1 I CONSENSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE INFECTOLOGIA PARA O MANUSEIO E TERAPIA DA HEPATITE B A Sociedade Brasileira de Infectologia, por meio de seu Comitê de Hepatites, apresenta o seu I Consenso para o manuseio e terapia da Hepatite B. Os temas apresentados a seguir representam a síntese dos tópicos mais relevantes ou polêmicos discutidos pelo Grupo de Consenso* na cidade de São Roque entre 21 e 23 de julho de 2006. A revisão sistemática dos temas associados à Hepatite B foi realizada e encontra-se publicada em separata do Brazilian Journal of Infectious Diseases. Recomendamos, de forma enfática, aos leitores a consulta do Proceedings do Consenso onde os temas são abordados de maneira mais completa, enquanto no Consenso são objetivamente apresentados. Definição de Hepatite B crônica A definição de Hepatite B crônica recomendada pela SBI caracteriza-se pela presença do HBsAg por mais de 6 meses, HBV DNA acima de 20.000 UI/ml, elevação persistente ou intermitente de ALT e biópsia hepática evidenciando atividade necro-inflamatória portal 2 ou peri-portal 1 pela classificação da Sociedade Brasileira de Patologia (ou ISHAK 4 ou METAVIR A1). Ressaltamos que na hepatite B crônica a intensidade do processo inflamatório é dinâmica e que em pacientes co-infectados pelo HIV poderemos encontrar menor atividade. Anti HBc isoladamente positivo e infecção oculta pelo VHB Na situação de um paciente com anti-HBc IgG ou total isoladamente positivo, recomendamos a repetição do marcador acrescida do HBsAg, todos com títulos expressos, e a vacinação (como booster) seguida da quantificação do Anti HBs sete dias após a dose da vacina. Em sendo possível, a pesquisa do DNA do VHB seria sempre recomendável, em especial nas seguintes situações: co-infecção com o HIV, coinfecção com o VHC, politransfundidos, antes de um transplante de órgão, populações de maior vulnerabilidade, indivíduos que vão receber tratamento quimioterápico e imunodeprimidos em geral. Biópsia hepática: valor, indicações e utilização dos marcadores teciduais A biópsia hepática possuí a finalidade de (i) fazer o diagnóstico, (ii) graduar e estadiar a doença e (iii) diagnosticar outras doenças do fígado, em especial a esteatohepatite alcóolica ou não alcoólica. Sempre que possível deve ser realizada no início do seguimento (baseline), principalmente nos pacientes HBeAg- com elevação de ALT e nos co-infectados com o HIV. Pacientes HBeAg+ com ALT elevada só devem realizar a biópsia quando houver dúvida diagnóstica ou suspeita de cirrose não confirmada por outras metodologias não invasivas (p.ex, ultrassonografia). 2 A pesquisa de marcadores teciduais é sempre recomendável. A presença do HBsAg alcança 100% de sensibilidade. Quando citoplasmático representa a infecção e quando na membrana, replicação. O antígeno do core alcança 70% de sensibilidade. Quando nuclear representa replicação e citoplasmático, elevada atividade necro-inflamatória. O antígeno X está em fase de validação e aparentemente se correlaciona com o risco de evolução para o carcinoma hepatocelular. Quantificação do DNA-VHB: indicações e interpretação As dificuldades técnicas e a falta de padronização dos controles internos, que podem se traduzir por resultados sub-estimados ou falso negativos, recomendam que a metodologia empregada para o seguimento de um paciente seja sempre a mesma e, o uso de métodos in house, não seja realizado em larga escala. O tema está revisado no Proceedings, publicado no BJID, no entanto, abaixo apresentamos os níveis de corte mínimos onde indicamos a terapia do VHB. Condição clínica/sorológica HBeAg+ HBeAgCirrótico compensado Cirrótico em lista de transplante Co-infecção HIV Limite mínimo para terapia ≥ 20.000 UI/ml* ≥ 2.000 UI/ml* ≥ 2.000 UI/ml* Qualquer valor/detecção ≥ 2.000UI/ml* *UI equivale a 5,6 cópias/ml Como sugestão do painel da SBI, a quantificação do HBV-DNA está indicada no início do seguimento (baseline) e, nos pacientes sob utilização de antivirais, a cada 6 meses, até a indetectabilidade, quando passa a ser anual. Na ocorrência de uma elevação dos níveis de ALT/AST, a dosagem deve ser antecipada. Quando são utilizadas drogas com alto potencial para desenvolvimento de