FÁBIO RÉGIO BENTO MAQUIAVEL SOCIÓLOGO E outros ensaios 2009 2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 MAQUIAVEL SOCIÓLOGO 1.Realismo de Maquiavel e realismo maquiavélico 2.Realismo, ética e etologia 3.Maquiavel sociólogo 3.1.Realismo e positivismo – coisificação dos fatos sociais 3.2.Maquiavel, ciência política e sociologia política Conclusão Referências CAPÍTULO 2 SOBRE A CENTRALIDADE DA HERMENÊUTICA DOS CONFLITOS NO DIREITO POSITIVO 1.Objeto primário de estudo do direito 2.Escopos do direito 3.Hermenêutica dos conflitos e dogmática jurídica 4.Direito positivo, legalismo e positivismo 5.Direito positivo e direito natural 6.Direito positivo e valores coletivos Conclusão Referências CAPÍTULO 3 UNIVERSIDADE E DEMO-FRATERNIDADE 1.A dialética positiva da fraternidade 2.Primeira etapa – paradigma da liberdade 3.Segunda etapa – paradigma da igualdade 4.Terceira etapa – paradigma da fraternidade 5.Terceiro paradigma e universidade Referências 3 CAPÍTULO 4 QUESTÃO SOCIAL E CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NO BRASIL 1.Questão social 2.Questão social no Brasil 3.Questão social e construção da democracia 4.Questão social e construção da democracia no Brasil Referências CAPÍTULO 5 ENSAIOS DE INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA 1.Metodologia da sociologia 1.1.Método indutivo e dedutivo 1.2.Metodologia positivista 1.3.Neutralidade absoluta e relativa 1.4.A lei dos três estados 1.5.Sociologia prescritiva 2.Sociologia – Ciência da sociedade moderna 2.1.Revolução na revolução 2.2.Revolução no ritmo de trabalho e de vida 3.Sociologia das mudanças sociais 3.1.Karl Marx e Eduardo Bernstein 3.2.Democracia social 4.A revanche do campo – Ruralidade e slow production 4.1.Trabalho, tempo livre e qualidade de vida 4.2.Conquista e perda do tempo livre 4.3.Ativismo, preguiça e desenvolvimento sustentável 4.4.Ruralidade e qualidade de vida 5.Émile Durkheim e a reconstrução da comunidade 5.1.Educação e adaptação social 5.2.Integração e desintegração social 5.3.Consenso social e anomia 5.4.Da anomia à comunidade 6.Max Weber e a sociologia do desencanto 6.1.Industrialização e racionalização 6.2.Racionalismo e desencanto Referências AUTOR 4 INTRODUÇÃO A sociologia é uma ciência social que conquistou credibilidade pelo exercício das suas duas utilidades fundamentais: utilidade cognitiva e prática. No ensino superior, as disciplinas sociológicas estão em praticamente todos os cursos de graduação. Nos cursos de educação física, temos a sociologia geral e do esporte; nos de turismo, a sociologia geral e do turismo; nos de direito, a sociologia geral e do direito; nos de administração, a sociologia geral e do trabalho. Temos, também, a sociologia das organizações; do crime e da violência; do lazer; do turismo rural; etc. A necessidade de se compreender a sociedade a partir de recortes específicos determinados pelas áreas também específicas do saber, fortaleceu o enfoque sociológico centrado em temas fáticos específicos (sociologia temática). As escolas e autores cumprem papel hermenêutico decisivo, mas subordinados aos fatos temáticos específicos. A popularização da sociologia entre os cursos de graduação em outras áreas do saber não significa empobrecimento da análise sociológica, mas centralidade dos fatos e ênfase na dupla utilidade da investigação sociológica: cognitiva e prescritiva (prática). Neste livro, começaremos investigando a possibilidade de considerarmos Maquiavel como fundador da sociologia, pelas semelhanças entre o pensamento realista do secretário florentino e a metodologia positivista dos franceses Augusto Comte e Émile Durkheim. No segundo ensaio, de sociologia do direito, sobre a centralidade da hermenêutica dos conflitos no direito positivo, identificaremos as relações de subordinação e complementaridade entre hermenêutica dos conflitos e dogmática jurídica. É a prioridade da hermenêutica dos conflitos em relação à 5 dogmática jurídica (aplicação de tratamentos normativos) que qualifica o direito positivo como ciência social aplicada. No terceiro, estudaremos as relações entre a função social das universidades nas sociedades democráticas e o terceiro paradigma da Revolução Francesa, que consideramos ser uma revolução inacabada. No quarto ensaio, queremos identificar as características principais da assim chamada “questão social”, central na sociologia, e suas peculiaridades na história política reformadora do Brasil. No quinto ensaio, tentamos fazer um resumo dos principais temas abordados pelos estudantes de sociologia geral de cursos não-sociológicos de graduação. Nele foi privilegiada a compreensão da sociologia como sociologia crítica, que é a que, além de descrever e interpretar, também avalia os fatos e propõe mudanças no curso da história. Para alguns renomados cientistas sociais latino-americanos, “o percurso feito pelas Ciências Sociais da América Latina esteve sempre fortemente ligado à análise dos problemas concretos – macro ou micro, segundo os períodos e países – assim como à vontade dos cientistas sociais de incidir sobre tais problemas” (TRINDADE, 2006, p.375). Tal é, também, a dupla motivação do autor destes ensaios de sociologia. 6 CAPÍTULO 1 MAQUIAVEL SOCIÓLOGO Ensaio que afirma a hipótese de Maquiavel como fundador da sociologia e apresenta os argumentos que sustentam a razoabilidade da afirmação: relações entre a metodologia indutiva do pensamento realista de Maquiavel e do pensamento positivista de Comte e de Durkheim, centrado nos fatos-coisas sociais; semelhanças de método e objeto que aproximam ciência política e sociologia política. 7 INTRODUÇÃO Método significa caminho escolhido para se chegar a um fim (também escolhido). Significa modo, forma de agir, de proceder para se alcançar determinado objetivo. As questões referentes ao método não são apenas questões formais de emprego de procedimentos gerais e técnicas específicas. A escolha de métodos é condicionada por pressupostos filosóficos, morais, ideológicos dos sujeitos. As questões de método são questões pluralistas: há métodos diferentes, e enfoques, recortes também diferentes que condicionam a escolha do procedimento x ou y. Tal pluralismo asseguraria o debate sobre metodologia como debate hermenêutico, não dogmático. Ao escolher um método, escolhe-se um caminho específico de investigação para se alcançar um determinado objetivo. Na reflexão sobre a sociedade, há dois procedimentos metodológicos diferentes: o procedimento dedutivo, ou idealista, e o procedimento indutivo, ou realista. Dedutivo é o procedimento que tem como ponto de partida um conceito preconcebido considerado verdadeiro. Tal verdade a priori, metafísica, valor em forma de ideia, seria, depois, aplicada à sociedade, em forma de norma moral e/ou jurídica. Indutivo é o procedimento metodológico que tem como ponto de partida uma dúvida. Tal dúvida, em forma de hipótese, é investigada por meio da observação sistemática dos fatos. O procedimento indutivo não é metafísico, mas físico, ou positivo (de onde a expressão positivismo), focado na análise dos fatos. O objetivo do método indutivo é descobrir a verdade empírica (física) por meio do estudo sistemático dos fatos. Para o exercício da 8 observação sistemática dos fatos e fenômenos (físicos), podem ser usadas câmeras, telescópios, microscópios, mas os fatos e fenômenos são compreendidos porque observados e interpretados por meio de hipóteses investigativas, que não são superiores aos fatos. No método indutivo, a centralidade é dos fatos, interpretados por conceitos que deveriam emergir dos próprios fatos, que seriam, num certo sentido, docentes em relação à cognição do investigador. A verdade empírica estaria nos fatos, que deveriam ser compreendidos pelo observador. Método indutivo é método realista, focado na observação-interpretação dos fatos. E a palavra realismo remete nosso pensamento ao florentino Nicolau Maquiavel. Neste ensaio, queremos verificar a razoabilidade da seguinte afirmação hipotética: se o método que define a identidade epistemológica da sociologia é o método indutivo, realista, positivista, e se as diferenças entre sociologia política e ciência política não são diferenças metodológicas, mas de objeto de estudo, podemos identificar em Maquiavel a paternidade da sociologia, não tendo ele usado tal expressão, mas manifestado o significado contido em tal expressão? Antes, porém, cabe identificar as diferenças entre o pensamento de Maquiavel e o maquiavelismo a ele atribuído. 1.REALISMO DE MAQUIAVEL E REALISMO MAQUIAVÉLICO Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor do célebre O Príncipe (escrito em 1513 e publicado em 1531), nunca escreveu que fins bons justificariam o emprego de meios imorais. Nos seus livros não consta tal afirmação. Intérpretes de Maquiavel atribuíram a ele tal recomendação “maquiavélica”. 9 Maquiavel não foi um “professor do mal”, mas um “pensador do mal” (MARQUES, 2006, p.41). Ele foi um dos principais teóricos do realismo descritivo e do realismo antropológico, e não o criador do maquiavelismo. Maquiavel não recomendou maldades, expressão que representa ações humanas indesejadas, mas prováveis. Ele descreveu maldades reais praticadas na política (realismo descritivo, ou realismo metodológico). Crueldades “maquiavélicas” foram recomendadas (e encomendadas) por tiranos, e não por Maquiavel, para o qual, dentre os deveres do príncipe, estava o de “non si fare odiare dal populo” - não fazer-se odiar pelo povo (1988, p.97). Maquiavel não prescreveu meio imorais para se permanecer no poder, mas a rejeição da ingenuidade dos que não admitem que as ações indesejadas são tão prováveis quanto as ações desejadas. Quando um médico oncologista descreve o câncer, ele não o está recomendando, mas o identificando (realismo descritivo) para combatê-lo. Maquiavel usou método semelhante. O livro O Príncipe não é um receituário com prescrições de maldades. É um livro de descrições (diretas) das maldades indesejadas, e de prescrições (indiretas) que recomendam o abandono da ingenuidade. Em O Príncipe, Maquiavel descreveu a política realmente praticada, de fato praticada (daqui a palavra realismo), ao contrário dos pensadores que o antecederam, que escreviam sobre as políticas ideais (idealismo), prescindindo do que de fato ocorria no mundo real. A prescrição de artimanhas traiçoeiras como meio de se permanecer no poder (por muito tempo e a qualquer custo) consiste no maquiavelismo. O realismo de Maquiavel é realismo descritivo. O realismo do maquiavelismo é o realismo imoral dos que afirmam que fins bons justificariam o emprego de meios imorais. Maquiavel não foi maquiavélico, foi precursor do realismo metodológico (descritivo), por razões de realismo antropológico. 10 Realismo antropológico significa reconhecer, admitir que o ser humano é capaz de realizar não somente as bondades desejadas, mas, também, as maldades indesejadas. Maquiavel não afirmava que as ações humanas eram sempre más. Ele afirmava que nem sempre as ações humanas eram as boas ações desejadas, mas as ações indesejadas. Rejeitava a posição dos que confiavam de forma ingênua: “chi fonda in sul populo, fonda in sul fango” quem se apoia no povo, apoia-se na lama (Ibidem, p.64). Se todos os seres humanos fossem sempre bons, não haveria necessidade de precaução, cautela. Mas como os seres humanos não são sempre bons, não convém ser sempre bom entre tantos que não são bons (Ibidem, p.92). Maquiavel foi um realista pessimista. Ele não amava o péssimo, mas o previa (pessimismo preventivo). Reconhecia que o péssimo indesejado é tão provável quanto o bem desejado, pela ambiguidade moral que caracteriza o ser humano, de natureza ferina, segundo Maquiavel, ou natureza ferida (pelo pecado original), segundo o catecismo cristão. Maquiavel recomendava prudência, precaução, cautela, rejeição da ingenuidade, recomendava o pessimismo preventivo. Realista é a postura metodológica dos que buscam a identificação e compreensão da verdade prática a partir da observação dos fatos (reais). Pessimista é a postura moral preventiva, cautelosa, prudente, dos que admitem que a maldade indesejada (péssimo) é tão provável quanto a bondade desejada. As recomendações realistas de prudência, cautela, pessimismo preventivo derivam do reconhecimento do ser humano como moralmente ambíguo (natureza ferina). Admitir o mal não significa desejá-lo, mas reconhecer que ele é tão provável quanto o bem desejado. O pessimismo preventivo de Maquiavel não deseja o péssimo, mas admite realisticamente que o mal indesejado é tão 11 provável quanto o bem desejado. Pessimismo, em tal sentido, não seria vício, mas virtude política, contida na prudência. Para o pessimismo preventivo, os ingênuos tendem a ser mais tristes que os pessimistas (pessimismo preventivo), pois esperam pelo bem desejado, sem se prepararem para o mal indesejado. O pessimista realista, como Maquiavel, não recomenda o péssimo, mas o admite, a contragosto, para melhor combatê-lo. O pessimista previdente age para que a bondade desejada desponte, mas a probabilidade do contrário faz parte de seus cálculos, mesmo não fazendo parte de sua vontade. Na sua longa trajetória de político e escritor, o também italiano Igino Giordani (1894-1980) constatou que o “pessimismo realista sustenta a esperança” (1986, p.50). Ou seja, tal pessimismo não promoveria desânimo e tristeza, mas sustentaria a esperança. Para Alcide De Gasperi (1881-1954), primeiro-ministro da Itália, de 1945 a 1953, “é preciso ter um pessimismo sadio, que deriva da consciência de que o mal pode ser encontrado em todos os homens e em todas as classes sociais” (apud BARBERIS, 1953, p.08). Uma nota típica do maquiavelismo é o desprezo pelas normas morais, mas tal desprezo também não pode ser atribuído a Maquiavel, cujo pensamento realista colide apenas com métodos dedutivos de formulação de juízos de valor. O pensamento realista de Maquiavel é compatível com a ética descritiva, com os procedimentos metodológicos da etologia aplicados ao estudo dos comportamentos humanos. 2.REALISMO, ÉTICA E ETOLOGIA 12 A palavra ética é usada em vários sentidos, até em concorrência com moral, mas a diferença entre elas é mais idiomática do que histórico-cultural: uma é grega (ética), e a outra é latina (moral). Podemos usar as duas palavras como sinônimas, diferenciado-as pela aplicação de especificações explicativas: moral (ou ética) descritiva; ética (ou moral) normativa; moral (ou ética) social; ética (ou moral) sexual; ética (ou moral) imposta pela tradição; moral (ou ética) escolhida com convicção; etc. Ética significa bom comportamento, em grego. E moral é bom comportamento, em latim. Há quem prefira mais a palavra ética que a palavra moral porque moral, no passado, estava associada a pecado e, sobretudo, pecados sexuais. Ética é palavra mais leiga, menos associada a religiões que a palavra moral, que foi usada como sinônimo de comportamento proibido: o que não deve ser feito. E a palavra ética sugere comportamento escolhido livremente, em todos os campos do agir humano: o que posso e devo fazer de bom. Todavia a diferença entre elas, como afirmamos, é basicamente idiomática: uma é grega e a outra é latina. O que nos permite afirmar que um dado comportamento é ruim ou bom? A capacidade, ou poder, que os seres humanos têm de julgar a qualidade de comportamentos a partir de critérios socialmente reconhecidos. Quais procedimentos metodológicos são utilizados para avaliar comportamentos? Procedimentos indutivos, como os usados por Maquiavel, ou dedutivos, típicos da moral metafísica. Confunde-se ética com valores. A axiologia estuda valores, e a etologia estuda comportamentos. Etologia é a ciência que estuda o comportamento dos animais em cativeiro ou no seu ambiente natural. Etologia humana, a ciência que observa, descreve e interpreta comportamentos humanos. 13 A palavra etologia, aplicada ao estudo dos comportamentos humanos, muda a pergunta que geralmente utilizamos quando pensamos em ética. A pergunta que geralmente utilizamos é: o que é ética? Mas a pergunta sugerida pela metodologia (descritiva) da etologia humana é outra, diferente: como é o comportamento x ou y? Tal pergunta sobre a descrição dos comportamentos é a que emerge no Príncipe, de Maquiavel. A etologia (humana) troca a busca da definição (o que é) pela busca da descrição (como é). Digamos que um etologista da vida animal estude o comportamento dos jacarés num dado país africano. O jacaré espera pela passagem das zebras pelo rio e ataca filhotes ou zebras doentes e anciãs. O etologista não dirá que tal jacaré não agiu com ética profissional, por atacar filhotes ou zebras doentes. O etologista observa, descreve, analisa, interpreta o comportamento dos jacarés e das zebras, mas não julga. A etologia humana, ao contrário, deve julgar, pois os comportamentos humanos são, também, comportamentos escolhidos. Mas quando e como julgar? Maquiavel julgava, mas antes descrevia. Antes de Maquiavel, muitos escreveram com juízos fortes. A originalidade de Maquiavel está na centralidade da descrição dos comportamentos. A ética descritiva não é incompatível com a ética normativa, mas com a ética idealista, dedutiva, mais preocupada com a qualidade dos comportamentos ideais do que com a cognição dos comportamentos reais. A ética descritiva não exclui a ética normativa, mas sustenta-a em bases cognitivas mais sólidas. Em tal sentido, podemos afirmar que Maquiavel não foi contra a moral. Ele foi um bom moralista realista (ética descritiva), que se opôs à moral dedutiva de então. 3.MAQUIAVEL SOCIÓLOGO 14 Após identificar algumas dentre as diferenças que separam Maquiavel e maquiavelismo, voltemos ao tema central do artigo. Podemos considerar Maquiavel sociólogo e, assim, identificá-lo como fundador (involuntário) da sociologia? Maquiavel poderia ser considerado o pai da sociologia, mesmo não tendo utilizado tal expressão. Vejamos quais são os argumentos que utilizamos para sustentar a razoabilidade da nossa afirmação. 3.1.Realismo e positivismo – coisificação dos fatos sociais Augusto Comte criou o vocábulo sociologia, mas não foi isso que o tornou o pai da sociologia. Ser pai de um método o tornou pai da sociologia. A intenção metodológica positivista de Comte foi bem manifestada por meio de sua célebre Lei dos Três Estados: estado teológico, filosófico e positivo (terceiro estado). Positivismo significa intenção metodológica indutiva, focada nos fatos, que são reais, vigentes, dados, positivos. O positivismo rompe com o método dedutivo da filosofia social. Em tal ruptura metodológica e afirmação da identidade metodológica indutiva, positivista, encontra-se o método indutivo de Comte. No capítulo XV do Príncipe, Maquiavel manifesta explicitamente sua intenção metodológica. Ele prefere “andare drieto alla verità effettuale della cosa, che alla immaginazione di essa” (1988, p.83). Buscar a verdade efetiva da coisa e não o que sobre ela se imagina, é resumo revelador da metodologia investigativa indutiva de Maquiavel, que caracteriza o seu pensamento como realista. Devemos pensar em diferenças ou em semelhanças entre método realista e método positivista? Se considerarmos mais relevantes as semelhanças que as diferenças, concluiremos que Maquiavel abandonou o 15 método dedutivo e adotou o método indutivo, no estudo dos fatos sociais (positivos, reais), antes de Augusto Comte e Émile Durkheim. Maquiavel manifesta explicitamente sua intenção metodológica de tratar os fatos como coisas, tema desenvolvido posteriormente por Émile Durkheim, no livro As Regras do Método Sociológico (1895). Tratar os fatos como coisas, e não como ideias, é regra central para Durkheim. Segundo Raymond Aron, a afirmação de Durkheim de que “é preciso considerar os fatos sociais como coisas”, leva a “uma crítica das discussões abstratas” (ARON, p.336). Para Aron, “o objetivo de Durkheim é aquele de demonstrar que pode e deve existir uma sociologia que seja uma ciência objetiva, em conformidade com o modelo de outras ciências, cujo objeto seria o fato social” (Ibidem, p.336). Fatos sociais são coisas, e “coisas são tudo aquilo que é dado, tudo aquilo que se oferece ou, mais que tudo, aquilo que se impõe ao observador” (Ibidem, p.336). Para Aron, a partir de uma “interpretação moderada da tese durkheimiana”, o significado contido nos fatos, nas coisas, “não é imediatamente dado, mas deve ser descoberto ou progressivamente elaborado” (Ibidem, p.338). Ou seja, ao definir o fato social como coisa, ele sublinha a objetividade, a praticidade dos fatos sociais. Os fatos são interpretados por meio de conceitos, mas tais conceitos são elaborados a partir da análise objetiva dos fatos, por meio do desapego metodológico em relação aos valores do observador, outra regra central do método sociológico segundo Émile Durkheim. Maquiavel antecipou a metodologia da coisificação dos fatos em relação aos conceitos ao priorizar o estudo da verdade efetiva da coisa, deixando de lado a imaginação (metafísica) que se tenha sobre ela (1988, p. 83). Maquiavel antecipou a centralidade dos fatos-coisas de Durkheim. Num certo sentido, o livro As Regras do Método Sociológico (1895), de Durkheim, 16 é aprofundamento coerente de uma opção metodológica original de Maquiavel, explicitada no capítulo XV do Príncipe (1513). Para Durkheim, “a coisa se opõe à ideia” (1996, p.10). Ou seja, a verdade efetiva da coisa difere da imaginação metafísica que se tenha sobre ela. Para Durkheim, “coisas reais são o objeto de estudo” da sociologia (Ibidem, p.20). Os fatos são “coisas sociais”, que superam “postulados antropocêntricos” (p.20). Evidente que Durkheim aprofunda a metodologia dos fatos-coisas, mas seu teórico original foi Maquiavel. Em Durkheim não existe confusão entre sociologia e antropologia, que são ciências sociais diferentes. Para Durkheim, “a vida social” não é mero “prolongamento do ser individual” (Ibidem, p.100). Para ele, “a sociedade não é uma simples soma de indivíduos”, mas uma “realidade específica dotada de características próprias” (Ibidem, p.101). Por isso, para ele, “todas as vezes que um fenômeno social é explicado diretamente a partir de um fenômeno psíquico, podemos estar certos de que a explicação é falsa” (Ibidem, p.102). Durkheim distingue a sua sociologia das “coisas sociais” (Ibidem, p.131) da filosofia social, da psicologia e da antropologia. Maquiavel distingue a sua forma de pensar da forma dedutiva (filosófica) de se pensar os fatos (coisas), comportamentos políticos. Durkheim define suas regras do método sociológico como um “aparato de precauções” (Ibidem, p.132) a ser utilizado pelo sociólogo para a melhor cognição dos fatos. Ele sugere a regra do desapego axiológico em relação aos valores dos observadores (Ibidem, p.47). E Maquiavel sugere que se deve ir atrás da verdade efetiva, abandonando a imaginação que se tenha sobre os fatos-coisas (capítulo XV). O livro O Príncipe também pode ser compreendido como um “aparato de precauções”, como Durkheim classificou suas Regras do Método Sociológico. Os fatos sociais são coisas sociais muitas vezes dramáticas, porque vitais, humanas. E 17 tal dramaticidade dos fatos empenha ainda mais a objetividade dos sociólogos, pelo mesmo motivo que o médico oncologista não abandona a objetividade justamente pela consciência que tem da dramaticidade do seu objeto de análise e tratamento. Uma consequência que poderia derivar, hoje, da centralidade metodológica maquiaveliana e durkheiminiana dos fatos entendidos como coisas sociais é a rejeição de uma sociologia centrada em escolas e autores, pelo risco de retorno à metafísica dos conceitos a priori em relação aos fatos que, segundo a metodologia indutiva de Maquiavel e Durkheim, são sempre o ponto de partida investigativo da sociologia. Em tal sentido, a sociologia temática impor-se-ia à sociologia de escolas e autores. O mapeamento temático impor-se-ia ao mapeamento de conceitos de escolas e autores. Se a sociologia abandonar os fatos ela voltará a ser filosofia social. Mas isso ocorre mesmo quando ela se distancia dos fatos, fixando-se na falsa estabilidade intelectual dos conceitos de escolas e autores. A sociologia é criada e renovada a partir dos fatos, e não a partir dos conceitos, sempre importantes, mas com valor instrumental em relação aos fatos (centralidade dos fatos-coisas). Quando os sociólogos subestimam os fatos e supervalorizam os sistemas conceituais, eles trocam a sociologia por uma espécie de “metafísica sociológica”, ou seja, falsa sociologia, filosofia social. Conceitos de escolas e autores (temas conceituais) cumprem importante papel hermenêutico, a posteriori, subordinado à descrição a priori dos fatos (temas fáticos). Mas teria a sociologia dos fatos-coisas sociais apenas função cognitiva? Constitui o método indutivo a identificação do objeto (fatos-coisas); observação sistemática dos fatos; interpretação dos fatos por meio de conceitos hermenêuticos; e também, recomendação de tratamentos para os 18 fatos-problema. Em síntese, profundidade investigativa e praticidade prescritiva. Todas as ciências (método indutivo) caracterizam-se pela relação de reciprocidade entre objetivos cognitivos e objetivos práticos, mesmo se em algumas a cognição dos fatos (utilidade cognitiva) é mais destacada que a prescrição de tratamentos (utilidade prática). Maquiavel explicou no Príncipe que sua intenção era a de “scrivere cosa utile a chi la intende” (1988, p.83). Ele manifestou duas preocupações, ou “precauções” metodológicas: pensou na praticidade de suas reflexões, e nos sujeitos de tal praticidade. Cognição dos fatos coisas (profundidade investigativa) e utilidade prática da cognição (praticidade prescritiva) caracterizam a sociologia de Maquiavel, no Príncipe, obra investigativa original (pelo método indutivo empregado), voltada para uma finalidade prática, bem específica. “A exortação dirigida a Lorenzo dei Medici no capítulo final do Príncipe”, como resumiu Mario D’Addio, “para que ele assuma a iniciativa de liberar a Itália do estrangeiro, mediante a constituição de um forte Estado italiano na Itália centro-setentrional, demonstra que a análise conduzida no Príncipe se traduz no final em um específico programa de ação política” (1995, p.298). A ciência supostamente pura, apenas cognitiva, é incompleta, pois não promove resultados práticos para a sociedade. Vejamos o exemplo da medicina. Um médico descreve e interpreta os fatos-problema em profundidade, por meio de exames minuciosos, para prescrever (recomendar, aplicar) tratamentos (normativos) aptos a resolver ou amenizar os problemas descritos. Há, também, risco de reducionismo metodológico no outro extremo. As ciências sociais aplicadas, como o direito, correm o risco oposto, de não interpretarem de forma satisfatória os conflitos (fatos) que