo 89 Figura 11: Festival dos Destinos – Cp. 100-159 / Armando Lôbo 90 Essa peça foi escrita na tonalidade de ré maior e, assim como o Frevo de Radamés, utiliza-se da afinação da sexta corda em ré. Começa com uma introdução em tempo Adagio (72 b.p.m.). Essa introdução apresenta alguns fragmentos do tema principal intercalados por idéias melódicas que só são expostas nesse trecho. Funciona preparando o ouvinte para o andamento ligeiro e frenético com harmonias dissonantes que virá em seguida. Nesse momento o frevo está nascendo. A introdução termina (Cp. 26) com uma frase cromática ascendente utilizando a primeira corda solta (mi) como pedal para ajudar na execução rápida das semicolcheias, caracterizando o virtuosismo e gerando tensão e expectativa quanto ao tema por vir. O tema principal começa (Cp.27) no dobro do andamento da introdução, Allegro (144 b.p.m), com o arpejo de lá maior dominante acentuada pelas ligaduras, utilizando as cordas soltas respectivas de cada nota, resultando num fraseado típico do frevo. O mesmo recurso foi utilizado em Cp.18. Nota-se que, como nos instrumentos de sopro, no violão também se usam muitas ligaduras para deslocar os acentos de seu tempo forte, resultando nas mais diversas formas de síncope e contratempo. No caso, as cordas soltas são aproveitadas para permitir saltos entre intervalos distantes e para se obter um timbre mais aberto, além de que tecnicamente é mais viável na maioria dos casos de ligaduras. Vale notar que no gênero frevo é muito comum encontrarmos idéias de notas agrupadas em 2, 3, 4, 5..., muitas vezes não cabendo na métrica do compasso, sugerindo uma polirritmia interessante como segue nos exemplos : Exemplo 7 Exemplo 8 91 Exemplo 9 A frase que inicia o tema (Cp.27-29) começa de forma descendente e termina ascendente, dando uma idéia de sobe e desce, vai e vem, típica do gênero, características essas que instigam o passista em suas coreografias. Sua resposta se segue em Cp.30-31 de forma descendente, sugerindo mais um movimento flutuante. Essa idéia evolui entre Cp.32-37 com acordes que vão ascendendo, gerando tensão e expectativa, até que tem seu auge entre Cp.38-41, onde a melodia caminha pelos acordes de Dm7(b5), G7 e Bb7(13), gerando uma cadência que se resolve por aproximação cromática em B/F# ao invés de Cm, o que seria a sua solução comum. O tema atinge seu “ápice épico” entre Cp.42-55, atingindo a nota mais aguda da música até então, em Cp.43. Ainda em Cp.42-55 ele expõe trecho apresentado na introdução (Cp.8-16) com pequenas modificações. Essa melodia muda de passagens cromáticas para uma melodia cantável que poderia facilmente ser letrada e nos sugere um refrão onde podemos até imaginar uma multidão cantando em coro. Na sequência, se utiliza de cordas soltas novamente para reproduzir a figura rítmica do pandeiro, derivada da polca (Cp.57-58): Exemplo 10 Armando repete o fraseado semelhante (Cp.59-63) ao do início do tema (Cp.27-31). Ver nos exemplos 11 e 12: 92 Exemplo 11 Exemplo 12 Conclui em seguida, dessa vez em C7M/9. Cria uma ponte em Cp.63-67 para retomar e expôr novamente o trecho que qualificamos de "épico" a partir de Cp.67, concluindo a exposição do tema em Cp.72-76. Notemos que em Cp.65-67 os acordes de A7(13), G7(13) e B/F# são tocados no contratempo, variação rítmica muito comum no frevo que podemos encontrar nas melodias tanto quanto nos acompanhamentos. Também é importante comentarmos o recurso de corda solta aqui utilizado de uma forma diferente: diversificando o timbre tocando a mesma nota (sol) na quinta casa da corda ré (polegar), alternando com a corda sol solta (indicador), produzindo uma acentuação deslocada do tempo forte. Repetimos os Cp.27-76 por conta do ritornello e seguimos com uma terceira exposição do tema que começa no Cp.77 e é interrompida em Cp.91 com acordes cromáticos ascendentes (Bb7-13, Ab9/C, C#o-13, Dm6), terminando em um compasso ternário (Cp.94). Em Cp.95 se inicia uma Cadenza em andamento Meno Mosso fraseando novamente na figura tocada pelo pandeiro com o baixo pedal em ré ou em fá, acentuando o ritmo no contratempo, que se conclui (Cp.101) com a repetição descendente, usando a mesma digitação em cada corda com o baixo em sua respectiva corda superior. A Cadenza continua a tempo (144 b.p.m.) ainda explorando a figura rítmica do pandeiro em staccato, arpejando acordes que vão ascendendo com a mesma digitação para ambas as mãos. O contraste vem em seguida, tocado com 93 harmônicos descendentes gerados na quinta e na sétima casa do violão, o que naturalmente soa mais suave, comparado ao staccato anterior. O compositor conclui assim sua Cadenza em tom suave, após uma exaustão técnica de andamento rápido. Retomamos a introdução da música em andamento adagio novamente. Aqui o compositor dá à peça definitivamente um caráter de Concerto, por causa dessa diversidade de andamento, algo absolutamente incomum nos frevos-derua, por conta de sua natureza dançante. Nos frevos tradicionais, encontramos mudança de dinâmica, etc., mas nunca mudança de andamento. A música popular no geral subentende um instrumento rítmico (percussão principalmente) que trabalha incessantemente como uma máquina fazendo uma base constante em ostinatos para o resto dos instrumentos, por isso, não se espera que haja mudanças bruscas de andamento, em que a idéia de um ostinato se desfaz totalmente. A repetição da introdução se interrompe em Cp.125 com um acorde meio tom acima em relação ao anterior (F#7-13 para G7-13). Aqui a introdução é tocada exatamente pela metade. São 13 compassos em vez de 26. Voltamos em seguida ao andamento 144 b.p.m com a exposição do tema principal. Logo de início há uma alteração no segundo compasso, onde ocorre a supressão de uma colcheia na resposta ascendente do tema, transformando-o em um compasso único de 7/8. O compasso binário é em seguida retomado e o tema principal segue idêntico às exposições anteriores, até o momento que surge uma modulação para um tom e meio acima nos Cp.139-141 antecedendo uma cadência (D7-9/A, B7, Em7-b5, A7-13) que termina em D6/9. A partir do Cp.147, Armando desenvolve trecho baseado no Cp.53-55, utilizando um acorde dominante de A7(13) para gerar tensão, que acaba em andamento Meno Mosso com frase nos baixos semelhante à da Cadenza (Cp.101-102). Repete fragmento do tema inicial em Cp.157 e desta vez suprime o tempo da frase de resposta ascendente, transformando-a em quiálteras de 11, que terminam em fermata. Outra fermata aparece logo em seguida no acorde conclusivo do tom da música: D6/9. 