1 RAUL SEIXAS E A MODERNIDADE Uma viagem na contramão RAUL SEIXAS E A MODERNIDADE Uma viagem na contramão Sonielson Juvino Silva Este livro foi impresso em 2004, em João Pessoa (PB), pela editora Marca de Fantasia, cujo exemplar poderá ser adquirido por meio de pedido feito diretamente em seu site. Marca de Fantasia: Rua Antonio Lira, 970/303 58045-030 – João Pessoa PB – Brasil [email protected] http://marcasdefantasia.sites.uol.com.br Editor: Henrique Magalhães Ilustrações: Dêleca Sabiá e Vânderson Carneiro Silva, Sonielson Juvino Raul Seixas e a modernidade, uma viagem na contramão / Sonielson Juvino Silva – João Pessoa: Marca de Fantasia, 2004, 135 p. ISBN 85-87018-40-X Para Fabia, Rana e Lara Eu vi o fim chamando o princípio, pra poderem se encontrar... Banquete de Lixo Raul Seixas e Marcelo Nova Índice A música da forma e as formas da música ( Prefácio ) ...................................... 11 Quem souber que conte outra ( Apresentação ) ................................................ 13 Meus olhos enxergavam no escuro .................................................................... 15 Inocente, puro e besta ....................................................................................... 19 Com Deus e com o lobisomem ............................................................................. 23 Dois e dois são cinco .......................................................................................... 27 A linha evolutiva da Música Popular Brasileira ................................................... 30 Tudo acaba onde começou .................................................................................. 35 Quando os dois pensavam sobre o mundo ........................................................... 38 Todos os caminhos são iguais ............................................................................. 41 Deixe-me cantar meu Rock and Roll ................................................................... 45 Tango, Rock ou Tcha Tcha Tcha .......................................................................... 48 Meu olho que vê ................................................................................................. 51 Essa metamorfose ambulante ............................................................................ 55 Filosofias, políticas e luta ................................................................................... 58 O Diabo é o pai do Rock ....................................................................................... 63 O número 666 .................................................................................................... 68 Chamei Dom Paulo Coelho ................................................................................... 72 Viva a Sociedade Alternativa ............................................................................. 81 Eu sou o tudo e o nada ........................................................................................ 87 Tento uma transmutação................................................................................... 91 Profeta do Apocalipse........................................................................................ 95 Muitas mulheres eu amei e com tantas me casei ............................................. 100 Eu vou fazer o que eu gosto ............................................................................. 107 Minha imagem na sua televisão ........................................................................ 113 Não quero mais andar na contramão ............................................................... 128 A música da forma e as formas da música ( Prefácio ) Wellington Pereira* E screver sobre canções é o mesmo que cantar frases. Há uma conjunção de simetrias que conduz os leitores à música da forma e às formas da música. Para captar esta relação entre o que corporifica (a forma) e o que põe em movimento (o som), se faz premente buscar, na escrita, um efeito retórico que não dissipe esta relação. Ou seja: ouvir uma canção como se escreve uma frase, cantar uma frase como se escreve uma canção. Nos textos escritos para este livro, Sonielson Juvino Silva escolheu a forma mais adequada para demonstrar o processo de construção das canções de Raul Seixas e suas relações com a modernidade, perfazendo uma viagem na contramão. Viajar no sentido contrário, do ponto de vista semântico, é algo positivo, porque provoca a descoberta de outras camadas de significados escondidas nas grutas dos referenciais da História. O ensaio é a forma narrativa que não se enquadra em modelos determinados, pois, em sua escritura, são consideradas as nuanças do imaginário: a subjetividade, as formas estéticas do cotidiano, a dialética dos feixes de linguagens que se transformam em imagens. Para compreender estes ensaios escritos por Sonielson Juvino Silva é preciso aceitar, criticamente, as conexões estabelecidas pelos seus escritos com a música de Raul, o contexto sociocultural no qual foram produzidas as canções, o caráter metalingüístico da obra analisada. Neste livro, os leitores vão aprender que a caverna de Platão poderia ter outra saída, fazendo os homens preferirem, na maioria das vezes, os jogos de linguagem à denotação da realidade. Assim, os ensaios sobre a música de Raul Seixas vão revelando imagens que não correspondem ao falseamento das realidades, mas às novas interpretações do real. A leitura do cotidiano através do som e dos seus movimentos é uma das funções da música e da musicalidade dos povos. Em geral, isto é realizado de acordo com o nível de complexidade das culturais, ou seja: quanto mais se discute o imaginário, se faz importante refletir sobre as formas narrativas produzidas pelos homens. Os ensaios de Sonielson sobre a viagem de Raul Seixas na contramão da modernidade demonstram que a música no Brasil tem uma função didática, pois nos revela o deslocamento de conceitos, a conjugação de normas cultas ou incultas nas falas urbanas e rurais, colocando em xeque todas as certezas patrocinadas pela racionalidade. Estar na contramão da modernidade é refazer viagens conceituais, estabelecer métodos para entender o que não tem método, esgotar a etimologia do verbo explicar (cortar, dividir) até a possibilidade do grão se converter em fruto que gera novos grão e novos frutos. Neste livro, Sonielson Juvino nos coloca em meio às temáticas que perfazem a obra de Raul Seixas: alteridade, vida cotidiana, religiosidade, misticismo, machismo, tropicalismo, paroxismos e metáforas, linha evolutiva da MPB. Resgata a importância das canções nas sociedades urbanas. O leitor deve escutar este livro lendo canções, pois assim poderá entender que não há as fronteiras, nas leituras do cotidiano, entre a música e a escrita, entre os ensaios de Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, Simmel, Michel Maffesoli, e as canções