geram a 19 necessidade de soluções normativas, buscando a aplicação imediata de normas jurídicas. De um lado, há o risco do médico que prescreve o remédio sem compreender a doença; de outro, há o risco de se saber tudo sobre a doença, mas não se prescrever nenhum remédio apto a tratar o problema. Profundidade investigativa (cognição) e praticidade prescritiva (normativa) são os dois lados constitutivos do método indutivo das ciências, também das ciências humanas e sociais. Estudam-se os sistemas eleitorais (sociologia política) para se identificar o melhor sistema eleitoral no atual momento histórico de uma determinada população. Para alguns renomados cientistas sociais latino-americanos, “o percurso feito pelas Ciências Sociais da América Latina esteve sempre fortemente ligado à análise dos problemas concretos – macro ou micro, segundo os períodos e países – assim como à vontade dos cientistas sociais de incidir sobre tais problemas” (TRINDADE, 2006, p.375). O trabalho de cognição dos fatos é acompanhado pelo desejo de mudanças, o que exige profundidade e praticidade. Como afirmou Karl Marx, na sua 11ª. tese sobre Feuerbach (1845): “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Maquiavel, como vimos, escreveu O Príncipe para a melhor cognição dos fatos-coisas, mas com uma intenção prática, a unificação da Itália. Durkheim não rejeita a praticidade da ciência, mas a superficialidade dos que subestimam a cognição da complexidade dos fatos e, de consequência, a complexidade das mudanças sociais. A leitura das obras de Durkheim nos revela um cidadão preocupado com os problemas sociais, sobretudo com os problemas referentes à desintegração do consenso social tradicional. Ele sabe, porém, que mudar não é uma questão de vontade. Para Durkheim, a utilidade dos fatos não depende “do desejo nem da vontade” de quem os estuda (Ibidem, 20 p.92). Com isso, Durkheim não defende uma tese conservadora, mas uma tese realista que sublinha a necessidade da compreensão da complexidade dos fatos sociais. Durkheim não é conservador, nem revolucionário. É um sociólogo investigador com características reformadoras. Pode-se mudar a utilidade dos fatos a partir do reconhecimento da sua complexidade: “Não queremos afirmar que as tendências, as necessidades, os desejos dos homens nunca intervenham ativamente na evolução social” (Ibidem, p.93). Para Durkheim, o desenvolvimento dos fatos pode ser “freado ou apressado”, segundo o modo como se incide “sobre as condições das quais um fato depende” (Ibidem, p.93). Para mudar não basta querer, é preciso conhecer a “extraordinária regularidade com a qual os fatos se reproduzem nas mesmas circunstâncias” (Ibidem, p.95). O sociólogo estuda fatos sociais, fatos-problema, em profundidade, com a ajuda de conceitos hermenêuticos complexos, em função da realização de uma sociedade melhor. Para que serve o saber? Para que serve a sociologia? Para compreender o significado dos fatos, interpretando-os (utilidade cognitiva), por meio da investigação metódica (profundidade cognitiva), com o objetivo prático de tornar a sociedade melhor (praticidade prescritiva, normativa). Todas as ciências sociais são interpretativas e aplicadas. O direito é ciência social aplicada, mas que interpreta os conflitos entre as partes (cognição dos conflitos); a sociologia é ciência descritiva e interpretativa do significado dos fatos, mas ela não se resume à cognição. Pode e até deve recomendar a aplicação de medidas sócio-prescritivas, a serem executadas pelos sujeitos políticos (cidadãos ativos e seus representantes). A sociologia de Maquiavel sugere a ideia da dupla utilidade, cognitiva (investigativa) e prática (prescritiva), política, no sentido que identifica 21 medidas benéficas para a cidade (polis) segundo os valores da comunidade de pertença do sociólogo. Reconhecer esta dupla utilidade (cognitiva e prática) da sociologia não significa “misturar a biblioteca com a praça” (SARTORI, 1991, p.45), não significa misturar as profissões do cientista da política e do político, como Max Weber bem distinguiu em Ciência e Política – Duas Vocações (1993). A função do sociólogo é diferente (não é melhor nem pior) da função do político. Mas a função da sociologia, como de qualquer outra ciência, não é apenas a cognição dos fatos, mas, também, a partir da cognição dos fatos, a indicação de medidas práticas, prescritivas, aptas a tornarem a vida melhor, reconhecendo a complexidade dos fatos e das mudanças sociais. Por meio de seus estudos, os sociólogos não provam nem demonstram verdades absolutas. Eles sustentam intelectualmente a razoabilidade dos argumentos encontrados no estudo do que consideram ser a verdade efetiva, empírica das “coisas sociais” (fatos) analisadas. O sociólogo não é filósofo, psicólogo, antropólogo, nem jornalista. Como o jornalista – para o qual sem fatos não há notícias e sem notícias não há jornal -, prioriza os fatos, temas fáticos, mas os interpreta e permanece com os mesmos fatos por um período maior de tempo. Ou seja, para os sociólogos, o prazo de validade dos fatos é bem maior que o prazo de validade das notícias. Os sociólogos não reportam, mas interpretam os fatos. Sociólogos utilizam a linguagem especializada da investigação sociológica (linguagem da cognição sociológica) durante suas descrições e interpretações dos fatos. Recorrem, porém, à linguagem da comunicação de massa no momento de exporem suas conclusões práticas aos cidadãos não especializados em sociologia, mas desejosos de compreender os fatos com os quais todos estão diretamente envolvidos, e as possibilidades de mudanças sociais. 22 3.2.Maquiavel, ciência política e sociologia política Poder-se-ia afirmar que Maquiavel teria sido o precursor da ciência política (SARTORI, 1991, p.10), e não da sociologia. Mas quais são as diferenças substanciais entre sociologia e ciência política? Antes cabe sublinhar que a ciência política (indutiva) não se confunde com a filosofia política, assim como a sociologia (todas as sociologias específicas) não se confunde com a filosofia social. Filósofos da política não são melhores nem piores que cientistas políticos, mas são diferentes. Em livros apresentados como sendo de ciência política, encontramos capítulos sobre filósofos da política, apresentados como se fossem cientistas políticos. Tal confusão pode ser encontrada também em ementas de disciplinas universitárias classificadas como Ciência Política I, que exigem o estudo do pensamento de excelentes filósofos da política, que não são, porém, cientistas políticos. Melhor seria se tais livros e disciplinas fossem classificados como livros e disciplinas de História das Ideias Políticas, com pensadores do âmbito da filosofia e da ciência política. Diferenças de método separam a sociologia política e a ciência política da filosofia política. A busca da coisificação dos fatos separou o pensamento político de Maquiavel dos filósofos que o antecederam. Esta mesma busca metodológica pela coisificação dos fatos separou a sociologia de Comte e Durkheim da filosofia social. Do ponto de vista metodológico, Maquiavel não é um filósofo, mas um cientista político. A sua ciência política não é sofisticada na forma, mas profunda – e original – na metodologia e conteúdo. Maquiavel não é um filósofo, no sentido dedutivo tradicional, mas um realista, metodologicamente positivista. Haveria diferenças relevantes entre ciência política e sociologia política? Se nossa resposta for negativa, poderemos 23 afirmar que o fundador da metodologia indutiva da ciência política foi, também, o fundador da metodologia indutiva da sociologia política. Ciência política e sociologia política compartilham o mesmo método indutivo. Onde estaria a diferença entre elas? No objeto de estudos? A ciência política estudaria as questões referentes ao vértice do poder (estatal) e a sociologia política estudaria os fenômenos sociopolíticos (SARTORI, 1991, p.209), como os movimentos sociais? Seria a ciência política uma espécie de “sociologia (jurídica) do estado” (DALLARI, 2007, p.07)? Mesmo se concordássemos com tal diferenciação, ela seria descaracterizada pelos fenômenos de popularização do poder por meio dos processos de democratização do poder, ou “massificação da política” (SARTORI, 1991, p.207). Tal diferença entre ciência política e sociologia política deixaria de ser relevante nas democracias modernas, caracterizadas pelas relações de reciprocidade do que seria o objeto de estudos da sociologia política e da ciência política. Nas democracias modernas, a política é fato social caracterizado pelas relações de interdependência entre a base e o vértice do poder. Tal diferença de objeto que classificaria a ciência política como ciência do vértice do poder e a sociologia política como ciência da base do poder, reduziria a ciência política ao estudo de ditaduras, ciência especializada no poder sem povo, ou contra o povo. Se tal diferença de objeto de estudo separasse a ciência política da sociologia política, poderíamos dizer que no tempo de Maquiavel não se poderia falar em sociologia política, mas apenas em ciência política, já que foi a democracia moderna a responsável pelos processos de popularização (verticalização) do poder? Mesmo não tratando sobre democracia representativa, no Príncipe, Maquiavel estuda as relações políticas entre príncipes e súditos. Maquiavel estuda fatos políticos em forma de relações de poder entre o vértice (príncipes) e a base (súditos). Relações 24 (diferentes) entre base e vértice de poder existem nas monarquias, democracias e ditaduras. Sociologia política e ciência política estão mais para ciências sinônimas. Mesmo se a ciência política fosse compreendida como sociologia jurídica do estado, ela seria sempre sociologia. Ambas dedicadas ao estudo das relações entre governados e governantes a partir de recortes diferentes. Do ponto de vista metodológico, a sociologia política não exclui o estudo do funcionamento político-jurídico do vértice do poder e a ciência política não exclui o estudo das relações entre o vértice e a base do poder. Diferenças entre ciência política e sociologia política talvez devessem ser procuradas na tradição dos cursos de direito que priorizaram o estudo do vértice do poder, dedicando-se à cognição do funcionamento político-jurídico do estado, subestimando o estudo das relações entre a base popular e o vértice estatal, político-jurídico. Tal diferença, mais ideológica que metodológica, perde ulteriormente sua razão de ser com a democratização da política e, também, do próprio direito. CONCLUSÃO Em O Príncipe, Maquiavel estudou, de forma indutiva, as relações políticas no vértice do poder (príncipes) e entre o vértice e a base (súditos). A sua originalidade no emprego da metodologia indutiva e a qualidade de suas conclusões (práticas e cognitivas) permitem que o consideremos pai da sociologia, mesmo não sendo ele o criador da palavra sociologia. 25 Referências ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1982. BARBERIS, Corrado. Da Giolitti a De Gasperi - stato e riforme. Rocca San Casciano: Cappelli editore, 1953. BENTO, Fábio Régio. A igreja católica e a social-democracia. São Paulo: AM Edições, 1999. _____. Viver e compreender a sociedade - ensaios de introdução à sociologia. Tubarão: Editora Unisul, 2002. _____. Da soberania dos pastores à soberania das ovelhas. In: BENTO, Fábio Régio (org.). Cristianismo, humanismo e democracia. São Paulo: Paulus, 2005, p.17-47. _____. Direito e Democracia. In: ROCHA, Maria Ines (org.). Humanismo e direitos. Passo Fundo: Berthier, 2007, p.101-125. D’ADDIO, Mario. Storie delle dottrine politiche. Gênova: ECIG, 1995. DAHRENDORF, Ralf. Il conflitto sociale nella modernità. Roma-Bari: Laterza, 1990. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. São Paulo: Saraiva, 2007. DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978. _____. Le regole del metodo sociologico. Milão: Edzioni di Comunità, 1996. _____. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. O suicídio – estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. GADOTTI, Giovanna. Qualità della vita. In: DEMARCHI, Franco; ELLENA, Aldo; CATTARINUSSI, Bernardo (a cura di). Nuovo dizionario di sociologia. Milão: Paoline, 1987, p.1674-1682. GALLI, Giorgio. Storia delle dottrine politiche. Milão: Il Saggiatore, 1985. 26 GIORDANI, Igino. Diário de fogo (1894-1980). São Paulo: Cidade Nova, 1986. GOULDNER, Alvin. La sociologia e la vita quotidiana. Roma: Armando editore, 1997. MACHIAVELLI, Niccolò. Il principe. La Spezia: Fratelli Melita Editori, 1988. MARQUES, Luiz. Maquiavel e sua época. In: Revista história viva (Grandes temas): Maquiavel – o gênio de Florença. São Paulo: Duetto, n. 15, 2006, p.41. PEZZIMENTI, Rocco. La società aperta e i suoi amici. Messina: Rubbettino, 1995. PRIVITERA, Salvatore. Etica descrittiva. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino; PRIVITERA, Salvatore (a cura di). Nuovo dizionario di teologia morale. Milão: Paoline, 1990, p.354-358. SARTORI, Giovanni. La politica - logica e metodo nelle scienze sociali. Milão: SugarCo, 1991. _____. Democrazia. Cosa è. Milão: Rizzoli, 1993. SETTEMBRINI, Domenico. Democrazia senza illusioni. Roma-Bari: Laterza, 1994. TRINDADE, Hélgio; GARRETÓN, Manuel; MURMIS, Miguel; REYNA, José; SIERRA, Gerónimo. Ciências Sociais na América Latina em perspectiva comparada: Argentina, Brasil, Chile, México e Uruguai. In: TRINDADE, Hélgio (org.). As Ciências Sociais na América Latina em perspectiva comparada – 1930-2005. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006. WEBER, Max. Ciência e política – duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993. 27 CAPÍTULO 2 SOBRE A CENTRALIDADE DA HERMENÊUTICA DOS CONFLITOS NO DIREITO POSITIVO Ensaio de sociologia do direito que identifica relações de subordinação e complementaridade entre hermenêutica dos conflitos - objeto primário de estudo do direito (fatos em forma de conflitos entre as partes) - e dogmática jurídica - seu objeto subordinado -, concluindo que é a prioridade da hermenêutica dos conflitos em relação à dogmática jurídica (aplicação de tratamentos normativos) que qualifica o direito positivo como ciência social aplicada. 28 INTRODUÇÃO A um estudante que gostaria de mais disciplinas humanísticas no seu curso de graduação em direito, respondi ser do parecer que os professores das assim chamadas disciplinas técnico-dogmáticas poderiam manifestar com mais clareza o conteúdo sócio-humanístico das disciplinas supostamente técnicas que lecionam. Seria o direito civil uma disciplina humanística ou técnico-dogmática? Propriedade privada, família, contratos, não seriam temas humanos, sociais, mas temas técnico-dogmáticos? As assim chamadas disciplinas dogmáticas do direito (direito civil, comercial, tributário, administrativo, penal, processual) não seriam humanísticas, mas técnicas, de um curso que seria técnico-dogmático, e não sócio-hermenêutico e humanístico? Faltam-me elementos para deixar de conceber todos os temas do direito como temas humanos, sócio-hermenêuticos, que exigem soluções práticas compatíveis com tal identidade sócio-humanística. Para a lógica tecnicista - que prioriza a aplicação da técnica em detrimento da interpretação dos conflitos – direito para valer, sério, seria somente o direito técnicodogmático. As demais disciplinas seriam apenas complementares. A sociologia do direito é uma disciplina sócio-humanística, mas o direito civil, comercial, tributário, administrativo, também. Numa ciência social aplicada, não cabe divórcio cognitivo e curricular entre disciplinas humanísticas e disciplinas técnico-dogmáticas, ou “profissionalizantes”. O direito descreve e interpreta conflitos humanos antes de prescrever a aplicação de tratamentos normativos aptos a resolvê-los, preveni-los ou amenizá-los. O verbo aplicar (normas) deveria supor a boa conjugação prática dos verbos descrever e interpretar (conflitos). Segundo sua caricatura tecnicista, o direito 29 funcionaria como uma daquelas máquinas de latas de refrigerantes, onde inserimos uma moeda (aplicação) e obtemos o resultado. Profissionais da aplicação de normas, divorciada de criteriosas descrições e interpretações dos conflitos, não seriam juristas, pensadores prático-teóricos dos conflitos e das normas, mas espécie de office-boy da lei. Não há deméritos na profissão de office-boy, mas não seriam necessários cinco anos de ensino superior para se tornar office-boy da lei. Afirmar que o direito é uma ciência social aplicada significa identificar sua peculiaridade prescritiva (aplicação de tratamentos normativos), sem, porém, negligenciar sua identidade descritiva e interpretativa dos conflitos. 1.OBJETO PRIMÁRIO DE ESTUDO DO DIREITO “O direito estuda a lei”, respondem alguns estudantes, quando interpelados sobre o objeto de estudo do seu curso de direito. Em primeiro lugar, cabe sublinhar que lei, no singular, é metafísica. Estudam-se leis, no plural, ou conjunto de leis (dogmática jurídica). Mas seriam as leis, a dogmática jurídica, o objeto primário de estudo do direito, ou o objeto secundário, subordinado ao objeto primário? Pensando na recomendação popular de que não se deve colocar a carroça na frente dos bois, no caso do direito, a recomendação seria de evitar colocar a análise (e escolha) das normas antes da análise dos conflitos que sustentam a necessidade das normas para a solução deles. Razões metodológicas recomendariam ao direito de não dissociar o estudo das normas do estudo dos conflitos que justificam a necessidade de se encontrar tratamentos normativos aptos a solucioná-los. Ao descolar o estudo 30 das normas do estudo dos conflitos, o direito positivo desliza para a etapa anterior ao direito positivo, por ele combatida, caracterizada pela dedução metafísica (das normas para os fatos), regra oposta à do direito positivo, caracterizado pela metodologia comtiana da indução: dos fatos (conflitos) para a busca de soluções normativas. O direito é ciência social dos conflitos e das soluções normativas aptas a resolver tais conflitos de interesses entre as partes, mas o direito real que povoa a mente de estudantes que conheci nos anos de magistério de sociologia do direito, é um direito metafísico, onde excele o estudo das normas dissociado do estudo dos conflitos que justificam a necessidade de soluções normativas. A mente de leigos e estudantes de direito é povoada pelo que podemos chamar de engenharia forense, ou matemática jurídica, caricatura do direito que o concebe como estudo de normas e das relações das normas entre elas, sem referência substancial aos conflitos e tensões sociais que determinam a criação de normas jurídicas. O estudo sistemático de normas jurídicas reguladoras (direitos e deveres institucionalizados) se justifica pela necessidade pública e privada de se identificarem tratamentos normativos para prevenir, resolver ou amenizar as tensões e conflitos que determinam a necessidade de criação de normas reguladoras. Normas jurídicas são estudadas pelo direito positivo como objeto secundário, derivado, subordinado em relação aos fatos sociais que se manifestam em forma de conflitos (micro ou macro) entre as partes. Objeto secundário não significa objeto menos importante, mas objeto metodologicamente subordinado ao objeto primário. Quando é que se recorre ao direito? Recorre-se ao direito quando as partes não conseguem resolver seus conflitos sozinhas ou com a mediação de terceiros informais (amigos, parentes, conciliadores informais). Tanto na solução informal (sujeitos 31 envolvidos e terceiros informais) quanto na solução formal (sistema jurídico estatal) emerge a centralidade dos conflitos como fatores acionadores dos sistemas de conciliação informal e/ou formal (direito). Assim como o médico prescreve tratamentos somente após descrever detalhadamente os problemas de não-saúde do paciente, no direito a prescrição de normas deveria ser precedida pela descrição acurada dos conflitos que determinam tratamentos normativos específicos, aptos a resolvêlos ou amenizá-los. A descrição dos conflitos está para o direito como a descrição do estado de não-saúde dos pacientes está para a medicina. Somente após tal descrição detalhada dos fatos (conflitos e doenças) pode-se prescrever tratamentos adequados a serem aplicados com menor risco de se recomendarem tratamentos errados para conflitos e doenças mal-identificadas. Médico pouco profissional é o que prescreve remédio inadequado movido pela descrição negligente do problema que originou a consulta. O profissional do direito pratica o mesmo erro metodológico quando prescreve soluções normativas inadequadas por não ter descrito e interpretado com precisão o conflito que acionou a busca de uma solução normativa para ele. Estudantes de direito que se dedicam mais ao estudo dos códigos do que à interpretação dos conflitos de interesses entre as partes, seriam como estudantes de medicina que se dedicassem mais ao estudo de bulas (bulologia) do que ao estudo dos problemas específicos que originaram a necessidade de identificação de tratamentos adequados. Doenças e tratamentos, conflitos e normas reguladoras não são dissociados na medicina e no direito. Professores de direito (ciência social aplicada) ajudariam a superar tal dissociação se praticassem o exercício de identificação dos conflitos específicos contidos nas disciplinas dogmáticas que lecionam. O direito centrado nas normas dos códigos, negligente em relação à descrição e interpretação dos conflitos 32 (fáticos) contidos em tais normas, certamente não corresponde ao direito classificado como ciência social aplicada. Os conflitos e tensões são vivos, dinâmicos, mutáveis. Já os códigos são caracterizados pela perenidade. Todavia como usar um instrumento típico de sociedades pouco mutáveis em sociedades mutáveis como as nossas? Refugiando-se nas promessas de estabilidade contidas no sistema código, estudantes e profissionais de direito terminam por se afastar da dinamicidade e complexidade dos conflitos sociais. Pensam ter encontrado uma boia de salvação, mas pode se tratar de uma pedra de tropeço. Vivemos numa sociedade dinâmica e instável (pós-modernidade) que busca estabilidade onde já não mais se encontra tal possibilidade de estabilidade. As certezas dos códigos de direito parecem não mais remediar tal necessidade de estabilidade. Os novos códigos já nascem superados, carentes de reformas, não por culpa deles ou de quem os criou, mas porque a solução-código é solução jurídica para sociedades estáticas, estáveis, e não para sociedades dinâmicas e instáveis como a nossa. No passado, em época de mudanças lentas, a sociedade podia valer-se de códigos, caracterizados pelo maior prazo de validade. Mas em época de mudanças rápidas, abrangentes e complexas, não há como contar com os códigos como fator de estabilização. Estamos utilizando uma solução do passado - perenidade normativa dos códigos - numa sociedade complexa, que exige adaptações hermenêuticas constantes. Não há como buscar conforto numa roupa apertada, inadequada para um corpo social em constante modificação (para melhor ou pior). As características da sociedade hodierna indicam a necessidade de um sistema regulador mais ágil que o sistema código. A crise dos códigos, ou melhor, do sistema código, não é jurídica, mas sociológica: instrumentos dotados de perenidade são para sociedades simples, e não para sociedades complexas, multifacetárias, dinâmicas e instáveis como 33 as nossas. Para Paolo Grossi (2004, p.97), “uma velha ideia de legalidade, legalidade formal, deve substituir-se, e cada vez mais deve ser substituída, por uma legalidade diferente”. A necessidade de legalidade permanece atual, mas com modelos de legalidade adequados às características da sociedade hodierna. Não diria que vivemos em época melhor que a anterior, mas vivemos em época diferente, que exige modelos diferentes de sistema de legalidade. O direito, portanto, não é normatologia. A dogmática jurídica está contida no direito, mas ele é mais do que dogmática jurídica. Para regularizar relações sociais caracterizadas pelos conflitos, ou com possibilidade de conflitos (função preventiva do direito), o direito precisa estudar, em primeiro lugar, tais conflitos, e não apenas as normas aptas a solucioná-los, sem descolar o estudo das normas do estudo do ponto de partida fático que determina a necessidade de normas. 2.ESCOPOS DO DIREITO O direito é ciência social (descritiva e interpretativa) das tensões e conflitos entre as partes e dos tratamentos normativos (prescritivos) aptos a resolver, evitar ou amenizar tais conflitos e tensões. Tais conflitos e tensões fáticos são tratados pela mediação de terceiros informais (controle social) ou pela mediação de terceiros formais (controle estatal). Todas as formas de mediação e conciliação são relevantes para os escopos do direito, e não apenas a mediação formal do estado. Ações de mediação e conciliação realizadas por grupos de voluntariado, consideradas extrajudiciais, são tão importantes quanto ações oficiais, pois o que conta é o resultado de pacificação produzido 34 para a sociedade pelas ações de mediação e conciliação, por meio do sistema jurídico estatal (controle estatal) ou do sujeito comunidade (controle social). O objetivo epistemológico e operacional do direito é identificar tratamentos normativos aptos a resolver, evitar ou amenizar conflitos e tensões, sem olvidar que conflitos circunstanciais decorrem também de conflitos estruturais. O conflito estrutural por excelência da modernidade é entre capital e trabalho, que os marxistas tentaram resolver com revoluções comunistas e os social-democratas com soluções trabalhistas reformadoras. O direito hodierno é substancialmente reformador, concilia ingredientes ideológicos liberaldemocratas e social-democratas. O direito não se caracteriza mais pelo debate entre esquerda e direita, mas pelo ajuste entre elementos de centro-esquerda (social-democracia) e de centro-direita (liberal-democracia). A criação de uma nova ordem social, alternativa ao atual sistema socioeconômico, não é objetivo estranho ao direito. Em vez de tratar somente de conflitos ordinários, cotidianos, o direito pode tratar também de conflitos estruturais, geradores de inúmeros conflitos circunstanciais, buscando sistemas paradigmáticos de conciliação. O direito poderia voltar-se mais para as exigências de seus consumidores do que para as exigências de seus operadores. Ele ainda está voltado mais para as soluções processuais, exigidas pelo processo jurídico formal, do que para a satisfação das partes que acionaram o processo. Os procedimentos formais podem ser empregados satisfatoriamente, do ponto de vista técnico, sem que as partes se sintam satisfeitas. O objetivo do direito é responder satisfatoriamente às necessidades sócio-substanciais das partes litigantes. No comércio, onde “o cliente tem sempre razão”, busca-se a satisfação do cidadão-consumidor. No direito, há situações de satisfação processual divorciadas da satisfação sócio-substancial das partes litigantes. Um médico pretende que o paciente recupere a saúde, e 35 não se satisfaz simplesmente em verificar se empregou os procedimentos técnicos corretamente. Ele quer resultados. Há quem se preocupe muito com a lógica e coerência interna dos procedimentos normativos (validade) e muito pouco com os resultados favoráveis que estes procedimentos possam gerar na sociedade (eficácia). Às vezes, lá está a sociedade, insatisfeita com uma determinada decisão judicial, reivindicando decisões caracterizadas pela lógica social e, ao mesmo tempo, lá está o tecnicista, ufano pela lógica formal obtida. A lógica dogmática nem sempre prioriza os objetivos da lógica social, mas os objetivos da lógica processual. Em Teoria Geral do Processo, seus autores explicam que o processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-dogmático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos. Como tem sido dito, já não basta encarar o sistema do ponto-de-vista dos produtores do serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores, ou seja, à população destinatária (CINTRA, A.; GRINOVER, A.; DINAMARCO, C., 1997, p. 43). O objetivo das sentenças é resolver conflitos, e não apenas solucionar processos. Pacificação, conciliação, reconciliação são escopos do direito e exigências da sociedade, obtidas também por meio de medidas políticas reformadoras no sistema social. 