V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA EM BUSCA DA CONSAGRAÇÃO ARTÍSTICA: ESTRATÉGIAS DE MÚSICOS INDEPENDENTES NO SITE MYSPACE Liliane de Lucena ITO1 Universidade Estadual Paulista (Unesp-Bauru, SP) Grupo 5 – Mídia, Música e Convergência Tecnológica Resumo Diante das novas tecnologias de comunicação e informação, músicos independentes podem, hoje, tanto produzir quanto disseminar suas produções de maneira mais democrática, sem ter que necessariamente estar vinculados à indústria fonográfica. Vivemos numa fase de convergência midiática e cultural e, cientes de que o consumo de música também mudou, tais artistas buscam no ambiente do site MySpace um canal gratuito e acessível de divulgação de seu trabalho, sob a expectativa de um alcance nacional (ou global) e de repercussões que ultrapassem limites geográficos, financeiros e mercadológicos. Este artigo expõe os apontamentos principais da dissertação de mestrado da autora e atualiza aspectos referentes ao site MySpace (objeto de pesquisa), uma vez que em junho de 2013 houve uma reformulação profunda em seu funcionamento, entretanto, com a preservação de algumas de suas características essenciais. Palavras-chave: MySpace, músicos independentes, intermediários culturais, música digital O MySpace como um subcampo de consagração artística Bourdieu (2008) considera que a sociedade é permeada por diversos campos e cada um deles possui sua natureza própria de funcionamento, com regras e leis que lhe são válidas. Para o autor, no caso do campo cultural, a consagração artística estaria atrelada a lutas constantes pelo poder entre aqueles que buscam o reconhecimento. A figura do intermediário cultural, nesse contexto, se coloca como fundamental nos processos de legitimação artística. É ela quem atesta o valor de uma obra ou artista e pode ser relacionada a profissionais como produtores musicais, editores especializados, críticos de música e, atualmente, até mesmo blogueiros formadores de opinião. Isto porque é preciso lembrar que, mesmo sem vislumbrar a fase mundialmente conectada e de convergência cultural e midiática que se testemunha hoje, Bourdieu já atentava para o fato de que a 1 Mestra em Comunicação Midiática pela Unesp-Bauru. E-mail: [email protected] 1 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA atribuição de valor está totalmente ligada ao funcionamento de cada campo e, desta forma, é passível de atualizações, como a figura dos intermediários culturais em cada época: (...) o que faz as reputações não é (...) a “influência” de fulano ou sicrano, esta ou aquela instituição, revista, publicação semanal, academia, cenáculo, marchand, editor, nem sequer o conjunto do que, às vezes, se chama de “personalidades do mundo das artes e das letras”, mas o campo da produção como sistema das relações objetivas entre esses agentes ou instituições e espaço das lutas pelo monopólio do poder de consagração em que, continuamente, se engendram o valor das obras e a crença neste valor (BORDIEU, 2008, p. 25) Sendo assim, o poder de um determinado agente seria algo mutável, dinâmico, como um crédito temporário a ele atribuído e pelo qual ele também necessita lutar constantemente. Para isso, ele precisa conhecer e obedecer às regras implícitas no campo onde atua. Ao salientar as diferenças entre os campos artísticos de alta cultura e o da indústria cultural, Bourdieu lembra que, assim como o público consumidor é díspar em ambos os casos, o intermediário cultural também o é, sendo que no campo de produção cultural popular o que vale é o reconhecimento do grande público: a demanda “é externa, social e culturalmente inferior” (BOURDIEU, 2008, p. 151). Atualmente, tanto as mídias tradicionais, unidirecionais e passivas, quanto as contemporâneas, colaborativas e interativas, coexistem, conversam e, em alguns momentos, colidem. Estamos inseridos em um momento de transformação, onde novos sistemas de distribuição tendem a interagir com antigos de maneiras cada vez mais complexas. Este é um dos pontos da chamada convergência midiática. Entretanto, a convergência não está circunscrita à relação entre mídias velhas e atuais. Jenkins (2008), salienta que este é um fenômeno de dimensão muito maior do que o puramente tecnológico, uma vez que acontece na mentalidade de cada pessoa e também em interações sociais com outros indivíduos. Por convergência refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais (...) (JENKINS, 2008, p. 27) 2 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA Para o autor, a convergência de mídia implica em mudanças tanto na forma de produzir