de Raul Seixas, Caetano, Gilberto Gil e Luiz Gonzaga. Boa viagem! Wellington Pereira Jornalista e Escritor paraibano Quem souber que conte outra ( Apresentação ) A ideia inicial deste trabalho surgiu da percepção de que Raul Seixas, mesmo morto, não só permanecia no imaginário musical brasileiro como até conseguia adquirir novos admiradores. A formatação original seria a publicação de pequenos ensaios em jornais, cada um com, no máximo, uma página. Porém, à medida que as pesquisas avançaram, as discussões tornaram-se mais amplas e os ensaios foram ficando maiores, convertendo-se em capítulos, e, estes, no livro. Percebeu-se, também, que no mercado editorial brasileiro as obras sobre o cantor ou são dados históricos (antologias, entrevistas, etc.) ou são abordagens apaixonadas de fãs. Acreditei que já fosse o momento de dar início a uma análise mais elaborada e, ao mesmo tempo, mais isenta do fenômeno Raul Seixas. Portanto, se este esforço provocar algum debate sobre o assunto, já terá cumprido o seu papel. Quero alertar de que não se trata de uma obra com rigor acadêmico. Mesmo assim, tive o cuidado de relacionar todas as citações e referências. Nas Notas de final de capítulo serão encontradas, eventualmente, informações adicionais sobre os assuntos vistos a cada parágrafo dos textos. Os capítulos, pensados isoladamente, não possuem interrelações entre si, podendo, inclusive, serem lidos em qualquer ordem. Entretanto, a sequência adotada guarda certa cronologia com a vida do cantor. Um detalhe é que os títulos, bem como o encerramento de cada capítulo, reproduzem trechos da obra de Raul. Ainda sobre os capítulos, que perfizeram um total de vinte e quatro, a maioria é de leitura curta e simples. Em um ou outro foi necessário o aprofundamento de alguns pontos, imposto pela própria linha de raciocínio. Somente algumas músicas, notadamente dos LPs Krig-há, bandolo e Gita, foram tratadas isoladamente, devido à importância que tiveram na obra do cantor. Já o penúltimo capítulo, Minha imagem na sua televisão, faz uma abordagem vertical das capas dos discos de Raul, perpassando por toda a sua carreira artística. Ao final, fiquei convencido de que o caráter não-moderno da obra de Raul deslocou a sua obra do tempo em que viveu, tornando-a de fácil aceitação em qualquer época; não a identificando com um movimento histórico específico e possibilitando a sua permanência até os dias de hoje. Delêca Sabiá, fã incondicional de Raul Seixas, fez, juntamente com o seu filho, Vânderson Carneiro, as ilustrações para o livro. Ele me emprestou, ainda, discos e vídeos raros contendo entrevistas, shows e depoimentos do cantor, que foram fundamentais para o trabalho e que só são possíveis de serem encontrados nos baús muito bem lacrados dos verdadeiros fãs. O tempo consumido neste livro de aproximadamente um ano e três meses, dividido entre cidades e estradas paraibanas que o Banco do Brasil, empresa onde trabalho, deu-me o involuntário e agradável prazer de conhecê-las. Agradeço, enfim, a todos aqueles que me ajudaram na construção deste sonho e que, felizmente, não foram poucos. Fica a dúvida se este meu esforço suscitará alguma discussão ou se lhe caberá tão somente o esquecimento. Mas, já lembrava Raul, como poderia saber sem tentar? Sonielson Juvino Silva Paraíba – Agosto/2004 Meus olhos enxergavam no escuro M esmo tanto tempo após a sua morte, Raul Seixas continua sendo lembrado, desafiando a propalada memória fraca do brasileiro. Livros e discos são relançados e vendidos; gerações novas passam a admira-lo e até políticos de destaque utilizam as suas frases em discursos. Fãs-clubes se multiplicam e centenas de sites se espalham na Internet com as mais variadas informações sobre o cantor. Isso sem falar nos sósias que insistem em aparecer em toda aglomeração popular de maior vulto, de posses de governantes a maratonas.1 Raul Seixas conseguiu, como poucos, penetrar nos mais diversos setores da sociedade. Porém, a permanência da sua popularidade se deveu significativamente à particularidade da sua música, que o desvinculou dos movimentos políticos e sociais da sua época, dando-lhe um caráter de atemporalidade. Em seu estudo sobre a música cafona, o historiador Paulo César de Araújo concluiu que, em matéria de música no Brasil, só tem sobrevivido os que aderiram à corrente dita tradicional ou se abrigaram na chamada modernidade, quando não em ambas. Aliás, o dualismo é uma das mais marcantes características da era moderna, a qual preserva o antigo como ponto de comparação e de afirmação do novo. Entretanto, Raul se manteve sem se enquadrar em nenhuma dessas categorias.2 Ele, de fato, chegou a beber da fonte da Jovem Guarda, compondo cerca de 80 músicas para cantores como Jerry Adriani, Wanderléia, Márcio Greyck, Wanderley Cardoso, Diana e tantos outros. Porém, a bússola que o guiava era o Rock and Roll de Elvis Presley, de Chuck Berry, de Little Richard, de Jerry Lee Lewis... todos de antes de 1959. Ou seja, quando Raul Seixas chegou ao estrelato a base da sua música já era coisa do passado.3 Só que, para Raul, não significava uma volta à Idade de Ouro, pois o Rock’n’Roll era, antes de tudo, uma revolução comportamental. Não era o resultado de um processo intelectual nem de uma síntese cultural, mas o despertar de uma consciência mundial, fenômeno possível graças a uma singularidade história: a desilusão do pós-guerra.4 A explosão modernista da década de 60 modificou até Elvis e o Rock, porém não conseguiu seduzir Raul. O seu rockzinho antigo, propondo ser diferente de tudo que já existira, atraiu a admiração dos brasileiros para além das barreiras regionais.5 Eis que o seu posicionamento rebelde diante das supostas verdades da sua época, acabou lhe rendendo críticas e incompreensões. Mas hoje, quando os pilares da sociedade moderna oscilam, e muitos asseguram que já estão mesmo indo abaixo, Raul Seixas ressurge mais atual do que nunca. Em meio ao caos cultural que assistimos, parece ser realmente mais importante adotar uma ideia plural das coisas do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Notas 1 Para relação de livros publicados sobre Raul, ver: PASSOS, Sylvio e BUDA, Toninho, Raul Seixas, Uma antologia, Edição Revisada e Atualizada, São Paulo: Martin Claret, 2000, pp. 354-355; Ver Também: Raul Seixas, Maluco Beleza, caixa com seis Cd’s e um livro lançados em 2002 pela Universal Music, ASIN: 044001831928, e o CD Anarkilópolis, Som Livre, 2003; Com relação a discursos de políticos, ver reportagem veiculada pela internet em Yahoo! Brasil Notícias, de 05.11.2002, cuja manchete foi Aécio defende “metamorfose ambulante” no PT, referindo-se ao político mineiro Aécio Neves (http://br.news.yahoo.com/ ); Sobre sites na internet, o endereço de busca http://www.cade.com.br localizou 329 referências ao nome Raul Seixas, em 26.05.2003; Sósias de Raul Seixas foram descobertos e divulgados pela maioria dos tele-jornais das redes de TV do Brasil durante a posse do Presidente Lula e a Maratona Internacional de São Paulo em janeiro e maio de 2003, respectivamente. Sósias de Raul tornaram a aparecer na Maratona Internacional de São Paulo, edição 2004, que aconteceu no domingo 02.05, e foi transmitida ao vivo pela Rede Globo de Televisão, dentro do programa Esporte Espetacular. 