3.HERMENÊUTICA DOS CONFLITOS E DOGMÁTICA JURÍDICA Dogmática jurídica significa conjunto de normas que o aplicador do direito utiliza para realizar os objetivos do direito. Porém, no verbo aplicar, estão contidos os verbos interpretar, escolher, selecionar. Não existe aplicação 36 mecânica de leis, mas aplicação de leis após a interpretação e escolha da lei mais adequada ao caso acionador do direito (conflito específico). No vasto “supermercado” das leis, há várias opções. A escolha das normas é determinada pela análise dos conflitos específicos. Todavia, mesmo sendo indutiva a metodologia do direito positivo, insiste-se ainda em recorrer à metafísica: parte-se da dogmática jurídica para aplicar dedutivamente, a posteriori, uma norma ao caso concreto (conflito). Tal inversão metodológica é incoerente com a lógica indutiva do direito positivo, para o qual a dogmática jurídica não é ponto de partida, mas de chegada. Recorre-se a ela após a descrição e interpretação detalhadas dos conflitos específicos (fatos) que acionaram o sistema jurídico. Segundo a lógica indutiva do direito positivo, diante de um conflito de interesse entre as partes, em primeiro lugar aciona-se a hermenêutica do contexto de aplicação das normas. Hermenêutica do contexto de aplicação significa interpretação multidisciplinar dos conflitos: hermenêutica sociológica, psicológica, política, antropológica. Os conflitos entre as partes, por serem conflitos humanos, são conflitos multifacetários. Há vários ingredientes nos conflitos que precisam ser identificados: ingredientes sociológicos, psicológicos, religiosos, políticos, econômicos, etc. A complexidade dos conflitos exige que o profissional do direito tenha conhecimento (mínimo) satisfatório em todas as áreas do saber humano, e não apenas conhecimento “técnico” em dogmática jurídica. De fato, os cursos de direito não são fáceis nem de curta duração, pois formam juristas, bons intérpretes dos conflitos e das normas, e não office-boys das leis. No direito positivo, a dogmática jurídica é aplicação interpretada (e escolhida) das normas, que devem ser prescritas de forma indutiva, ou seja, após a descrição e interpretação dos fatos (conflitos). Fora de tais 37 procedimentos metodológicos, não existe direito positivo, ciência social aplicada, mas metafísica jurídica, com o emprego de metodologia dedutiva semelhante à do assim chamado direito natural. 4.DIREITO POSITIVO, LEGALISMO E POSITIVISMO Direito positivo não significa legalismo. Significa metodologia indutiva, positivista (do francês Augusto Comte) aplicada ao direito pela nova classe emergente da Revolução Francesa, a burguesia. Legalismo significa compreender e exercer a dogmática jurídica dissociada da hermenêutica dos conflitos. Tal posição equivale ao que chamamos também de formalismo jurídico, tecnicismo ou dogmatismo jurídico. Mesmo com abundância de sinônimos, há quem utilize também, impropriamente, a expressão positivismo para designar tal anomalia tecnicista no estudo e exercício do direito. O direito positivo, assim como o positivismo, anunciou a superação definitiva da metafísica aplicada ao estudo da sociedade e à elaboração das normas. Diferentemente do direito natural que, do ponto de vista ideológico, foi monárquico-clerical e, do ponto de vista metodológico, metafísicodedutivo, o direito positivo, do ponto de vista ideológico, foi burguês, ao menos numa primeira fase e, do ponto de vista metodológico, é físico-indutivo. No direito positivo, que emprega metodologia positivista, afirma-se a centralidade dos fatos. Identifica-se nos fatos sociais o ponto de partida metodológico das interpretações sociais (sociologia) e da criação das normas (direito positivo). Na sociologia, as ideias sobre os fatos derivam da interpretação deles. No direito positivo, as normas são elaboradas a partir da interpretação dos fatos (conflitos). Mas quem teria poder de definir o normal e 38 o anormal, o certo e o errado, o justo e o injusto, o direito e o infracional? Antes das mudanças político-liberais da Revolução Francesa, o poder de definir o certo e o errado era da monarquia, associada ao clero. Tal poder passou a ser da burguesia, a qual criou normas morais e jurídicas de acordo com seus interesses específicos. Uma das primeiras medidas da burguesia foi regular a propriedade privada de acordo com sua cosmovisão. Inicialmente, o direito positivo, metodologicamente indutivo, foi ideologicamente burguês. Posteriormente, com o crescimento político dos movimentos operários, o direito positivo deixa de ser exclusivamente burguês e passa a ser burguês e operário. A burguesia preocupa-se com o direito civil, principalmente com a regulamentação da propriedade privada. Os movimentos operários preocupam-se com o direito trabalhista, com a regulamentação das suas conquistas sócio-reformadoras. Atualmente, a definição do certo e errado dáse de forma indutiva nos debates entre maioria e minoria. São debates sobre temas complexos, multidisciplinares, decididos por meio do sistema de representação (democracia representativa) ou pela decisão direta (plebiscito, referendo). Conflitos e tensões sobre fatos econômicos, políticos, religiosos, ou conflitos de bioética são tratados com a criação de normas jurídicas específicas que sejam expressão da vontade da maioria, em sistemas de escolha direta ou indireta precedidos por divulgação de informações e debates entre os cidadãos (maioria e minoria). A democracia moderna substituiu o poder monárquico-clerical pela soberania popular e a metodologia dedutiva do direito natural pela metodologia indutiva do direito positivo. 5.DIREITO POSITIVO E DIREITO NATURAL 39 Há estudantes de direito que emitem opiniões favoráveis sobre direito natural, desconhecendo contradições contidas em tal expressão, ao mesmo tempo em que emitem, também, opiniões desfavoráveis sobre positivismo, como se fosse sinônimo de legalismo. Positivista, repetindo, é a metodologia indutiva empregada por Augusto Comte no estudo dos fatos sociais. Positivista é a escola de pensamento na história da filosofia que coincide (na gênese) com o que Augusto Comte chamou de sociologia. Por isso, todo sociólogo é, originariamente, do ponto de vista metodológico, um positivista. Todavia, se eu afirmar, num curso de direito, que sou um pensador positivista, pensarão que defenderei o formalismo jurídico que critico neste artigo. Positivismo não significa formalismo, legalismo, tecnicismo jurídico, mas método socioindutivo (de cognição) centrado nos fatos (reais, vigentes, positivos). Quando o direito trocou o método dedutivo do direito natural pelo método indutivo do sociólogo Augusto Comte, passou a ser chamado de direito positivo. Norma positivada não é, em primeiro lugar, norma imposta pelo Estado. A principal característica da norma positivada é a metodologia utilizada na sua elaboração. Norma positivada é a norma elaborada de forma indutiva (direito positivo) pela sociedade pluralista, em substituição ao procedimento dedutivo utilizado pelo direito natural na elaboração das normas. A escassa compreensão das diferenças metodológicas radicais entre direito positivo e direito natural talvez tenha origem no desconhecimento das diferenças também radicais entre sociologia (geral e do direito) e filosofia (geral e do direito). Filósofos e sociólogos compreendem diferentemente o direito, mas nem sempre os estudantes de direito são alertados sobre tais diferenças. Em livros e apostilas de introdução ao direito, ou de história do direito, às vezes escritos por bacharéis em direito que não são nem filósofos nem sociólogos, encontramos afirmações metafísicas sobre o direito 40 reportadas como se fossem afirmações de sociologia do direito. Tais autores, ao escreverem sobre sociologia do direito, sendo filósofos, sem identidade de sociólogos, produzem, mais que tudo, confusão. Escrevem sobre sociologia do direito a partir de critérios dedutivos, como se o estudo da filosofia habilitasse alguém para ser sociólogo. Sociologia e filosofia são disciplinas e vocações profissionais diferentes. Quem leciona normalmente, sem problemas, filosofia e sociologia, não é nem sociólogo nem filósofo. Sociólogos sem vocação e/ou sem formação específica costumam não evidenciar as diferenças metodológicas entre filosofia e sociologia (geral e do direito). Professores de sociologia do direito, filosofia do direito, história do direito, introdução ao direito deveriam explicitar as diferenças de fronteira entre as disciplinas que lecionam. Há quem apresente disciplinas diferentes como se fossem quase idênticas, em nome de uma falsa interdisciplinaridade, ou porque não conhecem bem a disciplina que lecionam. Sociologia do direito e filosofia do direito são disciplinas igualmente importantes, mas radicalmente diferentes. Confusões entre filosofia e sociologia se manifestam, nos cursos de direito, também nas definições e caracterizações do assim chamado direito natural. Não obstante já tenha encontrado considerações metafísicas sobre o direito natural atribuídas à sociologia, segundo a lógica indutiva da sociologia o direito natural simplesmente não existe. Direito é cultura (criada) e não natureza (dada). Cultura é criação humana, particular, contestável, mutável. A natureza é dada (não criada), universal, incontestável, imutável. É exercício de arbitrariedade apresentar algumas normas morais e jurídicas (criadas pelos seres humanos) como se fossem normas naturais. Direito natural é ideologia entendida em sentido conservador, com a função de ocultar (para manter) interesses de grupos específicos. 41 Interpretações de conflitos e sistemas normativos são criações humanas, culturais, e não um regalo dos deuses ou da natureza. Pode até ser que existam leis e sistemas normativos naturais (dados, universais, imutáveis), escritos na natureza das coisas, uma hipotética ordem moral natural das coisas, mas no momento em que tais leis e sistemas são definidos racionalmente por meio de conceitos, eles ingressam no âmbito da cultura (criada, particular, contestável, mutável), com autoria assinada por grupos específicos. Para os filósofos do jusnaturalismo (leigo ou religioso), haveria uma ordem normativa escrita na natureza das coisas. Mas quem teria o poder de identificar, conceituar e interpretar tal ordem normativa supostamente escrita por Deus na natureza das coisas? Um conselho de guardiões (leigo ou religioso) da verdade absoluta? Não há nenhuma possibilidade de conciliação entre direito natural e democracia. Direitos supostamente naturais são intrinsecamente arbitrários. Democracia exige laicidade do Estado, abertura ao pluralismo de opiniões, e tal pluralismo do Estado Democrático é compatível com a metodologia aberta ao pluralismo que caracteriza o direito positivo. Nem mesmo os direitos humanos são direitos naturais. São ótimos direitos, que fazem parte da cultura da democracia. Na ideologia do direito natural há referências a normas divinas (direito divino), como mecanismo de legitimação, ou seja, uso político de Deus para justificar interesses humanos específicos. Em síntese, manipulação intelectual voltada para a transformação de Deus em “cabo-eleitoral” do poder monárquico-clerical. Os católicos republicanos acreditam na existência de leis divinas (LÖNNE, 1991), mas para eles tais leis não são naturais. São leis reveladas (por Jesus Cristo). A teologia da revelação estuda o conteúdo e o método da revelação. No conteúdo da revelação está também a ética, a vontade de Deus revelada aos seres humanos. A diferença política 42 fundamental entre direito natural e teologia da revelação, é que a teologia da revelação acredita na veracidade de suas descobertas, mas não as transforma em ferramenta política de dominação cultural. O direito natural, originalmente definido como cultura de resistência ao poder, desobediência por razões de consciência - que era como o compreendia Tomás de Aquino (CHIAVACCI, p.639) -, degenerou em ideologia de manutenção do poder monárquico-clerical, fraude política bem-sucedida. Com a substituição do antigo regime pelo sistema do pluralismo cultural (democracia), as normas jurídicas passaram a ser definidas pela sociedade por meio de decisão direta (referendo, plebiscito) ou decisão de representantes do povo no legislativo. As leis são aplicadas pelo poder judiciário, que é, também, intérprete delas. A interpretação dos conflitos e das normas não deve superar o limite imposto por duas regras do direito positivo, a da neutralidade e a da imparcialidade dos profissionais do direito. Respeitando tais regras respeita-se o pluralismo cultural e a vontade soberana do povo contida nas normas jurídicas dos sistemas políticos democráticos. 6.DIREITO POSITIVO E VALORES COLETIVOS Oscar Correas, em Introdução à Sociologia Jurídica (1996, p. 78), afirmou ser o direito “o resultado da correlação de forças entre os setores sociais que dispõem de maior ou menor poder para impor normas jurídicas”. A norma jurídica de hoje é a norma moral coletiva bem-sucedida de ontem. Numa democracia, as normas jurídicas são expressão da soberania popular. A dogmática jurídica é criação ético-jurídica dos seres humanos, mas as criações humanas são transitórias, reformáveis. Por isso, como sugeriu Plauto Faraco 43 de Azevedo (1998, p. 12), cabe verificar, nos cursos de direito, “se o professor está ensinando o direito relacionado com as vicissitudes concretas da existência ou isolado nas leis e nos códigos, indiferente à moldura humana à que se aplica”. Valores morais estão contidos nos conflitos entre as partes e nas normas jurídicas. A dogmática jurídica é expressão de valores coletivos. O direito não é moralmente neutro, mas dos profissionais do direito é exigida a regra da neutralidade relativa, que é uma regra clássica da sociologia (WEBER, 1993; DURKHEIM, 2001). A regra da neutralidade relativa sugere desapego, distanciamento profissional em relação aos valores contidos nos fatos e nas normas para a melhor cognição dos conflitos e das normas. Neutralidade absoluta é impossível e desnecessária, e, por sugerir indiferença, frieza, seria mais um defeito do que uma virtude metodológica. A neutralidade relativa refere-se aos valores, e a imparcialidade, no direito, refere-se ao processo. Como podemos observar na análise de processos, imparcialidade não significa imparcialidade negativa, não tomar parte, mas imparcialidade positiva: promover a manifestação exaustiva das razões das partes envolvidas no processo. A imparcialidade satisfatória não é imparcialidade dada, estática, mas imparcialidade dinâmica, construída. No ponto de partida de um processo, ocorre situação de parcialidade quando não houver igualdade de condições entre as partes. Tais situações de parcialidade inicial, ao serem corrigidas por recomendação do magistrado, não serão interpretadas como tomada de posição unilateral do magistrado (parcialidade), mas como construção da imparcialidade. A responsabilidade e zelo pelo processo, como instrumento democrático de pacificação, exige a construção da imparcialidade de fato. Digamos que o advogado de uma parte seja visivelmente desqualificado e o da 44 outra um excelente profissional, por razões, por exemplo, de desigualdade econômica entre as partes. Pode-se chamar tal processo de imparcial no ponto de partida, ou se trata de falsa imparcialidade, a ser corrigida pela construção da imparcialidade de fato, pela transformação da imparcialidade formal (parcialidade de fato) em imparcialidade substancial? Cabe ao magistrado, que é responsável pelo bom andamento do processo, intervir por meio dos recursos disponíveis, para que a imparcialidade seja efetiva, e não meramente formal. Todavia cabe lembrar que, num processo, exige-se imparcialidade somente dos magistrados. O advogado defende uma parte (cliente), e o promotor defende outra parte (a sociedade). Ambos são profissionais da parcialidade, mas que podem (e devem) adotar raciocínios de imparcialidade justamente por razões profissionais: identificar as razões da parte oposta para defender melhor o cliente (advogado), ou a sociedade (promotor). A regra da imparcialidade vale, sobretudo, para os magistrados. A regra da neutralidade relativa, para a melhor cognição dos conflitos e das normas, vale para todos os profissionais do direito positivo. Mas a regra da neutralidade relativa em relação aos valores deve ser compreendida no contexto das sociedades hodiernas, caracterizadas pela construção e reformulação dos sistemas ético-normativos. Na dissertação intitulada A Interpretação Sociológica do Direito, Wellington Pacheco de Barros (1995, p. 148) constatou que “o jurídico de hoje foi o político de ontem, origem que se mantém sempre latente”. A dogmática jurídica é expressão normativa de uma determinada opção de valor feita pela sociedade num dado contexto específico. Quando a sociedade modifica as próprias referências morais de base, ela consequentemente exige que a dogmática jurídica reoriente suas normas e procedimentos. Cada período histórico específico, num dado espaço geográfico, gerou sua legislação 45 específica, durável, mas mutável, não-definitiva, contestável, reformável. A Revolução Francesa substituiu o direito feudal e monárquico pelo direito burguês que, por sua vez, passa até hoje por constantes modificações trabalhistas, reformadoras. O confronto civil permanente entre os valores da maioria e os valores da minoria é determinante para o direito. O direito de hoje é resultado da vontade da maioria de ontem, sem esquecer, como percebeu Alexis de Tocqueville (De la Démocratie in Amérique, 1835), que a democracia pode degenerar em ditadura da maioria. Democracia significa relação entre maioria que governa e minoria que faz oposição. A oposição (profissional, responsável, inteligente) é parte institucional do sistema democrático, e não um elemento residual subversivo dele. Segundo o juiz Wellington de Barros (1995, p.10), “é preciso que a exegese jurídica deixe as fórmulas conceituais e dogmáticas criadas para um tempo e realidade diferentes e se volte para a atualidade e assim possa ver o direito não apenas com os olhos da lei, mas com os olhos da satisfação social”. A “satisfação social” é mutável, mas porque a mutabilidade caracteriza as sociedades democráticas. Não se trata de um defeito, mas de uma condição determinada pelo nosso modo hodierno de viver. Tal mutabilidade da “satisfação social” não autoriza nenhum dos três poderes a desqualificá-la. Numa democracia, deve-se analisar o mérito da opinião pública, com reverência, sem esnobá-la, sem tratá-la como se fosse sempre massa manobrada, manipulada pelos meios de comunicação. Magistrados que tratam a “satisfação social” - que se manifesta também em forma de opinião pública com a devida reverência, sabem que o poder que exercem não emana das faculdades de direito, mas da soberania popular. Sabem que não exercem uma profissão técnica, mas um poder (de julgar) que lhes foi transmitido pelo povo. 46 Eles sabem que, numa democracia, todo o poder emana do povo, inclusive o poder judiciário. O ingresso no poder judiciário acontece por meio de concurso, elaborado por comissões criadas para isso, procedimento previsto na Constituição Federal, que foi elaborada pelo povo por meio de seus representantes (assembleia constituinte). O concurso está para o poder judiciário como o voto para os poderes legislativo e executivo: são meios de delegação de um poder que é do povo soberano. Concursos e comissões de concurso para o ingresso na magistratura (e no ministério público) têm legitimidade democrática porque esse foi o caminho indicado pelo povo para a transferência do poder popular aos servidores públicos que são admitidos ao exercício do poder judiciário por meio de exames específicos. Assim como os sistemas eleitorais podem e devem ser melhorados, algumas regras referentes aos concursos de ingresso no poder judiciário também poderiam ser melhoradas. Certamente ninguém ousaria desqualificar a necessidade de conhecimento especializado oferecido pelas faculdades de direito e pelos cursos de formação para a magistratura e ministério público. Tal exigência de conhecimento especializado deveria ser até exportada ao legislativo e ao executivo. Mas as atividades relacionadas aos três poderes do Estado Democrático não são meras profissões. São mandatos populares que exigem legitimidade, além de competência profissional. No judiciário, ao contrário do legislativo e do executivo, a competência profissional geralmente é indiscutível. Os mecanismos de designação popular do poder judiciário é que poderiam ser parcialmente reformulados. As qualidades cívicas dos candidatos aprovados nos exames de conhecimento poderiam ser depois avaliadas por representantes qualificados de setores da sociedade civil, e não somente por um corpo de especialistas em direito, o que qualificaria a 47 legitimidade da transferência de poder e promoveria o aumento do zelo profissional pela “satisfação social”. CONCLUSÃO O direito positivo caracteriza-se pelo emprego de metodologia diferente da metodologia metafísica empregada pelo direito natural. Mas ao se afastar da centralidade da hermenêutica dos fatos em forma de conflitos, priorizando a dogmática jurídica, o direito positivo retornou ao método dedutivometafísico do direito natural, abandonando sua posição metodológica comtiana, indutiva, positivista. A nova (em sentido cronológico) metafísica jurídica é metafísica tecnicista, normatologia. Portanto, sublinhar a centralidade da hermenêutica dos conflitos no direito positivo não significa propor metodologia nova, alternativa, mas reconhecer a possibilidade de superação da atual metafísica tecnicista pelo retorno do direito positivo à sua metodologia indutiva original. Referências ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1982. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. BARROS, Wellington Pacheco de. A interpretação sociológica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1995. 48 ____. Dimensões do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1995. BENTO, Fábio Régio. A igreja católica e a social-democracia. São Paulo: AM Edições, 1999. _____. Viver e compreender a sociedade - ensaios de introdução à sociologia. Tubarão: Editora Unisul, 2002. _____. Da soberania dos pastores à soberania das ovelhas. In: BENTO, Fábio Régio (org.). Cristianismo, humanismo e democracia. São Paulo: Paulus, 2005, p.17-47. _____. Direito e Democracia. In: ROCHA, Maria Ines (org.). Humanismo e direitos. Passo Fundo: Berthier, 2007, p.101-125. CHIAVACCI, Enrico. Legge naturale. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino; PRIVITERA, Salvatore (a cura di). Nuovo dizionario di teologia morale. Milão: Paoline, 1990, p.634-647. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. CORREAS, Oscar. Introdução à sociologia jurídica. Porto Alegre: Crítica Jurídica, 1996. D’ADDIO, Mario. Storie delle dottrine politiche. Gênova: ECIG, 1995. DAHRENDORF, Ralf. Il conflitto sociale nella modernità. Roma-Bari: Laterza, 1990. DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978. _____. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. O suicídio – estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _____. As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Nacional, 2001. GALLI, Giorgio. Storia delle dottrine politiche. Milão: Il Saggiatore, 1985. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. 49 HERKENHOF, João Baptista. Direito e utopia. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999. LOMBARDI, Gabrio. Persecuzioni, laicità e libertà religiosa - dall’Editto di Milano alla Dignitatis Humanae. Roma: Studium, 1991. LÖNNE, Karl-Egon. Il cattolicesimo politico nel XIX e XX secolo. Bolonha: Il Mulino, 1991. PEZZIMENTI, Rocco. La società aperta e i suoi amici. Messina: Rubbettino, 1995. _____. Politica e religione - la secolarizzazione nella modernità. Roma: Città Nuova, 2004. PRIVITERA, Salvatore. Etica descrittiva. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino; PRIVITERA, Salvatore (a cura di). Nuovo dizionario di teologia morale. Milão: Paoline, 1990, p.354-358. RICCARDI, Andrea. Intransigenza e modernità. Roma-Bari: Laterza, 1996. SARTORI, Giovanni. La politica - logica e metodo nelle scienze sociali. Milão: SugarCo, 1991. _____. Democrazia. Cosa è. Milão: Rizzoli, 1993. SPINELLI, Lorenzo. Lo Stato e la Chiesa – venti secoli di relazioni. Turim: Utet, 1988. TRINDADE, Hélgio; GARRETÓN, Manuel; MURMIS, Miguel; REYNA, José; SIERRA, Gerónimo. Ciências Sociais na América Latina em perspectiva comparada: Argentina, Brasil, Chile, México e Uruguai. In: TRINDADE, Hélgio (org.). As Ciências Sociais na América Latina em perspectiva comparada – 1930-2005. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006. WEBER, Max. Ciência e política – duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva, 2002. 50 CAPÍTULO 3 UNIVERSIDADE E DEMO-FRATERNIDADE A partir da Revolução Francesa, três grandes paradigmas condicionaram as relações entre sociedade e universidade: os paradigmas da liberdade, da igualdade e da fraternidade. É sobre as relações entre tais paradigmas e a universidade que trata este ensaio descritivo e propositivo, pequeno manifesto pela demo-fraternidade. 