quanto na forma de consumir informação. Na cibercultura, a ação de internautas participativos tem tornado evidente que a voz ativa proporcionada e amplificada pelas novas tecnologias e pela sociedade em rede pode se transformar em um poderoso intermediário cultural. Sem face, sem assinatura, sem contrato, sem pagamento formal, mas que, em uníssono, representa um agente cultural tão importante (ou até mais) do que aqueles que por muito tempo detiveram o poder de disseminar seus escolhidos (como majors e suas apostas: bandas, músicos, melodias, composições). Com o diferencial de, agora, esta intermediação cultural estar na atribuição de valor oriunda de coletivos com afinidades e informações em comum. Parte-se, então, do pressuposto de que, na atualidade, a figura do intermediário cultural se amplia para os coletivos colaborativos em rede na internet. Exemplos de artistas outrora independentes que souberam conquistar um fandom (coletivo de fãs) apaixonado existem no Brasil e no exterior. É a partir da popularidade gerada por esse fandom que o interesse da mídia inicia o ciclo de consagração artística e abre o caminho para que o artista independente ganhe ainda mais visibilidade, inclusive fora dos terrenos virtuais. No Brasil, dois casos emblemáticos de artistas outrora independentes que alcançaram a legitimação popular a ponto de se lançarem comercialmente no mercado fonográfico são o da cantora Mallu Magalhães e o da banda Restart. Em comum, eles têm o fato de iniciarem suas divulgações no site MySpace. Este, por sua vez, traz em seu funcionamento protocolos únicos que atestam a aceitação de seus usuários diante do que é nele veiculado – e, sendo assim, defende-se que o site pode ser considerado um subcampo de consagração musical. Mallu e Restart: do MySpace para o mainstream É importante ressaltar que a versão analisada do MySpace neste estudo é anterior à mais atual (que entrou em vigor em 11 de junho de 2013 no mundo todo). Entretanto, certas características se mantiveram, como a possibilidade de um artista independente competir por audições e ganhar posições no ranking interno do site, além da manutenção do mesmo como rede social. Foram eliminados da versão anterior opções como blogs pessoais, fotologs e games. O layout foi inteiramente reformulado e explora muito mais as imagens do que antes. Houve 3 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA uma simplificação no sistema de busca (basta digitar algo na tela e automaticamente o sistema procura termos relacionados ao conteúdo). Incluiu-se um player em que facilmente é possível fazer uma conexão com uma música ou artista, bem como tecer comentários a respeito e se conectar a outros usuários que gostem do mesmo som. Entretanto, apesar das dramáticas reformulações de layout e de sistema (que, sem dúvida alguma, melhoraram a navegação e a usabilidade do site que, agora, se assemelha a uma rádio customizada on-line), o que interessa a esta pesquisa é voltar as atenções ao rankeamento de artistas cadastrados no MySpace. Adiante, serão expostas as principais modificações observadas neste novo ambiente mas, agora, será evidenciado como o ranking do MySpace pode ser especialmente interessante a artistas independentes que buscam a consagração artística popular e comercial. Basicamente, há dois tipos de perfis no MySpace (de usuários não-músicos e usuários músicos). A característica que os distingue é o player de canções. É por meio dele que o artista disponibiliza o áudio de suas faixas a serem ouvidas via streaming. Não é preciso ter nenhum pré-requisito para criar um cadastro no MySpace, nem pagar qualquer taxa. A gratuidade da plataforma, que permite ao usuário músico disponibilizar várias faixas de autoria própria, além de itens como agenda de shows, fotos e vídeos, tornou o site uma boa opção para artistas independentes. É possível customizar alguns itens das páginas pessoais e, portanto, até mesmo a identidade visual pode ser ali mostrada. Há a sincronização com redes sociais, como Twitter, Facebook e YouTube e, portanto, o que é colocado no MySpace tem chances de transitar em outros canais de mídia, seja via o próprio autor como também por meio de compartilhamentos de seus ouvintes/espectadores. Existe um ranking interno do site que coloca os artistas mais acessados/ouvidos em destaque. Essa parada do MySpace considera artistas por categorias e são determinadas através de um algoritmo que leva em consideração dois fatores: acessos ao perfil e streams (plays das músicas que estão no player do artista) durante as últimas 24 horas. “Logo, para um artista subir nas paradas, ele precisa promover seu perfil entre seus fãs e colocar o maior número de hits de autoria própria no player, pois quanto mais músicas o artista disponibiliza no seu perfil, maiores são as chances dele em acumular plays (streams)”, explica Marcelo Cataldi, diretor geral de publicidade da .FOX, empresa que administra o MySpace no Brasil 2. 