94 Observemos que, também de maneira incomum, o compositor finaliza a música diminuindo o andamento para Meno Mosso, terminando com o último acorde com dinâmica mp, o que contraria a tradição de terminar os frevos-de-rua em dinâmica explosiva, geralmente seguidas de execução fortíssima do acorde da tonalidade da música. Festival dos Destinos começa construindo um ambiente para começar o frevo, o desconstrói no meio e termina diminuindo e parando de forma sutil. Podemos compará-lo a um trem que sai da estação, chega a sua maior velocidade durante a viagem, pára para descansar por um breve momento e retoma a viagem até chegar de novo à sua estação, deixando com naturalidade muita fumaça para trás. 95 CAPÍTULO 4 Transcrições de três acompanhamentos frevísticos a partir da Orquestra Frevo Diabo A seguir estão as transcrições de alguns acompanhamentos guitarrísticos gravados no primeiro cd do grupo carioca “Frevo Diabo” (2009). O arranjo da canção “Frevo Diabo” foi gravada com guitarra elétrica, mas pode perfeitamente ser utilizado ao violão. A escolha do instrumento elétrico para as gravações foi uma opção técnica devido à grande massa sonora produzida pelos instrumentos de sopro e pela bateria/percussão. As freqüências sonoras da guitarra fizeram com que tivesse mais presença que o violão, junto ao resto da banda, em alguns arranjos específicos. Vale chamar atenção para o fato de que as partes de acompanhamento transcritas são relativas ao instrumento integrado a um contexto coletivo, a banda, em que há diálogos entre os instrumentos. Por isso, só fazem sentido, na maioria das vezes, se executadas junto ao resto da banda. Os arranjos integrais estarão anexados no fim da dissertação. Serão transcritos os acompanhamentos das seguintes composições: “Cordão da Saideira”, “Frevo Diabo” e “Frevo de Itamaracá”. Alguns trechos serão comentados. 4.1 Orquestra Frevo Diabo Esse tópico justifica a escolha do grupo “Frevo Diabo” para objeto de estudo, através dos arranjos feitos para violão de acompanhamento registrados no CD. Muito elogiado e reconhecido por músicos brasileiros importantes como Egberto Gismonti, Edu Lobo, Guinga, Carlos Malta, Marco Pereira e, principalmente, o maestro pernambucano Ademir Araújo, o “Frevo Diabo”, mistura 96 “bases enérgicas, usando timbres modernos, com harmonias sofisticadas e os metais do frevo.” 49 Nascida a partir do encontro musical do carioca Daniel Marques e do pernambucano Armando Lôbo, segundoi informacão no seu site, “Frevo Diabo” foi batizado com o nome de uma canção de Chico Buarque e Edu Lobo. A orquestra se propõe a fazer uma ponte entre tradição e inovação ao tirar o gênero do regionalismo e torná-lo universal, somando compositores contemporâneos, como Chico Buarque e Edu Lobo, aos tradicionais Capiba e Nelson Ferreira, além apresentar de composições próprias. O grupo é composto por 10 músicos cariocas e pernambucanos de várias tendências do circuito musical brasileiro, distribuídos entre saxofones, metais, baixo, bateria, guitarra/violão e voz. São integrantes de bandas como "Monobloco", “Carlos Malta e Pife Muderno”, “Tira Poeira”, "Furiosa Portátil" e "UFRJAZZ". Alguns integrantes eventualmente incluem frevos em seus trabalhos solo. Os arranjos de seu disco de estréia transitam por diversos ritmos e gêneros da música brasileira, desenvolvendo uma fusão do frevo com maracatu, caboclinho, samba, maculelê, galope... “Estão presentes também influências do rock e do reggae jamaicano. Villa-Lobos também marca a influência do grupo na maneira de elaborar os arranjos sofisticados e com bases na orquestração da música sinfônica européia. O resultado é uma diversidade carnavalesca natural do frevo” 50. Frevo Diabo é o primeiro grupo fora de Pernambuco a gravar um disco dedicado exclusivamente a esse gênero e, por isso, representa um marco pioneiro na história do frevo. Seu trabalho foi reconhecido em Pernambuco e seu CD foi patrocinado pela Prefeitura do Recife, o que representa uma legitimação formal do grupo. Um artigo de Lygia Falcão saiu no “Diário de Pernambuco”, incluindo 49 50 o grupo numa lista de CD´s apoiados Informação no site do “Frevo Diabo”, www.myspace.com/frevodiabo Idem pela Prefeitura: 97 “Apoiamos a remasterização e a prensagem de 09 LPs de frevo para CD, do projeto O Tema É Frevo, executado por Hugo Martins. Patrocinamos e apoiamos a produção de vários CD´s: Claudionor Germano, Maestro Ademir Araújo, J. Michiles, Nono Germano, Orquestra Frevo Diabo (com sede no Rio de Janeiro) e ainda patrocinamos o DVD da Spok Frevo Orquestra. O Calendário 100 Anos do Frevo, do fotógrafo Renato Filho também contou com o patrocínio da Prefeitura do Recife.” (FALCÃO, 2008) O grupo vem se apresentando constantemente. Já tocou em diversos bailes de carnaval e em teatros, explorando o frevo tanto em sua vocação festiva quanto em concertos com interpretações camerísticas, vocação do frevo essa já apontada no Capítulo 2. No encarte do CD “Frevo Diabo” temos declarações de alguns músicos importantes: "Ouvi várias vezes e achei maravilhoso o trabalho do CD. O caminho do frevo já está num crescente brilhante. É isso aí irmãos. Parabéns!" (Ademir Araújo, o maestro “Formiga”). “... uma beleza essa orquestra de frevo! Parabéns. Os arranjos e as execuções são realmente muito bons. Parabéns ao Pernambucano (Armando) e aos músicos." (Egberto Gismonti, compositor). E ainda o comentário bem humorado de Guinga: “Achei o Frevo Diabo divino!” No CD “Frevo Diabo” encontramos o seguinte repertório: 1 - Frevo Guarani (Carlos Gomes/ Armando Lôbo) 2 - Não Existe Pecado do Lado de Baixo do Equador (Chico Buarque) 3 - Chapéu de Sol Aberto (Capiba) 4 - Frevo Diabo (Chico Buarque/ Edu Lobo) 5 - Henriquieto (Guinga) 6 - Cordão da Saideira (Edu Lobo) 7 - Frevo de Itamaracá (Edu Lobo) 8 - Último Dia (Levino Ferreira) 9 - Enquanto Existe Carnaval (Thiago Amud) 10 - Carnaval de Perneta (Daniel Marques) 98 O grupo foi escolhido como referência para as transcrições dessa dissertação em função de representar uma continuidade e renovação do frevo, indo de encontro com o propósito dessa pesquisa. Incluindo o violão em sua instrumentação, encontramos a oportunidade de termos exemplos atuais da prática do frevo no instrumento. A escolha de três músicas de Edu Lobo interpretadas no disco deve-se ao fato de ser o compositor mais presente no repertório da orquestra. Os novos compositores não foram levados em consideração, pois demos prefência a analisar canções já consagradas, mas com uma interpretação atual. 