51 1.A DIALÉTICA POSITIVA DA FRATERNIDADE Os ideólogos da Revolução Francesa (1789) resumiram os anseios e metas da humanidade com o tríptico paradigmático Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Parece haver uma relação de continuidade entre liberdade, igualdade e fraternidade na sociedade moderna, ou seja, começamos pela liberdade sem igualdade nem fraternidade; passamos à liberdade com relativa igualdade, mas sem fraternidade; e somos desafiados a valorizar o paradigma marginalizado, da fraternidade, etapa madura da realização dos ideais da Revolução Francesa, ainda inacabada. Liberdade, igualdade e fraternidade são as três etapas paradigmáticas da realização histórica dos anseios e metas da humanidade que emergiram no período turbulento da Revolução Francesa. Fenômenos coletivos de liberdade, igualdade e fraternidade sempre existiram na história da humanidade, mas a busca pela sua realização se intensificou na modernidade, e de forma gradual, por etapas: a primeira etapa, da liberdade; a segunda etapa, da igualdade; e a terceira etapa, da fraternidade. Não vivemos num mundo livre, igualitário e fraterno, mas estamos descobrindo que a vocação da humanidade é viver com liberdade, igualdade e fraternidade. Se compararmos as três etapas do tríptico ético-evolucionário liberaligualitário da fraternidade ao materialismo histórico e dialético de Karl Marx, poderemos afirmar que a etapa comunista da história sócio-evolutiva da humanidade prevista por Marx corresponderia à etapa da construção da 52 fraternidade no tempo e no espaço. O comunismo de Marx corresponderia ao que poderíamos chamar de fraternismo. Há erros e intuições verdadeiras na dialética de Marx. Uma constatação que consideramos correta na sua observação da história foi a identificação de uma meta final caracterizada pela comum-unidade. Seus erros principais foram a exclusão da burguesia e valores liberais da meta final (exclusão do paradigma da liberdade) e a crença na violência como meio de construção social. Ora, a violência destrói com muita competência, mas não sabe o que colocar sobre as ruínas do que destruiu. Não é parteira da história. Ao excluir a burguesia e suas conquistas liberais da nova sociedade, Marx eliminou parte dos alicerces que deveriam sustentar a nova sociedade. A dialética negativa, excludente, do marxismo, eliminou a tese que combatia, ao invés de corrigi-la. Não criou uma nova síntese, mas a negação do projeto social da modernidade pela eliminação da tese burguesa, que havia sido uma conquista da modernidade e não um defeito dela. Ao contrário, a dialética do paradigma da fraternidade é dialética positiva: a igualdade não rejeita a liberdade burguesa, mas propõe a sua correção de rumo pela contestação (antítese) de seus defeitos de concretização. A conquista da igualdade sustenta-se na conquista da liberdade, e não na sua negação, alargando a prática da liberdade para fora do âmbito do monopólio burguês. O paradigma da fraternidade, anseio e meta da modernidade, é a terceira e etapa histórica no empenho da humanidade pela construção da fraternidade social no tempo e no espaço. Tal terceiro paradigma não exclui o primeiro (da liberdade) nem o segundo (da igualdade), mas precisa deles para a sua realização e os leva à plena maturidade. A dialética positiva da fraternidade sustenta e leva ao pleno exercício as etapas anteriores, da liberdade e da 53 igualdade. E tal dialética histórica positiva da fraternidade é de extrema relevância não somente para a política e para a economia, mas, também, para os projetos pedagógicos e administrativos das universidades modernas. 2.PRIMEIRA ETAPA – PARADIGMA DA LIBERDADE A Revolução Francesa foi uma revolução burguesa, palavra que aqui não é utilizada em sentido pejorativo, mas descritivo: empreendedor. Os burgueses foram elogiados por aquele que, depois, anunciará o seu fim: a burguesia “criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas” (MARX, 1988, p.79). A burguesia transformou a antiga sociedade monárquica, que era uma sociedade de privilégios (de poucos), numa nova sociedade, de direitos (teoricamente de todos). A propriedade, transmitida como herança, deixa de ser privilégio da aristocracia de sangue e passa a ser direito que se conquista por meio dos méritos do trabalho. A burguesia criou uma nova sociedade, capitalista, industrial, urbana, desenvolvimentista. Ela transformou o antigo regime numa sociedade criada à imagem e semelhança dela, com uma cultura burguesa; arte burguesa; arquitetura burguesa; escola burguesa; direito burguês; moda burguesa; literatura burguesa; universidade burguesa; educação burguesa. O paradigma da liberdade foi, antes de tudo, um paradigma burguês, porque a burguesia necessitava dele para viver. Porém, mesmo sendo necessidade imediata da burguesia revolucionária, o paradigma da liberdade é um paradigma em teoria universal. 54 A educação monárquica (vários professores para um aluno da nobreza de sangue) servia para justificar a ordem social monárquica e preparar os novos gestores do poder monárquico para a realização de suas tarefas específicas. Tal modelo de educação foi substituído pela educação burguesa (vários professores para estudantes burgueses, nas escolas burguesas). A Revolução Francesa afirmou que a educação não é privilégio (de poucos), mas direito (de todos). Porém, na prática, apenas aos filhos da burguesia o acesso à educação foi estendido. A educação passou a ser teoricamente um direito, mesmo se não o foi na prática. E a educação burguesa servia para justificar a nova ordem social burguesa e preparar os novos gestores do poder burguês para a realização de suas tarefas específicas. A burguesia conquistou a liberdade, mas manteve a sociedade desigual, contra ela, que seria enterrada, segundo Marx, pelo proletariado, “coveiro” da burguesia (Ibidem, p.88). “Estou tentando salvar esses burgueses burros e eles não entenderam”, desabafou o reformador Getúlio Vargas, ao ser ameaçado pela burguesia por propor mudanças nas relações entre ela e os operários mediante legislação trabalhista (BANDEIRA, p.30). A burguesia nasceu como classe revolucionária, mas logo se transformou em classe conservadora, protegendo a nova ordem social burguesa recém criada - produção industrial, lucro, direito de propriedade privada, economia de mercado, democracia representativa (assegurado o direito à participação política somente à burguesia) – das “ameaças” proletárias. Todavia, o proletariado, mais do que uma ameaça, representava a continuação no tempo e no espaço da revolução inacabada. 55 3.SEGUNDA ETAPA - PARADIGMA DA IGUALDADE Se, de um lado, os burgueses foram os sujeitos principais da realização do paradigma da liberdade na sociedade (política, economia, cultura, educação formal), de outro, os movimentos sociais dos trabalhadores assalariados, operários da indústria, foram os principais protagonistas do paradigma da igualdade no tempo e no espaço. As metas da revolução liberal iniciada pela burguesia foram retomadas pelos movimentos sociais do proletariado. O caminho rumo à liberdade e igualdade foi aberto pela burguesia aos movimentos operários: se a sociedade continuasse sendo monárquica, sem a hegemonia burguesa, os trabalhadores assalariados continuariam sendo súditos da monarquia, servos dos senhores feudais. A Revolução Francesa foi realizada em nome de direitos, universais, mas, na prática, os burgueses derrubaram a escada após chegarem ao poder, deixando os antigos companheiros do terceiro estado na parte de baixo da pirâmide social. Todavia um importante precedente histórico, jurídico-político, havia sido aberto: tudo aquilo que a burguesia conquistou, na prática, para si própria, havia sido anunciado, em teoria, como direito, de todos. Os operários foram gradualmente – e heroicamente - recolhendo as poucas forças que tinham para organizar seus movimentos sindicais e partidários de luta pelos seus direitos sociais. Tais movimentos de operários podem ser classificados em dois grandes grupos: o dos revolucionários e o dos reformadores. A igualdade dos revolucionários negava a liberdade da burguesia; e a igualdade dos reformadores estendia a liberdade burguesa (sem negá-la, mas corrigindo seu rumo) aos movimentos dos trabalhadores assalariados. 56 Os movimentos sociais revolucionários queriam o fim do sistema burguês (democracia, economia e educação burguesas) e o fim da própria burguesia. Tais movimentos estão à base das experiências conhecidas como socialismo real, que crepuscularam no final da década de 1980. Já os movimentos sociais operários reformadores não queriam o fim do sistema burguês capitalista, mas a sua correção de rumo. Os reformadores identificaram valores universais no capitalismo, na democracia e na educação burgueses e, por isso, queriam alargar o âmbito de atuação de tais valores, estendendo aos trabalhadores assalariados as conquistas das revoluções liberais. O capitalismo, para os operários da igualdade reformadora, era como uma galinha dos ovos de ouro: a solução não seria matar a galinha (como queriam os operários da igualdade revolucionária), mas distribuir os ovos. Para os reformadores, a democracia representativa é sistema político válido. Por isso, não deveria ser eliminada, como se fosse apenas democracia burguesa, mas estendida aos movimentos sociais e políticos de representação dos trabalhadores assalariados. Os movimentos operários da igualdade reformadora realizaram importante tarefa na concretização do tríptico paradigmático da Revolução Francesa por meio de suas ações reformadoras: legislação trabalhista, sufrágio universal, representação sindical e partidária alargada, reformas salariais, economia social de mercado, acesso à educação, turismo e lazer. O italiano Carlo Rosselli (1899-1937), autor do clássico intitulado Socialismo Liberal, afirmou que os movimentos operários são os “herdeiros da função liberal” desenvolvida inicialmente pela burguesia (1997, p.133). São os continuadores da revolução inacabada. Os operários reformadores, ao contrário dos revolucionários, não excluíram o paradigma da liberdade, mas o estenderam aos trabalhadores 57 assalariados; não excluíram a burguesia da sociedade, mas compreenderam o papel empreendedor da burguesia como serviço do qual necessitam também os próprios operários. O paradigma da liberdade aplicado à educação gerou ações pedagógicas liberal-conservadoras de formação exclusiva para a concorrência individual no mercado de trabalho; de outro lado, gerou, também, ações pedagógicas liberaldemocratas de formação para a cidadania e qualidade da vida pessoal e social. A burguesia liberal-democrata, ao contrário da liberal-conservadora, passou a valorizar ações típicas do paradigma da igualdade (reformadora) aplicado à educação por razões de consciência, ou por razões de sobrevivência econômica e física: trabalhadores assalariados melhor remunerados gastam mais e ameaçam menos (segurança pública). O paradigma da igualdade aplicado à educação gerou ações pedagógicas (da igualdade revolucionária) contra o mercado, o lucro, a propriedade privada, a burguesia, o capitalismo. Mas, de outro lado, gerou, também, ações pedagógicas críticas, mas integradoras (da igualdade reformadora): inclusão por meio da educação, mudanças na estrutura da sociedade por meio de reformas integradoras voltadas para a justa conciliação entre as metas da produção, da justa distribuição e do desenvolvimento sustentável. O paradigma da igualdade aplicado à educação por meio de ações reformadoras encontra pontos em comum com o paradigma da liberdade aplicado à educação por meio de ações liberal-democratas. Eles têm em comum a constatação da complementaridade entre burguesia e trabalho assalariado; entre exigências da produção e da justa distribuição; entre concorrência e solidariedade. O paradigma da liberdade interpretado em sentido liberal-democrata não excluiu de suas metas os trabalhadores assalariados, concebidos como 58 parceiros nos processos de desenvolvimento sustentável. Da mesma forma, o paradigma da igualdade, interpretado em sentido crítico-reformador não excluiu de suas metas a burguesia liberal-democrata, concebida como parceira empreendedora nos processos de desenvolvimento sustentável. O paradigma da liberdade é coerente com o tríptico da Revolução Francesa quando significa evolução para a liberal-democracia, diferente do liberalismo arcaico, promotor do capitalismo effrenus (sem rumo ético-social). Da mesma forma, o paradigma da igualdade é coerente com o tríptico da Revolução Francesa quando significa evolução para a democracia social reformadora, crítica e integradora, diferente das trágicas experiências destruidoras promovidas pela igualdade revolucionária. Para cada possibilidade paradigmática da liberdade (conservadora ou liberal-democrata) e da igualdade (reformadora ou revolucionária) corresponde um modelo paradigmático de educação, escola e universidade, com seus respectivos projetos pedagógico e de gestão. 4.TERCEIRA ETAPA – PARADIGMA DA FRATERNIDADE O paradigma da fraternidade é o paradigma do vínculo, da ligação: cimento que está entre os tijolos que formam o muro. Fraternidade é o vínculo de amor, de solidariedade que faz com que pessoas diferentes se sintam ligadas em comum-unidade (comunidade), em comum-união (comunhão). O paradigma da fraternidade pode ser também chamado de paradigma da unidade, onde a palavra unidade é compreendida não como uniformidade (eliminação da liberdade e igualdade), mas como unidade que produz o 59 aperfeiçoamento da liberdade e da igualdade pelo vínculo da fraternidade: unidade personalizante. A fraternidade supõe e aperfeiçoa a liberdade e a igualdade (reformadora). Fraternidade significa vínculo de fraternidade entre iguais, o que exclui teorias e práticas subordinacionistas, assistencialistas segundo as quais alguns seres humanos estariam condenados à subordinação social por meio da assistência dos “mais favorecidos”. As diferenças sociais, ao contrário das diferenças naturais, biológicas, são diferenças culturais e, portanto, mutáveis. A fraternidade horizontal, entre seres humanos livres e iguais, supera o sentido assistencial da fraternidade vertical. A sabedoria popular afirma que “todos somos farinha do mesmo saco”. Aristóteles afirmou que o ser humano é um ser social. Ou seja, a sociabilidade não faria parte do seu fazer, mas do seu ser: realidade ôntica. A fraternidade é uma realidade concreta (não é metafísica, mas intrafísica) que se refere ao ser do ser humano e não ao fazer do ser humano. Fraternidade é realidade ôntica coletiva que se refere ao ser social de cada ser humano. Os vínculos de fraternidade entre os seres humanos não são visíveis, mas são tão reais quanto a sede e a fome. Tomemos como exemplo um ônibus de linha e um de excursão, ambos viajando para o mesmo lugar e com o mesmo número de pessoas. Diferença entre eles? Os vínculos de fraternidade que fazem do ônibus de excursão uma comum-unidade, uma comum-união, ao contrário da ausência de vínculos entre os que viajam num ônibus de linha. Amigos unidos por vínculos de fraternidade experimentam tal vínculo mesmo estando um no Brasil e o outro na Itália. Os vínculos de fraternidade não são vistos, mas são tão reais que, quando rompidos, provocam danos nos 60 sujeitos. A tristeza pelo rompimento dos vínculos de amor é tão visível quanto a alegria provocada pelo reencontro de amigos. Os vínculos de fraternidade seriam vínculos dados, de sangue (naturais) ou seriam vínculos construídos (culturais)? Os inúmeros conflitos entre irmãos de sangue e o próprio arquétipo fratricida de Caim que mata seu irmão Abel não permitem visões ingênuas sobre a fraternidade de sangue. Li, certa vez, numa revista de avião, que “somente os filhos únicos sonham com uma sociedade de irmãos”. As palavras irmão e fraternidade podem remeter o pensamento a vínculos impostos pelas circunstâncias biológicas. Tais vínculos, às vezes, são desprovidos de amor, liberdade e igualdade. A palavra fraternidade, aqui compreendida como fraternidade que supõe a liberdade e a igualdade (fraternidade horizontal), envia nosso pensamento para as amizades escolhidas, caracterizadas pela gratuidade e reciprocidade (e não pelo domínio), para as sociedades dos que se fazem irmãos, ou dos irmãos de sangue que se fazem amigos. Como ensinou Tomás de Aquino, “qualquer amigo verdadeiro quer para seu amigo: 1) que exista e viva; 2) todos os bens; 3) fazer-lhe o bem; 4) deleitar-se com sua convivência; e 5) finalmente compartilhar com ele suas alegrias e tristezas, vivendo com ele um só coração” (Summa Theologiae, II-II, q. 25, a. 7). E ainda: “O amigo é melhor que a honra, e o ser amado, melhor que o ser honrado” (Summa Theologiae, II-II, q. 74, a. 2). A fraternidade à qual aqui nos referimos é, sobretudo, fraternidade que se constrói no tempo e no espaço a partir da escolha da fraternidade como paradigma vital para a comunidade humana. A fraternidade é escolha humana mais do que condição natural. Escolhe-se a ética da fraternidade, a cultura (e paradigma) da fraternidade como estilo de vida público e doméstico. 61 Vínculos de fraternidade precisam ser reconstruídos a cada dia. O realismo ético nos demonstra que é preciso muito trabalho para transformar máquinas de conflitos banais (seres humanos) em agentes críticos e criativos da fraternidade. A natureza ferina do ser humano (Maquiavel), ou ferida pelo pecado original (cristianismo), precisa da ascese do amor para o bom êxito da fraternidade pública e doméstica. O ser humano, porém, é também portador de amor. A fraternidade é escolha, construção, mas é, também, natureza, condição, segundo a célebre constatação de Aristóteles: o ser humano é ser social. Quando escolhemos a fraternidade como estilo cultural de vida, realizamos nossa natureza sóciofraterna de seres humanos, pois há vínculos mais profundos entre os seres humanos no andar abaixo dos vínculos de sangue: a humanidade já é uma só coisa, uma só família (“farinha do mesmo saco”), mesmo sem saber explicitamente disso. Somos uma só realidade, mesmo se nem sempre vivemos segundo nossa identidade social ôntica. Trata-se de afirmação sustentada na constatação de Aristóteles, comumente aceita; nas constatações do sociólogo Émile Durkheim, nos seus estudos sobre a passagem da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica; e nas afirmações ônticas de algumas religiões, como o cristianismo. Para Durkheim, solidariedade significa consenso (sentir com). Antes da Revolução Industrial prevalecia o consenso social dado, tradicional (solidariedade mecânica), que foi substituído pelo consenso funcional, profissional (solidariedade orgânica), mais tênue, frágil, que o consenso tradicional. Por isso, as sociedades modernas, industriais - segundo o sociólogo francês - tendem a ser sociedades anômicas. Anomia, em resumo, significa a perda do sentido de pertença a uma comunidade. Nas sociedades 62 modernas o ser humano é mais livre, mas nem sempre mais feliz. Sente-se sozinho na multidão, sem o apoio de uma comunidade forte de pertença. A anomia é uma patologia social que pode levar até mesmo ao suicídio. E tal patologia, segundo o pensador francês, pode ser enfrentada com a terapia da comunidade, pela recriação dos vínculos perdidos por meio da adesão aos grupos sociais, como os grupos profissionais, que não teriam apenas função reivindicativa, mas, sobretudo, integradora (DURKHEIM, 1999; 2000). Também para Durkheim o ser humano é um ser social, comunitário, incapaz de personalizar-se sem a inserção forte, qualitativa numa comunidade de pertença. No cristianismo, encontramos lição sócio-antropológica semelhante: o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, mas Deus, para a teologia cristã, é comunidade, é Trindade. Por isso, ao afirmar que o ser humano é imagem e semelhança de Deus, afirma-se, consequentemente, a natureza social original dele. A realidade ôntica do ser humano - para o cristianismo, como para Aristóteles, Durkheim e tantos outros pensadores - é realidade social, coletiva, comunitária que não elimina a pessoalidade, mas que personaliza pela realização prática de sua própria identidade na comunidade. Já somos um, e realizamos tal identidade fraternal quando vivemos de acordo com ela. A lição simples e profunda da oração do Pai Nosso é bem significativa: já somos irmãos, mas devemos viver de forma coerente com nossa identidade. Ao término de sua vida pública, Jesus deixou aos seus seguidores seu projeto ético-social em forma de oração-testamento: “Pai, que todos sejam um” (João 17, 21). O que significa pedir que todos sejam eticamente aquilo que onticamente já o são. 63 Viver pela fraternidade, vivendo a fraternidade, significa qualificar nossos vínculos sociais ônticos de pertença à comunidade pela prática do amor recíproco, horizontal, livre, responsável, participante e personalizante. Problemas hodiernos como a anomia, conflitos locais e internacionais, exclusão, concentração exigem a prescrição da fraternidade horizontal, livre e igualitária, como medida urgente de tratamento social, nacional e internacional. 5.TERCEIRO PARADIGMA E UNIVERSIDADE A escolha da fraternidade é, hoje, uma necessidade universal: urge a efetivação da fraternidade nas comunidades nacionais e nas relações internacionais, na política e na economia. Sérgio Vieira de Mello, internacionalista da fraternidade realista, escreveu, em 1966, com apenas 18 anos de idade, que “uma sociedade moderna precisa da fraternidade para dominar as relações sociais complexas, principalmente no domínio econômico, e para manter um equilíbrio edificado sobre a paz e a compreensão e não sobre o terror” (2004, p.232). Sérgio de Mello, qual mártir da teoria e prática do internacionalismo da fraternidade, deu sua própria vida pelo senhorio da fraternidade realista no mundo (MARCOVITCH, 2004). Nele poderíamos nos inspirar para a criação de uma nova Internacional: a da fraternidade realmente universal. Os paradigmas da liberdade e da igualdade não são suficientes. Fala-se tanto em desencanto pós-moderno, em revisão da modernidade, em crise da modernidade justamente porque o paradigma da fraternidade ficou de fora, marginalizado. Superar-se-á tal desencanto coletivo com uma guinada geral 64 em direção à fraternidade livre e igualitária. E tal guinada deve ser feita também no âmbito das escolas e universidades, superando o individualismo e o tecnicismo com a ajuda do paradigma da fraternidade aplicado à educação. As universidades podem colaborar com as exigências de qualificação da comunidade escolhendo como meta, visão e valores próprios o paradigma da fraternidade; escolhendo o paradigma da fraternidade como referência central dos projetos pedagógicos e de gestão de seus cursos. Universidades voltadas apenas para a inserção de seus egressos no mercado de trabalho são universidades atrasadas do ponto de vista do desenvolvimento ético-social da humanidade. Fábricas de profissionais arrivistas voltados apenas para suas carreiras individuais - e não para a carreira ético-social da humanidade - não são universidades compatíveis com as justas metas paradigmáticas da modernidade. Escolas e universidades arrivistas possuem ranking de sucesso em aprovação nos vestibulares e boas notas de avaliação técnica dos egressos. Mas se fossem feitos exames de avaliação ético-social, quais seriam as notas? Mais do que de bons profissionais técnicos, empresas e cidades necessitam de profissionais ético-técnicos. Urge a prescrição de um ranking de produção ético-social, que quantifique a utilidade pública de escolas e universidades. Egressos de universidades não deveriam apenas enriquecer por meio da sociedade, mas enriquecer ética e tecnicamente a sociedade por meio da universidade. A formação universitária orientada pelo terceiro paradigma não rejeita a formação técnico-profissional. Valoriza a formação técnica revelando seu sentido ético-social. Valoriza o mercado e o profissionalismo individual e de equipe em função do progresso ético-social de toda a comunidade. 