O Mercado como Deus Vivendo na nova dispensação1 Harvey Cox* Faz alguns anos um amigo aconselhou-me a ler as revistas de economia e negócios se eu quisesse saber o que se passava no mundo real. Embora meu interesse primordial tenha estado no estudo religioso, estou sempre disposto a expandir meus horizontes. Então segui o conselho, um pouco hesitante, uma vez que eu teria que lidar com um novo e desconcertante vocabulário. Em vez disso, surpreendi-me ao descobrir que a maioria dos conceitos com que me deparei era bastante familiar. Esperando uma terra incognita, encontrei-me, longe disso, na terra do déjà vu. O léxico do The Wall Street Journal e das seções de negócios da Time e da Newsweek revelaram uma semelhança surpreendente ao Gênesis, à Epístola dos Romanos e à Cidade de Deus, de Santo Agostinho. Por trás de descrições de reformas de mercado, de política monetária e das convulsões da Dow, montei as peças de uma vasta narrativa sobre o sentido íntimo da história humana, o motivo por que as coisas tinham dado errado, e como corrigi-las. Teólogos chamam a isso de mitos de origem, narrativas da queda e doutrinas do pecado e da redenção. Mas aqui se apresentavam eles, uma vez mais, levemente disfarçados: narrativas sobre a criação do valor, sedutoras tentações do estatismo, submissão a insondáveis ciclos econômicos, cujas feições são secretas e, sobretudo, salvação pelo advento de livres mercados, com uma pequena dose de ascetismo administrada ao longo do caminho, especialmente no caso das economias orientais. Os distúrbios das economias asiáticas, argumentam os devotos, derivam de seu desvio herético da ortodoxia do livre mercado — elas eram praticantes do “capitalismo camarada”, do “etnocapitalismo”, do “capitalismo estatista”, não da fé única e verdadeira. Os pânicos financeiros asiáticos, o calote russo, o turbilhão econômico brasileiro, e a “correção” de US$ 1,5 trilhão destinada à Bolsa norte-americana momentaneamente abalaram a crença na nova dispensação. Mas a fé é fortificada pela adversidade, e o Deus-Mercado está emergindo renovado de sua provação pelo “contágio” financeiro. Já que a prova teleológica da existência de Deus não mais se sustenta, o mercado está tornando-se uma divindade pós-moderna — na qual se crê apesar da evidência. Alan Greenspan vindicou esta sóbria fé em seu pronunciamento semestral no Congresso em outubro passado.2 Um dos principais fundos de hedge acabara de perder bilhões de dólares, o que estremecera a confiança do mercado e precipitara apelos à nova regulação federal. Costumeiramente délfico em seus comentários, Greenspan foi decisivo. Ele acreditava que a 1 Entre os protestantes, período em que os homens são experimentados quanto à sua obediência a alguma revelação especial da vontade de Deus (Aurélio). Tradicionalmente, são sete as dispensações. No artigo, o termo pode ser entendido como “um novo sistema religioso” (Webster). [N.T.] 2 Outubro de 1998. [N.T.] 1 regulação iria apenas estorvar esses mercados, e que por isso eles deveriam continuar a ser autoregulamentados. A fé verdadeira, diz São Paulo, é a evidência das coisas não vistas. Logo comecei a maravilhar-me de quão compreensiva é a teologia dos negócios. Havia até sacramentos para transmitir o poder de salvação aos que haviam se perdido, um calendário de santos empreendedores, e o que os teólogos denominam “escatologia” — um ensinamento sobre o “fim da história”. A minha curiosidade tinha sido despertada: passei a catalogar essas doutrinas estranhamente familiares e vi que, de fato, inserida nas páginas de negócios encontra-se uma completa teologia que é comparável em âmbito de estudo, se não em alcance, à teologia de Tomás de Aquino ou à de Karl Bath. Precisava somente ser sistematizada para surgir uma Summa inteiramente nova * * * No ápice de todo sistema teológico, evidentemente, está seu princípio de Deus. Na nova teologia este pináculo celestial está