4.2 Edu Lobo Justificaremos a seguir a escolha de três canções de Edu Lobo como objeto de pesquisa, evidenciando suas qualidades que o fazem ser uma referência enquanto compositor de frevo moderno. “‘... ninguém está fazendo frevo, ninguém faz baião’. Havia um certo preconceito com esse tipo de coisa, baião é uma música menor, frevo era menor...” (Edu LOBO apud ALBUQUERQUE, 2006:138). Eduardo de Góes Lobo, filho do compositor pernambucano Fernando Lobo, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 29 de agosto de 1943. Começou tocando acordeon aos oito anos de idade, mudando para o violão aos dezesseis. Foi criado em sua cidade natal, mas também na casa dos tios em Recife, durante suas férias escolares. Frequentou shows e eventos ligados à bossa-nova na década de 1960, conhecendo e fazendo amizade com seus principais representantes, como Tom Jobim e Vinícius de Moraes, com quem acabou sendo parceiro em algumas composições. Devido ao alto nível dos músicos da época, Edu logo percebeu que poderia utilizar a influência de suas raízes pernambucanas por parte de família para criar sua identidade, algo diferente do que era feito nesse período51. 51 Essas informações constam na biografia disponível em seu site na internet: (www.edulobo.com) 99 “Foi uma coisa instintiva. E eu acho que de sobrevivência mesmo. ‘Bom, o Baden faz por aqui. Quem sabe seu eu misturar o frevo?’ Sei lá, ‘Cordão da Saideira’, por exemplo. ‘Se eu misturar isso aqui com as harmonias que eu aprendi do Tom?’ Quer dizer, era um frevo-canção, mas não do jeito do frevo do Antonio Maria, por exemplo. Antônio Maria fazia... as harmonias eram mais simples, eles não tocavam violão. Meu pai também fazia coisas assim... mas eles não tocavam instrumento nenhum. Então eu comecei a misturar para ver o que dava. E eu acho que com isso foi que o meu trabalho deu a partida, porque ele começou a ter uma coisinha diferente do que se estava fazendo.” (apud ALBUQUERQUE, 2006:142) Nota-se que essa observação de que os dois compositores citados não tocavam um instrumento musical não é uma informação precisa, pois segundo o “Dicionário Cravo Albin”, Fernando Lobo fez parte da Jazz Band Acadêmica de Pernambuco como violinista. Edu Lobo lembra também o impacto e a influência que Baden Powell teve em sua maneira de tocar violão e também na construção de sua estética enquanto compositor, despertando um olhar para a parte rítmica e a música de Pernambuco: “Mas o que transformou o meu violão foi o ‘Berimbau’. Foi quando... o Baden tocando aquele violão mais batido, mais percussivo, que é muito mais o que eu toco, e que começou a me dar essa possibilidade de misturar com as coisas do Norte, Nordeste, enfim, de Pernambuco, eu comecei a fazer frevo, mas com as harmonias da bossa nova...” (apud ALBUQUERQUE, 2006:142) Edu Lobo teve formação de orquestração em Los Angeles52. Causou surpresa em muitos amigos quando, em 1969, logo após ter obtido o primeiro lugar no III Festival da Música Popular Brasileira em 1967 com a canção “Ponteio”, decidiu dar uma breve pausa em suas apresentações e “... se dedicou ao estudo sistemático da música, fazendo cursos de orquestracão com Albert Harris e de música para cinema, com Lalo Schiffrin.” (MELLO apud ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA,1998:67). Edu trabalhou como orquestrador e compositor de trilhas musicais para teatro e televisão, chegando a ser orquestrador contratado da Rede Globo de Televisão durante 1974 e 1975. 52 Informação obtida em seu DVD “Edu Lobo – Vento Bravo”. 100 Teve suas composições interpretadas por grandes nomes da chamada MPB, como Elis Regina, Tom Jobim, Chico Buarque... Em 2006 o saxofonista Mauro Senise lançou um disco instrumental chamado “Casa Forte”, dedicado exclusivamente à obra de Edu Lobo, que contém a canção “Cordão da Saideira” interpretada de forma apenas instrumental. Percebemos, portanto, a junção das qualidades necessárias para um grande compositor de frevo com propriedade violonística: entendimento de orquestração, conhecimento do instrumento e da estética do frevo. Edu Lobo, por ser também um compositor de canções, aproveitou para compor frevos cantados. Juntou elementos da bossa-nova e de todo conhecimento formal que desenvolveu em seus estudos para criar um tipo de frevo-canção original, que podemos ainda classificar de frevo-de-bloco, dependendo da interpretação que a canção pede. Seu lado violonístico foi aprimorado tendo Baden Powell como principal referência, o que nos permite perceber as harmonizações originalmente escritas em seu Songbook (1994) de forma violonística soando muito bem ao instrumento, dando conta de sua extensão e timbre. Por essas qualidades, o compositor foi eleito para estudo, através de suas harmonias violonísticas interpretadas pelo grupo Frevo Diabo. Acreditamos ser o compositor ainda em atividade que melhor representa uma maneira moderna e atual de compor frevos cantados. 