65 Ao optar pelo paradigma da fraternidade, uma universidade deixa de ser local de repasse de saber técnico, espécie de “supermercado” do saber, do qual cada um retiraria sua latinha de legumes e leguminosas. Ela passa a ser laboratório vivo de liberdade, igualdade (reformadora) e fraternidade crítica, criativa, investigativa, pesquisadora e sócio-integradora. A universidade da fraternidade é espaço de comunhão de ideias, produções, afeto, interesses, dúvidas, fracassos, realizações. Por isso, ela não pensa apenas no espaço físico das salas de aula, mas em todos os outros possíveis locais de encontro, pois todas as formas de encontro sadio, numa universidade da fraternidade, servem para a produção de riqueza humana. A universidade da fraternidade também “forma para o mercado de trabalho”, mas ela é muito mais do que isso: é uma causa humanista, local e internacional, crítica e criativa, livre e responsável. A universidade da fraternidade - laboratório vivo do paradigma da fraternidade - tem como meta praticar o tríptico paradigmático da Revolução Francesa para tornar melhores as cidades, os países e o mundo. O ideal da fraternidade (libertária e igualitária) é o ideal dos liberaldemocratas, dos socialistas reformadores, dos cidadãos crentes (de várias religiões) ou agnósticos humanistas. É o ideal prático de muitos, mas que ainda não se tornou referência central explícita em empresas, escolas, universidades, partidos políticos. A universidade da fraternidade é uma universidade com rumo éticosocial definido em seu projeto pedagógico e modelo de gestão. Ela encontra nos paradigmas da fraternidade, liberdade e igualdade sua razão de existir para o mundo como laboratório daquilo que propõe. A universidade da fraternidade não promove o raciocínio robótico, mas o pensamento hermenêutico. Por isso, recomenda que seja manifestado o 66 conteúdo humanista implícito nas disciplinas tecnológicas. A técnica inventada pelo ser humano não é técnica para a técnica, mas para o ser humano todo e todos os seres humanos. Combater a ideologia tecnicista que afasta da cognição tecnológica os problemas sociais é dever de todos, inclusive dos professores das disciplinas tecnológicas. A universidade da fraternidade promove somente o desenvolvimento sustentável, pois é o único modelo de desenvolvimento fraterno em relação às gerações do presente e do futuro. A universidade da fraternidade cria relações com todas as universidades do mundo, mas prefere estreitar relações (rede de relações) com as universidades comprometidas com o paradigma da fraternidade, e não com as fábricas de arrivistas nota 10 em técnica e zero em cidadania. Universidades fixadas em “treinar (longamente) para o mercado de trabalho” (primas-irmãs dos colégios fixados em “preparar para o vestibular”), são como corpo sem alma, família sem amor, vida sem beleza, poesia, arte. A universidade da fraternidade quer mudar a mentalidade do mercado, ao invés de acomodar-se nele. A universidade da fraternidade é espaço de aprendizado e de lazer, onde se pratica a cordialidade também por meio de brincadeiras, jogos, bom humor entre professores, funcionários e estudantes em todos os espaços físicos e virtuais da universidade (a fraternidade é lúdica!). As boas brincadeiras, inteligentes, criativas, promovem a integração, além de fertilizarem a mente, preparando-a para novas descobertas. A universidade da fraternidade é uma universidade laica, pluralista, que defende a vida, do nascimento (concepção) à morte. A universidade da fraternidade não é ingênua. Combate a corrupção dentro e fora de casa, pois sabe que a chaga da corrupção está para as 67 estruturas sociais como o câncer está para o corpo humano. Realiza tal combate com as armas da legalidade e da prudência. A universidade da fraternidade não é morna e covarde. Valoriza o realismo ético que contém a verdade e a justiça, temperadas pelo amor, que ajuda o colega ao lado a encontrar seu caminho na engrenagem complexa da vida, ao invés de excluí-lo. A universidade da fraternidade se corrige e corrige; defende-se de seus inimigos internos e externos; premia méritos e não as recomendações politiqueiras; valoriza a gestão caracterizada pela estabilidade financeira, pois para ela valem as mesmas regras da boa economia doméstica, que ensina a gastar com moderação, equilíbrio e responsabilidade fiscal e social. Quem gasta sem responsabilidade produz alegria superficial hoje e tristeza coletiva amanhã. Na universidade da fraternidade valoriza-se a pesquisa e o ensino, e a extensão ocupa lugar de destaque. A extensão é expressão da paixão da universidade da fraternidade pela comunidade. Na universidade da fraternidade há lugar para todos os credos políticos, religiosos, esportivos, econômicos e artísticos, desde que tenham como norma das normas o dever de amar. No livro Participação e Solidariedade, Osvaldo Della Giustina afirmou que “é preciso que a solidariedade se imponha como norma jurídica, envolvendo as relações das pessoas, das organizações e dos países” (2008, p.211). Para ele, a participação e a solidariedade devem “inspirar mecanismos operacionais, transformar-se em normas jurídicas que garantam seu exercício” (Ibidem, p.211). Os paradigmas da liberdade e da igualdade inspiraram a criação de ordenamentos jurídicos como os códigos civis (paradigma da liberdade) e as legislações trabalhistas (paradigma da igualdade). Porém, no que se refere ao 68 paradigma da fraternidade, não houve a transformação em lei, e a solidariedade ainda “é considerada apenas virtude” (Ibidem, p.211). A fraternidade é virtude, mas deveria, também, ser considerada norma jurídica, uma vez que a sociedade transforma em norma jurídica as virtudes e normas morais que são consideradas indispensáveis ao bom funcionamento da sociedade. Não basta obrigar a não matar. Pela sua relevância social, é preciso que o amor seja considerado mais do que simples opção. Precisamos de “uma fraternidade sustentada em bases jurídicas e verdadeiramente capazes de garantir-lhe a eficácia” (MARCOVITCH, p.20). O paradigma da fraternidade é metodologia de ação (pedagógica, política, econômica, empresarial) e projeto social (fraternidade social). A universidade da fraternidade ensina que a história não chegou ao fim em 1989 com a queda do muro de Berlim. A história não terminou com a vitória do liberalismo conservador. Ela termina e recomeça com a vitória da fraternidade livre e igualitária. A sociedade da fraternidade resta sempre uma sociedade aberta (PEZZIMENTI, 1995), criativa, pelos seus ingredientes constitutivos de liberdade e igualdade. A unidade característica da fraternidade horizontal valoriza e harmoniza a diversidade, integrando-a sem anulá-la. É unidade personalizante, e não massificante. Como afirmou o pensador francês Pierre Teilhard de Chardin, não somos “átomos perdidos no Universo” (apud REZEK, p.243). Somos sujeitos de um processo social ético-evolutivo que tem como meio e meta a sociedade da fraternidade livre e igualitária. Não vivemos num mundo sem rumo, mas num mundo orientado à unidade. Segundo Chardin, o universo caminha para “une Fin d’ensemble” - um Fim global (Ibidem, p.247). Sua realização, para cada ser humano em particular, resta sempre uma possibilidade da liberdade. 69 “O mundo”, afirma Teilhard de Chardin, “não é somente um lugar de exercício: é uma obra a se realizar” (Ibidem, p.246). Para a italiana Chiara Lubich, autoridade em cultura da fraternidade, “com o passar dos anos, tendo experimentado incontáveis vezes, na minha vida e naquela dos outros a ação providencial de Deus, e tendo podido conhecer diretamente muitos povos, aprendi a identificar os avanços implícitos na humanidade, até poder afirmar que a sua história é uma lenta, mas irrefreável caminhada rumo à fraternidade universal” (2004, p.3-4). A dialética realista do amor afirma que a fraternidade é a verdadeira parteira da história, e não a violência, como escreveu Karl Marx no livro O Capital. Nos seus estudos, o sociólogo Pitirim Sorokin, autor de uma profunda sociologia do amor, afirmou que a história da humanidade não é somente caracterizada pela luta de classes. “A cooperação entre as classes sociais”, constatou Sorokin, “é um fenômeno ainda mais universal do que o antagonismo entre elas” (1974, p.526). Mesmo tendo a possibilidade de viajar numa estrada de ferro, insistimos em continuar conduzindo o trem da história pelo lado de fora dela, entre pedras e buracos. A insensatez, porém, não é a única possibilidade da liberdade, mesmo sendo a mais comum. Sobre Sérgio Vieira de Mello, Jacques Marcovitch afirmou que “no momento em que personalidades mundiais optaram pelo confronto, ele escolheu a força positiva do diálogo. Desprezou a cultura do medo e do susto, do contra, do antiisso ou do antiaquilo, da negação e da discórdia. Desmistificou, mesmo sem querer, a ideia de que o combate armado é a única via para a afirmação dos heróis. Este brasileiro tão preocupado com a consciência do mundo acreditou na força das ideias, da palavra e do convencimento, excluída qualquer mediação de poderes. O seu grande 70 instrumento de trabalho, em todos os momentos, foi a interlocução construtiva e harmoniosa” (2004, p.22). Para Marcovitch, “o diálogo, mais do que iniciativa política, é doação ética. Por meio dele uma parte recebe de outra o fruto da meditação solitária e inteligente. É desta forma que se impede a ressurreição da barbárie e materializa-se o ideal da alteridade. Os outros podem ser o inferno de cada um, como queria Sartre? Sim, mas os outros também podem representar, no intercâmbio de opiniões e ideias, fontes inesgotáveis de valores” (Ibidem, p.22). Marcovitch definiu Vieira de Mello como “herói-mártir que não manchou as mãos com sangue dos outros, mas do seu próprio corpo, naquele fatídico 19 de agosto de 2003, em Bagdá. (...) foi sobretudo por ‘amor ao mundo’ que ele pensou, agiu e morreu. (...) é preciso notar que o brasileiro jamais liderou missões de combate, e os resultados que buscava, e alcançou, tiveram sempre como princípios basilares a paz e a reconstrução” (Ibidem, p.14). As lições práticas e teóricas de Vieira de Mello nos ajudam a compreender que a tarefa principal das universidades da fraternidade realista é melhorar o mundo. Jovens e adultos buscam uma universidade não apenas para aprender a viver num mundo mudado, mas para aprender a mudar o mundo onde vivem. O paradigma da fraternidade horizontal revolucionou o sistema monárquico de privilégios (nobreza de sangue) e ainda tem muito trabalho a fazer: revolucionar as divisões nas relações internacionais (políticas, econômicas); as divisões sociais (Brasil); as divisões de casta (Índia); as divisões étnicas (África); as divisões raciais. As universidades não podem ficar de fora, mas devem ser promotoras dessa revolução que abate divisões por meio do paradigma da fraternidade, 71 que não é fraternidade de elite, mas demo-fraternidade. Como bem explicou Antonio Maria Baggio, “dentro da comunidade política, podem existir cidadãos tão frágeis – por serem portadores de necessidades especiais, por causa das perdas econômicas, sociais, culturais – que os tornam impossibilitados de viver a reciprocidade, a ponto de serem excluídos da participação. Existe o risco de os vínculos de reciprocidade se instaurarem somente entre os fortes, entre aqueles que são capazes de retribuir, e que, dessa maneira, a reciprocidade degenere em troca, que reforça os fortes e exclui cada vez mais os fracos. É o risco daquela que se convencionou chamar ‘sociedade dos dois terços’, na qual a maioria bem de vida jamais tomas decisões em favor da minoria em desvantagem. (...) O dever da política da fraternidade, então, é abranger a terça parte ‘excluída’ (...). O objetivo da política é o bem comum, mas ele jamais deve ser medido pelo bem-estar que o mais forte alcançou, mas pelo bem colocado à disposição do excluído. Para a verdadeira política, o mais fraco é o primeiro cidadão” (2006, p.114). Referências ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1982. BAGGIO, Antônio Maria. Reflexões para a vida pública – A cultura da fraternidade e a política. São Paulo: Editora Cidade Nova, 2006. BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart – As lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1983. BENTO, Fábio Régio. A Igreja Católica e a Social-Democracia. São Paulo: AM Edições, 1999. 72 _____. Viver e compreender a sociedade: ensaios de introdução à sociologia. Tubarão: Editora Unisul, 2002. _____. Humanismo e democratização do tempo livre. In: BOMBASSARO, Luiz; DAL RI JÚNIOR, Arno; PAVIANI Jayme (orgs.). As interfaces do humanismo latino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p.403-430. _____ (org.). Cristianismo, humanismo e democracia. São Paulo: Paulus, 2005. _____. Direito e Democracia. In: ROCHA, Maria Ines (org.). Humanismo e direitos. Passo Fundo: Berthier, 2007, p.101-125. BERNSTEIN, Eduard. Socialismo Evolucionário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor-Instituto Teotônio Vilela, 1997. BLACKBURN, Robin. (org.). Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. D’ADDIO, Mario. Storie delle dottrine politiche. Gênova: ECIG, 1995. DAHRENDORF, Ralf. Il conflitto sociale nella modernità. Roma-Bari: Laterza, 1990. _____. 1989. Riflessioni sulla rivoluzione in Europa. Roma-Bari: Laterza, 1991. DELLA GIUSTINA, Osvaldo. Participação e solidariedade – A revolução do terceiro milênio (II). Tubarão: Editora Unisul, 2008. DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978. _____. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. O suicídio – estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _____. As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Nacional, 2001. FURET, François. Il passato di un’illusione: l’idea comunista nel XX secolo. Milão: Mondadori, 1995. GALLI, Giorgio. Storia delle dottrine politiche. Milão: Il Saggiatore, 1985. GIDDENS, Anthony. A terceira via – Reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 1999. 73 GOULDNER, Alvin. La sociologia e la vita quotidiana. Roma: Armando editore, 1997. LUBICH, Chiara. Scritti spiritualli/1. Roma: Città Nuova, 1978. _____. A fraternidade na política: utopia ou necessidade? Discurso aos políticos suíços no encontro do Movimento Político pela Unidade em Berna (04/09/2004). Rocca di Papa: vídeo 1761, 2004, 14 páginas. MACHIAVELLI, Niccolò. Il Principe. La Spezia: Fratelli Melita Editori, 1988. MARCOVITCH, Jacques (org.). Sérgio Vieira de Mello – Pensamento e memória. São Paulo: Saraiva/Edusp, 2004. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Global, 1988. PEZZIMENTI, Rocco. Dall’intrasigenza alla laicità: Don Sturzo e le influenze del pensiero cattolico francese. Nápoles: Adriano Gallina Editore, 1984. _____. La società aperta e i suoi amici. Messina: Rubbettino, 1995. _____. Politica e religione: la secolarizzazione nella modernità. Roma: Città Nuova, 2004. POERNER, Artur José. História da participação política dos estudantes brasileiros. São Paulo: CMJ, 1995. POWER, Samantha. O homem que queria salvar o mundo – Uma biografia de Sérgio Vieira de Mello. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. REZEK, Romano. “Ser mais...” – Estudos sobre Teilhard de Chardin. São Paulo: ISM, 1986. RICCARDI, Andrea. Intransigenza e modernità. Roma-Bari: Laterza, 1996. ROSSELLI, Carlo. Socialismo liberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar EditorInstituto Teotônio Vilela, 1997. SARTORI, Giovanni. La politica: logica e metodo nelle scienze sociali. Milão: SugarCo, 1991. 74 _____. Democrazia. Cosa è. Milão: Rizzoli, 1993. SETTEMBRINI, Domenico. Democrazia senza illusioni. Roma-Bari: Laterza, 1994. SOROKIN, Pitirim. Storia delle teorie sociologiche. Roma: Città Nuova, 1974. _____. Il potere dell’amore. Roma: Città Nuova, 2004. VIEIRA DE MELLO, Sérgio. Sentido da palavra fraternidade. In: MARCOVITCH, Jacques (org.). Sérgio Vieira de Mello – Pensamento e memória. São Paulo: Saraiva/Edusp, 2004, p. 231-232. WEBER, Max. Ciência e Política – Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 1993. 75 CAPÍTULO 4 A QUESTÃO SOCIAL E A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NO BRASIL A expressão “questão social” designa um fato social específico: relações de trabalho entre assalariados e empresários. Tal fato é central na sociologia, mesmo não sendo exclusivo, e pode ser abordado por meio de vários recortes. 76 1.QUESTÃO SOCIAL Podemos usar várias expressões para designar os sujeitos da questão social: burguesia e proletariado; opressores e oprimidos; operários da indústria e industriais; dominados e dominadores; explorados e exploradores. Note que em algumas expressões usadas para designar os sujeitos principais da questão social estão contidos juízos de valor, ou seja, julgamentos condenatórios. Tomando como exemplo a palavra burguesia, podemos entendê-la a partir do seu sentido técnico-descritivo: profissionais do burgo, ou seja, comerciantes (cidades brasileiras como Novo Hamburgo ou Nova Friburgo remetem nosso pensamento ao sentido descritivo da palavra burgo e burguês); ou entendê-la a partir de julgamentos condenatórios: classe opressora, ou exploradora dos trabalhadores assalariados. Um compositor brasileiro disse até que a “burguesia fede”. Na questão social estão contidos dois sujeitos: trabalhadores assalariados e empresários; um ambiente específico de trabalho: a indústria; e seu contexto cronológico: Revolução Industrial (idade contemporânea). Relações sociais de trabalho sempre existiram, mas relações sociais de trabalho designadas pela expressão “questão social” são as relações sociais de trabalho típicas da idade contemporânea. Como nasceu a questão social? A questão social surge como consequência da Revolução Industrial: mudança radical na forma de produção de mercadorias. Com o uso de novas tecnologias no trabalho, a burguesia revolucionou os ritmos de trabalho e de produção. A fábrica burguesa 77 aumentou a produção por meio do emprego de novas tecnologias (o novo sempre é novo no seu contexto histórico, em relação ao antigo que o precedeu) e pelo uso do trabalho dos operários da indústria. Assim, ela favoreceu o êxodo rural e o aumento progressivo da densidade populacional urbana. Como se caracteriza a questão social na sua fase inicial? As relações sociais de trabalho entre burgueses e proletários (assim chamados pelo elevado número de filhos - prole, exigência da vida no campo, onde os filhos trabalhavam na lavoura) se caracterizavam originalmente pela extrema desigualdade e conflitos agudos entre operários e empresários. Devemos imaginar uma sociedade sem legislação trabalhista, e com o Estado compreendido como prolongamento político da classe burguesa. Os operários, nas primeiras fases da Revolução Industrial, viviam em condições econômicas certamente piores que a dos escravos e dos antigos servos da gleba (súditos do rei). 2.QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL A Revolução Industrial não tem uma data de nascimento tão precisa quanto a data de nascimento de uma pessoa. Dizer que a Revolução Industrial aconteceu em 1763 com a invenção da máquina a vapor por James Watt é uma afirmação equivocada, pois a Revolução Industrial é um processo social revolucionário que está em movimento até hoje. Tal data é indicativa, e não possui um sentido matemático. O mesmo vale para a Revolução Francesa. O dia 14 de julho de 1789 – queda da Bastilha – é data-símbolo de um processo revolucionário em movimento até hoje. 78 A Revolução Industrial é fenômeno urbano contemporâneo (século XVIII), caracterizado como revolução, mesmo não tendo sido disparado nenhum tiro de pistola para a sua realização. Ora, por que a Revolução Industrial é considerada revolução se não houve uso de pistolas e carabinas para sua realização? Porque, para a sociologia, revolução social significa mudança radical na estrutura social, e não simplesmente luta armada. E foram os inventores (cientistas) os principais sujeitos da Revolução Industrial? Não. Os principais sujeitos da Revolução Industrial foram os burgueses, que usaram os inventos dos cientistas nas suas fábricas, com a intenção de aumentar a produção de mercadorias por meio de tais invenções. A Revolução Industrial foi uma revolução burguesa, iniciada na Inglaterra (século XVIII), e que, depois, expandiu-se em várias partes do mundo. Porém, até hoje, há lugares que não são industrializados (e não necessariamente devem ser). Foi tal revolução burguesa que produziu a questão social. No Brasil, a Revolução Industrial desenvolveu-se no início de 1900, no estado de São Paulo, com as indústrias da família Matarazzo (imigrantes italianos). Juntamente com as indústrias, tem origem a questão social no Brasil. Claro que, antes da industrialização, já havia conflitos nas relações de trabalho: conflitos entre escravos e senhores de escravos; entre brancos e negros; entre colonizadores e índios. Mas os conflitos designados com a expressão “questão social” são aqueles típicos das relações de trabalho nas nascentes indústrias burguesas. Pelas suas peculiaridades históricas, a questão social brasileira tem tons raciais específicos, ou seja, dentre os operários que forneciam força-trabalho aos burgueses brasileiros em troca de salário, havia muitos negros, exescravos. Por isso, no Brasil, na questão social está contida uma questão racial. 79 Entretanto não havia somente ex-escravos negros entre os operários brasileiros. Entre os operários paulistas, estavam também imigrantes europeus, sobretudo italianos. Da Itália, vieram os primeiros industriais burgueses brasileiros e, também, os primeiros operários. Na bagagem dos imigrantes italianos que foram trabalhar como operários nas indústrias nascentes paulistas, estavam também livros com ideias de liberdade: ideias socialistas, sindicalistas e anarquistas. Ao contrário do que possa parecer, anarquia não significa caos, ausência de governo, mas governo de uma assembleia que seja representativa da comunidade. Os anarquistas não queriam o caos, mas uma nova ordem social mais justa para todos. De São Paulo, a nova ordem industrial foi exportada para outros estados do Brasil e, com ela, a questão social: conflitos agudos entre a burguesia brasileira e a classe trabalhadora. Em suma, a expressão questão social remete nosso pensamento ao problema social das desigualdades políticas e econômicas entre ricos e pobres que, na idade da indústria, são classificados como classe burguesa e classe operária. 3.QUESTÃO SOCIAL E CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA O primeiro sujeito da questão social é a burguesia, classe revolucionária que transformou o antigo regime monárquico numa sociedade urbana, industrial. Como afirmou o próprio Karl Marx, “a burguesia criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas” (MARX, p.79). A identidade revolucionária da burguesia foi 80 constatada por aquele que seria também o seu principal crítico: segundo Marx, o proletariado cumpriria o papel de “coveiro” da burguesia (Idem, p.88). O segundo sujeito da questão social é o proletariado (classe trabalhadora). As péssimas condições de trabalho e de vida impostas aos trabalhadores assalariados da indústria geraram movimentos operários voltados para as mudanças sociais. Mas nenhum movimento social vive somente de problemas. Ele precisa de ideias para produzir as mudanças desejadas. Os burgueses usaram as ideias dos filósofos iluministas para promover suas conquistas liberais, e os operários também contaram com a ajuda de muitos pensadores para identificar metas e meios necessários às mudanças sociais desejadas. A Igreja Católica entrou em tal debate por meio da encíclica social Rerum Novarum, do papa Leão XIII, publicada em 1891. Nela, Leão XIII apresenta uma importante distinção entre desigualdades naturais e desigualdades sociais. As diferenças entre as pessoas são naturais quando são diferenças de aptidões, vocações, profissões. Já as desigualdades sociais não são obras da natureza, nem de Deus, mas consequência do pecado original, ou seja, são desigualdades injustas. Para Leão XIII, a questão social é, sobretudo, questão operária. A Rerum Novarum criticou a desigual distribuição dos frutos econômicos obtidos por meio do trabalho dos burgueses e dos operários, e propôs o ideal de uma vida digna para todos. Na questão social, a Igreja Católica, mesmo sendo a favor dos operários, não foi antiburguesa, nem a favor de um ideal de igualdade social extremo (igualitarismo). Várias escolas de pensamento produziram ideias voltadas para as mudanças sociais: socialistas, anarquistas, sindicalistas, comunistas, 81 catolicismo social, marxistas, leninistas, trotskistas, social-democratas, socialistas liberais. Para fins de simplificação analítica, podemos classificar em duas as orientações políticas voltadas para as mudanças sociais: maximalistas e reformadores. Maximalistas eram aqueles setores políticos do movimento operário que queriam o máximo (a revolução), e não apenas o que eles consideravam o mínimo (as reformas sociais). Os maximalistas não acreditavam na possibilidade de relações justas entre burguesia e proletariado. Queriam o fim da burguesia (pelo exílio ou eliminação física) e a tomada do poder por meio de partidos que eles classificavam como partidos proletários (partidos comunistas). Maximalistas foram as experiências comunistas, ou de socialismo real. Algumas chegaram ao fim a partir da queda do Muro de Berlim (1989), e outras ainda continuam existindo, com variações entre elas (Cuba, Coréia do Norte, China). Os reformadores, ao contrário dos maximalistas, não queriam a revolução, mas as reformas sociais. Os reformadores acreditavam na possibilidade de uma justa conciliação entre burguesia e proletariado. E tal convicção derivava da experiência. Por meio de experiências sindicais reformadoras bem-sucedidas, a situação econômica e política dos operários fora mudada para melhor. Salários melhores e mais poder político foram conquistados pelos operários por meio das lutas sindicais reformadoras e dos partidos reformadores dos trabalhadores. Houve o que podemos chamar de processo de aburguesamento da classe operária por meio de lutas sindicais melhoristas. Os movimentos operários reformadores ensinaram que a democracia não deveria ser compreendida apenas como instrumento político para a 82 escolha de representantes (democracia representativa), mas, também, como instrumento econômico para a diminuição das desigualdades entre burguesia e proletariado. Foram os movimentos operários reformadores os verdadeiros paisfundadores do que conhecemos hoje por democracia social, ou socialdemocracia. Claro que pensadores como Eduardo Bernstein (Socialismo Evolucionário) e Carlo Rosselli (Socialismo Liberal) conseguiram colocar no papel as principais ideias-força do pensamento reformador social-democrata, mas a social-democracia foi gerada pelos movimentos sociais dos operários reformadores. Portanto a resposta predominante da classe trabalhadora à questão social foi a construção de uma concepção alargada de democracia: que não fosse somente direito de votar, mas, também, direito de comprar, por meio de um salário digno, capaz de competir com os preços reais nas economias liberais de mercado. Os reformadores, mais do que socialistas foram, na verdade, defensores do que podemos chamar de teoria e prática do salarismo. Os exemplos mais bem-sucedidos de democracia social estão no norte da Europa: Noruega, Dinamarca, Suécia. 