2 Em entrevista a esta pesquisa feita por e-mail em janeiro de 2011. 4 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA As paradas diárias, no layout analisado, eram subdivididas em gênero e mostravam a porcentagem de crescimento de popularidade nas últimas 24 horas. Os gêneros eram: hip-hop, rock, pop, alternativa, country, indie, rap, R&B, metal, punk, hardcore, eletrônica, techno, reggae, latino, jazz, rock clássico, blues, folclórica, gospel e progressivo. Os nove artistas que mais se destacavam apareciam no topo do ranking, com links para suas páginas no MySpace. Era possível filtrar os dados por país e também por “tipo” de artista: os que tinham contrato com gravadoras (principais), os que tinham álbuns lançados por selos ou estúdios pequenos (indie) e os que ainda não possuíam nenhum tipo de assinatura de contrato (nãoassinado). Além do ranking de artistas, havia também o de músicas e o de vídeos. Assim, obviamente, artistas que conseguiam um bom volume de audições e visitações de suas páginas automaticamente subiam na parada e passavam a obter mais atenção do público. Em consequência, mais e mais usuários entravam em contato com suas músicas. Este foi o caso da banda Restart que iniciou a carreira com shows de pequeno porte em colégios e matinês na cidade de São Paulo. Após gravarem quatro canções em estúdio, de maneira independente, as faixas foram disponibilizadas no MySpace da banda, que já nasceu com identidade visual, idealizada por um dos integrantes com conhecimentos de design gráfico. Quem visitava o site encontrava, então, um grupo praticamente “completo”, com logotipo, perfil dos integrantes, canções, contato: Dessa vez, lembra o Pe Lu, “a gente já começou o nosso trabalho com planejamento. Marcamos o primeiro show da banda na Tribe House para um mês depois do lançamento na internet, para dar tempo de divulgar, a galera ouvir, conhecer e, quem sabe, ir até o show para nos conhecer”. O MySpace era, na época, o único site que os meninos podiam ter sem precisar pagar domínio ou contratar um programador. O Koba começou a estudar o funcionamento do MySpace e desenhou a página da Restart. Eles fizeram uma primeira sessão de fotos experimentais com uma amiga que estava começando a fotografar (...) (GIGLIOTTI, 2011, p. 43). A postagem das músicas aconteceu no dia cinco de agosto de 2008. Uma semana depois, o MySpace da Restart já alcançava os 10 mil plays, número impressionante para tão pouco tempo no site. Graças à divulgação dos garotos entre seu público já cativo dos primeiros shows paulistanos, o link da banda foi ganhando popularidade na rede mundial de computadores inclusive entre usuários que até então nunca haviam ouvido falar da Restart. No 5 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA final daquela semana, a banda ficou em primeiro lugar no Top 10 Brasil do MySpace e chegou a figurar na 36ª posição mundial. Figura 1. A parada diária do MySpace no modelo analisado: baseada em quantidade de acessos aos sites e o número de plays que cada artista consegue nas últimas 24 horas Para se manter popular no MySpace, a Restart contou com a ajuda de um coletivo de adolescentes apaixonado pela banda. Cientes do poder de seu fandom, todos os integrantes mantêm, até hoje, perfis atualizados e conversam com os fãs de maneira próxima. Sempre que possível, dão feedback a petições (como pedidos por shows em determinadas cidades) e alimentam os fãs de conteúdo novo (profissional e pessoal) constantemente. Assim, sempre nas primeiras posições do ranking, a Restart chamou a atenção de um produtor musical influente da indústria fonográfica. Por meio de uma amiga, funcionária da EMI Music Brasil, o MySpace da banda foi apresentado a Marcos Maynard, veterano do meio e ex-presidente de gravadoras como Sony, EMI, Abril Music e Polygram. Impressionado, ele decidiu assistir a um show dos garotos em São Paulo. Constatado o sucesso também na apresentação ao vivo, o empresário decidiu apostar as fichas no grupo que, hoje, tem mais de 500 produtos licenciados com sua marca, além de disco de platina e várias premiações conquistadas por votação popular. 