4.3 Cordão da Saideira Esse foi interpretado como típico frevo-de-bloco, incluindo violinos e clarineta em sua instrumentação. É cantado por um coro feminino sem a presença do cantor solista e sua introdução começa com um apito exatamente como nas gravações antigas. Entre as três canções de Edu Lobo, essa é onde o violão mais se caracteriza como acompanhador tradicional. Em poucos momentos ele sola uma melodia. Concentra-se mais nas baixarias tradicionais, dobrando alguns outros instrumentos. Seu arranjo é bem violonístico, utilizando as figuras rítmicas do pandeiro e são muito aproveitadas as cordas soltas em alguns dedilhados e acentuações de frases. É importante notar as características percussivas exploradas onde há antecipação dos acordes e inversão dos ostinatos para dar a sensação de ausência de gravidade física na música. 101 Figura 12: No Cordão da Saideira – Cp. 1-32 / Edu Lobo 102 Figura 13: No Cordão da Saideira – Cp. 33-68 / Edu Lobo 103 Figura 14: No Cordão da Saideira – Cp.69- 108/ Edu Lobo 104 Figura 15: No Cordão da Saideira – Cp.109- 142/ Edu Lobo 105 4.4 Frevo Diabo Arranjo inspirado em frevo-canção, ou seja, instrumentação de frevo-de-rua onde o cantor tem a melodia principal. É uma música mais pesada se comparada às outras duas de Edu Lobo. Por isso, optou-se pela guitarra ao invés do violão na gravação. Inclusive há um momento de solo de guitarra na terceira volta da parte “A”. Observa-se que o solo essencialmente melódico trabalha de uma forma diferente do violão solo. Nesse solo as articulações estão escritas em forma de ligados, que são a essência da articulação frevística. Percebem-se os deslocamentos melódicos do tempo forte. Aqui o instrumento está fazendo a parte essencial da melodia enquanto há uma base tocada pelos outros instrumentos. Acontecem diálogos entre a guitarra e o náipe de sopros bem divididos em alguns momentos. Nota-se também o uso do ostinato original do pandeiro. É interessante observar os detalhes na diferença de timbre entre o violão das outras músicas e a guitarra elétrica. 106 Figura 16: Frevo Diabo – Cp.1- 54/ Edu Lobo e Chico Buarque Arr. Banda – Armando Lôbo e Arr. Guitarra – Daniel Marques 107 Figura 17: Frevo Diabo – Cp.55-108/ Edu Lobo e Chico Buarque Arr. Banda – Armando Lôbo e Arr. Guitarra – Daniel Marques 108 Figura 18: Frevo Diabo – Cp.109-162/ Edu Lobo e Chico Buarque Arr. Banda – Armando Lobo e Arr. Guitarra – Daniel Marques 109 Figura 19: Frevo Diabo – Cp.163-164/ Edu Lobo e Chico Buarque Arr. Banda – Armando Lobo e Arr. Guitarra – Daniel Marques 110 4.5 Frevo de Itamaracá Aqui o violão lidera a base como único acompanhador. Há um diálogo de opostos entre o saxofone barítono e o flautim, centrado pelo violão. O violão trabalha intensamente a inversões dos acordes com sua afinação da sexta corda em “ré”, resultando numa sonoridade que relembra Baden Powell em alguns momentos. O sax e o violão dobram juntos os baixos em determinados trechos. Em relação às vozes, há um arranjo peculiar que relembra alguns tipos de frevo-canção mais tradicionais onde o cantor solista é acompanhado por um coro feminino. Não há caixa de bateria (tarol), deixando o pandeiro mais presente. Chama-se a atenção para os momentos de improviso do sax e do flautim em conjunto, onde o violão exagera nos rasqueados, sem necessariamente dividir as vozes da harmonia. Também se utiliza dos ostinatos de pandeiro e, assim como em “Frevo Diabo”, desloca o tempo forte jogando com a gravidade. 111 Figura 20: Frevo de Itamaracá Cp.1-45/ Edu Lobo 112 Figura 21: Frevo de Itamaracá Cp.46-90/ Edu Lobo 113 Figura 22: Frevo de Itamaracá Cp.91-135/ Edu Lobo 114 1 Figura 23: Frevo de Itamaracá - Cp.136-180/ Edu Lobo 115 Figura 24: Frevo de Itamaracá - Cp.181-201/ Edu Lobo 116 4.6 Exemplos rítmicos de acompanhamento para a mão direita Seguem alguns exemplos de “levadas” (ostinatos rítmicos) centrados na técnica da mão direita. Esses foram elaborados com o intuito de mostrar como funcionam algumas adaptações de idéias independentes de acompanhamento no violão. Os exemplos são apresentados no pentagrama (Figuras 25 a 27, p. 117 a 119) e comentados ao final (p. 119). 117 Figura 25: Frevo – Levadas Rítmicas - Frevos 1 a 5 / Daniel Marques 118 Figura 26: Frevo – Levadas Rítmicas – Frevos 5 (cont.) a 8/ Daniel Marques 119 Figura 27: Frevo – Levadas Rítmicas –Frevo-de-bloco 9/ Daniel Marques Frevo 1: baseado no ostinato da caixa (tarol) com imitação de rufo no compasso 2. Pequena variação do ostinato mais comum (figura 25). Frevo 2: aproveitamento do ostinato do pandeiro traduzido como dedilhado (figura 25). Frevo 3: “levada” marcial imitando o rufo da caixa utilizando rasqueado. Ostinato binário alternativo ao quaternário (figura 25). Frevo 4: variação da anterior (figura 25). Frevo 5: ostinato pandeirístico com os baixos em contratempo (figura 25). Frevo 6: variação da anterior antecipando a harmonia seguinte (figura 26). Frevo 7: variação com mais baixos e finalização imitando variações da caixa (tarol) (figura 26). Frevo 8: outra variação utilizando cordas soltas e baixos no médio grave (corda ré) em contratempo (figura 26). Frevo 9: frevo-de-bloco típico juntando a harmonia com as frases de baixo (“baixaria”) (figura 27). 120 CONCLUSÕES GERAIS A fim de estudar o violão no frevo foram analisados os diversos aspectos do gênero, além da questão exclusivamente técnica do instrumento. Isso foi feito de modo complementar. Essa abordagem se mostrou adequada, já que possibilita maior compreensão do instrumento e do gênero, na forma integrada. Pretendeu-se, assim, contribuir com os futuros pesquisadores sobre o tema. Ao longo da pesquisa realizada foi constatada a falta de material editado a respeito do frevo. Dessa forma, o pioneirismo da discussão acadêmica, desenvolvida na presente dissertação, a respeito da atual situação do frevo e das decorrentes dificuldades para quem pretende desenvolver uma linguagem violonística nesse gênero musical, abre uma nova perspectiva para o gênero. As possíveis causas dessas dificuldades foram levantadas e discutidas. Podem ser consideradas desde as relações sócio-artísticas existentes em sua prática, assim como um aparente conservadorismo em relacão a “verdadeira” estética de sua música, até dificuldades técnicas estritamente musicais. Apesar das tensões entre “popular” e “erudito”, modernização e tradição, pode-se observar alguma produção violonística relevante que abre uma porta para os próximos intérpretes que quiserem