ocupado pelo Mercado, que escrevo com maiúscula para denotar o mistério que o cerca e a reverência que ele inspira na gente do business. Crenças diversas possuem, naturalmente, diferentes pontos de vista acerca dos atributos divinos. No Cristianismo, Deus foi definido algumas vezes como onipotente (possuindo todo o poder), onisciente (possuindo todo o conhecimento) e onipresente (existindo em toda parte). A maioria das teologias, decerto, é um tanto ambígua: ensinam que essas qualidades da divindade estão lá, com efeito, mas estão ocultas aos olhos humanos tanto pelo pecado humano como pela própria transcendência do divino. Como o velho cântico religioso assinala, estão na “luz inacessível”, “invisíveis aos nossos olhos”. Analogamente, embora o Mercado possua esses atributos divinos — disso estamos certos —, nem sempre estão eles completamente evidentes aos mortais. Não obstante, devem ser acreditados e confirmados pela fé. Como proclama outro cântico, “mais tarde entenderemos o por quê”. Ao tentar seguir os argumentos e as explicações dos economistas-teólogos que justificam os caminhos do Mercado aos homens, distingui a mesma dialética a que eu me afeiçoara nos muitos anos em que ponderei sobre os Tomistas, os Calvinistas e as várias escolas de pensamento religioso moderno. A retórica econóloga assemelha-se ao que é habitualmente chamado de “teologia processual”, uma tendência relativamente contemporânea influenciada pela filosofia de Alfred North Whitehead. Nessa escola, conquanto Deus deseja possuir os atributos clássicos, Ele ainda não os possui em sua totalidade, mas está indiscutivelmente caminhando nessa direção. Essa conjectura é de imensa valia para os teólogos por razões óbvias. Ela responde ao importuno enigma da teodicéia:3 por que acontecem tantas coisas más que um Deus onipotente, onipresente e onisciente — especialmente um Deus benevolente — não aprovaria? A teologia processual também parece 3 Conjunto de argumentos que, em face da presença do mal no mundo, procuram defender e justificar a crença na onipotência e suprema bondade do Deus criador, contra aqueles que, em vista de tal dificuldade, duvidam de sua existência ou perfeição (Houaiss). A doutrina religiosa de Leibniz, pioneira nessa área, foi criticada por Voltaire na novela Cândido. [N.T.] 2 oferecer considerável conforto aos teólogos do Mercado: ajuda a explicar a perturbação, o sofrimento e a desorientação que são o resultado das transições da heterodoxia econômica aos mercados livres. * * * Desde os primeiros estágios da história humana existiram locais de comércio, feiras e entrepostos comerciais — todos mercados. Mas o Mercado nunca foi Deus, porque havia outros centros de valor e significado, outros “deuses”. O mercado operava no interior de uma superabundância de outras instituições que, por sua vez, restringiam-no. Como Karl Polanyi demonstrou em sua clássica obra A Grande Transformação, somente nos dois últimos séculos o Mercado elevou-se acima desses semideuses e espíritos sobrenaturais para se tornar a Causa Primária de nossos dias. Inicialmente, a elevação do Mercado à supremacia olímpica refletiu a gradual ascensão de Zeus acima de todas as outras divindades do antigo panteão grego, uma ascensão que nunca foi muito segura. Zeus teve de manter-se estrondeando e ribombando do alto do Olimpo para sufocar essa ou aquela ameaça à sua soberania. Recentemente, no entanto, o Mercado está convertendo-se no Jeová do Velho Testamento — não uma mera deidade superior pelejando com as outras mas a Deidade Suprema, o único Deus verdadeiro, cujo reino deve agora ser universalmente aceito, e que não admite rivais. Onipotência divina significa a capacidade de definir o que é real. É o poder de fazer do nada algo e nada de algo. A desejada-mas-ainda-não-alcançada onipotência do Mercado significa que não há limites concebíveis à sua inexorável habilidade de converter a Criação4 em