6 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA Foi também por meio do MySpace que a cantora Mallu Magalhães passou a ser conhecida junto ao público. A diferença, em relação à Restart, é que o link para o perfil de Mallu circulou inicialmente entre um público de nicho e passou a ser pauta de blogs especializados, como o Don’t Touch My Moleskine (donttouchmymoleskine.com) e o Vitrola (vitrola.blogspot.com). A opinião de blogueiros sobre as quatro canções postadas no MySpace de Mallu eram, geralmente, nitidamente divididas entre aqueles que entendiam a garota como uma meninaprodígio e os que a consideravam uma farsa. Mallu, na época com 15 anos, ganhara de presente de aniversário do pai um valor em dinheiro para gravar quatro canções de sua autoria em estúdio. Depois de postar as faixas no MySpace, as músicas ficaram conhecidas primeiro no círculo de amigos da estudante e, depois, com a ajuda de um amigo influente, o perfil de Mallu passou a ganhar visibilidade e galgar posições no ranking. O amigo influente, na verdade seu melhor amigo na época, era Mané, apelido de Manoel Brasil Orlandi, então com 18 anos, neto de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ex-executivo da Rede Globo. Mané já havia agenciado algumas bandas anteriormente, mas a ação com Mallu foi realizada apenas na base da amizade, sem a pretensão de assinatura de contratos, acordos ou pagamento em dinheiro. Mané se considerava, no caso de Mallu, um “facilitador”. O “facilitador”, entretanto, foi de grande ajuda para Mallu. Todo artista popular em início de carreira sabe que a maior dificuldade é tornar sua obra conhecida entre um mundo de concorrentes, modismos e diante de uma mídia que acha mais seguro apostar sempre nos mesmos tipos de artista – os de hits. Entretanto, a sorte também esteve ao lado da garota, uma vez que foi ao acaso que Mané conseguiu mostrar suas músicas para um contato que traria uma boa exposição do som da cantora. Mané foi ao Tim Festival, como espectador, e na ocasião, em determinado momento, o “facilitador” pôde contar a Rafael Rossatto Bifi, ex-guitarrista da banda Bidê ou Balde e publicitário responsável por encontrar novos talentos musicais para publicidades diversas, sobre os talentos de Mallu. Dias depois, Rossato recebeu o link do MySpace de Mallu por e-mail, gostou, e ofereceu a oportunidade da música J1 ter o clipe financiado pela marca Levi’s . Proposta aceita, a mesma música seria depois vendida para a marca Vivo, que a exibiu em um dos seus 7 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA comerciais de telefonia móvel. A Vivo também adquiriu os direitos da canção Tchubaruba e a veiculou em outro comercial. Com o valor obtido na transação (que também fora intermediada por Rossato) foi possível financiar a gravação do primeiro CD independente de Mallu Magalhães. Antes da gravação do CD, vieram as participações em shows. Seu début nos palcos foi ao abrir o show da banda indie Vanguart, de quem Mallu é fã. Ao lado da banda Something Blue, a garota de ar tímido e que costumava, até então, tocar sem um repertório fixo definido, foi criando um público seu, interessado em sua persona intrigante: aos 15, consumidora e produtora de uma cultura bastante diferente da que a maior parte dos adolescentes consome e produz, vestida com figurinos folk e divulgando sua obra gratuitamente na internet. Reflexões Tais casos observados levam a crer que, atualmente, não é primordial haver a figura de um intermediário cultural tradicional no processo de consagração artística. Artistas independentes possuem um canal de divulgação que, por possuir um sistema de ranking específico e desvinculado de gravadoras, denota a aceitação popular de seu trabalho. A visibilidade alcançada no MySpace é a melhor propaganda e traz consigo a vantagem de atrair ainda mais ouvintes/espectadores interessados em descobrir um novo artista ou canção. Comparando-se à fase do mercado de hits exposto por Anderson (2006), a etapa atual é muito mais democrática a artistas independentes em nível mundial. O autor denomina o cenário contemporâneo como a economia da abundância, onde não há mais “gargalos” entre produtores e consumidores. Com a enorme variedade oferecida ao público, transforma-se não só o consumo, mas também a cultura. Não são mais apenas os hits que imperam: há a possibilidade de se apostar em nichos, e o mercado interessado nesses nichos pode ser tão interessante quanto o mercado dos hits. O autor coloca o termo “cauda longa” para designar exatamente o ponto numa curva de consumo onde não há intermediários entre quem oferece um produto e quem o consome. Para Anderson, o crescimento do comércio de música digital também é interessante