desenvolver uma linguagem de violão baseada no frevo. Sem essa rara producão seria impossível ter alguma base como ponto de partida para seu estudo. Nesse sentido vale observar que o trabalho formal baseado no frevo que existe foi elaborado por músicos que tiveram a preocupacão de editar sua obra, o que possibilita transcender geracões no que diz respeito a sua música. Isso demonstra que o registro formal também contribui para a perpetuacão de um gênero musical. A música brasileira em geral apresenta uma base rítmica forte que deve ser observada pelos violonistas na hora de traduzi-la no instrumento. Os caminhos de tradução de cada gênero musical para o violão possuem alguns elementos em comum: observar as articulações melódicas, as harmonias, os ritmos essenciais. As figuras de ritmo e as funções de cada instrumento percussivo devem ser minuciosamente estudadas quando um violonista quiser desenvolver a habilidade 121 de acompanhador ou de solista. Por ser um tipo de música a qual poucos violonistas solistas se dedicaram, o novo solista vai ter que agir com certa ousadia com o frevo, porque os parâmetros de referência para a música que estiver sendo produzida serão essencialmente as orquestras. Concluimos que alguns violonistas terão que fazer suas próprias transcrições para que seu repertório não fique restrito ao pouco já produzido nessa área. Isso não seria novidade se tomarmos, como exemplo, o repertório original para alaúde de J.S. Bach que sofreu inúmeras adaptações para o violão. No caso, o alaúde tem semelhanças técnicas com o violão mas, no frevo, o violonista deve buscar traduzir idéias artístico-musicais, escolhendo e desenvolvendo a princípio uma técnica própria. Algumas questões técnicas dos instrumentos de sopro não possuem paralelo no violão, obrigando o violonista a descobrir suas próprias soluções ou recorrendo a técnicas dos instrumentos de cordas, como bandolim e cavaquinho. Percebem-se elementos em comum nas três peças para violão solo analisadas que são características frevísticas gerais. Cada compositor resolveu suas questões composicionais utilizando recursos violonísticos, o que tornou interessante o estudo de tais peças. Foram explorados fraseados arpejados, outras afinações, cordas soltas para melhorar a articulação e facilitar a execução de frases virtuosísticas. Também se encontram harmonias inusitadas para acentuar ataques de acordes dissonantes ou para sugerir um movimento inesperado das vozes que possa sugerir movimento de dança entre vai e vem, sobe e desce, contrastes e paradoxos que façam com que a música nunca seja estática. Os três compositores de diferentes gerações atingiram com originalidade uma das principais qualidades do gênero: o movimento. Todas essas peças merecem estudo aprofundado e novas interpretações para que a produção do frevo violonístico também possa sempre estar em movimento. Como foi comentado anteriormente, a técnica de um instrumento está sempre em transformação e possui dinâmica própria dependendo da identidade de cada violonista. A variedade de interpretações é positiva. Assim como cada orquestra possui uma identidade, traduzindo o frevo cada uma à sua maneira, é importante que o violonista tenha um estudo completo do gênero que está tocando, para poder criar sua identidade a partir de uma base musical forte. 122 As transcrições dos violões de acompanhamento sugerem como o violão pode dialogar com a orquestra ou fazer uma base mais elaborada se fizer parte de uma formação menor. No segundo caso há mais espaço para o instrumentista sofisticar seu acompanhamento do ponto de vista melódico e harmônico. Existem movimentos de mão direita que devem ser desenvolvidos para obter um resultado mais ritmado. Interpretar um ritmo não pode ser somente uma leitura técnica da partitura. O timbre do ritmo, por exemplo, é parte da interpretação. Os instrumentos de percussão são a referência. Existe uma maneira tradicional de acompanhar no violão que é calcada no improviso dos baixos (baixaria). No caso do frevo, é importante que o violonista conheça bem a orquestração da música para que seu improviso não atrapalhe outras vozes descaracterizando a gênero. Os contrapontos são mais delineados que no choro, por exemplo. Além de ser fundamental a prática, que antecede o estudo técnico, pode-se consultar a lista de CDs na bibliografia da presente pesquisa. Enfim, conclui-se que a elaboracão de uma linguagem do frevo no violão foi apontada por poucos e que merecem atencão, e as portas estão abertas para o músico que quiser colaborar com novas possibilidades. Poucos caminhos já foram tentados e há tantos outros que ainda não. O violão no frevo encontra-se em construção. 123 BIBLIOGRAFIA 1) Livros ANDRADE, Mário de. Dicionário Musical Brasileiro, Editora Itatiaia, reedição, 1989. ANDRADE, Mário de, em Ilustração Musical, ano I, nº 2. ALBIN, Ricardo Cravo Albin. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro. Editora Paracatu, 2006. 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Orquestra Popular do Recife.“...e o Frevo Continua”, 2007. 127 ANEXO 1 Entrevistas 128 Alguns violonistas responderam por email a um breve questionário sobre suas inspirações para comporem frevos ou interpretá-los. Foram eles: Fábio Zanon, Francisco Araújo, Erisvaldo Borges, Alessandro Penezzi, Cláudio Almeida e Marco Pereira. Fabio Zanon DM: Você se inspirou em alguma composição específica para interpretar o frevo do Radamés? FZ: Não, foi mais um som meio genérico de frevo que a gente tem implantado na cabeça, mas frevo de banda, mesmo. DM: Quais as dificuldades técnicas dessa peça? Tem alguma recomendação para executá-la bem, alguma dica? Que características do gênero frevo na sua opinião estão evidentes na composição? FZ: Ela não é das coisas mais difíceis, começa a ficar difícil de controlar à medida que fica mais rápida, e eu acho que ela tem de ser bem rápida pra parecer um frevo de rua, mesmo. De dica, acho que a 2a parte tem uma seção com harpejos em tercinas de semicolcheia em baixo de uma melodia. Eu penso esses harpejos como um ornamento da melodia, assim o baixo fica mais marcado e instável, com grupos de 2 + 3 semicolcheias ao invés de harpejo borrado de 5 notas. No mais é ter o ritmo muito firme na cabeça e no corpo,e prestar mais atenção nisso em que acertar as notas, porque quem toca isso com cuidado acerta as notas, mas erra a música. Acho que o que realmente faz disso um frevo são os padrões rítmicos, as síncopas num ritmo de marcha, as figuras harpejadas, realmente parece que estou ouvindo a banda do Spok ou algo assim. DM: Como foi seu primeiro contato com o frevo? E com frevo violonístico? 