Congresso de Ciências Veterinárias [Proceedings of the Veterinary Sciences Congress, 2002], SPCV, Oeiras, 10-12 Out., pp. 35-38 Formação Contínua Especialidade em saúde pública veterinária Armando Carvalho Louzã Faculdade de Medicina Veterinária, Polo Universitário do Alto da Ajuda, 1300-410 Lisboa A intervenção dos Médicos Veterinários que tem por objectivo prevenir e controlar perigos físicos, biológicos e químicos com origem nos animais ou nos seus produtos, constitui o mais importante contributo (apesar de muitas vezes pouco destacado) das actividades destes profissionais na área da Saúde Pública. Foi a partir de meados do século XX, que a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu e consagrou a designação de Saúde Pública Veterinária para qualificar este âmbito da intervenção da profissão médico-veterinária que visa a protecção, o incremento e a manutenção da saúde das comunidades humanas. Na última década, devido às graves e preocupantes ocorrências, de que são exemplos a BSE, as dioxinas, as antibiorresistências ou os resíduos químicos nos alimentos, foram as áreas que mais directamente intervêm na cadeia alimentar - como são as relacionadas com a saúde das populações animais e com a higiene e segurança dos alimentos - as que tomaram particular relevância e passaram a ser enquadradas numa perspectiva operacional mais integradora e global. Este recente despertar para a velha realidade de que não há alimentos salubres e seguros se não provierem de animais saudáveis, alertou as autoridades competentes nacionais e transnacionais e a sociedade em geral, para a importância decisiva dos alimentos, desde a sua origem ao modo como são consumidos, na saúde humana. É assim que, a nível internacional, dois acontecimentos decisivos marcaram aquele despertar. Por um lado, em 1999, inicia-se a reformulação e a re-orientação de toda a política da União Europeia visando a segurança dos alimentos, através da apresentação e da discussão pública do Livro Branco sobre a "Segurança dos Alimentos" (COM(1999) 719 Final/CCE). Esta transformação legislativa fica assinalada com a preparação e a promulgação de uma importante peça do novo quadro normativo deste sector, de que é exemplo a entrada em vigor da recente "Lei dos Alimentos" (Regulamento (EC)178/2002, de 28 de Janeiro). Outro marco a destacar foi a decisão tomada pela 53ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, reunida em Lyon (França) em Maio de 2000, de eleger e de recomendar a todas as tutelas dos países membros a segurança dos alimentos, como tema prioritário e essencial na salvaguarda da saúde das comunidades (WHA53.15/VR/8, 20 Maio 2000). O novo ambiente conceptual (privilegiando a percepção atempada dos perigos ao longo de toda a cadeia alimentar, a co-responsabilização dos produtores, a decisão baseada no aconselhamento científico independente e na análise de risco e a adequada informação aos consumidores) e o facto de haver urgência em adaptar ao comércio dos alimentos, em imparável universalização, a aplicação dos princípios da coerência, da transparência e da harmonização nas trocas comerciais, modificaram radicalmente o contexto tradicional de actuação profissional neste sector económico. A necessidade de recursos humanos capacitados científica e profissionalmente para responder às crescentes atenção e exigência que os consumidores passaram a dar à intervenção das autoridades competentes e dos agentes económicos (produtores, transformadores e distribuidores), quer no mercado interno quer no comércio internacional, incentivou a promoção de iniciativas Congresso de Ciências Veterinárias [Proceedings of the Veterinary Sciences Congress, 2002], SPCV, Oeiras, 10-12 Out., pp. 35-38 europeias e nacionais por parte de associações profissionais (ex. Ordens e Federações Europeias) ou científicas (AEEMA, SVEPM) no sentido de responder eficazmente àqueles desafios. É assim que surgem na Europa, na segunda metade da última década, várias iniciativas de criação de Colégios de Especialidade no âmbito da profissão veterinária com intervenção neste sector económico, visando agrupar, harmonizar e tornar mais coerente o método e o tipo de intervenção dos Médicos Veterinários nos diferentes segmentos da cadeia alimentar. Com objectivos muito similares, destacaram-se duas iniciativas independentes que procuraram organizar as duas grandes áreas históricas de intervenção da profissão no sector. Uma, de grupos de profissionais dedicados ao estudo, à caracterização e à proposta de alternativas de prevenção e de manutenção do estado de saúde dos efectivos animais (área designada, muitas vezes, de Sanidade Animal ou de Medicina Veterinária Preventiva). Outra, de grupos profissionais preocupados em prevenir e controlar a entrada na cadeia alimentar de carnes insalubres, avariadas ou defeituosas e em garantir a salubridade e a genuinidade dos produtos transformados, ou de qualquer forma processados, nos últimos segmentos daquela cadeia (áreas de Inspecção Sanitária e de Higiene dos Alimentos ou mais genericamente conhecidas como de Higiene Pública Veterinária). Na sequência lógica das razões anteriormente apontadas, como condicionantes da profunda modificação dos conceitos e dos contextos profissionais exigidos à intervenção e à responsabilização dos Médicos Veterinários que actuam em diferentes segmentos da cadeia alimentar, a entidade independente de acreditação dos Colégios de Especialidade Veterinária na Europa - o European Board of Veterinary Specialisation (EBVS) - recomendou, face