4.QUESTÃO SOCIAL E CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NO BRASIL A construção da democracia no Brasil já passou por várias etapas. No nosso país, há fatores regionais e raciais que não podem ficar de fora da compreensão da construção da democracia. A unidade nacional, forjada na derrota de alguns movimentos regionais, como a Revolução Farroupilha 83 (1835-1845), indica a compreensão federalista da democracia brasileira. Somos todos brasileiros, do norte e do sul, responsáveis por um território que vai da Amazônia aos pampas. Tal diversidade requer administração federalista para que a unidade seja qualitativa. O antropólogo Darcy Ribeiro nos explicou que o Brasil é um novo produto racial, resultado de várias misturas. Num certo sentido, no Brasil não existem negros, índios, brancos, mas brasileiros predominantemente negros, índios ou brancos, que contêm em si todas as outras raças. Não obstante o racismo seja uma posição esdrúxula num país miscigenado como o nosso, a construção da democracia no Brasil depende muito da superação das nossas desigualdades raciais. Em relação à construção democrática no contexto específico da questão social brasileira, infelizmente o justo desejo de mudanças foi várias vezes derrotado por posições conservadoras, principais responsáveis pela nossa condição social de país desigual. Basta um breve passeio pela periferia de nossas cidades para constatarmos que ainda não construímos o Brasil menos desigual que desejamos. Todavia algumas etapas importantes já foram percorridas. No período trabalhista da nossa história política, obtivemos vitórias importantíssimas. A legislação trabalhista (Consolidação das Leis do Trabalho) não foi um mero presente assistencial concedido pelo ex-presidente Getúlio Vargas para acomodar os trabalhadores. Segundo os críticos maximalistas, Getúlio teria sido “pai dos pobres e mãe dos ricos”. Na verdade, a legislação trabalhista foi conquistada pelo suor e sangue de muitas trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. Hoje, a manutenção de tais conquistas trabalhistas é um dos desafios principais dos movimentos pela democracia social. Salário mínimo, férias remuneradas, fundo de garantia, licença maternidade, décimo 84 terceiro salário, etc. não são meros ajustes paliativos concedidos pela burguesia (como afirmavam os maximalistas), mas conquistas vitais da classe trabalhadora que precisam ser conservadas. A grande ferida de nossa história, do ponto de vista da construção da democracia social, ainda é a tragédia política de 01 de abril de 1964, quando o presidente João Goulart foi deposto pelos conservadores após ter anunciado, dias antes, na Central do Brasil, a realização de reformas sociais de base. Com a desculpa de uma suposta ameaça comunista, militares e civis conservadores abortaram um processo até então crescente de justas reivindicações sociais reformadoras para o Brasil. O golpe de 1964 foi um golpe contra as reformas sociais. Um golpe contra a democracia social que assassinou esperanças e lideranças. Caso tal golpe não tivesse ocorrido, o Brasil não teria sido transformado num país comunista, mas num país social-democrata. Dentre os grupos favoráveis às mudanças sociais, a tradição política que prevalecia no Brasil, antes de 1964, não era a tradição comunista, de Carlos Prestes, mas a cultura política melhorista dos trabalhistas e dos movimentos sociais reformadores. Infelizmente, as reformas sociais foram abortadas em 1964, e a reconstrução da democracia social foi retomada, de forma mais veemente, no Brasil, somente em 1994, com o Plano Real de estabilização econômica. Afinal, a democracia social precisa de estabilidade monetária, pois a inflação é uma das principais inimigas do poder de compra da classe trabalhadora. Após o término do segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – líder da fundação de um novo Brasil, com estabilidade monetária - os brasileiros escolheram um ex-operário para presidir o país. Temores foram espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Estaria o Brasil novamente sendo ameaçado pelo comunismo com a vitória de Luís Ignácio 85 Lula da Silva? Em 2002, na Carta ao Povo Brasileiro, o grupo político de Lula explicara aos eleitores que o governo Lula, caso eleito, faria um governo social-democrata. O maximalismo havia sido abandonado oficialmente por Lula, mas penso que, na prática, desde o sindicalismo Lula foi um líder popular negociador, politicamente social-democrata. Referências BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart – as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. BENTO, Fábio Régio. A igreja católica e a social-democracia. São Paulo: AM Edições, 1999. _____. Viver e compreender a sociedade - ensaios de introdução à sociologia. Tubarão: Editora Unisul, 2002. BERNSTEIN, Eduard. Socialismo evolucionário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor-Instituto Teotônio Vilela, 1997. BLACKBURN, Robin. (org.). Depois da queda - o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. FURET, François. Il passato di un’illusione - l’idea comunista nel XX secolo. Milão: Mondadori, 1995. GIDDENS, Anthony. A terceira via – reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 1999. LEÃO XIII, Papa. Encíclica Rerum Novarum. São Paulo: Paulinas, 1965. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Global, 1988. ROSSELLI, Carlo. Socialismo liberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar EditorInstituto Teotônio Vilela, 1997. 86 CAPÍTULO 5 ENSAIOS DE INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA Pensadores revolucionários como Karl Marx e reformadores como Eduard Bernstein tinham em comum o desejo de estudar a sociedade para transformá-la (por meio de reformas ou revolução). Nestes ensaios sobre fundamentos metodológicos e históricos da sociologia, foi privilegiada a compreensão da sociologia como sociologia crítica, que é a que, além de descrever e interpretar, também avalia os fatos e propõe mudanças no curso da história. A sociologia crítica quer tornar a sociedade melhor, por meio de descrições, avaliações e prescrições criteriosas, e não apenas compreender o significado dos fatos sociais. O trabalho de cognição dos fatos é acompanhado pelo desejo de mudanças na sociologia crítica. Para alguns renomados cientistas sociais latino-americanos, “o percurso feito pelas Ciências Sociais da América Latina esteve sempre fortemente ligado à análise dos problemas concretos – macro ou micro, segundo os períodos e países – assim como à vontade dos cientistas sociais de incidir sobre tais problemas” (TRINDADE, 2006, p.375). 87 1.METODOLOGIA DA SOCIOLOGIA A análise dos fatos sociais pela sociologia tem como ponto de partida a localização do observador, sabidamente no tempo (histórico) e no espaço (geográfico). O observador pensa as informações captadas no ambiente, a partir de onde ele se tenha localizado. Ou seja: faz-se sociologia por meio da observação do ambiente em que o pesquisador está inserido. A sociologia é prática, ou, ao menos, tem uma intenção prática. Não se confunde com a filosofia social, porque utiliza métodos de estudo diferentes. A sociologia não é melhor nem pior que a filosofia social. Elas são diferentes, mesmo se frequentemente confundidas. A sociologia, ao contrário da filosofia social, precisa ser física, sustentada em fatos, experiências. A filosofia pode ser metafísica, sem a necessidade de se sustentar nos fatos (físicos), nas experiências (físicas). A filosofia social pode prescindir do físico; a sociologia, não. Metafísica é palavra grega que significa para além do físico. A filosofia metafísica prescindia dos fatos (do físico) e se concentrava além do físico. Mas não devemos confundir metafísica (além do físico) com espiritualidade. Metafísica não se refere à religião, mas ao mundo das ideias. Os fatos (físicos) são obrigatórios para a sociologia, a qual cria suas construções racionais a partir dos dados obtidos pela observação das experiências. Para a filosofia social, as explicações fáticas não são obrigatórias. Pode ser suficiente a capacidade de especulação (racional) do filósofo. 88 A sociologia estuda sociedades reais, grupos sociais reais, experiências vividas e não imaginadas. Estuda o mundo real, e não o que gostaríamos que existisse. Pode parecer supérfluo escrever sobre isso, mas vários sociólogos constataram que tendemos a tratar mais sobre o mundo que gostaríamos que existisse do que sobre o mundo que realmente existe. E tal metodologia ao avesso compromete a compreensão dos fatos. Há quem trate mais sobre como será um dia sua vida do que sobre como ela é de fato hoje. Sonhar com uma vida melhor é louvável (idealismo), sem, contudo, negligenciar a necessidade da descrição detalhada da situação real (realismo). A distinção entre o real e o imaginário é fundamental na compreensão dos fatos (reais). O sonho (futuro) pode atrapalhar a descrição da situação real (presente) e, por sua vez, impedir a realização do próprio sonho. O sonho, quando mal sonhado, pode atrapalhar a realização do próprio sonho. Metodologia ao avesso é a atitude metodológica equivocada dos que colocam “a carroça na frente dos bois”. Para a sociologia, num primeiro momento, é a realidade que deve ser descrita (o boi); e, somente num segundo momento, serão feitas avaliações e indicações de decisões prescritivas para o futuro (a carroça). O problema é que, na ânsia de serem obtidos resultados imediatos, a análise descritiva dos fatos é malfeita e, assim, são indicados remédios errados para doenças mal identificadas. A sociologia recomenda que, antes de pensarmos qualquer coisa sobre o futuro, deveríamos pesquisar com clareza a situação real dos fatos no presente, preocupação metodológica negligenciada pelos sonhadores idealistas, mas não pelos sonhadores realistas (sociologia crítica). 89 Sonhadores realistas preparam um futuro melhor para suas comunidades, percorrendo o caminho da análise e interpretação da realidade. Sonham com os pés-no-chão, fincados no tempo presente, nos seus territórios específicos. Realista é a postura de quem analisa o real como condição para qualquer raciocínio ideal. Realismo e idealismo podem conviver bem, se a descrição do real preceder a avaliação qualitativa dos fatos e a prescrição de soluções. Somos rápidos nos julgamentos e negligentes na descrição. Julgamos sem conhecer bem o que estamos julgando. A postura realista exige o contrário: julgar somente após conhecer, superando as sugestões apressadas das pré-noções e dos pré-julgamentos. 1.1.Método indutivo e dedutivo A sociologia é uma ciência nova, com cerca de 200 anos. Antes da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, existia a filosofia social, mas não existia, ainda, a sociologia. O vocábulo sociologia foi criado pelo francês Augusto Comte (17981857). Augusto Comte é considerado o pai da sociologia e do método positivista. A diferença principal entre sociologia e filosofia social é metodológica. A sociologia quer estudar a sociedade com o método indutivo, e não com o método dedutivo da filosofia social. Dedutivo é o método cujo ponto de partida sustenta-se em ideias que, depois, serão aplicadas aos fatos (razão especulativa). Escolhe-se a luva para depois ajustá-la às mãos, à realidade. Indutivo é o método cujo ponto de partida é a observação sistemática dos fatos e a análise e interpretação dos fatos observados (razão prática). Neste caso, primeiro é estudada a mão, que corresponde à realidade, aos fatos, 90 e não as luvas. O método indutivo parte dos fatos para somente depois chegar a uma ideia sobre ele. Pelo método indutivo os seres humanos não são considerados de forma abstrata e geral, mas concreta e particular: homens e mulheres de idades diferentes, lugares, épocas e profissões diferentes. O método indutivo usado pela sociologia é o mesmo método utilizado pelo biólogo, químico, engenheiro, só que aplicado ao estudo das sociedades humanas. O método indutivo aplicado ao estudo das sociedades humanas pela sociologia propõe a superação de suposições a priori, pré-conceitos, prénoções. Em geral, ao terminarmos um discurso, procuramos convencer quem nos escuta sobre a veracidade do que dizemos, citando exemplos. Os exemplos servem para confirmar nossas ideias. No método indutivo, o exemplo é ponto de partida da cognição indutiva. Charles Darwin (1809-1882), observando a vida sobre a Terra (biologia), afirmou que haveria um processo de evolução, o qual envolveria também os seres humanos. Suas conclusões indutivas geraram desconforto entre os dedutivistas. Teólogos críticos afirmam que a teoria da evolução não rejeita o criacionismo, identificando em Deus o ponto de partida inteligente de um processo evolucionário de criação. Galileu Galilei (1564-1642) afirmou indutivamente aquilo que hoje todos sabemos: a Terra gira ao redor do Sol e ao redor de si mesma. Para os dedutivistas, a Terra estaria parada e o Sol giraria ao redor dela. A ciência (indutiva) não é contra a religião, mas contra a imposição de suposições dedutivas. 91 1.2.Metodologia positivista Na sociologia, o método indutivo é chamado de método positivista, caracterizado como intenção metodológica indutiva. Positivismo não significa otimismo. Positivismo não tem parentesco com pensamento positivo nem com otimismo. Positivismo também não significa legalismo: apego a leis e procedimentos normativos. No Direito, usa-se a palavra positivismo de forma imprópria, sinônimo de formalismo jurídico. A palavra positivismo foi usada por Augusto Comte para designar o método indutivo aplicado ao estudo da sociedade. Positivo significa real, vigente, fático, observável. É positivo aquilo que pode ser estudado pela razão prática. Na medicina, o médico (positivista) primeiro estuda os fatos, os pacientes, para depois elaborar uma ideia sobre a situação deles. Primeiro descreve a situação dos pacientes, após observá-los inclusive com a ajuda de exames. Somente assim poderá dizer como está o paciente. O médico não deveria fazer “metafísica médica” (mesmo se sabemos que alguns o fazem). Deveria prescrever (remédios) somente após descrever criteriosamente. O método indutivo parte daquilo que é real, vigente, positivo, origem do nome da escola de pensamento metodológico-indutivo, conhecida como escola positivista. Antônimo da palavra positivo, em tal caso, não é negativo, mas abstrato. A intenção do positivismo era romper com a metodologia da filosofia metafísica, dedutiva, que precedeu o surgimento da sociologia. O método positivista é método materialista, não no sentido de negar a existência de realidades espirituais, mas porque elege os fatos (materiais) 92 como ponto de partida cognitivo. O materialismo da sociologia é metodológico, e não filosófico. Um sociólogo deve ser materialista, sem necessariamente ser ateu. 1.3.Neutralidade absoluta e relativa O método indutivo (positivista) sugere aos estudiosos dos fatos a regra do desapego de suas pré-noções e pré-juízos. Trata-se de importante discussão metodológica a que diz respeito à regra da neutralidade (valores políticos, morais, religiosos) dos pesquisadores em relação aos fatos pesquisados. Evidentemente, cada pessoa é condicionada por pré-noções específicas, e as carrega também quando está estudando fatos sociais. Não se começam do zero os processos de conhecimento, quando diante de novas ou antigas situações a serem estudadas. Se estudarmos a comunidade religiosa das Testemunhas de Jeová, teremos que lidar com valores e pré-conceitos (favoráveis ou contrários). Pensaremos que são ótimos cristãos, ou que são fanáticos porque rejeitam a transfusão de sangue. Ora, condicionamentos são normais, mas a objetividade deve ser buscada no estudo dos fatos. A regra da objetividade recomenda distanciamento profissional em relação aos sentimentos e valores do pesquisador no que concerne aos fatos pesquisados. Distanciamento significa neutralidade relativa, e não neutralidade absoluta. Pela neutralidade absoluta, o pesquisador deveria eliminar suas opções de valor. A neutralidade relativa indica distanciamento profissional para a melhor cognição dos fatos pesquisados e qualificação das noções e valores do pesquisador. Pesquisadores podem (e até devem) ter suas opções de valor, mas sem se tornarem reféns de seus pré-juízos e pré-noções. 93 Estudantes de química não se apaixonam pelo potássio nem pelo zinco, mas estudantes de sociologia que não tivessem “opiniões quentes” sobre os sujeitos sociais que estudam, não ingressariam em cursos de sociologia. Jovens e adultos escolhem o estudo sistemático dos fatos sociais (sociologia) justamente porque se envolvem emocionalmente com os fatos que desejam estudar. Estudar com desapego, objetividade, é virtude metodológica (neutralidade relativa). Frieza e indiferença (neutralidade absoluta), ao contrário, estão mais para vício do que para virtude. Sociólogos devem sustentar com sinceridade o que pensam, com os argumentos adquiridos no exercício dialético diário da descrição, interpretação e prescrição criteriosa. Ouvi um budista discordar da expressão “comportou-se tibetanamente”, entendida como sinônimo de frieza, indiferença. “Vibramos com o amor e sofremos com o ódio”, explicou. “Procuramos não perder a objetividade para promover o amor e combater o ódio, deixando de alimentá-lo”, completou. Impossível ler “tibetanamente” o Manifesto do Partido Comunista, ou escritos “quentes” de autores social-democratas e liberal-democratas. As paixões cívicas movem os cérebros e o mundo. Agir com objetividade, com distanciamento das próprias paixões é boa recomendação, mas somente para as pessoas apaixonadas. A paixão sóbria, ética, responsável pela coisa pública é diferente da frieza dos indiferentes e da insensatez dos assassinos que dizem matar por amor (passionalidade comum) ou por uma causa justa (passionalidade política). A ética das paixões separa as úteis das inúteis (segundo critérios democráticos estabelecidos constitucionalmente). 1.4.A lei dos três estados 94 A compreensão das mudanças que estavam transformando a sociedade tradicional numa nova sociedade urbana, industrial e orientada para a democracia, foi objeto dos estudos de Max Weber, Augusto Comte, Émile Durkheim, Karl Marx. Para Augusto Comte, a sociedade que estava desaparecendo era teológica e militar: os valores sociais, a cola invisível, mas real, que cimentava as comunidades vinha da religião (poder teológico) e da disciplina militar. Os homens de guerra, juntamente com as autoridades religiosas, ocupavam as primeiras posições nesse modelo de sociedade que estava sendo substituído por outro, científico e industrial. Na sociedade científica e industrial emergente, o modo de pensar dos teólogos e sacerdotes foi substituído pelo modo de pensar dos cientistas, que teriam herdado o poder espiritual e moral dos sacerdotes. E os industriais (empreendedores, diretores de fábricas, banqueiros) assumem o lugar dos militares. O pensamento científico passa a ocupar o lugar de destaque antes ocupado pelo pensamento teológico, deslocado a um nível inferior em relação ao pensamento científico, da mesma forma que a atividade industrial passou a ocupar uma posição de superioridade em relação à atividade militar. A industrialização mudou os papéis sociais e impôs também uma nova forma de pensar, explicada por Comte com a expressão Lei dos Três Estados. A forma mentis (forma de pensar) típica da atividade industrial e, consequentemente, das sociedades modernas industrializadas é o pensamento científico, positivista. Os três estados da teoria de Comte equivalem a três etapas diferentes da história do pensamento humano, três diferentes tipos de saber, três diferentes métodos de compreensão. 95 O primeiro estado é o estado teológico ou fictício, onde os fenômenos são explicados de forma sobrenatural, com a invocação de forças ou seres religiosos. A segunda fase ou etapa do pensamento humano é o estado filosófico ou metafísico. Trata-se de uma etapa intermediária, de ligação entre a primeira e a terceira, onde as explicações não são mais de caráter sobrenatural. As explicações já são racionais, mas ainda se trata de razão metafísica, e não de razão científica, positiva. Por último, o terceiro estado do pensamento humano, que é a etapa positiva ou científica, onde as explicações não são mais de caráter sobrenatural (estado teológico) ou de caráter natural metafísico (estado filosófico), mas de caráter técnico-científico. No terceiro estado, as explicações são elaboradas a partir da observação empírica, sistemática dos fenômenos. Vejamos dois exemplos: 1.Uma pessoa cai por terra e começa a se contorcer freneticamente. Pelo primeiro estado, ela estaria possuída pelo demônio. Pelo terceiro, estaria tendo uma crise convulsiva. 2.Uma enchente destrói casas numa cidade. Pelo primeiro estado, seria castigo dos deuses. Pelo terceiro, efeito do desmatamento. O pensamento positivo tornou-se o estilo de pensar predominante nas sociedades modernas. Entusiasmados com suas descobertas, os primeiros positivistas desvalorizaram outras formas de pensar. A forma mentis positivista tornou-se não somente o estilo de pensar da indústria, mas o estilo de pensar geral. O raciocínio positivista passou a ser o estilo de raciocínio típico do homem moderno. 96 Para o positivismo tradicional, na hipótese de uma cidade acordar sem os seus 50 principais filósofos, esta cidade choraria seus mortos, mas continuaria vivendo normalmente. Da mesma forma, se acordasse sem os seus 50 principais teólogos, ela choraria tal perda, mas continuaria vivendo normalmente. Todavia, se acordasse sem os seus 50 principais técnicos, ela choraria e, ao mesmo tempo, pararia. O que valeria mesmo seria somente o saber técnico-científico, enquanto que o saber teológico e o filosófico seriam decorativos, dispensáveis. Para os positivistas dos primeiros tempos, os cientistas seriam os novos sacerdotes da humanidade, o novo clero da modernidade, que libertaria o mundo dos resíduos de uma mentalidade supersticiosa por meio do saber científico. Hoje, o positivismo voltou a ser apenas o que é: postura metodológica indutiva que fundou a sociologia. 1.5.Sociologia prescritiva A sociologia tem como objetivo a realização de tarefas cognitivas, mas objetivos avaliativos e prescritivos também acompanham, direta ou indiretamente, o sociólogo no exercício de suas atividades de pesquisa. Há conclusões (explícitas ou implícitas) de caráter avaliativo e prescritivo também nas pesquisas sociológicas que pretendem ser apenas cognitivas. Valorações malfeitas e prescrições descabidas são inoportunas e contraproducentes, mas nem todas as valorações são malfeitas, assim como nem todas as prescrições são descabidas. 97 A sociologia não é incompatível com valorações e prescrições. Valorações e prescrições criteriosas são etapas possíveis na pesquisa sociológica, posteriores à cognição do real. Uma ciência que estudasse problemas rejeitando a busca de valorações e soluções, como se isso a desmerecesse, seria uma ciência difícil de se justificar quanto à sua plena utilidade pública. Seria como se a medicina se dedicasse somente à compreensão (cognitiva) das doenças, por meio de exames, sem indicar tratamento aos pacientes (remédios), pior, considerando tal indicação de tratamento um defeito metodológico grave, a ser evitado. A sociologia é uma ciência descritiva e interpretativa, compatível com avaliações e prescrições bem fundamentadas. A cientificidade da sociologia não exclui valorações e prescrições. Problemas sociais, além de estudados, deveriam ser também resolvidos, ou, ao menos, amenizados, por meio da execução de prescrições criteriosas. A sociedade necessita de uma ciência do social que explique os problemas e apresente também valorações sólidas e prescrições caracterizadas pela eficácia, dentro dos limites de prazo de validade de todas as prescrições. Não existem soluções perfeitas e definitivas, mas soluções válidas por determinado período de tempo e para determinado lugar. Não estamos autorizados a abandonar o caráter prescritivo da sociologia crítica somente porque algumas prescrições do passado não foram bem sucedidas. Afinal, também na medicina há revisão de tratamentos, e as prescrições de ontem são substituídas por prescrições mais atualizadas. Se um determinado tratamento não produz os efeitos desejados, o que deve ser abandonado (ou modificado) é tal tratamento específico recomendado, e não a lógica metodológica (tratamentos). da descrição (exames) seguida de prescrição 98 2.SOCIOLOGIA - CIÊNCIA DA SOCIEDADE MODERNA A sociologia é a ciência que surge com o desenvolvimento da sociedade moderna (na idade contemporânea) e a estuda; e a sociedade moderna é, sobretudo, resultado de duas grandes revoluções: a francesa e a industrial. Do ponto de vista histórico, a Revolução Francesa teve início em 1789, com a queda da Bastilha; já a Revolução Industrial teve início em 1763, na Inglaterra, com a invenção da máquina a vapor por James Watt. Para a sociologia, estas duas revoluções não foram somente dois fatos históricos, mas, também, dois fatos paradigmáticos, dois critérios fundamentais de interpretação social. Alguns fatos históricos extrapolam os limites geográficos e históricos de onde surgiram, e passam a ser modelos, referências para outras regiões do mundo, ou seja, passam a ser fatos paradigmáticos. Foi o que aconteceu com a Revolução Francesa e com a Revolução Industrial. No Brasil, a industrialização começa no início de 1900, em São Paulo. Com ela, a urbanização: a cidade de São Paulo mudou radicalmente com a industrialização. Ainda hoje, a industrialização é paradigma de desenvolvimento. Da mesma forma, as revoltas políticas da Revolução Francesa motivaram a organização de vários movimentos políticos contra a monarquia no Brasil. Dentre eles, a Revolução Farroupilha (1835-1845). O fim da monarquia só acontecerá em 1889, um século após a queda da Bastilha. 99 Fato paradigmático, portanto, é fato histórico relevante, que serve como farol, chegando a outros lugares e provocando mudanças em regiões distantes daquelas onde tiveram origem. A Revolução Francesa é paradigma da passagem da monarquia à democracia. Ela simboliza tal passagem. Sabemos que a França passará por momentos de retrocesso em relação à democracia. Mas a revolução de 14 de julho de 1789 (data da Queda da Bastilha) permanece como revoluçãosímbolo da luta pela transformação de uma sociedade de privilégios (de poucos) em uma sociedade de direitos, com a transformação – mesmo se mais teórica que prática - de súditos em cidadãos. A Revolução Industrial é paradigma da passagem de um modo de produção agrícola e artesanal a um modo de produção industrial e urbano. Portanto a sociedade moderna é resultado de dois processos radicais de mudança social: processo de democratização (paradigma da Revolução Francesa) e processo de industrialização e urbanização (paradigma da Revolução Industrial). A sociologia nasce no contexto do desenvolvimento contemporâneo da sociedade moderna e será tal sociedade seu objeto principal de estudos. 