129 FZ: Deve ter sido através da televisão. Lembro de ter visto num livro, quando tinha uns 7 anos, umas figuras bonitas de dançarinos de frevo, e minha professora primária me explicou como era a dança e disse "você é bem magrinho, seria um bom dançarino de frevo". Eu era criança quando apareceram aqueles frevos famosos do Caetano Veloso, claro que é a primeira coisa que lembro quando falo de frevo. Frevo de violão eu lembro que por volta de 1990 a Cristina Azuma estava pensando em fazer um disco só com frevos de violão, e eu não conhecia nada, mas acho que nunca a vi tocar nada e nem sei o que ela tinha em mente. Acho que o primeiro que vi foi o do Radamés, mesmo. Os violonistas populares que tocam frevo eu conheci depois. Eu achei que o Antonio Madureira teria um monte de frevos, mas na verdade são bem poucos. DM: Você já tocou outros frevos no violão? Gravou? FZ: Tocar, mesmo, só o do Marlos Nobre em Reminiscências. No repertório clássico, não consigo lembrar de muitos outros, acho que tem o José de Oliveira Queiroz, o Erisvaldo Borges, o Edvaldo Cabral, o Francisco Soares de Souza deve ter alguma coisa, o Marco Pereira tem um ou dois, aquele arranjo do frevo do Santoro para 4 violões, e de cabeça não lembro mais de muita coisa. DM: Houve algum violonista que tenha sido o "maior" solista de frevo? FZ: Desconheço. Sei que Edvaldo Cabral, Antonio Madureira, José Barrense Dias, Canhoto da Paraíba toca(va)m frevos, mas se tem gente que se especializa nisso eu não conheço. DM: Por que o material de violão solo é escasso e raro de se encontrar? Você acha que houve um desinteresse dos violonistas da antiga geração de compor frevos para violão? FZ: Talvez o gênero esteja muito ligado à linguagem de banda. Não há muitos dobrados para violão, tampouco. É pesado fazer aquele monte de semicolcheia e 130 ainda manter o acompanhamento fluido. Talvez para 2 ou 3 violões seja mais fácil. DM: E as adaptações dos originais para sopro? Quais as dificuldades técnicas? FZ: Isso que acabei de falar. Fazer tudo caber num violão só. As melodias são muito ágeis. Mas tem um enorme potencial de virtuosismo. DM: Você poderia fazer uma lista das peças violonísticas que existem? Quais você acha as mais importantes? FZ: Então, não consigo lembrar de mais nenhuma além das que mencionei no texto acima. De repertório de violão estritamente clássico, acho que só o Radamés, o Nobre, e o J O Queiroz. DM: E a nova geração de violonistas no frevo? Eu tenho recebido muitos CDs de violonistas novos, mas de Pernambuco e entornos não recebi nada de frevo. Portanto ficarei agradecido se você me disser quem são as pessoas. Francisco Araújo DM: Você se inspirou em alguma composição específica para compor seus frevos? FA:Primeiro nasceu o contato com o frêvo (sic) através de uma viagem que eu realizei para a cidade de Recife quando eu era adolescente e vi pessoalmente varias exibições instrumentais de bandas de frevos durante o carnaval. Aquela vibração performática da música e a coreografia dos passos da dança a ela 131 ligados, mexeu muito com a minha sensibilidade. Posso afirmar que a inspiração partiu deste contato. Anos depois, quando comecei a estudar violão, comecei a ouvir as primorosas obras gravadas em discos de Capiba e Nelson Ferreira, que são os principais compositores e ícones do frevo e compus para solos de violão, intitulados “Na Magia Do Frêvo”, “Capibano”, “Eletrizante”, “Frêvo Simplório” e outros. Gravei em CD (solos de violão) apenas “Na Magia Do Frevo” e “Frêvo Simplório”. O outro frêvo que compus, denominado “Eletrizante”, foi gravado pelo solista e virtuose do violão Marcos Gomes. Todos estes frevos que compus são inspirados no estilo frevos-de-rua, os quais são de características instrumentais. DM: Quais as dificuldades técnicas das peças? Que característica do gênero frevo está evidente na composição? FA: Tecnicamente são muito difíceis, pois são executados em andamento rápido. As características dos meus frevos é (sic) típica do estilo frevo-de-rua, pelo fato de serem instrumentais. DM: Quais são seus frevos para violão solo? Poderia me enviar? FA: Além dos que já citei acima, ainda compus outros, são eles: “Recife Antigo”, “Com Todo Vapor”, “Caindo No Frevo”, e mais um frevo que faz parte de uma Suíte Brasileira composta para solos de violão, mas este não tem título. Posso lhe enviar as partituras ou algumas gravações, com muito prazer, só que para isto é necessário que você me envie o seu endereço o CEP e o seu telefone. DM: Como foi seu primeiro contato com o frevo violonístico? FA: Com relação ao frevo violonístico, o frevo tem uma vertente instrumental e uma vertente cantada (musica e letra) e como é do conhecimento de todos nós, existem vários tipos de frevo. DM: Você já tocou outros frevos no violão? Gravou? 