2 Discussão sobre as correntes tradicionais e modernas da música no Brasil, ver: ARAÚJO, Paulo César de, Eu Não Sou Cachorro, Não, Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 335-364; 3 Sobre a quantidade de músicas que Raul Seixas fez para outros, em 1971, ver: _________ , Raul Seixas por ele mesmo, São Paulo: Martin Claret, 1990, p. 73; Ver também, na mesma obra, entrevista de Raul à revista Amiga; p. 133; citado também em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p.126; Para os artistas que mais cantaram musicas de Rauzito, ver: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit., pp. 207-209; Com relação à influência do rock sobre Raul Seixas, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 14-19 e p.143; e ALVES, Luciane, Raul Seixas, O Sonho da Sociedade Alternativa, São Paulo: Martin Claret, 1993, p. 87 (entrevista de Raul Seixas à Radio Transamérica, em 1988); Para a idéia de que o Rock morreu em 1959, ver: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 73 (entrevista do cantor à Radio Globo AM, em 1987) e p. 103 (entrevista no programa Jô Soares Onze e Meia, em 1989); 4 Para ver o rock como um movimento comportamental: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 87 (entrevista de Raul Seixas à Radio Transamérica, em 1988); e uma revolução no comportamento, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 129 (entrevista do cantor à revista Amiga, em 1982); O rock’n’roll como revolução pós-guerra, ver: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 77 (entrevista de Raul Seixas à Radio Globo AM, em 1987); e o próprio cantor como produto do pós-guerra, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 138 (entrevista à revista Amiga, 1982); 5 A idéia de Raul Seixas sobre a decadência do rock na década de 1960, ver: ALVES, Luciane, Op. Cit. pp. 76-77 (entrevista de Raul Seixas à Radio Globo AM, em 1987); e quanto a absorção do movimento pelo sistema, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 149 (entrevista do cantor à revista Bizz, em 1987); sobre a decadência de Elvis, idem, p. 27 (um estudo de Ana Maria Bahiana); Sobre a originalidade de sua música, a partir de várias influências, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 143 e p. 151 (entrevista do cantor à revista Bizz, em 1987). Inocente, puro e besta R aul Seixas afirmou ter passado fome por dois anos na Cidade Maravilhosa. Mas não há dúvida de que era também fome de sucesso. Ele fundou um grupo de rock ainda na Bahia, o qual orbitou o movimento da Jovem Guarda, tendo, inclusive, acompanhado Jerry Adriani em turnê pelo Brasil. Em 1968 o grupo conseguiu lançar o LP Raulzito e os Panteras. O título, segundo Raul, foi porque todo conjunto naquela época tinha nome de bicho. O projeto foi um fracasso total e pouca gente chegou a tomar conhecimento. Raul Seixas participou da elaboração das dez músicas do disco, compondo-as sozinho, em parceria ou fazendo traduções. As letras, como ele próprio definiu mais tarde, falavam basicamente meu amor me deixou ou que o azul é azul. Apesar de querer justificar o insucesso do início da carreira, não é uma simplificação injusta. Porém, há um fato curioso: o apelido que acompanhou o cantor desde criança – Raulzito – foi cunhado não apenas no nome do grupo e na capa do disco, mas também na autoria das músicas. Era como se, por trás do trabalho, existisse apenas uma travessura infantil. Quando soube, em 1973, que a gravadora iria relançar o disco, aproveitando o seu sucesso, ele reagiu indignado: Vai editar? Mas que absurdo.1 Depois do insucesso dOs Panteras, Raul conseguiu um emprego de produtor na gravadora CBS e pôde, como ele mesmo disse, ir aprendendo a usar aquele mecanismo. Num descuido do proprietário, lançou, sem autorização, o segundo LP: Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10. Outra brincadeira séria, só que, desta vez, invertida: tratava-se de uma caricatura do mundo real, mas feita para ser consumida. Raul compôs seis das onze músicas do disco, sendo três em parceria com Sérgio Sampaio. As letras já possuíam elementos da ironia ao cotidiano, expandidos posteriormente em sua obra, e remetem à vida urbana carioca. Entre as faixas foram introduzidos sons, diálogos e citações, voltados para a crítica aos costumes da época. Como introdução, tem-se uma abertura circense onde é apresentado O Maior Espetáculo da Terra, ou seja, a própria vida. Seguem-se ruídos domésticos, como telefones e despertadores; entrevistas de rua, com barulho de carros e buzinas; vinhetas e shows de TV. Uma dessas críticas, aliás, chama a atenção por conta do momento. Um refrão diz: Eu comprei uma televisão, a prestação, que distração... Estava-se em 1971, ano em que, impulsionadas pelo sucesso do Brasil no futebol e na economia, e pelo crediário facilitado, as vendas de televisores explodiam no país, chegando ao número recorde de 6,2 milhões. Portanto, nada parecia escapar ao olho crítico dos Kavernistas. O próprio Raul confirma: Era um disco que mostrava o panorama atual, o que estava acontecendo, o caos todo daquela época. E conclui: Acho que este disco foi mais revolta do que qualquer outra coisa.2 Porém, uma coisa que o disco efetivamente não mostra é uma linha musical: começa com marcha, depois vem bolero, sambas, um chorinho, baladas e até forró. A última música é um rock: Dr. Paxeco. Mas a obra ainda tem um grande finale: agradecimentos ao público pelo espetáculo e, como respostas, vaias e gritos de quero meu dinheiro. Tudo culmina, enfim, com uma estrondosa descarga sanitária. Ironia para dadaísta nenhum botar defeito e que denuncia, também, o preconceito musical no Brasil. Um detalhe, no entanto, não passa despercebido: a autoria das composições já é creditada ao senhor Raul Seixas e não mais ao pequeno Raulzito.3 No mesmo ano do lançamento deste disco – 1971 – Raul aparece em uma foto no Rio de Janeiro aparentando visível indecisão: seus olhos apontam uma direção e seus pés vão em outra. Mas, depois que o rock comprovou a sua vitalidade, e após os Beatles descobrirem ser possível cantar o que se pensa, Raul começou a trilhar pelo mundo do indivíduo em sua luta cotidiana. Afinal, estava-se em fins da Era de Peixes; das pessoas em cardumes; da cultura de massa; da verdade absoluta; do bem e do mal; da própria modernidade. Vislumbrava-se a Era de Aquário, voltada para o ser; para o crescimento e para as verdades individuais. O melhor retrato daquele momento pode ser dado pelo próprio Raul: Não sei para