2.1.Revolução na revolução A Revolução Francesa e a Revolução Industrial modificaram radicalmente a paisagem política, geográfica, econômica e cultural dos ambientes onde foram realizadas. Ambas foram revoluções burguesas, não somente por serem a conquista do poder econômico (Revolução Industrial) e do poder político (Revolução Francesa) pela burguesia, mas por afirmarem a cultura, os valores da 100 burguesia (antes comercial, agora industrial) na nova sociedade (conquista da hegemonia burguesa). A Revolução Francesa e a Revolução Industrial foram revoluções sob medida para os profissionais dos burgos, realizaram objetivos burgueses, mesmo se, em teoria, prometeram a realização de objetivos universais. Antes delas, quem comandava eram os clérigos e a nobreza (primeiro e segundo estados). A burguesia fazia parte do terceiro estado, junto com os demais súditos. Depois das revoluções burguesas, o mundo foi gradualmente transformando-se num mundo burguês, interpretado a partir de uma cosmovisão burguesa, com sua concepção de arte, moda, arquitetura, educação. O estilo burguês de ser e de viver passou a ser o estilo normal de vida da sociedade (hegemonia cultural burguesa). Portanto a Revolução Industrial não foi feita por cientistas (inventores), mas pela burguesia. Do ponto de vista cronológico, a Revolução Industrial teve início com a invenção da máquina a vapor por James Watt, em 1763. Do ponto de vista sociológico, a Revolução Industrial consistiu na utilização das novas descobertas científicas pela burguesia, em função do incremento da produção, tendo em vista o aumento do lucro. O caráter revolucionário de tal evento não reside na invenção da máquina, mas, sobretudo, no uso comercial dela. Revolucionário foi mais o uso (pela burguesia) que a invenção. Dentro da Revolução Industrial, entrará em movimento outra revolução social, a da urbanização. As cidades, a passos largos, adquirem relevância crescente. A Revolução Industrial incrementou fenômenos de êxodo rural (saída do campo para a cidade) e de aglomeração humana em pequenos espaços 101 residenciais urbanos. A centralidade das cidades grandes (metrópoles) e a transformação delas em cidades gigantescas (megalópoles) foram processos (revolucionários) desencadeados pela Revolução Industrial. Revolução na revolução. Urbanização como processo radical de modificação drástica dos espaços de vida. O processo de urbanização desencadeado pela Revolução Industrial não se serviu de pistolas e baionetas para a sua realização, mas foi, certamente, um dos mais revolucionários da história da humanidade. Cabe lembrar que, para a sociologia, revolução não significa luta armada. Significa mudança radical, pela raiz. É por isso que a Revolução Industrial é revolução. Mudou radicalmente (pela raiz) a sociedade, sem disparar tiros. Nem toda revolução é feita com luta armada, assim como nem toda luta armada é revolucionária. Quais foram as principais mudanças provocadas pela Revolução Industrial? Ascensão econômica da burguesia; êxodo rural; transformação dos servos da gleba em operários da indústria; surgimento das grandes cidades. Agricultores (servos da gleba), antes subordinados aos senhores feudais, tornaram-se, nas cidades industriais, operários da burguesia. Trocaram a dependência no campo pela exploração na cidade. 2.2.Revolução no ritmo de trabalho e de vida Com a revolução econômica da burguesia, o ritmo slow, tradicional, de produção agrícola e artesanal (slow production), é substituído pela fast production (produção acelerada). Aumenta a densidade populacional urbana e a velocidade do ritmo de trabalho e de vida. A Revolução Industrial mudou o ritmo de trabalho e de vida, incrementando a produção (quantidade de produtos), mas promovendo, também, a difusão de doenças cardíacas e a 102 desintegração social, pelo aumento do tempo dedicado ao trabalho e diminuição do tempo dedicado à comunidade. Viver de forma apertada e apressada passou a ser o estilo de vida da maioria dos habitantes dos centros urbanos. As razões da busca atual de um ritmo diferente, alternativo, numa experiência de turismo rural, em cidades históricas (tradicionais), em praias tranquilas, podem ser identificadas no cansaço (temporário ou permanente) com o ritmo de trabalho e de vida imposto pela fast production. A Revolução Industrial separou a secular associação entre local de trabalho e local de habitação (campo e oficinas de artesanato), atribuindo mais valor ao local de trabalho (produção de mercadorias) do que à comunidade de habitação. Produzir rapidamente passou a ser o grande critério de avaliação não somente do trabalho, mas da vida humana. A família também assumirá feições diferentes, pela modificação dos papéis domésticos (a mulher trabalhando fora e o homem assumindo tarefas domésticas) e pela necessidade de controle da natalidade (os filhos, antes vantagem econômica, passam a significar custo no orçamento doméstico). Os apartamentos também são consequência da industrialização, já que a concentração nas áreas industriais exigiu o aproveitamento de espaços verticais. Durante centenas de anos vivemos em sociedades com ritmo de trabalho e de vida diferente do ritmo industrial de produção em contato direto com a comunidade e a natureza e condicionados pelo relógio das estações. Há pouco mais de dois séculos, parte significativa da humanidade ingressou em tal aventura histórica chamada industrialização, com vantagens evidentes do ponto de vista tecnológico, mas com outras tantas evidentes desvantagens, do ponto de vista humano-comunitário, ambiental. 103 Nas sociedades modernas, o que vale é o novo, o ritmo novo, acelerado, e não o ritmo tradicional. Elas buscam constantemente a novidade, em todos os setores da existência humana. O novo é concebido como sinônimo de melhor, e o antigo como sinônimo de pior. Na publicidade, há sempre o novo carro, o novo produto de limpeza, o novo isso e aquilo. Num consultório médico, enquanto espera pelo atendimento, o paciente pega um jornal. Verifica que a data é de ontem. Provavelmente nem abrirá o jornal, porque “é jornal velho”, mesmo se não leu jornal algum no dia anterior. No supermercado, o consumidor está escolhendo um produto de limpeza. Há um sabão em pó que ele já conhece, e há outro, mais caro, escrito “Novo” na embalagem. Há quem compre logo o “novo”, sem verificar de que “novidade” se trataria. Parece vigorar uma espécie de ditadura da cultura do novo pelo novo, mas há, também, gente cansada, que resolveu verificar se o novo (entre eles fast production, fast food) seria mesmo sempre melhor que o tradicional (slow production, slow food). A revisão crítica das promessas da modernidade caracteriza a pósmodernidade. Há uma modernidade ideal, com tantas promessas de progresso social, e uma modernidade real, feita de progresso tecnológico, mas, também, de estresse, ativismo, destruição do ambiente. Para os revisionistas da modernidade, o novo nem sempre se demonstrou melhor que o tradicional. A exaltação do novo pelo novo e a rejeição do tradicional talvez seja o ponto mais crítico da cultura da modernidade, objeto de revisões. Revisionistas radicais desejam retornar ao passado pré-industrial (utopia regressiva), como se isso fosse possível. Revisionistas moderados, reformadores, propõem medidas de reconciliação entre o novo e o tradicional, trazendo para o presente (cultura retrô) valores típicos do passado. A revisão pós-moderna da 104 modernidade é animada pela nostalgia dos que sentem saudades de algumas experiências e valores perdidos em algum lugar do passado, que julgam ser capazes de melhorar a qualidade de vida moderna no presente. 3.SOCIOLOGIA DAS MUDANÇAS SOCIAIS 3.1.Karl Marx e Eduard Bernstein A burguesia foi pioneira na luta pela conquista da liberdade, tomando o lugar da monarquia, enquanto os súditos não-burgueses seguravam a escada. Ao conquistar a sua liberdade, ela derrubou a escada da igualdade e da fraternidade. Todavia abriu um importante precedente político. Os súditos abandonaram ao menos teoricamente a posição de súditos e, nas décadas sucessivas, os trabalhadores-cidadãos criarão sindicatos destinados à popularização das conquistas políticas e econômicas iniciadas pela burguesia. A Revolução Francesa desencadeou um processo de popularização da liberdade que continua até hoje. Não se trata de uma revolução fracassada, mas de uma revolução inacabada. Após a ascensão da burguesia, o debate sobre mudanças sociais girou em torno do tema das reformas ou da revolução do capitalismo burguês. Karl Marx (1818-1883) e Eduard Bernstein (1850-1932) tiveram ideias críticas em relação à situação dos operários no capitalismo. Os dois queriam mudar tal situação, mas por caminhos diferentes: Marx é o pai do comunismo, e das mudanças por meio de uma revolução; Bernstein é o pai da esquerda reformadora, que propõe mudanças por meio de reformas sociais no capitalismo. 105 No Manifesto do Partido Comunista (publicado em fevereiro de 1848), Karl Marx e Friedrich Engels afirmaram que a história da humanidade é história da luta de classes: escravos e senhores de escravo; servos da gleba e senhores feudais; proletários e burgueses; em suma, oprimidos e opressores em conflito desde os primórdios da humanidade. A partir de tal interpretação da história, Marx apresentará o comunismo como desfecho da história dos conflitos sociais. O comunismo seria a solução definitiva dos conflitos entre ricos e pobres. Na nova sociedade comunista, não haveria lugar para aquela mesma burguesia que, segundo Marx (1988, p.79), “criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas”. Marx reconheceu o papel revolucionário da burguesia na Revolução Francesa, mas, ao mesmo tempo, anunciou a sua morte. Não haveria lugar para ela no futuro comunista. As revoluções comunistas expulsaram a burguesia (quando não a eliminaram) da Rússia, em 1917; de Cuba, em 1958; da China, em 1949. A burguesia era vista como espécie de “pecado original” da sociedade moderna, a ser eliminado pela revolução. A esquerda reformadora, ao contrário, não é contra a burguesia, mas contra a exploração burguesa. Para ela, a exploração burguesa pode ser combatida sem a eliminação da burguesia. Mesmo reconhecendo o papel revolucionário da burguesia, Karl Marx (1988, p.82), no Manifesto do Partido Comunista anuncia também o “inevitável” desaparecimento dela. Para ele, as constantes crises do capitalismo seriam as armas que poderiam ser utilizadas pelos operários para “trazer a morte à burguesia”. Tal morte derivaria, segundo as previsões de Marx, de um processo de deterioração gradual das já precárias relações entre capital (empresários) e trabalho (operários), caracterizado pelo crescente 106 enriquecimento da burguesia, que seria acompanhado por um inevitável processo de proletarização da classe média e pauperização do proletariado. Ou seja, a tendência geral do capitalismo seria a de tornar a classe média cada vez mais pobre e os pobres cada vez mais miseráveis. A autodestruição do capitalismo e da burguesia derivaria deste duplo processo de enriquecimento da burguesia e empobrecimento do proletariado. O inevitável distanciamento entre burguesia e proletariado seria a mola que levaria ao salto revolucionário, onde “o proletariado estabeleceria sua dominação pela derrubada violenta da burguesia” (Ibidem, p.87). Tal previsão catastrófica não se realizou, e os conflitos foram enfrentados com negociações entre empresários e trabalhadores assalariados. Para Marx, o operário, “longe de se elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais abaixo das condições de sua própria classe”. Por isso, a existência da burguesia seria “incompatível com a da sociedade” (Ibidem, p.87). De fato, a pobreza dos operários era e ainda é incontestável nos lugares onde as desigualdades são mais desiguais. Não havia garantias jurídicas (constitucionais, trabalhistas) para os trabalhadores assalariados. Mas isso não confirma a tese da irreformabilidade do capitalismo e da burguesia. Na nova sociedade marxista não haveria lugar para a burguesia. O proletariado seria o seu “coveiro” (Ibidem, p.88). Segundo o Manifesto, o proletariado deveria “utilizar sua supremacia política para arrancar todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante” (Ibidem, p.95). Para o historiador francês François Furet, “a ideia comunista viveu mais tempo nos sentimentos que nos fatos [...] a sua trajetória imaginária foi mais 107 misteriosa do que a história real” (1995, p.07). E tal ideia caracterizou-se pelo “ódio pela burguesia” e pelos valores burgueses (Ibidem, p.12). 3.2.Democracia social Ao contrário da esquerda revolucionária (marxista), a esquerda reformadora indicou o caminho das reformas. Por meio das lutas sindicais, os operários conquistaram melhorias salariais e se afastaram da revolução: “Se podemos melhorar a vida dentro do capitalismo, por que lutar contra ele?”, pensaram os operários reformadores. Ao invés de lutar pelo fim do sistema, escolheram a luta por melhorias no sistema (processo de aburguesamento prático e teórico dos trabalhadores assalariados). As reformas sociais demonstraram que as relações entre trabalhadores e empresários não estavam automaticamente destinadas à catástrofe. Poderiam melhorar por meio de conquistas sindicais reformadoras: legislação trabalhista; reformas salariais; férias remuneradas; licença maternidade; etc. As reformas sociais derrubaram a crença na inevitável destruição do capitalismo. A esquerda reformadora não defende o capitalismo e a burguesia de forma ingênua. O que ela propõe é a correção social do capitalismo e da atuação da burguesia por meio de reformas sociais, sobretudo salariais. O pai da esquerda reformadora, Eduard Bernstein, submeteu o pensamento marxista a uma profunda revisão crítica, numa época em que o dogmatismo de esquerda punia com a perseguição sistemática quem ousasse fazer tal operação cultural. No livro Os Pressupostos do Socialismo e a Tarefa da SocialDemocracia, de 1899 - publicado no Brasil com o título Socialismo Evolucionário –, Bernstein constatou, contrariamente às previsões catastróficas de Marx, que o incremento da produção, por meio do progresso 108 tecnológico, unido ao sucesso das lutas sociais reformadoras (sindicalismo reformador), poderia melhorar, no capitalismo, a situação político-econômica dos operários, demonstrando que o capitalismo é reformável. O aburguesamento dos operários ainda era exceção, mas tal exceção, quando a regra rígida prevista por Marx falava em inevitável pauperização, promoveu a elevação da luta reformadora em luta central do movimento operário. A revolução sabia o que queria destruir, mas não sabia muito bem o que queria construir. Os objetivos da luta reformadora, por serem mais modestos, sóbrios, realistas, concretos, acabaram vencendo a concorrência. A revolução, antes entendida como objetivo máximo – a esquerda revolucionária era maximalista –, perdeu espaço para o desdenhado reformismo, que era a forma pejorativa como os maximalistas chamavam as políticas sociais focadas nas reformas. O reformismo conquistou espaços antes ocupados pela esquerda revolucionária, sendo, hoje, praticamente, o principal ponto de referência político dos movimentos e partidos de luta pela diminuição das desigualdades sociais, nacionais e internacionais. Os reformadores trabalham pela democracia social por meio da democracia política. Para eles, liberalismo e socialismo não são posições antagônicas, mas complementares. Segundo o reformador Carlo Rosselli (1899-1937), autor do livro Socialismo Liberal, o proletariado é o “herdeiro da função liberal” desenvolvida pela burguesia (1997, p.133). A esquerda revolucionária não reconhecia a possibilidade de justa conciliação entre burguesia e proletariado, capital e trabalho, liberalismo e socialismo. Para os reformadores, tais metas são possíveis, necessárias e urgentes. Os reformadores de hoje, homens e mulheres social-democratas, liberaldemocratas, ambientalistas, internacionalistas, talvez sejam os sujeitos principais do trabalho pela concretização do tríptico paradigmático (liberdade, igualdade e fraternidade) da revolução inacabada. 109 4.A REVANCHE DO CAMPO RURALIDADE E SLOW PRODUCTION 4.1.Trabalho, tempo livre e qualidade de vida Qualidade de vida significa bem-estar geral (saúde), pessoal e coletivo, exterior (escola, trabalho, moradia, alimentação, assistência à saúde, transporte, esporte) e interior (psicológico, espiritual, ético, estético). A qualidade exterior de vida depende dos cidadãos e do Estado; e a qualidade interior de vida depende dos cidadãos e suas comunidades de pertença. São frequentes os depoimentos em programas de televisão ou em jornais, de pessoas que afirmam terem sido viciadas em trabalho e que o excesso de trabalho teria prejudicado a própria vida e de sua família. Concluem afirmando terem superado tal vício por meio de revisão de prioridades, optando por menores salários associadamente ao aumento da qualidade de vida. Em tais depoimentos, afirma-se que a melhora na qualidade de vida dependeria do sujeito, das escolhas do sujeito, com ausência de críticas reformadoras à condição estrutural de trabalho e de vida. Sociólogos tendem a afirmar que a culpa seria do sistema, o que não exclui a responsabilidade pessoal, dos sujeitos. Sublinha-se o fato de os sujeitos se encontrarem em situações estruturais preexistentes, herdadas. Se um peixe nada com peixes em demasia num aquário, ele deveria tentar mudar o sistema de vida no aquário, propondo a distribuição dos peixes em mais aquários, ou propondo a mudança de todos para outro aquário, maior. Peixes não podem fazer isso, e seres humanos o fazem com muita dificuldade. 110 São três as alternativas para que se possa ter mais qualidade de vida: mudar a sociedade, mudar de sociedade ou mudar na sociedade. Mudar de sociedade é a escolha dos que deixam suas cidades ou países. Mudar a sociedade é meta incomum entre os defensores do paradigma da qualidade de vida. Pelas informações colhidas na literatura jornalística sobre o tema, parece predominar a opção por mudar na sociedade: viver de forma alternativa, com regras de qualidade de vida, na sociedade da fast production. Assim, buscar mais qualidade implica adotar uma ética da resistência: não aceitar todas as regras da fast production, mas somente as indispensáveis à sobrevivência econômica, para se poder viver de forma mais qualitativa numa sociedade não caracterizada, em seu conjunto, pela qualidade de vida. Na percepção dos defensores do paradigma da qualidade de vida, desemprego e excesso de trabalho são problemas típicos das sociedades da fast production. E o excesso de trabalho não seria explicado apenas pelas exigências econômicas da produção fast, mas por fatores psicológicos: trabalhar sempre, inclusive domingos e férias, não por necessidade econômica, mas por necessidade psicológica, para escapar do vácuo encontrado nas atividades de tempo livre. A noção de atividade produtiva da cultura da fast production não coincide com as noções usuais do paradigma pós-moderno da qualidade de vida. Atividades produtivas seriam as geradoras de riquezas monetárias, e não as atividades que produzem satisfação, bem abstrato para a fast production e excelso para os defensores do paradigma da qualidade de vida. Para estes, o trabalho faz parte da vida, mas não se identifica com a vida, ou seja, trabalhase para viver, e não se deveria viver para trabalhar. 111 Para os viciados em trabalho, as únicas atividades produtivas seriam as que se referem ao trabalho. Todas as outras valeriam menos, muito pouco ou nada. Para os que vivem para trabalhar, tempo é dinheiro; para os que trabalham para viver, tempo é bem precioso para se obter satisfação, e não apenas dinheiro. No sistema da fast production, tempo livre é tempo subordinado ao trabalho: lazer para relaxar e permitir o retorno mais produtivo ao trabalho. No sistema cultural da qualidade de vida, o tempo livre é independente, vale tanto ou mais que o tempo de trabalho. Servem ambos para produzir satisfação. Para a fast production, trabalho e produção de riquezas são valores centrais, e a convivência familiar, férias, lazer são atividades instrumentais em relação ao trabalho e à produção de riquezas quantificáveis do ponto de vista monetário. Segundo as regras da fast production, aprende-se a pintar no jardim de infância, como preparação ao trabalho; ingressa-se no ensino fundamental, como preparação ao trabalho; termina-se o ensino médio, como preparação ao trabalho; ingressa-se numa universidade, para o trabalho (noção exclusivamente profissionalizante de educação); férias servem para trabalhar melhor; cuida-se da aparência pelo melhor êxito no trabalho; busca-se a felicidade porque quem é feliz trabalha melhor e produz mais. A cultura da fast production não é contrária à cultura da qualidade de vida, mas a valoriza de forma instrumental, como meio para o incremento da produção. Na cultura da qualidade de vida, resiste-se às imposições da fast production por meio da busca do equilíbrio possível entre trabalho, tempo livre, família, esporte, alimentação. Quando uma das várias exigências é negligenciada, perde-se em qualidade de vida, e deve-se retornar à trajetória do equilíbrio. Como afirmamos, trata-se da situação do peixinho que procura mudar de vida dentro do sistema de vida do aquário da fast production. 112 4.2.Conquista e perda do tempo livre A popularização do tempo livre e do turismo foi uma conquista social dos movimentos operários, um dos direitos adquiridos pelo trabalho coletivo reivindicativo. Dentre as conquistas trabalhistas clássicas dos movimentos operários estão a redução da jornada de trabalho (tempo livre diário), dia de repouso semanal (tempo livre semanal), férias anuais remuneradas (tempo livre anual) e aposentadoria. A conquista do tempo livre e de melhorias salariais transformou pobres em classe média e popularizou o turismo, tornando-o um fenômeno de classe média. Sem a transformação dos pobres em classe média, não existiria turismo na forma como conhecemos hoje (popularizado), mas somente turismo-privilégio. Os operários precisaram de décadas de trabalho sindical reformador para conquistar o direito ao tempo livre (TAROZZI, 1999), liberado do trabalho, mas ele foi transformado em tempo de consumo. Para Alberto Bondolfi, professor de Ética Social, há muito que o tempo livre já não é mais tão livre assim. Não se trata de um tempo isento de “imposições sociais e livremente disponível para cada pessoa” (1990, p. 1366), mas de um tempo “já predeterminado, não somente nos significados, mas mesmo nos conteúdos” (Ibidem, p. 1366). Para Bondolfi, “se no trabalho a alienação se concentra na dependência às leis da atividade produtiva, no tempo livre ela se configura como involuntária dependência às leis do consumo” (Ibidem, p. 1367). A fast production apoderou-se do tempo livre e suas atividades de lazer e turismo, associando o lazer ao consumo. Passear no shopping aos domingos e acompanhar os anúncios publicitários antes, durante e depois dos programas 113 televisivos de entretenimento são apenas manifestações mais visíveis de tal associação. Cidadãos em estado de tempo livre foram transformados em consumidores em estado de lazer-consumo, massa dócil (ou docilizada), obediente aos comandos do sistema de (tele) consumo de massa, caracterizado pela padronização, uniformização. No livro Televisão e Pós-Pensamento, o cientista político Giovanni Sartori afirmou que “foram suficientes poucos decênios para criar o pensamento lavagem, um clima cultural de melaço mental com crescentes armadas de anulados mentais” (1999, p. 113). 4.3.Ativismo, preguiça e desenvolvimento sustentável Segundo recomendações monásticas seculares, para cada vício existiria uma virtude apta a corrigi-lo. Tal recomendação valeria apenas para as pessoas físicas ou, também, para os sistemas sociais? Se considerarmos o ativismo um vício moderno, típico do sistema de trabalho e de vida da fast production, e julgarmos razoável a moral monástica que recomenda virtudes para o tratamento de vícios, poderíamos identificar na virtude da boa preguiça o antídoto contra o capitalismo da fast production. Mas a preguiça não seria vício, um dos sete pecados capitais? Um dos sete pecados capitais - ao lado da soberba, ira, inveja, avareza, luxúria, gula - é a acídia, que foi também chamada de preguiça. Há uma preguiça ruim (acídia), e uma boa preguiça, antídoto contra o ativismo. Acídia significa desânimo, desmotivação, tédio (LAWRENCE, 1995, p.367). Na cultura da qualidade de vida, podemos identificar uma noção moral diferente de preguiça. A preguiça virtuosa caracterizar-se-ia pela rejeição de um modelo apressado de produção e valorização da produção tranquila, focada na qualidade, sugerindo um modelo de capitalismo com ritmo mais Bossa Nova. Representações simbólicas da 114 preguiça virtuosa seriam o chimarrão, a rede, o cafezinho, a conversa cordial e, quem sabe, também, o nosso Bicho-Preguiça. O comportamento de alguns animais foi citado com objetivos pedagógicos por pensadores como Maquiavel (leão, raposa), Jesus (serpentes, ovelhas, pombas), Hobbes (lobo). A Preguiça simbolizaria modelos sustentáveis de produção, cultura da slow production, que contém o sistema gastronômico slow food, que significa mais que refeição lenta, em companhia, preparando os próprios alimentos. Trata-se de um sistema diferente de refeições, trabalho e vida. Segundo os cânones da fast production, preguiçosos seriam os que teriam aversão ao trabalho. Preguiçosos seriam os pobres, os trabalhadores assalariados. A associação entre pobreza e preguiça é desmentida pelas filas de desempregados. Para a cultura da fast production, o índio, por exemplo, seria preguiçoso. Com seu estilo diferente de conceber a vida e o trabalho, não seria contratado por uma empresa da fast production. A cultura da qualidade de vida recomenda a ética da boa preguiça como medida apta a promover a salvaguarda do ambiente por meio de modelos sustentáveis de produção. O ativismo moderno da fast production é, sobretudo, um problema de ritmo (acelerado) de vida e de trabalho. Dos negros e dos índios, o Brasil herdou um ritmo diferente de vida, de trabalho e de alimentação, identificável também em manifestações musicais. Herdou ritmo, espiritualidade, senso de comunidade. Para a fast production, isto seria herança maldita. Para os revisionistas da modernidade, seria herança bendita, apta a promover mudanças culturais radicais no sistema da fast production. 4.4.Ruralidade e qualidade de vida Mais do que identificarmos diferenças físicas entre campo e cidade, identificamos diferenças metafísicas entre cultura da ruralidade e cultura da 115 urbanidade. A cultura da urbanidade chegou (há muito) nos territórios tradicionais da ruralidade (campo) por meio, sobretudo, da televisão; e a cultura da ruralidade também penetrou nos territórios tradicionais da urbanidade (cidades) por meio, sobretudo, do turismo rural. Quando viajam para o campo, os hóspedes do turismo rural, em busca de descanso e significados, se deslocam para contemplar as virtudes físicas do campo e os valores metafísicos da cultura da ruralidade. Turismo (de tour, giro, volta) significa deslocamento horizontal (pelo território). É um fenômeno coletivo de comunicação entre pessoas e grupos diferentes. Os turistas que deixam as cidades nos feriados e férias para se refugiarem temporariamente no campo (turismo rural), parecem repetir, em sentido laico, desejo de fuga mundi semelhante ao que movia os monges medievais para os territórios da rusticidade (áreas rurais). A ruralidade tornou-se utopia de hóspedes urbanos do turismo rural. Utopia (do grego ou-topos) significa nenhum lugar, ou lugar que não existe. As utopias nascem de insatisfações com as experiências reais. Nelas estão contidas a rejeição do real não satisfatório e a criação de projetos (ideais) e ações (concretas) que poderão transformar o real contestado no ideal sonhado. Não basta que o sonho seja sonho para que seja bom. O sonho pode ser pesadelo, como o dos que sonham com indústrias e empregos sem levar em conta os efeitos colaterais de modelos de desenvolvimento que excluem de seus benefícios (modelos não sustentáveis de desenvolvimento) as futuras gerações. O crescimento quantitativo de movimentos de êxodo urbano temporário nos períodos de férias e feriados (turismo rural) sugere a percepção da ruralidade como utopia para a cidade (cidade ruralizada). O êxodo rural é hoje acompanhado por tal fenômeno de êxodo urbano: saída temporária das 116 metrópoles em direção ao campo (turismo rural), em busca dos valores da cultura da ruralidade, para a qualificação da vida nas cidades, ponto de partida e de chegada dos hóspedes do turismo rural. Êxodo significa saída, forma de deslocamento (tour) de um lugar real para um lugar ideal. O turista moderno é o viajante-peregrino que procura a felicidade numa praia “paradisíaca”, numa cidade histórica, numa pousada rural. O campo é valorizado pelas suas (reais ou imaginárias) virtudes físicas e metafísicas (cultura da ruralidade): ritmo slow de vida e produção (qualitativa), qualidade dos alimentos, do ar, da água, simplicidade, comunidade, cordialidade, pessoalidade, genuinidade, espiritualidade (leiga ou religiosa). O campo ocupa hoje lugar de destaque, velho sábio ensinando lições de ruralidade para qualificar a vida nas cidades. De símbolo de atraso tornou-se sonho de consumo: férias no campo, moda country, casa de campo, condomínio rural (no campo ou cidades), chácaras, fazendas, estâncias, sítios. Músicas, poesias, festas enaltecem o campo como referência paradigmática para as cidades. O campo vale por aquilo que é (campo real), mas vale muito mais por aquilo que representa (campo ideal). A cultura da ruralidade é identificada como produto apto a regenerar, revigorar, revitalizar, reformar, do ponto de vista físico e metafísico, pessoas, cidades e modelos de produção. 