para a indústria fonográfica. A não necessidade de se comprar um CD inteiro é positiva tanto para o consumidor quanto para as empresas, que não precisam mais dispor de armazenamento 8 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA físico de grande parte do acervo. A margem, na música digital, aumenta, já que esse tipo de custo não existe. Por isso, é possível encontrar nichos tão variáveis na música, hoje. Para o músico, a cauda longa abre portas. Se antes era uma barreira ter seu trabalho chancelado por uma gravadora e distribuído em grandes redes de varejo, hoje ele pode se lançar no MySpace. E, além disso, grandes lojas virtuais de música não apostam só nos sucessos de venda, pois sua capacidade de arquivamento não é limitado por questões de localidade e espaço físico. Esses novos negócios com espaço infinito nas prateleiras efetivamente aprenderam as lições da nova matemática: um número muitíssimo grande (os produtos que se situam na Cauda Longa) multiplicado por um número relativamente pequeno (os volumes de vendas de cada um) ainda é igual a um número muito grande. E, ainda mais uma vez, esse número muitíssimo grande está ficando cada vez maior (ANDERSON, 2006, p. 23). A abundância de nichos também é um fator que precisa ser levado em conta ao se analisar os números de queda da indústria fonográfica. Com uma oferta muito mais variada de música, as pessoas consomem mais (digitalmente) e não estão mais presas àquilo que é oferecido massivamente pelas majors. Com uma base de fãs ativa e números que atestem sua popularidade, a consagração, traduzida em rankings de popularidade, ultrapassa o campo da web e chega a outros campos, como o da música não-digital. São vários os exemplos (nacionais e internacionais) de artistas que tiveram seu impulso inicial na rede mundial de computadores mas que, hoje, realizam shows, vendem CDs e, até mesmo, conseguiram assinar contratos interessantes com grandes gravadoras. Suhr (2009) lembra que a questão da popularidade virtual é crucial para o acesso de bandas não-consagradas a níveis mais elevados de legitimação artística no caso específico do MySpace: A popularidade pode ser caprichosa e inconstante, no entanto, é importante reconhecer que a questão principal não é necessariamente indivíduos específicos sendo marcados. Em vez disso, no caso de artistas desconhecidos se tornando populares, o que parece ser mais importante é aumentar o número de pessoas que apoiam a música do artista ainda desconhecido. Só depois de isso acontecer é que a grande mídia intervém para ampliar a popularidade através do mainstream (SUHR, 2009, p. 193) A proximidade muito maior entre artista e consumidor de música faz repensar a ideia de Canclini (2005) quando este argumenta que, apesar de sermos consumidores do século 21, 9 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA permanecemos como cidadãos do século 18 porque o consumo dos bens simbólicos e tecnológicos, entre outros, por si só, não traz a possibilidade de interferir na cadeia de produção destes bens, que fica, novamente, centrada nas elites. Como a produção independente no MySpace requer contato constante entre produtor e consumidor, existe também o movimento de críticas e sugestões vindas de quem escuta as canções e muitos artistas em começo de carreira observam atentamente tais manifestações, a ponto, em alguns casos, de repensar estratégias e até mesmo direcionar suas produções de outra maneira. Castells (2009) atenta para a necessidade de se analisar as relações ocorridas em rede justamente por esta, hoje, ser o palco de lutas importantes, muitas vezes sociais: As fontes de poder social no nosso mundo – violência e discurso, coação e persuasão, dominação política e quadro cultural – não mudaram fundamentalmente desde nossa experiência histórica, como têm teorizado alguns dos principais pensadores do poder. Mas o terreno em que operam as relações de poder tem se transformado de duas maneiras principais: está sendo construído ao redor da articulação entre o global e o local e está organizado principalmente nas redes, não em unidades individuais. Posto que as redes são múltiplas, as relações de poder são específicas de cada rede (CASTELLS, 2009, p. 81) . Assim, no caso das redes sociais como o MySpace e de ações coletivas em prol de um artista (muitas vezes sem mesmo existir a intencionalidade por trás das mesmas), o volume de aceitação popular resulta no poder de estar no topo do ranking e atrair a atenção de outras instâncias, como a mídia e a própria indústria fonográfica. O novo MySpace: descubra sua vizinhança Em 2004, o