onde estou indo, mas estou no meu caminho.4 Quanto ao destino do seu segundo disco, o dono da gravadora não gostou da brincadeira, recolheu as cópias e demitiu o produtor rebelde. Mas Raul Seixas já havia ido longe demais. Não havia mais o medo de ter que voltar a Salvador para ser bancário ou empregado, sem jamais se aborrecer.5 Notas 1 Raul Seixas admitindo que, no início da carreira, suas letras falavam geralmente ‘meu amor me deixou’, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 23 (um estudo de Ana Maria Bahiana); achando absurdo o relançamento do LP Raulzito e os Panteras, Raul disse que esse disco falava porque o azul é azul, o lilás é lilás: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 98 (entrevista do cantor aO Pasquim, em 1973). Na mesma entrevista, Raul explica o porque do nome Os Panteras, idem, ibidem, p. 84; Na verdade, o disco foi prensado em 1967, porém a capa só ficou pronta no início de 1968, ficando, assim, como o ano do lançamento. Ver: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p.113; O disco só foi reeditado pela Emi-Odeon em 1984, saindo nova edição em 1989, após a morte do cantor; 2 Sobre os tempos de aprendizagem na CBS: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 96-97 (entrevista do cantor aO Pasquim, em 1973); Os Kavernistas, que participaram inclusive das gravações, eram: Raul Seixas, Sérgio Sampaio, Miriam Batucada Edy Star; Sobre os dados da vendagem de televisão no Brasil, ver: GASPARI, Elio, As Ilusões Armadas, A Ditadura Derrotada, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 502-505; Já a relação entre a conquista da Copa do Mundo, em 1970, e as vendas de televisores no Brasil, foi estabelecida no site: http://tudosobretv.com/histortv/tv70.htm ; Frase de Raul que o disco mostrava o panorama atual: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 97 (entrevista do cantor aO Pasquim, em 1973). Já a citação de que foi mais revolta: idem, p. 43 (texto de André Mauro, O Último Anarquista); A CBS relançou o disco em 1984; 3 Para a relação das músicas de cada disco, ver: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. Nesta obra aparece claramente a mudança do nome do compositor de Raulzito, no primeiro LP, para Raul Seixas, no segundo; O dadaísmo foi um movimento de intelectuais em repúdio ao conflito da Primeira Guerra Mundial e aos valores da Civilização Ocidental. Seu princípio de coesão era o escândalo. Marcel Duchamp, um dos integrantes, colocou um vaso sanitário numa exposição em Nova York, no ano de 1916, denominando “Arte Instantânea”, o que configurou um marco do movimento. Ver: HOBSBAWM, Eric, Era dos Extremos, O Breve Século XX – 1914-1991, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 178-179; 4 A foto em que Raul Seixas aparece com os pés virados em relação ao olhar, consta do livro: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 20, e a legenda da p. 21, diz: Raul numa passarela da cidade do Rio de Janeiro, 1971. Sobre os Beatles cantarem realmente a vida deles, ... , o que pensam, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 20 (um estudo de Ana Maria Bahiana); e sobre a influência dos Beatles sobre Raul, idem, ibidem, p.23; Sobre a frase: Não sei para onde estou indo, mas estou no meu caminho, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 106; a música No fundo do quintal da escola, diz: Não sei onde eu tô indo mas sei que eu tô no meu caminho, LP O dia em que a Terra parou, WEA, 1977. Raul também cita: Mergulhei no rock’n’roll como quem acha o caminho, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 41; 5 Sobre o receio de voltar para Salvador, para talvez ser um bancário ou coisa parecida, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 76 (entrevista do cantor a Gay Vaquer, em 1972); em 1984, na música Mas I love you (Pra ser feliz), incluída no LP Metrô Linha 743, Som Livre, Raul desenvolve a idéia que largaria tudo pela sua amada, e diz: O que é que cê quer? Que eu largue isso aqui? É só pedir, soldado ou bancário, garçom ou chofer, eu paro de ser, ver: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit., p. 302; com relação ao simples medo de ter um emprego, ver: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 81 (entrevista de Raul Seixas à Radio Globo AM, em 1987); este receio parece ter contribuído na composição da música É fim de mês (1975), citada no texto. Com Deus e com o lobisomem E nquanto produtor da gravadora CBS, Raul Seixas compôs cerca de 80 músicas, hoje ditas cafonas, bregas ou simplesmente pop, as quais assinou como Raulzito. Seus intérpretes eram egressos ou simpatizantes da Jovem Guarda e algumas músicas foram sucessos nacionais, como Doce, doce amor, gravado por Jerry Adriani, e Ainda queima a esperança, na voz de Diana. Esta, inclusive, agradece ao Raul por tê-la colocado no meio artístico brasileiro.1 Apesar de que tal currículo poderia, para muita gente, ser motivo de orgulho, ele praticamente inexiste para Raul. Os sites ignoram o caso e as suas biografias falam do assunto apenas de passagem, sem entrar em detalhes. O historiador Paulo César de Araújo percebeu, por exemplo, que a própria antologia do cantor simplesmente silencia esta fase tão criativa.2 Um dos motivos para isso é dado pelo próprio Raul. Em todas as suas entrevistas ele encarou a época como um mal necessário. Chega a falar que havia sido uma coisa inconseqüente, mas que acabou fazendo porque senão outra pessoa ia fazer. Afirmação que, em se tratando de arte, é no mínimo duvidosa, pois outra pessoa certamente faria de outra forma.3 Porém, a justificativa mais freqüente em suas entrevistas é que utilizou as composições como uma espécie de aprendizagem. Foi na CBS e com essas canções que, segundo ele, aprendeu a fazer a música comercial, fácil, intuitiva, bonitinha, que leva direitinho o que a gente quer dizer. Era a história de entrar num buraco de rato para aprender o jogo dele. Ou seja, Raul não abre mão de ter a música como um meio de transmitir mensagens. Sobre isso, revelou: A música é apenas um veículo, cara, um veículo. O microfone na mão é uma coisa importante, é uma arma tão poderosa como a bomba atômica. Assim, ele viu a importância daquela fase apenas como a apropriação dos meios de produção cultural, os quais lhes serviriam posteriormente. No entanto, parece claro que se essas músicas fossem acrescidas à sua antologia e às suas biografias, elas só iriam engrandecer a arte de Raul, pois Deus, algumas vezes, nem que seja somente para desenfastiar e por pouco tempo, permite soltar o lobisomem.4 Mas, no que se refere ao jogo do rato, existe ainda uma observação a fazer. Através da sua música manifesto – As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor – Raul vê Raulzito como sendo o mesmo homem, só que aparentemente em atitudes e situações bem distintas: um transando com Deus, e o outro com o lobisomem. Isto