mercadorias. Uma vez mais, todavia, dificilmente essa é uma idéia original, embora ela agora se apresente com uma nova peculiaridade. Na teologia católica, por meio do que é designado “transubstanciação”, pão e vinho comuns transformam-se em veículos do sagrado. No âmago do Mercado ocorre um processo reverso. Coisas que eram tidas por sagradas transmutam-se em artigos intercambiáveis para venda. A terra é um bom exemplo. Por milênios ela assumiu várias significações, muitas das quais religiosas: já foi Mãe Terra, sepultura ancestral, montanha sagrada, floresta encantada, torrão natal tribal, inspiração estética, solo sagrado e muito mais. Mas quando toca a sineta do Mercado e as santas espécies5 são elevadas, todos esses significados complexos fundem-se em um só: bens imobiliários. Ao preço certo não há terra invendável, e isso inclui tudo, dos cemitérios ao esconderijo do espírito local da fertilidade. Essa radical dessacralização altera dramaticamente o relacionamento do homem com a terra. O mesmo ocorre com a água, com o ar, com o espaço e, em breve — assim o é anunciado — com os corpos celestes. 4 5 O conjunto dos seres criados por Deus. [N.T.] Isto é, o pão e o vinho na transubstanciação. [N.T.] 3 No auge da missa o padre diz, “este é o meu corpo”, referindo-se ao corpo de Cristo e, por extensão, aos corpos de todos os fiéis. Cristianismo e Judaísmo igualmente ensinam que o corpo humano é feito “à imagem de Deus”. Agora, porém, numa estonteante mostra de transubstanciação reversa, o corpo humano tornou-se o último receptáculo sagrado a ser convertido numa mercadoria. O processo teve início, apropriadamente, com o sangue. Mas agora, se não logo, todos os órgãos corporais — rins, pele, medula, esperma, o próprio coração — transformar-se-ão, miraculosamente, em artigos compráveis. A liturgia do Mercado, contudo, não prossegue sem certa oposição dos fiéis tradicionais. Por exemplo, toma forma nos Estados Unidos uma ruidosa batalha a respeito da tentativa de se comercializar genes humanos. Há poucos anos, reunindo-se pela primeira vez — um feito inédito —, virtualmente todas as instituições religiosas do país, do liberal Conselho Nacional de Igrejas aos bispados católicos e à Coalizão Católica, opuseram-se ao empório de genes, a nova teofania6 do Mercado. Mas esses críticos são seguidores do que agora se considera “velhas religiões”, que, à maneira dos cultos das deidades que floresciam quando a adoração ao vigoroso e jovem Apolo começou a varrer a Grécia Antiga, podem não ter energia suficiente para conter a marcha da nova devoção. De quando em quando, apóstatas tentam morder a Mão Invisível que os alimentava. Em 26 de outubro de 1996, o governo alemão publicou um anúncio pondo à venda todo o vilarejo de Liebenberg, localizado no que fora a Alemanha Oriental — sem aviso prévio aos seus cerca de 350 habitantes. Os cidadãos de Liebenberg, muitos dos quais idosos ou desempregados, receberam a notícia boquiabertos. Eles certamente abominaram o comunismo, mas quando optaram pela economia de mercado, prometida pela reunificação, dificilmente esperavam algo assim. Liebenberg consta de uma igreja do século XIII, um castelo no estilo barroco, um lago, um pavilhão de caça, dois restaurantes e 3.000 acres de prados e florestas. Local preferido pela antiga nobreza alemã para a caça do javali, evidentemente era em sua totalidade um imóvel muito valioso para se descuidar. Ademais, uma vez expropriada pelo governo comunista da Alemanha Oriental, estava agora legalizada para a venda, de acordo com os termos da reunificação alemã. Da noite para o dia Liebenberg tornou-se uma parábola viva, fornecendo uma rápida visão do Reino em que a vontade do Mercado realizar-se-á verdadeiramente. Os ultrajados habitantes do vilarejo, porém, não se sentiram particularmente abençoados. Eles protestaram ruidosamente e a venda, finalmente, foi adiada. Todos na cidade perceberam, entretanto, que