5.ÉMILE DURKHEIM E A RECONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE Quem passou algumas semanas na Suíça percebeu que se trata de um excelente país, mas que também tem seus problemas sociais, mesmo se diferentes dos nossos. Eles não têm favelas, mas têm problemas sociais. Há 117 jovens que se drogam até morrer e há jovens que se suicidam, mesmo tendo dinheiro no bolso. Eles têm problemas sociais, mesmo não tendo problemas socioeconômicos, ao menos do porte dos nossos. As pessoas que se embriagam, se drogam ou se suicidam muitas delas com bastante dinheiro no bolso demonstram que a falta de um sentido válido para a vida é também um problema social, mesmo não sendo problema econômico. Em 1897, Émile Durkheim publicou o livro Le Suicide (o suicídio), um estudo sociológico sobre o suicídio, manifestando seu interesse por problemas sociais diferentes daqueles econômicos, estudados por outros autores. A sociologia não estuda apenas as desigualdades sociais e os problemas socioeconômicos. Certamente, lembramos dos cinco jovens de classe média de Brasília que atearam fogo num índio há alguns anos. Matar uma pessoa por divertimento é problema social, mesmo não sendo problema econômico. E é problema grave, de ordem cultural, moral, referente aos valores coletivos que temos, ou que perdemos. 5.1.Educação e adaptação social Émile Durkheim (1858-1917) estudou temáticas diferentes daquelas estudadas pelo marxismo. Para ele, os seres humanos são mais reprodutores de velhas tradições do que criadores de inovações. O caráter não-utópico de suas reflexões fez com que fosse desprestigiado pelos defensores de revoluções sociais. Durkheim se preocupou mais com a integração do indivíduo na comunidade do que com o tema das revoluções sociais. Identificando a sociedade como sujeito principal nos processos de transmissão de valores, o 118 sociólogo francês afirmou que educação significa “ação exercida por uma geração sobre a geração seguinte, com o fim de adaptá-la ao meio social em que esta última está chamada a viver” (1978, p.60). Educação é ação da geração adulta sobre a jovem, para adaptá-la à sociedade. Para os revolucionários marxistas, que concebiam a educação como conscientização do proletariado em função da revolução antiburguesa, a expressão “adaptação social” soava como blasfema. Os defensores da revolução interpretaram a adaptação social como adaptação conservadora, conformista. Todavia a adaptação social não é necessariamente conformista. Ela pode ser crítico-reformadora, diversa da adaptação social conformista. Segundo Durkheim (1978, p.60), “estamos mergulhados numa atmosfera de idéias e de sentimentos coletivos que não podemos modificar à vontade”. No seu entender, “cada sociedade considerada num momento determinado do seu desenvolvimento possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos de modo geralmente irresistível” (Ibidem, p.36). Quem educa não é a escola, mas a sociedade, também por meio da escola. 5.2.Integração e desintegração social Professor de moral, pedagogia e sociologia, Émile Durkheim analisou no livro Da Divisão do Trabalho Social (1893) a crise da solidariedade tradicional e o desfecho desta crise em situações patológicas de anomia social, que ele explicará, por sua vez, 04 anos depois, no livro O Suicídio – Estudo de Sociologia (1897). No seu estudo sobre as causas sociológicas do suicídio, Durkheim constatou que as mudanças provocadas pela Revolução Industrial, no estilo de 119 trabalho e de vida das pessoas e comunidades, geraram situações de crise capazes de incrementar as taxas de suicídio. Tal crise consistia na perda ou enfraquecimento do sentimento de pertença a uma comunidade, pela perda dos vínculos morais tradicionais que integravam os indivíduos numa comunidade. Durkheim estudou o que podemos chamar de crise do cimento, onde o cimento a cola que une a sociedade, que une os tijolos e gera uma estrutura social mais ou menos sólida é o consenso social, a coesão social em torno de algumas normas sociais comuns, obrigatórias. Assim como não podemos chamar de estrutura arquitetônica um amontoado de tijolos sem cimento (cola), sem um objetivo, não podemos chamar de estrutura social um simples amontoado de pessoas. Nenhum muro é sólido sem cimento. Da mesma forma, não existe comunidade só com pessoas, sem uma argamassa capaz de fazer delas uma comunidade, unida por valores e objetivos específicos. O cimento que une os tijolos é fácil de identificar, mas o cimento social, mesmo sendo real, não é de fácil identificação. Qual é o cimento social que faz das pessoas uma comunidade? Imaginemos um ônibus de linha e um de excursão. Cada um com trinta pessoas, saindo do mesmo lugar e para as mesmas cidades. Qual a diferença entre eles? No ônibus de excursão, as pessoas se conhecem, há vínculos entre elas. Esses vínculos, invisíveis, são tão reais quanto o cimento das construções. O cimento das construções humanas são os vínculos entre as pessoas, valores e objetivos que as unem numa comum-unidade. O cimento é o consenso social, aquilo que sinto com os outros. Durkheim constatou que a Revolução Industrial modificou o consenso tradicional, gerando anomia: enfraquecimento dos vínculos societários, 120 consequência das mudanças radicais que transformaram as comunidades tradicionais em sociedades anômicas ou tendentes à anomia. 5.3.Consenso social e anomia Para Durkheim, há dois tipos de consenso social: o mecânico, ou tradicional, das sociedades pré-industriais, que ele chamou de solidariedade mecânica; e o consenso orgânico, funcional, das sociedades industriais, que ele chamou de solidariedade orgânica. A solidariedade mecânica é a solidariedade por semelhança, onde os indivíduos pouco diferem uns dos outros. É o consenso social típico das sociedades tradicionais, pré-industriais, onde os membros de uma mesma comunidade têm os mesmos sentimentos, os mesmos valores. Nestas sociedades, a consciência coletiva é mais sólida, e mais forte é a indignação com o crime, concebido como ato proibido pela consciência coletiva, como violação do imperativo social, que exige um direito caracterizado pela repressão: punição dos crimes ou das faltas contra a consciência coletiva. Nas sociedades tradicionais, a consciência coletiva é mais forte que a consciência individual. Na solidariedade orgânica, típica das sociedades modernas, industriais, urbanas – onde o local de trabalho foi separado do local de habitação, o consenso social resulta da diferenciação das funções (solidariedade funcional). Os indivíduos não se assemelham. As partes são diferentes, mas dependem umas das outras, se complementam no trabalho (diferenciação e dependência). Esse segundo tipo de consenso foi gerado pela divisão social do trabalho, típica da Revolução Industrial, onde ocorre a multiplicação das atividades e a diferenciação das tarefas ao interno da indústria. 121 Nas sociedades industriais urbanas, há maior margem de liberdade na interpretação dos imperativos sociais (obrigações sociais impostas pelo grupo de pertença), maior autonomia da vontade e maior abertura às decisões individuais. Prevalece o direito restitutivo, onde o fundamental não é a punição da violação das regras sociais (crime contra a consciência coletiva), mas a reposição daquilo que foi violado (pagamento de uma dívida). Nas sociedades profissionalmente diferenciadas (sociedade industrial), os indivíduos são mais autônomos e a consciência coletiva é bem menos rígida. Mas, se o enfraquecimento da consciência coletiva gera uma sociedade com menor controle social, e maior liberdade de decisão, o outro lado desta medalha é que estes indivíduos mais livres são, também, mais vulneráveis, menos protegidos pela comunidade de pertença. O ser humano típico desta nova sociedade é mais livre e mais só. A consciência coletiva das sociedades de solidariedade mecânica era mais rígida, as pessoas se sentiam mais controladas, até vigiadas, mas, também, mais protegidas pela comunidade. As sociedades modernas tendem à anomia e precisam criar e manter um minimum de consciência coletiva, para que a solidariedade débil, de tipo orgânico, não degenere em desintegração social. A anomia consiste na ausência deste mínimo de consciência coletiva, pela ausência ou enfraquecimento de vínculos satisfatórios que sustentem a comunidade. Trata-se de uma patologia social das sociedades industrializadas que pode produzir comportamentos individuais extremos, como o suicídio (anômico). 5.4.Da anomia à comunidade 122 Para Durkheim, a pertença à comunidade é tão necessária à vida quanto a água e o pão. Mas como criar pertença numa sociedade caracterizada pela competição e sobrevivência individual, onde a consciência coletiva é fragmentada e enfraquecida? Durkheim indicou os grupos profissionais como espaço privilegiado de recriação do consenso e superação da anomia. Segundo o sociólogo Raymond Aron, também francês, para Durkheim, “o problema social não é um problema econômico, mas principalmente um problema de consenso, isto é, de sentimentos comuns aos indivíduos, graças aos quais os conflitos são atenuados, os egoísmos recalcados e a paz mantida. O problema social é um problema de socialização” (1982, p.346). Antes da Revolução Industrial, havia maior aproximação geográfica entre as pessoas de uma mesma comunidade por um maior período de tempo. Elas viviam mais tempo sob a disciplina dos mesmos valores. Tal disciplina poderia ser vista hoje como uma prisão cultural, mas significava também maior proteção social. A mobilidade horizontal (mudança de cidade ou país) era rara. Hoje, é comum. Há pessoas que não apenas se mudam, mas vivem em situação de mudança. Os valores comunitários de referência enfraqueceram, sendo substituídos pela qualificação do indivíduo, não do grupo. Diminuiu a coesão social com o enfraquecimento do consenso tradicional. Sem pertença social, as sociedades modernas tendem à anomia e desintegração. A convivência tradicional do indivíduo ao interno de uma mesma comunidade de valores dá lugar a uma movimentação constante em busca da qualificação profissional (pessoal), em detrimento da qualificação da comunidade e dos vínculos comunitários. 123 Nas sociedades modernas, a qualificação da comunidade de pertença é negligenciada. A comunidade perde valor e o trabalho é supervalorizado. O ser humano moderno perde o próprio sistema tradicional de valores de referência, não encontrando um substituto satisfatório para suprir tal perda. Exemplifiquemos, imaginando a situação de uma moça do interior que se transfere para uma cidade grande. Nas primeiras semanas, ela constata aliviada: “Aqui ninguém se mete na minha vida!”. Na sua cidade de origem, com poucos habitantes, quando ela comprava um par de sapatos novos, já no outro dia as amigas (e as inimigas) tinham conhecimento do número, cor e preço do seu novo par de sapatos. Quando abria a janela, a vizinha já a esperava para fazer algum comentário. Nada escapava do controle exercido por sua comunidade. Na nova experiência na cidade grande, ela se sentia mais livre do controle dos vizinhos, dos parentes, dos amigos e dos inimigos. Todavia, alguns meses depois, a sua alegria inicial se transformou em solidão: “Aqui ninguém sabe nada sobre mim. Corro o risco de, se morrer na rua, ser enterrada como indigente”. Sente-se só em meio à multidão. A sensação inicial de liberdade é substituída pela de abandono e insegurança. Sente saudades até da vizinha bisbilhoteira, cuja bisbilhotice ao menos exprimia interesse por ela. Na sua comunidade de origem havia controle, mas, também, proteção. Agora, com saudades, passará a enaltecer as virtudes reais e imaginárias da sua comunidade do interior. Saudades demonstram que fazemos parte daquilo de que sentimos falta: uma cidade, um país, uma família, uma comunidade. Durkheim indicou os grupos profissionais como instrumentos de recriação do consenso perdido. Para ele, as associações profissionais não teriam somente uma função reivindicativa, como os sindicatos, mas uma função integradora. 124 A superação da anomia depende da experiência de pertença forte a um grupo, com identidade definida, valores definidos e força de agregação capaz de revigorar a identidade do indivíduo pelo fortalecimento dos vínculos comunitários. Os grupos de integração social substancial têm caráter terapêutico na superação da anomia e seus efeitos desagregadores. Todas as comunidades livremente escolhidas e sustentadas pelos seus membros são comunidades terapêuticas, com poder terapêutico, função terapêutica, e não apenas as comunidades de recuperação de ex-viciados em alguma coisa: álcool, drogas, compras (devedores anônimos). As comunidades (terapêuticas) controlam, integram e protegem. Nelas é fortalecida a personalidade do indivíduo pelo desenvolvimento qualitativo dos vínculos comunitários. 6.MAX WEBER E A SOCIOLOGIA DO DESENCANTO 6.1.Industrialização e racionalização No célebre livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905), Max Weber (1864-1920) explicou que alguns valores da ética protestante (cultura protestante) a riqueza como sinal de predestinação (salvação) e ética do trabalho (que afasta o puritano dos vícios) conduziram à acumulação e investimento de capital lá onde era moralmente lícito gastá-lo, ou seja, no trabalho, favorecendo o desenvolvimento do capitalismo. Os protestantes estudados por Weber entendiam a riqueza como sinal da bênção de Deus, ao contrário de outros cristãos, para os quais a riqueza representaria obstáculo à salvação. Ora, tal visão favorecia a busca do dinheiro para confirmar o benefício da salvação, e esse dinheiro não poderia ser 125 desperdiçado, mas investido no trabalho, o que favoreceu, repetindo, o desenvolvimento do capitalismo (sistema econômico). Com tais reflexões, Weber rompe com o determinismo econômico. Para ele, a cultura também condiciona a economia, e não apenas é por ela condicionada. Os fatores culturais também são determinantes na explicação dos fenômenos sociais. A cultura não é apenas consequência, mas causa. Ocupar lugar de destaque na explicação dos problemas sociais, e não uma posição periférica. Estudioso de história, economia, filosofia, direito, teologia e sociologia, Weber identifica quatro tipos de ação social, constatando que a ação racional em relação a um objetivo é a que predomina nas sociedades industriais modernas. Os quatro tipos de ação social são: 1.ação racional em relação a um objetivo: a meta condiciona a elaboração de um programa para a sua realização. É a ação planejada, calculada para a realização de um objetivo, e não se confunde com a máxima imoral segundo a qual fins bons justificariam o emprego de meios imorais; 2.ação racional em relação a um valor: a ação motivada pela fidelidade a um valor, a uma convicção, a um princípio. Podemos citar como exemplo a morte por rejeição da transfusão de sangue pelos seguidores do grupo religioso Testemunhas de Jeová; 3.ação afetiva ou emocional, de quem age por impulso sentimental; 4.ação tradicional, de quem age movido por costumes e tradições. O desenvolvimento industrial favoreceu as ações racionais: o modo de pensar na fábrica, com seus esquemas de planejamento da produção, aos poucos será o modo de pensar típico do ser humano moderno. 126 A ação racional em relação a um objetivo corresponde à ação do industrial que deve planejar a produção; do engenheiro que se programa para construir uma ponte; do médico que se prepara para realizar uma cirurgia. A ação racional em relação a um objetivo possui elementos em comum com o terceiro estado, ou estado positivo, estudado por Augusto Comte na Lei dos Três Estados. Tal modo de pensar já existia, mas com a Revolução Industrial ocorreu o que podemos chamar de “popularização” do pensamento científico, positivista, racional. Não que todos tenham passado a pensar de forma positivista. É que o modo de pensar racional positivista passou a ser o modo padrão de pensar, substituindo o tradicional. Com a popularização do pensar positivo, racional, as ações tradicionais e emocionais passaram a ser entendidas como ações de menor valor. As ações racionais ganham prestígio e as tradicionais e emocionais são desqualificadas. As ações tradicionais e emocionais são substituídas por ações onde o agente identifica com clareza os objetivos que deseja alcançar e utiliza os meios disponíveis e eficazes para a realização desses objetivos. A racionalização do trabalho levou à racionalização da vida. As ações são calculadas, planejadas. A crença na infalibilidade do planejamento substituiu as ações movidas pela tradição e emoção. Na modernidade, predomina a valorização do modo positivista de pensar. As sociedades modernas são caracterizadas pela racionalização: identificação dos objetivos e dos meios eficazes para a sua realização. A economia de empresa é racional; a administração burocrática do Estado é racional; as festinhas de aniversário das crianças também, planejadas com antecedência, com delegação de tarefas aos profissionais do entretenimento infantil (terceirização). 127 Na modernidade, o planejamento racional é um imperativo social. Tudo pode e deve ser explicado e organizado pela razão. E aqui começam a surgir problemas. Será que tudo pode mesmo ser explicado pela razão? E será que as pessoas gostam de viver numa sociedade positivista, movida por explicações e planejamentos (racionais) mais ou menos meticulosos? 6.2.Racionalismo e desencanto Num grande shopping, a lojinha que vende duendes e gnomos está sempre com clientes. Várias lojas já fecharam, mas não a que vende bruxinhas. Não há algo que seja mais irracional que duendes e gnomos. Mas há muita gente moderna que gosta de acreditar neles. A modernidade racionalista colocou a matemática no lugar da religião, eliminando os mistérios, que passaram a ser concebidos como uma etapa primitiva, da fase supersticiosa da história da humanidade. Entretanto os mistérios não desapareceram. E a incapacidade de explicá-los também. A modernidade investiu no aprimoramento do pensar científico, racional, positivo, mas exagerou ao tentar reduzir todo o saber ao saber científico. Noções tradicionais, que davam sentido à vida social, foram desencantadas e desacreditadas, originando uma forma diferente de desencantamento, com os excessos da razão científica. O processo de desencantamento do mundo tradicional por meio da razão científica acabou se voltando contra a própria racionalização. Enquanto o mundo anterior à modernidade era cheio de magia, de mistérios, o mundo das sociedades industriais passou a ser um mundo sem fantasias, sem segredos, sem mistérios. A religião, antes central, passou a ser vista como supérflua ou periférica. A modernidade negou à religião a possibilidade de compreendê-la como racionalidade teológica. Mas como um 128 extremo atrai o seu oposto, o racionalismo (extremo) da modernidade gerou um novo fenômeno de massa: o retorno à religião em forma de superstição e sentimentalismo. Os excessos do racionalismo favoreceram o desenvolvimento de uma religiosidade pouco paciente com as observações críticas da razão, dócil ao sentimentalismo de ocasião promovido por charlatões de vários credos. Referências ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1982. BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart – as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. BARBERIS, Corrado. Da Giolitti a De Gasperi - stato e riforme. Rocca San Casciano: Cappelli editore, 1953. BENTO, Fábio Régio. A igreja católica e a social-democracia. São Paulo: AM Edições, 1999. _____. Viver e compreender a sociedade - ensaios de introdução à sociologia. Tubarão: Editora Unisul, 2002. _____. Humanismo e democratização do tempo livre. In: BOMBASSARO, Luiz; DAL RI JÚNIOR, Arno; PAVIANI Jayme (orgs.). As interfaces do humanismo latino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p.403-430. _____. Da soberania dos pastores à soberania das ovelhas. In: BENTO, Fábio Régio (org.). Cristianismo, humanismo e democracia. São Paulo: Paulus, 2005, p.17-47. _____. Direito e Democracia. In: ROCHA, Maria Ines (org.). Humanismo e direitos. Passo Fundo: Berthier, 2007, p.101-125. BERNARDI, Ulderico. Del viaggiare - turismi, culture, cucine, musei open air. Milão: FrancoAngeli, 1997. 129 BERNSTEIN, Eduard. Socialismo evolucionário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor-Instituto Teotônio Vilela, 1997. BLACKBURN, Robin. (org.). Depois da queda - o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. BONDOLFI, Alberto. Tempo libero. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino; PRIVITERA, Salvatore (a cura di). Nuovo dizionario di teologia morale. Milão: Paoline, 1990, p. 1366-1371. D’ADDIO, Mario. Storie delle dottrine politiche. Gênova: ECIG, 1995. DAHRENDORF, Ralf. Il conflitto sociale nella modernità. Roma-Bari: Laterza, 1990. _____. 1989. Riflessioni sulla rivoluzione in Europa. Roma-Bari: Laterza, 1991. DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978. _____. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. O suicídio – estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _____. As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Nacional, 2001. FERRAROTTI, Franco. Partire, tornare - viaggiatori e pellegrini alla fine del millennio. Roma: Donzelli, 1999. FURET, François. Il passato di un’illusione - l’idea comunista nel XX secolo. Milão: Mondadori, 1995. GADOTTI, Giovanna. Qualità della vita. In: DEMARCHI, Franco; ELLENA, Aldo; CATTARINUSSI, Bernardo (a cura di). Nuovo dizionario di sociologia. Milão: Paoline, 1987, p.1674-1682. GALLI, Giorgio. Storia delle dottrine politiche. Milão: Il Saggiatore, 1985. GIDDENS, Anthony. A terceira via – reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Record, 1999. GOULDNER, Alvin. La sociologia e la vita quotidiana. Roma: Armando editore, 1997. 130 LANQUAR, Robert. Turismo e ambiente: la posta in gioco nel Mediterraneo. In: GUIDICINI, Paolo; SAVELLI, Asterio (a cura di). Strategie di comunità nel turismo mediterraneo (Associazione mediterranea di sociologia del turismo). Milão: FrancoAngeli, 1999, p.179-189. LAWRENCE, Clifford Hugh. Il monachesimo medievale - forme di vita religiosa in Occidente. Milão: San Paolo, 1995. LEÃO XIII, Papa. Encíclica Rerum Novarum. São Paulo: Paulinas, 1965. LOMBARDI, Gabrio. Persecuzioni, laicità e libertà religiosa - dall’Editto di Milano alla Dignitatis Humanae. Roma: Studium, 1991. LO SURDO, Giorgio (a cura di). Il profilo introduttivo dell’agriturismo italiano. In: AA.VV. (a cura di). Agriturismo & marketing: analisi delle tendenze e strategie per lo sviluppo delle attività agrituristiche. Roma: Agra editrice, 2003, p.13-25. MACHIAVELLI, Niccolò. Il principe. La Spezia: Fratelli Melita Editori, 1988. MARQUES, Luiz. Maquiavel e sua época. In: Revista história viva (Grandes temas): Maquiavel – o gênio de Florença. São Paulo: Duetto, n. 15, 2006, p.41. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Global, 1988. PENCO, Gregorio. Il monachesimo - fuggirono il mondo, salvarono la civiltà, custodirono il mistero. Milão: Mondadori, 2000. PEZZIMENTI, Rocco. La società aperta e i suoi amici. Messina: Rubbettino, 1995. _____. Politica e religione - la secolarizzazione nella modernità. Roma: Città Nuova, 2004. POPPER, Karl. Alla ricerca di un mondo migliore. Mião: Mondadori, 1995. 131 PRIVITERA, Salvatore. Etica descrittiva. In: COMPAGNONI, Francesco; PIANA, Giannino; PRIVITERA, Salvatore (a cura di). Nuovo dizionario di teologia morale. Milão: Paoline, 1990, p.354-358. RICCARDI, Andrea. Intransigenza e modernità. Roma-Bari: Laterza, 1996. ROSSELLI, Carlo. Socialismo liberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar EditorInstituto Teotônio Vilela, 1997. SARTORI, Giovanni. La politica - logica e metodo nelle scienze sociali. Milão: SugarCo, 1991. _____. Democrazia. Cosa è. Milão: Rizzoli, 1993. _____. Homo videns - televisione e postpensiero. Roma: Laterza, 1999. SAVELLI, Asterio. Sociologia del turismo. Milão: Francoangeli, 1998. SETTEMBRINI, Domenico. Democrazia senza illusioni. Roma-Bari: Laterza, 1994. SOROKIN, Pitirim. Storia delle teorie sociologiche. Roma: Città Nuova, 1974. SPINELLI, Lorenzo. Lo Stato e la Chiesa – venti secoli di relazioni. Turim: Utet, 1988. TAROZZI, Fiorenza. Il Tempo libero - tempo della festa, tempo del gioco, tempo per sé. Turim: Paravia Scriptorium, 1999. TRINDADE, Hélgio; GARRETÓN, Manuel; MURMIS, Miguel; REYNA, José; SIERRA, Gerónimo. Ciências Sociais na América Latina em perspectiva comparada: Argentina, Brasil, Chile, México e Uruguai. In: TRINDADE, Hélgio (org.). As Ciências Sociais na América Latina em perspectiva comparada – 1930-2005. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006. WEBER, Max. Ciência e política – duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993. 132 AUTOR Fábio Régio Bento Bacharel em Ciências Sociais. Mestre em Ciências Sociais. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade San Tommaso (Roma, 1996). Bacharel em Teologia. Mestre em Teologia Moral Social pela Academia Alfonsiana da Pontifícia Universidade Lateranense (Roma, 1992). E-mail: [email protected]