é, ao tempo que compara, ele pede também para não confundir. Não se trata, enfim, de evolução, pois cada um trabalha, inclusive num mesmo momento, dentro de limites bem definidos. No LP Gita (1974), Raul canta o bolero Sessão das 10, lançado inicialmente em 1971 no disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista... Existe, porém, uma sutil diferença, além do arranjo musical: a autoria da música, que originalmente havia sido grafada como de Raul Seixas, agora passou a pertencer ao coitado do Raulzito. Será que o bolero combinaria melhor com tal personalidade? Mais intrigante, porém, é que, na antologia mais conhecida de Raul, esta música simplesmente desaparece do LP Gita, como se a ele fosse estranha e dele não fizesse parte; como se fosse melhor deixá-la somente lá atrás, na época dos aventureiros Kavernistas.5 Se Raul Seixas e Raulzito sempre foram o mesmo homem, mesmo com missões diferentes, é gratificante descobrir que a sua magia é fácil de encontrar, – tão – bem, seja onde for.6 Notas 1 No início da música Ainda queima a esperança, Diana diz: Eu tenho a honra de ter sido lançada no meio artístico brasileiro, em 72, por um baiano chamado Raul Santos Seixas..., quinta música do CD: Diana ao vivo, Gema, São Paulo, 1999; 2 3 ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 208; Falando sobre o disco da Sociedade da Grã-Ordem Kavernista..., Raul afirma: Foi a última coisa que fiz de bacana antes de colocar duas músicas no festival, ou seja, despreza todo o período em que compôs para outros cantores, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p.78 (entrevista do cantor a Gay Vaquer, em 1972); Sobre a inconseqüência daquela fase: Idem, (entrevista do cantor aO Pasquim, em 1973); pp. 96-97 4 Sobre música comercial, fácil, etc, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 25 (um estudo de Ana Maria Bahiana); A referência de Raul à música como veículo, vide show publicado no vídeo Raul Seixas também é documento, MZA Music, 1998; O cantor também fala da música ser mais comunicativa do que a literatura: Aí eu desisti de vez do livro que eu ia fazer, o tratado de metafísica. Decidi chegar ao livro através dos discos, dos sulcos, das rádios. É mais positivo. É melhor. Idem. Ibidem, p. 25; Raul também diz: ...eu queria atingir uma coisa pela literatura. Mas eu vi que a literatura é uma coisa dificílima de fazer aqui, de comunicar tão rapidamente como a música. Idem, p. 87 (entrevista do cantor aO Pasquim, em 1973); aliás, os discos daquela época vinham com a expressão disco é cultura, pois, assim como os livros, eram vistos como transmissores de cultura, o que levou Belchior cantar: Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos... Estas últimas percepções estão em: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 188; Passagem bíblica afirma que o Diabo será preso por mil anos, devendo depois ser solto por um pouco de tempo. Apocalipse 20-3; 5 A música Sessão das Dez figura como a sexta faixa da Lado A do LP Gita, lançado em 1974 pela Philips, a única que tem Raulzito como autor, as demais levam o nome de Raul Seixas. Entretanto, aquela não consta da relação das letras das músicas deste LP na publicação: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 362; a referida música aparece apenas integrando o LP Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, 1971, com a autoria de Raul Seixas. Idem, ibidem, p. 143; anteriormente, na seção Discografia, a música é relacionada em ambos os discos, mas não há o registro das autorias nem as notas se preocupam com a questão: Idem, pp. 113-115; 6 A última frase do texto é uma adaptação do refrão: ...eu vou te encontrar, meu bem, seja onde for, da música Doce, doce amor, de Raulzito e Mauro Mota, gravada por Jerry Adriani. Dois e dois são cinco N o decorrer de 1972, o disco de Roberto Carlos, lançado estrategicamente em fins do ano anterior, alcançava pleno sucesso, tendo a faixa Como dois e dois, de autoria de Caetano Veloso, um dos maiores destaques. Naquele mesmo ano, Raul Seixas concorria no VII Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, com a música Let me sing, let me sing. Curiosamente, as letras das duas composições possuem uma frase exatamente igual, mas com sentidos completamente diferentes: dois e dois são cinco! Vivia-se um tempo de extremo maniqueísmo no Brasil. Quando a repressão à cultura tornou-se explícita, os militares passaram a ser combatidos, principalmente pelos intelectuais atingidos, como o mal absoluto e prioritário. Até o Tropicalismo abandonou o lirismo inicial da bossa nova e partiu para o caminho da contestação política. E não era para menos, pois, numa época de caça às bruxas, a própria bossa nova já havia sido vista como simples montagem do samba com a música norte-americana. Assim, qualquer vacilo poderia decretar o fim da carreira de um artista. Aconteceram, ainda, situações em que cantores, distanciados da agitação universitária, passaram propositadamente para a linha de frente do pensamento da esquerda.1 O movimento político-cultural de então, estava de acordo com os pressupostos do materialismo histórico e dialético, os quais orientavam à busca de um método que permitisse a passagem da imagem caótica do real para uma estrutura racional. Esta idéia de transformação social; este otimismo obscuro do caos que permeia o novo e de que amanhã vai ser outro dia, reforçavam o mito da modernidade. Muitos intelectuais, ainda divulgadores da ideologia nacional-desenvolvimentista, viam nos movimentos culturais uma forma não apenas de libertação política, mas também uma oportunidade de livrar a cultura brasileira do ranço tradicionalista do passado, o que se adequaria melhor a um país prestes a superar a fase de subdesenvolvimento.2 No meio desse torvelinho, Raul Seixas pregava também uma revolução. Porém, menos como fruto de um processo dialético do que propriamente do acaso. Raul acreditava que a humanidade, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, estava em transformação e que os jovens iam dominar o mundo. Sua doutrina encontrava abrigo mais na emoção do que na razão e o instrumento desse processo atendia pelo nome de rock’n’roll.3 Portanto, quando Caetano diz que está tudo certo, como dois e dois são cinco, ele denuncia, no exílio, que tudo está errado; que tudo vai mal; que tudo em volta está deserto; que tudo precisa ser corrigido, mudado, ser como antes: dois e dois voltar a ser quatro. Raul, ao contrário, acredita que dois e dois são cinco, né mais quatro não! Ou seja, que a verdade absoluta e os dogmas científicos já podem ser questionados. Grita, assim, o seu conceito anti-racionalista e antimodernista da mudança. O seu anarquismo sutil, baseado na lei do forte, admite que qualquer um já pode crer no absurdo; que esta mudança é irreversível e que os próprios preceitos racionais estão ruindo. Reafirma, enfim, a sua visão