não se tratava de uma vitória de fato. O Mercado, assim como Jeová, pode perder uma batalha, mas numa guerra de atrito, ao fim, sempre vencerá. Certamente, no passado, a religião não relutou em cobrar por seus serviços. Preces, missas, bênçãos, curas, batismos, funerais e bentinhos eram vendidos, e ainda o são. Tampouco a religião esteve sempre atenta quanto às possíveis repercussões desse tráfico. No século XVI, quando 6 Manifestação de Deus. [N.T.] 4 Johannes Tetzel7 elevou os preços das indulgências e, sobretudo, quando elaborou um dos primeiros anúncios cantados para alavancar as vendas (“Quando a moeda no prato cai, a alma do purgatório sai”),8 foi incapaz de perceber que exagerava na dose. Os clientes escassearam e um jovem monge agostiniano, com um cartaz afixado às portas de uma igreja, provocou uma total interrupção do comércio. Seria consideravelmente mais difícil para Lutero interromper hoje as vendas de bentinhos do Mercado. Tal como os habitantes de Liebenberg descobriram, tudo agora pode ser comprado. Lagos, prados, edifícios da igreja — todas as coisas portam uma etiqueta de preço. Mas essa prática tem, ela mesma, um preço. À medida que tudo o que costumeiramente se chamava de Criação converte-se em mercadoria, seres humanos passam a olhar uns aos outros, e a si mesmos, de uma maneira engraçada, e notam etiquetas de preço coloridas. Outrora se falava, ainda que ocasionalmente, de “valor inerente” — se não das coisas, ao menos das pessoas. O princípio de Liebenberg altera tudo isso. Cabe perguntar o que seria de um Lutero moderno que tentasse afixar suas teses às portas da igreja, unicamente para descobrir que o edifício inteiro fora comprado por um bilionário americano que avaliara que a construção ficaria melhor figurando em suas propriedades. É reconfortante reconhecer, pelo menos, que os cidadãos de Liebenberg não foram postos à venda. Mas isso suscita uma boa questão: qual é o valor da vida humana na teologia do Mercado? Nesse ponto, a nova divindade detém-se, mas não por muito tempo. O cálculo pode ser complexo, porém não é impossível. Não devemos acreditar, por exemplo, que se uma criança nasce severamente deficiente, incapaz de ser “produtiva”, o Mercado decretará sua morte. Cumpre lembrar que os lucros provenientes de medicamentos, aparelho de correção para pernas, e máquinas de raios-X de última geração devem também constar na equação. Tal análise de custo pode resultar em um número aproximado — mas o valor inerente da vida de uma criança, desde que não pode ser quantificado, seria mais difícil de ser incluído na conta. Uma vez que, sob a lei do Mercado, tudo está à venda, diz-se amiúde que nada é sagrado. Mas isso não é bem verdade. Há cerca de três anos irrompeu uma sórdida controvérsia na GrãBretanha quando um fundo de pensão ferroviário que possuía um pequeno escrínio adornado com jóias em cujo interior se afirmava repousar os restos mortais de São Tomas Becket9 decidiu levá-lo a leilão por meio da Sotheby’s. O escrínio data do século XII e é venerado a um só tempo como uma relíquia sagrada e como um tesouro nacional. O British Museum diligenciou sua compra mas lhe faltaram os fundos, de sorte que o escrínio foi vendido a um canadense. Somente medidas de última hora tomadas pelo governo britânico impediram a saída do escrínio do Reino Unido. Em 7 Dominicano alemão (1465-1519). Suas pregações sobre as indulgências provocaram os protestos de Lutero (Enciclopédia Koogan-Houaiss) [N.T.] 8 No original em inglês: “When the coin into the platter pings, the soul out of the purgatory springs”. [N.T.] 9 Prelado e político inglês (1117-1170). Chanceler da Inglaterra, posteriormente arcebispo de Canterbury, defendeu o clero contra o rei, entrando em conflito com Henrique II. Declarado traidor, foi assassinado por instigação do rei. (Enciclopédia Koogan-Houaiss) [N.T.] 5 princípio, no entanto, na teologia do Mercado não há razão para que