resistência genotípica , como a lamivudina, por exemplo, podem ser requeridas avaliações mais freqüentes da carga viral , principalmente após 12 meses de uso contínuo. Rastreamento do Carcinoma Hepatocelular (CHC) e indicações para o transplante hepático De maneira geral, os pacientes com aquisição do VHB por transmissão vertical e os cirróticos são os de maior risco para o CHC. Dessa forma devem realizar a cada 6 meses uma ultrassonografia de fígado e a dosagem de alfafetoproteína (que pode ser normal, mesmo na vigência do CHC). Alfafetoproteína acima de 400 ng/ml na ausência de um nódulo, é geralmente diagnóstica do CHC. Na presença de um nódulo, se acima de 200 ng/ml já se impõe o diagnóstico. Nódulos de mais de 2,0 cm são de pior prognóstico, possivelmente já com metástases. Assim, o diagnóstico deve ser feito idealmente para nódulos com menos de 1,5 cm de diâmetro e, na presença de um nódulo, o 3 encaminhamento a um centro de referência não deve ser retardado. Ressaltamos que não se indica rotineiramente a biópsia para a diagnose de nódulos hepáticos. O transplante hepático está indicado para os pacientes CHILD B e C (ou CHILD A com complicações de difícil controle), na hepatite fulminante e na presença do CHC. Tratamento da hepatite por vírus B Os objetivos da terapia do VHB são: a indetectabilidade do HBV-DNA e a negativação do HBsAg ( habitualmente rara e substituída pela negativação do HBeAg e, ainda melhor, soroconversão para o anti-HBe+). De maneira geral, a terapia está indicada para os pacientes com ALT elevada, além de um nível de corte do HBV-DNA, anteriormente apresentado. ALT elevada habitualmente é um preditor de boa resposta à terapia. Pacientes com ALT normal e HBV-DNA detectável, devem ter a terapia indicada com base em sua biópsia hepática – que deve evidenciar estádio de fibrose ≥2 ou atividade necro-inflamatória significativa. Finalmente, devemos avaliar o tipo de exposição do paciente. Os infectados pela via vertical permanecem por décadas na fase de imunotolerância e podem soroconverter entre os 30 e 40 anos, o que exige cautela na indicação da terapia, pois trata-se de um caso que pode se resolver espontaneamente. Já aos infectados de forma horizontal, na primeira infância, a soroconversão pode ocorrer no fim da infância ou início da adolescência. Nos infectados na vida adulta há uma tendência de melhor resposta à terapia em função de uma resposta imune mais vigorosa. Consideramos na nossa análise as cinco drogas utilizadas para a terapia da hepatite B crônica, a saber, interferon-alfa convencional ou peguilado, lamivudina, adefovir e entecavir, em suas doses e esquemas terapêuticos habituais. Tratamento dos monoinfectados pelo VHB Pacientes virgens de terapia A abordagem decisória leva em conta a presença do HBeAg.Assim: Pacientes HBeAg positivos: Consideramos nesse subgrupo a definição de pacientes com bom perfil e pacientes mais difíceis para a terapia. Os de bom perfil são os mais jovens, com baixa carga viral, sem co-morbidades e sem cirrose. Os mais difíceis são os mais velhos, com alta carga viral, com co-morbidades e cirrose. O detalhamento dessas definições pode ser avaliado no Proceedings do Consenso. Aos portadores de infecção HBeAg+ com bom perfil, recomendamos a terapia com interferon convencional ou peguilado. Aos com mau perfil, a utilização de um antiviral, sendo recomendados o adefovir ou o entecavir. 4 Pacientes HBeAg negativos: Os pacientes HBeAg negativos devem ser tratados com interferon peguilado ou com os antivirais adefovir ou entecavir. No caso dos antivirais devido ao perfil de resistência a longo prazo, mais favorável ao entecavir, recomendamos a sua utilização como primeira opção quando o paciente for virgem de tratamento. As recomendações para os pacientes virgens de terapia encontram-se resumidas abaixo. HBeAg Positivo Bom Perfil Negativo Mau Perfil IFN PegIFN PegIFN Entecavir (1) Adefovir (2) Adefovir Entecavir Pacientes com terapia pregressa para o VHB Nos pacientes com terapia pregressa com interferon, a terapia subseqüente deve ser realizada com um antiviral, adefovir ou entecavir, considerando as reflexões supra-citadas. Aos pacientes tratados com lamivudina e que expressem sinais de