metafísica da existência, intolerável na época, e que ele continua longe, fugindo do logicismo.4 Enquanto Caetano dizia que gente é pra brilhar, mas sentia a necessidade de concluir: não pra morrer de fome, caindo, assim, na equação cartesiana de que com fome ninguém pode brilhar, e definindo, portanto, a sua prioridade, Raul Seixas falava que gente nasceu para querer, e recorria ao brado sexual-libertário do guru Aleister Crowley, afirmando simplesmente, e tão somente, que todo homem e toda mulher é uma estrela.5 Notas 1 A repressão à cultura durante o regime militar no Brasil, foi citado em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 17; a mudança do Tropicalismo do lirismo da bossanova para o caminho da contestação política: Idem. Ibidem, p. 19; Para a acusação de que a bossa-nova seria uma mistura de samba com música norte-americana, ver: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 340; a perseguição ideológica da esquerda a artistas como Wilson Simonal, à dupla Dom & Ravel, e outros: idem. Ibidem, pp. 268-295; já os que optaram a se abrigar na linha de pensamento da esquerda, ver o caso do cantor e compositor Ivan Lins: idem. Ibidem, pp. 285-286; 2 O materialismo histórico e dialético como movimento modernista, ver: GOMES, Paulo César da Costa, Geografia e Modernidade, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 281; Sobre os intelectuais ligados à ideologia nacional-desenvolvimentista, ver: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 342; 3 Sobre a idéia de que os jovens iam dominar o mundo: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 41 (citado no texto: O Último Anarquista, de André Mauro); 4 Raul admite que a Sociedade Alternativa era uma idéia anarquista, mas afirma ser diferente da noção clássica do anarquismo. Diz: é um anarquismo muito sutil, e complementa: ao mesmo tempo em que eu falo ‘faça o que tu queres que será da lei’, também digo: ‘a lei do forte, essa é a nossa lei e alegria do mundo. Ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 127 (entrevista à revista Amiga, 1982); estas citações estão na introdução do Livro da Lei, de Aleister Crowley. Ver: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 65-69; revoltado com as músicas de protesto, Raul explode: O que é que se tem pra protestar? Quem é forte é forte e dá porrada. Você vai se lamentar? Se você é mais fraco, dane-se! Isso pode parecer nazismo, mas se você é fraco e não quer levar porrada, fique forte e passe a dar. É Hitler mesmo! E tem mais bicho: dar entrevista é uma coisa muito perigosa. Vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 113 (entrevista concedida à Aloysio Reys do Jornal de Música, em 1976); Sobre o seu ponto de vista metafísico da existência: idem, p. 137 (entrevista à revista Amiga, 1982); Com relação à sua fuga do logicismo: idem, p. 94 (entrevista aO Pasquim, em 1973); 5 Música de Caetano Veloso: Gente, LP Bicho, Polygram, 1977; Música de Raul Seixas e Cláudio Roberto: Gente, LP Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, Copacabana, 1987. A linha evolutiva da Música Popular Brasileira A geografia dos movimentos musicais no início da década de 1960, em Salvador, era bem definida: a Jovem Guarda e o Rock ocupavam o Cinema Roma, enquanto a Bossa Nova usava o Teatro Vila Velha. A relação entre os grupos, porém, não era amena. Os roqueiros eram acusados de reacionários, entreguistas e americanistas, além de praticar um negócio de segunda categoria. Na época, até a guitarra elétrica era a vilã em passeatas de protesto. Os ligados à Bossa Nova se diziam nacionalistas e brasileiros. Já a turma do Rock debochava com suas roupas extravagantes e comportamentos estranhos. Raul Seixas, um dos líderes, declarou não gostar de Bossa Nova e até mesmo ter ódio dela.1 Com o surgimento da idéia de uma música popular brasileira – MPB – as hostilidades recrudesceram ainda mais. Num tempo em que a ética não era preocupação, Tim Maia soltou o verbo e disse: John Lennon é uma besta, e Raul Seixas é a cópia xerox da burrice. Eles são dois quadrúpedes... Sendo livre e comum a pichação, Raul retrucou dizendo que essa conversa de MPB não tem sentido. É tudo invenção, festival de televisão. E ainda: Essa história de procurar raízes é bobagem. As únicas raízes que eu conheço são de amendoim e mandioca.2 Numa entrevista em 1966, Caetano Veloso cunhou a expressão linha evolutiva da Música Popular Brasileira, que foi adotada pelos críticos de música. Até hoje esta idéia é admitida por ele. Porém, em 1974, na música manifesto As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor, Raul mete a colher no assunto, dizendo não ter nada a ver com essa tal linha evolutiva da música popular brasileira, concluindo irônico que a única linha que ele conhece é a linha de empinar uma bandeira. Todas as vezes que interpretava esta música, ele fazia gestos críticos, como se estivesse afinando um violão invisível, e se sentando no chão. Em um dos shows, inclusive, ensaiou o refrão de Garota de Ipanema. As relações de Raul com os bossa-novistas sempre foram tensas, principalmente por ser um movimento de grande repercussão na Bahia, sua terra natal, e por ele possuir uma visão completamente distinta do espaço musical. Mesmo nas raras ocasiões em que elogiou o Tropicalismo, Raul fez questão de dizer que era baiano, porém do outro lado, ou que foi destacado para ser mais um baiano, mas não era dos baianos. Gracejava que os outros eram esquisitos demais e que a Bossa Nova era um modismo pra gente de elite.3 Em 1975 o assunto ainda preocupava Raul. Na música Eu sou egoísta, ele admite que é ista, mas, antes de ser fascista ou antisocialista, ele é mesmo egoísta. Explica depois que é o egoísmo no bom sentido. O egoísmo de você saber que é diferente de todo mundo e que todo mundo é diferente de você. Porém, a música termina com a frase: Por que não? nos mesmos acordes de Alegria, alegria, de Caetano. Em entrevista da época, Raul afirma que é egoísta, pois acha que o individualismo é muito mais sincero do que as preocupações com a coletividade. Não parece absurdo supor que, na música, ele estava querendo dizer que todos são egoístas, inclusive os que assumiam posições de líderes e representantes do povo. Nesse caso, o recado seria amplo, tendo Caetano apenas como referência.4 Fica, enfim, a insistência de Raul Seixas em deixar claro que não pertencia a grupo nenhum, negando qualquer processo evolutivo para além do próprio indivíduo. E enquanto muitos sonhavam com dias melhores, ele insistia que quem não tem presente se conforma com o futuro.5 Notas 1 Sobre a guerra entre o Cinema Roma e o Teatro Vila Velha; a reação contra os roqueiros e o ódio de Raul pela Bossa Nova: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 21 (um estudo de Ana Maria Bahiana); O rock como negócio de segunda categoria: idem, p. 87 (entrevista aO Pasquim, em 1973); Aconteceu em São Paulo uma passeata contra a guitarra elétrica, cujo objetivo era buscar uma música popular brasileira autêntica, pura, tradicional e legítima, citada em: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 339; criticando o movimento chamado o Fino da Bossa, Raul diz: ...E no Teatro Vila Velha se apresentavam os intelectuais: Caetano, Gil, Tom Zé, Maria Betânia, que faziam Bossa Nova. E eles eram contra a guitarra elétrica. Falavam que era entreguismo. Ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 150 (entrevista concedida à Revista Bizz, em 1987); 2 A declaração de Tim Maia foi registrada em: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 177; A opinião de Raul Seixas sobre a MPB: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 123 (entrevista concedida ao repórter Ricardo Porto de Almeida, em 1980); e sobre a história de raízes ser bobagem, Idem, p. 113 (entrevista concedida à Aloysio Reys do Jornal de Música, em 1976); 3 Em 1966, numa mesa redonda promovida pela Revista Civilização Brasileira, Caetano disse: Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. A expressão foi adotada por Augusto de Campos e por outros críticos de música popular até os dias de hoje. Vide: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 343 e Nota 588, p.407; Caetano sugere continuar acreditando nessa idéia, pois, em um show no Metropolitan do Rio de Janeiro, em setembro de 1995, ao discutir a questão de gravar músicas em outras línguas, ele falou: ...Mas a única coisa que eu posso assegurar é que, aonde quer que eu vá, e como quer que eu lá chegue, vai comigo minha versão particular, muito complexa, do que seja o desenvolvimento da música popular brasileira. Uma tradição, aliás, da qual devemos nos orgulhar de verdade. Mas, embora essa versão seja complexa, como disse, pode ser sucintamente descrita como a paixão que o canto de Orlando Silva desencadeou em João Gilberto, levando-o a criar uma forma de música popular brasileira moderna, que influenciou o mundo e revolucionou o Brasil, em: Caetano Veloso – un Caballero de Fina Estampa,DVD, Universal, 2001; Shows em que Raul ironiza com a música popular brasileira, ao cantar As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor: Festival Música na Praia, Gonzaga – Santos SP, em 13.02.1982, e apresentação em São Paulo, em 06.04.1982: Vídeo Raul Seixas também é documento, MZA Music, 1998; e documentário Raul Seixas Documento 1979-1989, fornecido pelo Raul Rock Club/SP; Das 10 entrevistas pesquisadas, em apenas duas, das menores, Raul não cita o período inicial de sua carreira na Bahia. Nas oito restantes, somente em uma ele se refere isoladamente e de forma positiva ao Tropicalismo. Em outras duas ele elogia os tropicalistas, mas também faz severa crítica à Bossa Nova e aos grupos baianos. E em cinco entrevistas, portanto, a metade do montante analisado, ele não economiza injúrias aos grupos baianos, à Bossa Nova e/ou à MPB: ALVES, Luciane, Op. Cit. pp. 75-105, e Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 75-155; A afirmação de que eram baianos ‘do outro lado’, foi feita por Marcelo Nova, que estava sendo entrevistado juntamente com Raul, o qual aprovou a frase: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 100 (entrevista no programa Jô Soares Onze e Meia, em 1989); Declaração de que ele, Raul, não era dos baianos, e que estes eram esquisitos demais: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 151 (entrevista à revista Bizz, em 1987), e p. 137 (entrevista à revista Amiga, 1982), respectivamente; Sobre o modismo e o elitismo da Bossa Nova: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 88 (entrevista do cantor no programa Jô Soares Onze e Meia, em 1989); 4 A frase: egoísmo no bom sentido está em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 100 (entrevista no programa Jô Soares Onze e Meia, em 1989); Sobre o individualismo ser mais sincero do que as preocupações com a coletividade: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 110 (entrevista concedida à Aloysio Reys do Jornal de Música, em 1976); Afirmação de que Raul não pertence a grupo nenhum: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 137 (entrevista à revista Amiga, 1982); 5 Raul admitia a evolução pessoal, a partir das experiências vividas, como um degrau. Cada fase é uma escada mesmo. Um lugar que você vai chegando gradativamente. Nega, portanto, a evolução coletiva. Em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 103 (entrevista aO Pasquim, em 1973); No Festival de Música na Praia, Gonzaga, Santos SP, ocorrido em 13.02.1982, Raul cantou a música Como Vovó já dizia, porém, no lugar do refrão quem não tem visão, bate a cara contra o muro, diz: quem não tem presente, se contenta com o futuro. A música, de Raul Seixas e Paulo Coelho, foi lançada em Compacto Simples, em 1974, isto é, durante o Regime Militar. Não é absurdo supor que esse trecho fizesse parte da versão original, tendo sido cortado pela Censura. De qualquer forma, é mais um exemplo de como a linha de Raul desagradava à esquerda e à direita. Tudo acaba onde começou E m 2000, Caetano Veloso lançou uma música em homenagem à Raul Seixas intitulada Rock’n’Raul. O fato causou a irritação dos fãs do roqueiro e provocou até uma contestação do cantor Lobão, através de um longo e confuso poema canção.1 Mesmo que a intenção tenha sido saldar Raul, alguns trechos parecem reviver as velhas brigas dos anos 60 em Salvador. A música tem início afirmando que quando eu passei por aqui, a minha luta foi exibir uma vontade fela-da-puta de ser americano. Mesmo deixando de lado a carga emocional, e até alegórica, da construção, existe uma certa incompreensão ou má-fé com o pensamento de Raul. Este achava que o rock and roll era um fenômeno sem fronteiras e que iria revolucionar o mundo. O rock, para Raul, foi até 1959, quando ainda assumia uma posição de contestação social; quando Elvis Presley, com a sua liberdade de movimentos, ainda era visto como um maníaco sexual ou uma conspiração comunista. Raul também defendia que não se pode enfrentar o Monstro Sist fora dele. Ao pretender gravar um disco nos Estados Unidos, ele disse: Isto poderia ser visto como uma incoerência minha, porque é de lá que vem esse sistema de opressão, de ratos. Mas não é. Pra desarmar a arapuca tem-se de entrar dentro dela. Portanto, não era de admirar que viesse dos States a tão esperada revolução universal. Nesse caso, pode-se até falar que ele foi ingênuo ao acreditar que os jovens iriam redimir o mundo. Mas, pensando bem, quem não foi?2 Voltando à Caetano, mais adiante ele diz: Nada de axé, Dodô e Curuzu, a verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul. Temos aqui uma negação que afirma e uma afirmação que nega. A citação de símbolos inequívocos da Bahia lança na mentira toda alegação em contrário. Assim, a frase tenta estabelecer a idéia de