132 FA: Só gravei alguns de minha autoria, já citados acima. DM: Houve algum violonista que tenha sido o "maior" solista de frevo? FA: Especificamente, eu não conheço, mas posso te informar que grande parte de solista e virtuoses do violão brasileiro gravaram ou criaram alguma obra no gênero. Entre eles: Paulinho nogueira, o compositor Egberto Gismonti, Canhoto da Paraíba, Alexandro Pennezzzi, Guinga e outros. DM: Por que o material de violão solo é escasso e raro de se encontrar? Você acha que houve um desinteresse dos violonistas da antiga geração de compor frevos para violão? FA: Eu atribuo isto ao fato de que para compor ou executar um frevo instrumental é necessário que primeiro conheça as características rítmicas melódicas do frevo e tenha uma convivência com o gênero e, além disso, tenha qualidades de virtuose, entre outras. Com relação aos solistas e virtuoses do violão de gerações anteriores à minha, eu não acho que houve desinteresse. Talvez isto esteja ligado inicialmente no primeiro momento às características regionais do frevo pelo fato de ser uma musica típica do carnaval pernambucano. DM: E as adaptações dos originais para sopro? Quais as dificuldades técnicas? FA: Para instrumento de sopro as dificuldades técnicas são as mesmas, ou seja o instrumentista tem que ser em principio um virtuose. E a quantidade de repertório é bem maior do que para solos de violão, pelo fato do frevo inicialmente ser tocado por bandas de instrumento de sopro e percussão, o que não significa que a presença do violão não seja notada como instrumento acompanhante e posteriormente em menor escala como instrumento solista. DM: Você poderia fazer uma lista das peças violonísticas que existem? Quais você acha as mais importantes? 133 FA: Entre os frevos para solos de violão vou citar as seguintes: os frevos feitos pelo Guinga, os dois frevos compostos por Egberto Gismonti, o frevo do Canhoto da Paraíba, denominado “Pisando Em Brasa”, o “Frevinho Doce”, do Paulinho Nogueira, o frevo do Alessandro Penezzi, para solos de violão. Para sua informação tem um compositor chamado Erivaldo Borges, residente no Maranhão que é solista de violão e também compôs alguns frevos para violão. Era bom perguntar ao virtuose do violão Sebastião Tapajós, que eu acho que ele também poderá ter alguma composição no gênero. DM: E a nova geração de violonistas no frevo? AP: O Alessandro Penezzi, se for motivado fará obras de grande expressão neste estilo. Com certeza existem outros virtuoses do violão ilustres e desconhecidos que se criaram e dedicaram atenção especial ao frevo, pelo fato de ser ele uma expressão e um estilo musical vivo e substancial para a história da música brasileira. Erisvaldo Borges DM: Você se inspirou em alguma composição específica para compor seus frevos? EB: Eu tenho apenas três composições nesse estilo: “Folia Pernambucana”, “Frevo” e “Frevinho”. Eu nunca estive no Pernambuco. O que eu conheci de frevo para violão antes de compor estes trabalhos foi: para violão “Frevo Rasgado” (E. Gismonti), “Pixaim” (M. Pereira), “Frevinho Doce” (P. Nogueira) e “Frevo” (da obra “Reminissências” do Marlos Nobre). Ouvi alguns frevos que o Turibio gravou no CD “O Violão Brasileiro de Turibio Santos”. Para outros instrumentos, apenas algumas gravações de frevos tradicionais e Orquestra de Cordas do Pernambuco. Não tenho uma vivência muito ativa no mundo do frevo, mas acho uma música 134 encantadora (e virtuosística - que na época em que fiz estas músicas cultivava muito). Acho que de alguma maneira estas músicas me influenciaram. DM: Quais as dificuldades técnicas das peças? Que característica do gênero frevo está evidente na composição? EB: Frevo é uma música muito virtuosística. Requer muita precisão na pegada e muito controle na esquerda. Se não tiver isso a música não acontece. DM: Você já tocou outros frevos no violão? Gravou? EB: Além das minhas composições, só toquei dois outros frevos: “Frevo Rasgado” (E. Gismonti) e “Pixaim” (M. Pereira). DM: Houve algum violonista que tenha sido o "maior" solista de frevo? EB: Não conheço nenhum especialista nesse tipo de música. DM: Por que o material de violão solo é escasso e raro de se encontrar? Você acha que houve um desinteresse dos violonistas da antiga geração de compor frevos para violão? EB: Acredito que essa carência se dá em parte pela dificuldade de tocar frevo no violão. É uma música muito virtuosística. Para tocar frevo bem eu me inspiro nos violonistas flamencos e no rei da velocidade na guitarra elétrica - Yngwie Malmsteen. Eles não conheciam essas coisas. Mas, apesar do exposto, acredito que se encontre alguma coisa com algum colecionador. Por se tratar de uma música popular, eles não tinham muita preocupação em escrever. É possível que muitos frevos tenham sido feitos, mas a maioria deve ter ido para o espaço. DM: E as adaptações dos originais para sopro? Quais as dificuldades técnicas? 135 EB: As dificuldades naturais: o que é fácil para um determinado instrumento, dificilmente fica bem no violão. É como querer tocar as obras para "alaúde" (teclado) de Bach. O esforço é enorme. DM: E a nova geração de violonistas no frevo? EB: Tem muita gente tocando frevo por aí. O Yamandu Costa me falou de um violonista de Recife que tem algumas composições nesse estilo. Alessandro Penezzi DM: Vc se inspirou em alguma composição específica para compor seu frevo? AP: Na realidade, não foi uma composição específica que me inspirou para compor os frevos, mas várias. Gosto muito de ouvir os frevos do Capiba, Sivuca, Luperce Miranda... DM: Quais as dificuldades técnicas dessa peça? Que característica do gênero frevo está evidente na composição? AP: Penso que as dificuldades técnicas para se tocar frevo no violão sejam quase sempre de ordem técnica. Para se manter a levada, a pulsação, o andamento, os baixos. Por serem as melodias muito variadas ritmica e melodicamente, o trabalho de coordenação entre os dedos que solam e acompanham é de extrema dificuldade. A característica mais marcante no frevaricando é a levada, além dos aspectos rítmicos da melodia. DM: Você tem outros frevos pra violão solo? Poderia me enviar? AP: Tenho o “Café pelando”, que ainda estou escrevendo. 136 DM; Como foi seu primeiro contato com o frevo? E com frevo violonístico? AP: Eu primeiramente toquei os frevos no bandolim. Depois passei para o violão. DM: Você já tocou outros frevos no violão? Gravou? AP: Toquei o frevo do Marco Pereira, mas não gravei. Toque também o “Duda no Frevo”. DM: Houve algum violonista que tenha sido o "maior" solista de frevo? AP: Desconheço... DM: Por que o material de violão solo é escasso e raro de se encontrar? Você acha que houve um desinteresse dos violonistas da antiga geração de compor frevos para violão? AP: Acredito que essa escassez se deva a vários fatores: dificuldades de escrita dos autores (o arranjo para violão já é difícil de se escrever, quanto mais um arranjo de frevo...), desinteresse de editoras para publicar, falta de divulgação de tais autores, possível falta de conhecimentos de escrita musical por parte dos mesmos. DM: E as adaptações dos originais para sopro? Quais as dificuldades técnicas? AP: Necessidade de buscar uma tonalidade condizente com o violão, procura pelas cordas soltas para facilitar passagens rápidas e saltos, manutenção de levada, manutenção de baixos. 