resistência ( elevação de transaminases, aumento maior que 1 log10 em relação ao nadir da carga viral ) devemos associar o adefovir por um período mínimo de 3 a 6 meses, mantendo monoterapia com adefovir após esse período. Ao se optar pelo entecavir devemos substituir a lamivudina pela nova droga, ressaltando o risco subseqüente do desenvolvimento de resistência ao entecavir. Em pacientes que apresentem resistência ao adefovir, recomendamos a adição da lamivudina ou substituição pelo entecavir, desde que não tenha sido utilizada previamente a lamivudina. Ressaltamos que no momento consideramos apenas as drogas correntemente utilizadas para a terapia da hepatite B e que brevemente novas opções terapêuticas (clevudina,tenofovir, emtricitabina, p.ex.) trarão novas opções a serem utilizadas e que poderão alterar a seqüência ora estipulada. 5 As condutas são resumidas no esquema abaixo representado. Lamivudina prévia Adefovir+Lamivudina (3-6 meses) Entecavir(2ª opção) Risco de resistência Adefovir Adefovir prévio Adefovir + Lamivudina Entecavir (para virgens de Lamivudina) Pacientes cirróticos Os pacientes cirróticos são rotineiramente divididos em compensados ou descompensados - em lista de transplante. Para a terapia desse grupo de pacientes não recomendamos em nenhuma situação a utilização do interferon alfa, convencional ou peguilado. Nos cirróticos compensados virgens de terapia, recomendamos o uso de adefovir ou entecavir, ressaltando o potencial da utilização desta associação no futuro. Aos já resistentes à lamivudina, seguimos as recomendações prévias. Nos cirróticos descompensados e virgens de terapia recomendamos monoterapia com lamivudina ou adefovir ou entecavir, na dependência da disponibilidade das drogas. Também existe uma tendência para no futuro utilizarse a associação de fármacos. Aos cirróticos descompensados já resistentes à lamivudina a recomendação é a adição do Adefovir até a realização do transplante hepático. 6 CO-INFECÇÃO HBV-HIV Critérios de inclusão para terapia Semelhante ao monoinfectado. A biópsia hepática é fundamental na condução do caso, e deve ser realizada, sempre que possível, em todos os pacientes.A indicação para tratamento da hepatite B nesse grupo de pacientes poderá ser modificada em função da composição do esquema HAART indicado para o tratamento da infecção pelo HIV. A tabela abaixo mostra as diretrizes básicas para a condução terapêutica. Observe-se que o adefovir possuí o potencial teórico de indução da resistência ao tenofovir por intermédio de uma mutação recentemente descrita, K70E e que o interferon indicado sempre será o peguilado. Tratamento da hepatite crônica B em pacientes coco-infectados HIV/VHB (Zoulim, Zoulim, 2006) Indicação para terapia anti-viral Somente VHB (cepa selvagem/ mutante pré-core) Somente HIV HIV e VHB (cepa selvagem/mutante pré-core) VHB resistente LAM (YMDD) AgHbe/PCR a) AgHbe⊕ Regime preferido IFN (PEG), ADF*, ETV ADF*, ETV b) AgHbeΘ AgHbe⊕/Θ + a) DNA-VHB monitorizar < 104 cop/ml b) DNA-VHB HAART c/ TDF > 104 ou 5 cop/ml + LAM ou FTC* AgHbe⊕ ou Θ HAART c/ TDF + LAM ou FTC AgHbe⊕ ou Θ HAART c/ TDF Evitar LAM, FTC, TDF LAM, FTC, TDF monoterapia c/ LAM ou FTC monoterapia c/ LAM ou FTC descontinuar LAM *Para prevenir “flare” devido a restauração imune, particularmente em cirróticos. 7 I Consenso da Sociedade Brasileira de Infectologia para o Manuseio e Terapia da Hepatite B Coordenação: Evaldo Stanislau Affonso de Araújo Organização: Sociedade Brasileira de Infectologia – Comitê de Hepatites Virais (João Silva Mendonça, Roberto Focaccia, Fernando Lopes G. Junior e Evaldo Stanislau Affonso de Araújo) Grupo de Consenso: Aline G. Vigani Ana Teresa Rodrigues Viso André Cosme de Oliveira Antonio Alci Barone Edgard DeBortholi Edson Abdala Evaldo Stanislau Affonso de Araújo Evandro S. de Melo Fátima Mitiko Tengan Fernando Lopes Gonçales Jr João da Silva Mendonça José Carlos Fonseca José Fernando de Castro Figueiredo* Marcel Cerqueira* Marcelo Simão Ferreira Maria Helena P.Pavan* Marta Heloísa Lopes* Neiva S.L. Gonçales Norma de Paula Cavalheiro Ricardo S. Diaz Roberto Focaccia Rodrigo Angerami* Umbeliana Barbosa Oliveira Venâncio Avancini* * Revisores não participantes da reunião de consenso.