MySpace era a rede social com mais usuários no mundo. Com o diferencial de ter nascido como um reduto de bandas e músicos, o site sempre teve como característica principal conectar usuários comuns e usuários artistas (como atores, comediantes, apresentadores de tevê, mas, principalmente, músicos e bandas). Entretanto, outras redes sociais foram surgindo e ganhando usuários, deixando o site para trás. Um dos principais problemas do MySpace estava no sistema, muito pesado e que, por vezes, se tornava lento demais. Assim, durante alguns anos, o site acabou se tornando interessante para músicos e bandas divulgarem gratuitamente seu trabalho, mas não para usuários comuns, interessados em rapidez, simplicidade, publicação de fotos e 10 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA compartilhamento de conteúdo. Com a perda de usuários e o avanço de redes sociais como Orkut e Facebook, cortes foram realizados e demissões em massa no mundo todo alardeavam para um possível fim do MySpace. Em junho de 2011, entretanto, o site foi vendido por 35 milhões de dólares à empresa Specific Media e ao cantor Justin Timberlake. A nova administração foi responsável por realizar vários testes na rede social até chegar à formatação de sua nova versão, oficialmente lançada em 11 de junho de 2013. Para o lançamento, foi anunciada uma campanha de marketing milionária3, além de aplicativo mobile, rádios streaming gratuitas e inclusão de perfis de profissionais de outras áreas, como fotógrafos, modelos, designers e dançarinos. A frase de apoio da homepage é clara quanto ao intuito de se tornar uma rede social mais ampla em comparação ao modelo anterior: “Bem-vindo à vizinhança. Descubra, compartilhe e conecte-se com cultura, criatividade, som, imagens e pessoas”4. Em uma análise inicial, foi possível notar que o ranking não possui mais uma separação em abas do site (que, aliás, não tem mais o sistema de abas – todo o conteúdo é exposto horizontalmente, com rolagem também horizontal). Houve o enxugamento nítido de gêneros musicais (antes eram 21, como exposto anteriormente. Agora, são 15: pop, rap, rock, country, latina, R&B, eletrônica, alternativa/indie rock, heavy metal, reggae, blues, religiosa, jazz, clássica, folk). Apesar de não existir em uma página separada, o ranking está presente na apresentação dos artistas. Quando o usuário clica no link “Discover” e, em seguida, em “Music”, ele pode ainda escolher entre músicas, álbuns ou artistas. Para cada uma dessas escolhas, é possível filtrar por gêneros e por “Músicas de Alta Rotação”, ou seja, populares em número de audições; e “Músicas Recomendadas” pelo MySpace. Ainda não foi possível compreender totalmente como funciona a seleção mostrada neste último caso, mas as músicas de alta rotação são aquelas que mais se destacam (em termos de audições) na parada do dia, em nível mundial. 3 O valor da campanha é alto: 20 milhões de dólares. Fonte: <http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/myspace-renasce-e-lanca-campanha-milionaria>. Acesso em 18/6/13 4 Tradução livre para: “Welcome to the neighborhood. Discover, share and connect with culture, creativity, sound, images and people.” 11 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA Figura 2. O novo MySpace traz imagens maiores e a navegação é horizontal. Não existe link para o ranking, como no modelo anterior, mas é possível filtrar por gênero e músicas de alta rotação e músicas recomendadas. As de “alta rotação” são as que possuem mais audições, um sinal de que o rankeamento continua presente no ambiente do site Assim, artistas independentes ainda têm a chance de serem descobertos por usuários do site mas, ao que tudo indica, apesar do aparente avanço no sistema e layout do MySpace, ficará muito mais difícil se manter em evidência por conta da ausência dos filtros anteriores. Um artista sem assinatura de contrato precisará competir por audições em peso de igualdade com aqueles que já pertencem à indústria fonográfica, tornando não impossível, mas muito mais árduo o caminho rumo à legitimação comercial nos moldes de casos como o de Mallu Magalhães e Restart. Entretanto, no momento, é arriscado traçar conclusões sobre o funcionamento do novo MySpace, uma vez que isso depende de pesquisa exploratória e posterior observação participante. Assim, um novo estudo netnográfico, capaz de apreender o funcionamento do novo MySpace, parece essencial para que possa haver uma análise aprofundada desta nova versão. Considerações Os casos apresentados neste artigo, de Mallu Magalhães e da banda Restart, evidenciam que o MySpace