nenhuma relíquia, ataúde, corpo ou monumento nacional deixem de ser incluídos nessa lista — nem sequer a Estátua da Liberdade ou a Abadia de Westminster. Alguém duvida que, se a cruz em que Jesus foi crucificado for de fato encontrada, ela será conduzida, ao fim, à Sotheby’s? O Mercado não é onipotente — ainda. Mas o processo está em marcha e ganha ímpeto. * * * Onisciência é um pouco mais difícil de avaliar que onipotência. Talvez o Mercado já a tenha atingido, mas está impossibilitado — provisoriamente — de aplicar sua gnose até que seu Reino e Poder surjam em toda a sua glória. O pensamento atual, todavia, já atribuiu ao Mercado uma vasta sabedoria que, no passado, só foi conhecida pelos deuses. O Mercado — assim somos doutrinados — é capaz de determinar quais são as necessidades humanas, quanto o cobre e o maquinário devem custar, quanto barbeiros e diretores executivos de grandes corporações devem receber, e a que preços aviões a jato, sapatos de corrida e cirurgias de histerectomia devem ser vendidos. Mas como nós descobrimos a vontade do Mercado? Em tempos passados, os videntes entravam num estado de transe e informavam aos suplicantes qual o humor em que os deuses se encontravam, indicando se o momento era auspicioso para começar uma jornada, casar-se ou deflagrar uma guerra. Os profetas de Israel entranhavam-se no deserto e, após certo tempo, retornavam para anunciar se Jeová estava sentindo-se benevolente ou colérico. Hoje a instável vontade do Mercado é esclarecida por relatórios diários provindos de Wall Street e de outros órgãos financeiros sensitivos. Dessa maneira, por meio de um acompanhamento diário, podemos saber se o Mercado encontra-se “apreensivo”, “acalmado”, “nervoso”, ou mesmo “exultante”. Com base nessa revelação, adeptos infundidos de respeito fazem decisões cruciais sobre comprar ou vender. Tal como os vorazes deuses do passado, o Mercado — apropriadamente corporificado num touro ou num urso10 — deve ser alimentado e mantido contente sob todas as circunstâncias. Com efeito, algumas vezes seu apetite pode parecer excessivo — um socorro financeiro de US$ 35 bilhões aqui, outro de US$ 50 bilhões acolá — mas a alternativa de aplacar sua fome é muito terrível para ser contemplada. Os adivinhos e videntes do estado de espírito do Mercado são os sumo-sacerdotes dos mistérios da deidade. Agir contra suas admoestações é correr o risco da excomunhão e, possivelmente, da condenação eterna. Hoje, por exemplo, se qualquer política governamental perturba o Mercado, os responsáveis pela irreverência irão sofrer. Que o Mercado não se incomode nem um pouco com um downsizing nem com a crescente concentração de renda norte-americana, ou que se mostre entusiasmado com a expansão das vendas de cigarro aos jovens asiáticos não 10 Figuras que, nas bolsas norte-americanas, representam, respecticamente, períodos de alta nos preços das ações (Bull Market) ou de longa e prologada queda nesses preços (Bear Market). Há, próxima à bolsa de Nova York, uma estátua em bronze de um touro. [N.T.] 6 devem ser motivos para questionar sua onisciência suprema. Assim como a insondável deidade de Calvino, o Mercado pode trabalhar de modo misterioso, “invisível aos nossos olhos”, porém, em última análise, seu conhecimento é melhor do que o nosso. Por vezes, a Onisciência pode parecer um tanto intrometida. O Deus tradicional do Livro de Orações11 é invocado como Aquele “a quem todos os corações estão abertos, todos os desejos se revelam, e de quem nenhum segredo se esconde”. Assim como Ele, o Mercado já conhece os segredos mais profundos e os desejos mais obscuros de nossos corações — ou, ao menos, gostaria de sabê-los. Suspeita-se, contudo, que a motivação divina se diferencie nesses dois casos. Certamente, o Mercado ambiciona essa Onisciência tomográfica porque, ao sondar nossos mais íntimos medos e anseios e, com isto, oferecer respostas abrangentes e indiscriminadas, ele