137 Claudio Almeida DM: Houve algum violonista que tenha sido o "maior" solista de frevo? CA: Não conheço. Lembro-me demais de Turíbio Santos interpretando Duda no Frevo (Senô). Ainda anteontem tocou Duda no Frevo. Levino Ferreira - um dos maiores compositores de frevos-de-rua - era violonista. Mas, não acredito que tenha gravado algum frevo. Como ele tocava também instrumentos de sopro, as músicas dele fizeram sucesso com Orquestra. A Orquestra de Cordas Dedilhadas - daqui e de tanto sucesso no país - gravou frevos. Mas, não me lembro de arranjos só para violão. DM: Por que o material de violão solo é escasso e raro de se encontrar? Você acha que houve um desinteresse dos violonistas da antiga geração de compor frevos para violão? CA: Acho que os violonistas - e demais instrumentistas de cordas e metais continuam criando. Mas, sempre há uma cultura dos frevos serem gravados por Orquestra de sopros. Capiba e Nelson Ferreira eram pianistas. De Capiba só conheço um frevo-de-rua (“Vassourinhas no Rio" ???). Já Nelson Ferreira foi o grande compositor de frevos-de-rua (Gostosão, Gostosinho, Come e Dorme...) e deixou para sempre alguns frevos-de-bloco, como o conhecido nacionalmente Evocação (que depois passou a ser Evocação No.1, pois ele compôs mais 6 - no mesmo gênero... até a Evocação No.7). As 3 primeiras, no entanto, são as mais conhecidas.As outras o povo nem toma conhecimento. DM: E as adaptações dos originais para sopro? Quais as dificuldades técnicas? CA: Não acho que existam dificuldades. O Maestro Duda, por exemplo, já fez muitas adaptações para orquestras. No meu caso específico, compus TRANSCENDENTAL (frevo de violonista - segundo os brincalhões - por ser cheio de harmonias dissonantes). Duda foi quem fez o arranjo original para Orquestra, 138 Antônio Nóbrega gravou no seu NOVE DE FREVEREIRO, vol. 1. O solo é feito por ele, mas com um naipe de saxes, inclusive o Maestro Spok. O arranjo, também para esse CD, é do Maestro Duda. Henrique Annes deve ter frevos... não os conheço com Orquestra de Sopros. Canhoto da Paraíba, meu amigo e uma unanimidade nacional fez tudo para violão. No momento, não me lembro de ter composto frevos. DM: Você poderia fazer uma lista das peças violonísticas que existem? Quais Você acha as mais importantes? CA: Relativas a frevo? Só se eu pesquisasse direitinho. Não me lembro assim. Só pesquisando. DM: Ainda se usa afinar o violão um tom abaixo ao invés de 440hz para acompanhar os frevos? CA: Não. No Bloco da Saudade, por exemplo, há uns 10 anos se usava muito isso. Mas, acho que hoje em dia todos são afinados em 440. DM: E a nova geração de violonistas no frevo? CA: Ultimamente, o frevo-de-rua tem sido cortejado pelos arcodeonistas que são conhecidos como forrozeiros. Um grande guitarrista e violonista daqui (mesmo tendo nascido em Paulo Afonso-BA) - Luciano Magno - recentemente participou do Festival da Prefeitura com uma frevo-de-rua (além de um frevo-de-bloco). João Lyra, violonista (você deve conhecê-lo demais - toca com Nana; tocou com Sivuca, Fagner, etc...) tem um frevo-de-rua em parceria (coisa raríssima no gênero) com Spok (título: Passo de Anjo). Outros violonistas do conservatório e da nova geração devem estar compondo frevos (não sei se para violão... provavelmente, para orquestra). Fred Andrade é um deles. Sei que Bozó - grande 7 cordas daqui (talvez o maior) tem um frevo-de-rua, pelo menos. Mas, para orquestra. E outros grandes violonistas têm composto frevos-de-bloco (mais dolentes, mais melodiosos... de harmonia mais rebuscada). 139 Marco Pereira DM: Você se inspirou em alguma composição específica para compor seus frevos? MP: Talvez inconscientemente tenha me inspirado em algum tema específico, mas quando fiz 'meus frevos' tentei buscar referências dentro do próprio estilo: ritmo da melodia, fraseado e outras características típicas. DM: Quais as dificuldades técnicas das peças? Que característica do gênero frevo está evidente nas composições? MP: As mesmas descritas acima. DM: Como foi seu primeiro contato com o frevo? E com frevo violonístico? MP: Quando fiz meu primeiro frevo para violão solo (Pixaim) nunca tinha ouvido ninguém tocar frevo só com o violão. DM: Você já tocou outros frevos no violão? Gravou? MP: Já toquei vários frevos, mas apenas para conhecer o tema (melodia e harmonia). Gravar, só gravei os meus mesmo. DM: Houve algum violonista que tenha sido o "maior" solista de frevo? MP: Desconheço, mas acho que o Canhoto da Paraíba é um exemplo interessante e um bom candidato. DM: Por que o material de violão solo é escasso e raro de se encontrar? Você acha que houve um desinteresse dos violonistas da antiga geração de compor frevos para violão? 140 MP: Não acho isso, não! Acho que o 'ambiente' do frevo não é tradicionalmente de violonistas e por esse motivo é que não existe repertório específico. DM: E as adaptações dos originais para sopro? Quais as dificuldades técnicas? MP: A adaptação da rítmica e do fraseado do frevo para o violão é muito complexa e resulta sempre em dificuldades técnicas transcendentais. Acho que é o gênero mais difícil de se praticar com o violão solo. DM: Você poderia fazer uma lista das peças violonísticas que você conhece? Quais você acha as mais importantes? MP: Não tenho esse repertório de memória. Só me lembro mesmo das minhas... DM: E a nova geração de violonistas no frevo? Você teria algum nome a indicar? Acho que só conheço mesmo você que esteja fazendo um trabalho específico sobre o gênero. 141 ANEXO 2 Arranjos Integrais da Orquestra Frevo Diabo Partitura 142 143 144 145 146 147 148 149 150 151 152 153 154 155 156 157 158 159 160 161 162 163 164 165 166 167 168 169 170 171 172 173