aos dois pedidos para constituição independente de colégios de especialidade naqueles domínios profissionais, a constituição de uma única associação de especialistas. É assim que, em Maio de 2001, após laboriosas mas bem sucedidas discussões entre os dois grupos proponentes, o EBVS aprovou os estatutos do novo Colégio Europeu de Saúde Pública Veterinária (ECVPH), integrando duas sub-especialidades - Medicina das Populações e Ciência dos Alimentos. Na primeira reunião do Colégio, que teve lugar em Viena (Áustria) em Setembro de 2001, foram entregues aos 34 membros fundadores os respectivos diplomas de especialistas “de facto”. Presentemente, o ECVPH é constituído por cerca de 60 especialistas "de facto", oriundos de onze diferentes países, cujas candidaturas foram analisadas e aprovadas de acordo com critérios definidos pelo Conselho Interino (núcleo fundador, integrado por seis consagrados especialistas europeus das duas sub-especialidades) e ratificados pelo EBVS. Os critérios estabelecidos para aceitação de candidaturas a especialistas "de facto", apenas possível nesta fase de organização do Colégio, até finais de 2004, são os seguintes: • Estar autorizado a exercer Medicina Veterinária em qualquer país da Europa • Ter pelo menos dez anos de experiência em Saúde Pública Veterinária • Passar pelo menos 25 horas por semana em actividades relativas à Saúde Pública Veterinária • Ter publicado pelo menos três artigos como primeiro autor em revistas reconhecidas internacionalmente e na especialidade correspondente e pelo menos outros três artigos que não sejam resumos de congressos. Outras publicações e relatórios não publicados podem ser tidos em conta. Após 2004, a admissão ao ECVPH será apenas possível através de uma candidatura que inclui a apreciação curricular, a avaliação da casuística apresentada e um exame escrito e oral da respectiva sub-especialidade. Os detalhes do programa de formação básico e o respectivo sistema de créditos a utilizar estão presentemente a ser ultimados para aprovação pelo Colégio. Está ainda Congresso de Ciências Veterinárias [Proceedings of the Veterinary Sciences Congress, 2002], SPCV, Oeiras, 10-12 Out., pp. 35-38 previsto que, de cinco em cinco anos, todos os membros do Colégio tenham de submeter os seus curricula a uma apreciação obrigatória que precede a revalidação do respectivo título. Em Portugal, coube à Ordem dos Médicos Veterinários (OMV), através de várias iniciativas desenvolvidas ao longo da década passada, preparar e fazer aprovar, em Maio de 2000, o "Regulamento de Especialidade em Medicina Veterinária". Nele são definidos os conceitos de especialidade e de especialista em Medicina Veterinária, e o de Médico Veterinário Qualificado. São também regulamentados e criados (para além de outros que possam vir a ser reconhecidos pela OMV) três Colégios de Especialidade em: • Animais de Companhia e de Desporto • Animais de Produção e Renda • Saúde Pública e Sanidade Animal Por proposta do Conselho Profissional e Deontológico, foram nomeadas pela OMV Comissões Instaladoras daqueles três Colégios de Especialidade que desde inicio de 2001 trabalham na preparação dos respectivos regulamentos, nos critérios de admissão e de manutenção do título, e nos programas de formação geral e específica indispensáveis à constituição dos Colégios e à possibilidade de promoção científica e técnica dos futuros candidatos. No caso específico do Colégio de Saúde Pública e Sanidade Animal, para o qual já existe uma proposta de alteração da designação para “Colégio de Especialidade em Saúde Pública Veterinária” de modo a utilizar como referência o modelo europeu, os objectivos do Colégio são os de organizar, de promover e de garantir a superação científica, técnica e profissional dos Médicos Veterinários com intervenção e impacto na Saúde Pública, relevando especial destaque para as intervenções profissionais na cadeia alimentar. Por esse facto, este Colégio nacional prevê também integrar duas sub-especialidades Medicina das Populações e Higiene dos Alimentos. Presentemente, estão em preparação documentos para serem discutidos e sancionados pelo Conselho Profissional e Deontológico da OMV que se referem ao sistema de créditos a utilizar e que passa pelo estabelecimento de uma grelha de critérios a que deverão obedecer as acções de formação orientadas para a especialização (ex. matérias leccionadas, n.º de horas, habilitação dos formadores, condições do local de formação, credibilidade do sistema de avaliação, etc). A outro plano, é necessário estabelecer os programas de formação que incluem os elementos curriculares comuns e específicos relativos às duas sub-especialidades. Neste domínio, importa igualmente acautelar a existência de uma bolsa de oferta de formação acreditada que viabilize não apenas a progressão dos planos individuais de especialização dos futuros candidatos mas que garanta, no futuro, a permanente actualização e o contínuo aperfeiçoamento científico e técnico dos já qualificados ou especializados. São, ainda, considerados como indispensáveis protocolos de colaboração da OMV com várias instituições, públicas e privadas, com capacidade instalada e disponível para orientarem e facultarem os meios de viabilização dos programas de formação dos futuros candidatos a especialização. Prevê-se que, numa primeira fase, estes sejam sobretudo os candidatos ao título de Médico Veterinário Qualificado e, posteriormente, os futuros candidatos ao Colégio de Especialistas em Saúde Pública Veterinária.