pode ampliar ainda mais seu alcance. Tal como os deuses do passado que possuíam sacerdotes para recolher e lhes ofertar as fervorosas preces e pedidos do povo, o Mercado conta com seus próprios intermediários: os pesquisadores motivacionais. Treinados na avançada arte da psicologia, que há muito suplantou a teologia como a legítima “ciência da alma”, as versões modernas dos confessores medievais penetram fundo nas fantasias secretas, apreensões e esperanças populares. Nessa era de religião do Mercado, vez por outra se pergunta para onde foram os céticos e livre-pensadores. O que aconteceu com os Voltaires que desmascaravam falsos milagres e os H. L. Menckens que botavam a boca no trombone perante pios embustes? O fato é que o domínio da atual ortodoxia é tamanho que questionar a onisciência do Mercado é pôr em dúvida a inescrutável sabedoria da Providência. O preceito metafísico é óbvio: se você diz que a coisa é assim, ela necessariamente deve ser assim. Como o teólogo cristão Tertuliano certa vez assinalou: “Credo quia absurdum est” (“Creio porque é absurdo”). * * * Finalmente, há o anseio da divindade por onipresença. Praticamente toda religião transmite essa idéia de uma forma ou de outra, e a nova religião não constitui exceção. A última tendência da teoria econômica é a tentativa de estender cálculos mercadológicos a áreas que antes se supunha isentas, tais como o flerte, a vida familiar, as relações matrimoniais e a criação dos filhos. Henri Lepage, um entusiasta defensor da globalização, fala que há hoje um “mercado total”. São Paulo fez os atenienses recordarem que seus próprios poetas cantavam um Deus em quem “temos a vida, o movimento e o ser”;12 analogamente, o Mercado está não só ao nosso redor mas dentro de nós, doutrinando nossos sentidos e nossos sentimentos. Parece não haver lugar para onde fugir de sua 11 12 Livro de ritual e orações da igreja anglicana. [N.T.] Atos 17:28. [N.T.] 7 perseguição infatigável. À maneira do Cão de Caça do Senhor,13 ele corre ao nosso encalço do comércio local até nossas casas e adentra no quarto das crianças e em nossos quartos de dormir. Acreditava-se — erroneamente, como se descobriu — que ao menos a mais íntima dimensão da vida — a dimensão espiritual — fosse resistente ao Mercado. Era improvável que a moradia interior fosse catalogada na lista de artigos do século XXI. Mas à proporção que os mercados tornam-se saturados, serenidade, tranqüilidade e outros estados de graça previamente não comercializados começam a constar nos catálogos. A sua própria busca pessoal pela revelação, caro leitor, pode realizar-se em desertos incólumes, descritos como praticamente inalcançáveis — exceto, presumivelmente, para as outras pessoas que leram o mesmo catálogo. Ademais, êxtase e espiritualidade são agora ofertados em uma forma conveniente, disponível para uso geral. Dessa maneira, o Mercado disponibiliza os benefícios religiosos que um dia requereram oração, jejum e abstinência, sem a inconveniência da obrigação confessional ou da enfadonha disciplina ascética que outrora limitavam sua obtenção. Sem grandes demandas de tempo, todos esses benefícios podem ser hoje facilmente comprados em um workshop num resort caribenho com uma consultora psicológica, tornando obsoleto aquele excêntrico superior que dirigia o retiro espiritual. * * * A descoberta da teologia do Mercado me fez ver de maneira diversa o conflito entre religiões. Freqüentemente, a violência entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte (Ulster) ou entre hindus e muçulmanos na Índia domina as manchetes dos jornais. Mas comecei a conjeturar que o verdadeiro choque de religiões (ou mesmo de civilizações) pode estar passando despercebido. Começo a pensar que para todas as religiões do mundo, em que pese suas diferenças, a religião do Mercado tornou-se seu mais formidável rival, tanto mais quanto é raramente reconhecida como uma religião. Como