é um ambiente utilizado por artistas independentes com o objetivo de divulgar seu trabalho. Até a recente atualização do site, era nítido perceber 12 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA músicos sem assinatura com gravadoras tentando competir por visibilidade neste que parece ser um subcampo de legitimação artística popular. O campo da música e todas as suas instâncias – músicos, produtores, selos, gravadoras, mídia especializada, público – foi sendo cada vez mais afetado pelas novas tecnologias de produção (como o advento da música digital) e de distribuição (como o compartilhamento P2P, o streaming e a venda digital customizada). Assim, o MySpace se encontra inserido neste cenário contemporâneo de consagração artística e, por ser um ambiente em que ocorrem situações únicas (as audições, o rankeamento, o contato direto com os fãs) e que denotam sentido não só dentro dele (pois o valor visto no volume de audições é também válido em outros ambientes), o site apresenta características de um subcampo de legitimação, conforme a concepção de Bourdieu (2008). O sistema de ranking, a possibilidade de compartilhamento de informações e, principalmente, de faixas musicais, a conexão a outros canais de mídia são alguns dos exemplos de que, dentro do site, há ferramentas disponíveis para que um artista busque se destacar em meio à multidão de outros artistas com o mesmo intuito: serem reconhecidos. Como a visibilidade vem do coletivo e não do individual – e é exatamente por isso que o campo da música digital na internet pertence ao campo da cultura popular e não ao da alta cultura – cada artista precisa provocar ações que gerem a ele popularidade. Isso é conseguido, principalmente, com a conquista de uma base de fãs participativa, colaborativa, disposta a trabalhar gratuitamente a favor de seu ídolo. É o caso da Restart e suas milhares de fãs adolescentes que, unidas, consagram a banda em votações, prêmios e em redes sociais, como as diversas vezes em que o grupo aparece nos Trending Topics do Twitter. A base de fãs, com seus movimentos sobre e para o artista na internet, pode ser entendida como uma nova configuração dos chamados intermediários culturais, uma vez que, a partir dela, são gerados índices que atestam o interesse popular na obra artística. Esses índices, nos dois casos estudados, estão no volume de informação trocada na internet sobre o artista: enquanto a garota Mallu aguçou o olhar dos editores de cadernos culturais com suas quatro canções postadas no MySpace que impressionaram meia dúzia de formadores de opinião (e que culminaram, por sua vez, em acaloradas discussões em blogs), a Restart conseguia extrair dos fãs de seus primeiros shows na capital paulista a mesma dedicação online, espalhando, assim, o link do MySpace para mais e mais internautas, o que gerou 13 V ENCON TRO DE PE SQUI SADORE S EM COMUNICAÇÃO E MÚ SICA POPULAR Territórios e fronteiras da música mediática 29 a 31 de agosto de 2013 – Centur, Belém-PA posições cada vez melhores na parada geral do site. Os fãs participativos, seriam, então, intermediários culturais alternativos, cujos interesses são completamente distintos dos sustentados pelos intermediários culturais tradicionais. Entretanto, por ser tratar de um estudo com objeto mutável, ligado a tecnologias em constante evolução, o MySpace é passível de transformações ao longo de sua existência, como a que ocorreu em junho de 2013. Assim, reconfigurações do tipo requerem novas investigações, mostrando que o tema definitivamente não se esgota por aqui e pode ser explorado em ocasiões posteriores. Referências ANDERSON, C. (2006). A Cauda Longa: do Mercado de massa para o Mercado de nicho. Tradução Afonso Celso da Cunha Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2ª reimpressão. BOURDIEU, P. (2008). A Produção da Crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre, Editora Zouk. CANCLINI, N. (2005). Consumidores e Cidadãos. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. CASTELLS, M. (2009). Comunicación Y Poder. Tradução de María Hernández. Madrid: Alianza Editorial. GIGLIOTTI, F. (2011). Restart: Coração na Mão. São Paulo: Editora Benvirá JENKINS, H. (2008). Cultura da Convergência. Tradução de Susana Alexandria. São Paulo: Aleph. SUHR, H. C. (2009). Underpinning the paradoxes in the artistic fields of MySpace: the problematization of values and popularity in convergence culture. New Media & Society, Los Angeles, London, New Delhi, Singapore e Washington Dc, v. 11, p.179-198, 1 fev. 2009. Disponível em: <http://nms.sagepub.com>. Acesso em: 6 abr. 2009. 14