foi visto aqui, as religiões tradicionais e a religião do mercado global têm pontos de vista radicalmente opostos a respeito da natureza. No Cristianismo e no Judaísmo, por exemplo, “do Senhor é a terra e tudo o que ela contém, a órbita terrestre e todos os que nela habitam”.14 O Criador designa seres humanos como intendentes e jardineiros, mas mantém, por assim dizer, o título da terra. Outras crenças apresentam idéias semelhantes. Na religião do Mercado, no entanto, seres humanos, particularmente aqueles com dinheiro, são os donos de tudo o que compram e — dentro de certos limites — podem utilizar e gastar as coisas como quiserem. Outras contradições podem ser encontradas nas idéias sobre o corpo humano, sobre a natureza da comunidade humana e sobre o propósito da vida. As velhas religiões encorajam o estabelecimento de antiquados vínculos com certos lugares. Aos olhos do Mercado, porém, todos os lugares são comercializáveis. O 13 Imagem famosa na igreja protestante, cuja origem está no poema The Hound of Heaven, do escritor inglês Francis Thompson (1859-1907). No poema, um homem tenta manter-se distante de Deus mas seu esforço é inútil, pois O encontra a cada passo de sua vida. [N.T.] 14 Salmos 24:1. [N.T.] 8 Mercado prefere uma cultura mundial homogeneizada, com o menor número possível de particularidades inconvenientes. Desentendimentos entre religiões tradicionais parecem ninharia quando comparados com as diferenças fundamentais que elas todas têm com a religião do Mercado. Levarão essas divergências a uma nova jihad ou cruzada? Duvido-o. É improvável que as religiões tradicionais mostrem-se à altura da situação e desafiem as doutrinas da nova dispensação. A maioria delas parecem satisfeitas em se tornarem acólitas ou em serem absorvidas em seu panteão, da mesma forma que as deidades nórdicas que, após marcarem a luta, compuseram as desavenças e preferiram um módico mas seguro status de santos cristãos. Habitualmente, sou um ardente defensor do ecumenismo. As contradições entre as visões de mundo das religiões tradicionais e as da religião do Mercado todavia são tão profundas que nenhum entendimento parece possível, e alimento secretamente a esperança de um ressurgimento das polêmicas. Nenhuma religião, nova ou velha, está sujeita a provas empíricas; o que temos, portanto, é um embate entre crenças. Muito está em jogo nisso. O Mercado, por exemplo, ostensivamente prefere individualismo e mobilidade. Como necessita deslocar pessoas para onde a produção as requeira, fica furioso quando percebe apego às tradições locais. Esses valores pertencem às velhas dispensações e devem ser — à maneira das colinas onde o povo se entregava às práticas de idolatria para com Baal15 — destruídos. Mas talvez isso seja desnecessário: a exemplo das religiões precedentes, a nova tem maneiras engenhosas de incorporar as pré-existentes. Templos hindus, festivais budistas e santuários católicos podem ir antecipando novas formas de materialização. Ao lado de vestimentas e temperos nativos, eles serão admitidos para conferir cor local e autenticidade ao que de outra forma seria uma terra pouco significativa. Há, contudo, uma contradição que parece ser intransponível entre a religião do Mercado e as religiões tradicionais. Estas últimas afirmam, em conjunto, que os seres humanos são criaturas finitas e que há limites a todo empreendimento terreno. Um mestre zen japonês certa vez disse a seus discípulos enquanto expirava em seu leito de morte: “aprendi uma só coisa na vida: o quanto é o bastante”. Ele não encontraria lugar no templo do Mercado, pois para este o Primeiro Mandamento é “Nunca há o bastante”. Assim como o tubarão do provérbio que pára de mover-se, o Mercado que pára de expandir-se morre. Isso até que poderia acontecer. Caso aconteça, então, afinal de contas, Nietzsche estava certo: ele só tinha em mente o Deus errado. 15 Na Bíblia, todos os falsos deuses. [N.T.] 9