que Raul é que é o estranho na cultura baiana. Isso sem falar na rima de mau gosto com o Rio Grande do Sul, estado marcado por movimentos separatistas, cuja comparação com uma cultura alienígena é, no mínimo, infeliz. Tais argumentos parecem mais uma resposta às posições individualistas do roqueiro, o qual, ainda em 1982, afirmou: Eu não pertenço ao grupo baiano, nunca pertenci, acho que sou estrangeiro a ele. Nem queria pertencer... Eles não me querem; eu não os quero. Pode ser, também, um troco à homenagem que Raul prestou aos seus conterrâneos em seu último trabalho, cuja música Rock and Roll acusa: No teatro Vila Velha, velho conceito de moral / Bosta nova pra universitários, gente fina, intelectual / Oxalá, oxum, dendê / Oxossi de não sei o quê.. 3 Porém, Caetano ainda fala que hoje, na Bahia, qualquer um, inclusive ele, pode dizer que o Krig-Ha Bandolo é puro ouro de tolo. Ou seja, que, na Bahia, Raul não passa de um brilho falso, que só engana o que não sabe distinguí-lo das verdadeiras jóias raras. Homenagens e críticas à parte, resta, enfim, um ponto em comum: da mesma forma que a Bossa Nova pregava uma suposta linguagem universal, o rock’n’roll, pelo menos na visão de Raul Seixas, também pretendia estar distante, muito longe das cercas embandeiradas que separam quintais.4 Notas 1 Rock’n’Raul é a quinta música do CD Noites do Norte, de Caetano Veloso, o qual consta como autor da mesma. Estação CD, 2000; A música poema de Lobão que defende Raul Seixas chama-se Para o mano Caetano, e está no CD Lobão 2001 – Uma Odisséia no Universos, conforme consulta ao site: http://www.uol.com.br/lobao ; 2 Sobre o rock ter morrido em 1959, ver: ALVES, Luciane, Op. Cit. pp. 7677 (entrevista de Raul Seixas à Radio Globo AM, em 1987); Elvis Presley como um maníaco sexual ou uma conspiração comunista: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 18-19 (um estudo de Ana Maria Bahiana); Os Estados Unidos como um sistema de opressão, de ratos: idem, p. 118 (entrevista concedida ao repórter Ricardo Porto de Almeida, em 1980); Os Estados Unidos da década de 1950 como um espaço de rebeldia, ver: GASPARI, Elio, As Ilusões Armadas, A Ditadura Envergonhada, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp.213-215; 3 A afirmação de Raul de que não pertencia ao grupo baiano, etc, está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 137 (entrevista à revista Amiga, 1982); A letra da música Rock and Roll, consta do CD Raul Seixas e Marcelo Nova, A Panela do Diabo, 1989, WEA, relacionada em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 334; 4 A bossa nova como linguagem universal, foi citada no debate entre a vertente da tradição e a vertente da modernidade da música popular brasileira, por: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 339. Quando os dois pensavam sobre o mundo A s obras de Raul Seixas e Belchior possuem pontos em comum: ambas se baseiam na crítica ao cotidiano e assumem a influência da música regional, do rock e dos Beatles. Aliás, são muitas as citações em inglês nas composições dos dois.1 Entretanto, há também grandes divergências. Em 1976, após Belchior lançar o brado dos oprimidos Apenas um rapaz latino-americano, Raul não se conteve e reagiu com um desabafo: Eu também vou reclamar. Nesta canção, que cita literalmente o trabalho de Belchior, o roqueiro faz uma espécie de denúncia dos falsos profetas. Acusa aqueles que, por trás do verniz da política, escondem a incompetência artística e o apelo comercial. Em entrevista naquele mesmo ano, diz que a diferença básica entre os dois cantores é que ele, Raul, não se queixa de nada, pois não está para enganar estudantes. Afirmou que, mesmo de forma inconsciente, era isso o que faziam aqueles que ficavam reclamando dos poderosos para empolgar os estudantes. Raul via, em tais movimentos, uma proposta desgastada de mudança. O Novo não poderia vir ou evoluir do Velho. O Novo (com n maiúsculo) está diante de nós. Mas só vai enxergar o Novo quem tiver olho novo. Portanto, o rock lamento de Belchior não combinava com a imagem anárquica de James Dean: ele havia arranjado uma velha causa para a sua rebeldia.2 Nesse contexto, Raul também não ficava imune a críticas. Da ótica dos contestadores do regime militar, como era que alguém, vendo a sociedade polarizada, poderia falar que não existe diferença entre materialismo e idealismo e cantar que o mal vem de braços e abraços com o bem, num romance astral? Pois exatamente naquele disco de 1976, Belchior havia assim se referido: Eu não estou interessado em nenhuma teoria, nem nessas coisas do Oriente, romances astrais. A minha alucinação é suportar o dia-a-dia e o meu delírio é experiências com coisas reais. Teria esta frase motivado Raul a reclamar dos reclamadores?3 Numa temática que foi abordada pelos dois, a desventura do cidadão comum mergulhado na rotina diária, fica explicitada a diferença entre as duas visões. Em 1971, já no segundo LP, Raul apresenta a figura do Dr. Paxeco: um sujeito escravo do trabalho, mas que é também responsável pelo próprio infortúnio, afinal, ele é o herói dos dias úteis e se mistura às pessoas que o fizeram. Em 1975, Raul lançou a música É fim de mês, que se trata de uma denúncia bem humorada da tolice do cotidiano e daqueles que não conseguem dele escapar. A letra está na primeira pessoa para que, como em outras obras do cantor, o ouvinte pudesse se identificar mais rapidamente com a mensagem. Finalmente, saiu, em 1976, Meu amigo Pedro, uma crítica destinada aos que largam os sonhos alternativos para se entregar aos paraísos e infernos da vida normal. Por outro lado, em Pequeno perfil de um cidadão comum (1979), Belchior retratou o drama de um homem humilhado e ofendido, vítima da opressão, incapaz de reagir às forças que o subjugam. Trata-se de um sujeito ingênuo, submisso, alienado, que sempre diz sim e que não tem consciência da sua situação. Ao contrário dos Paxecos e dos Pedros, os quais fizeram escolhas, ele não tem culpa nem responde pelos seus atos. Pessoa boa, honesta e que conhece o seu lugar, não merece nenhuma censura do poeta, apenas inspira o lamento.4 E enquanto Belchior, ao ouvir estrelas, suspira aliviado porque se a Terra já tem dono, o céu ainda não tem, Raul Seixas, voltado para dentro do indivíduo, grita que cada um de nós é um universo. Notas 1 No LP Medo de avião, Warner,1979, das onze músicas existentes, cinco possuem citações em inglês; 2 A música Apenas um rapaz latino-americano, está no LP Alucinação, Polygram, 1976, de Belchior; A música Eu também vou reclamar, faz parte do LP Há dez mil anos atrás, Philips, 1976, de Raul Seixas, e começa com a seguinte denúncia: Mas é que, se agora pra fazer sucesso, pra vender disco de protesto, todo mundo tem que reclamar...; Sobre Raul não estar para enganar estudante: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 111 (entrevista concedida à Aloysio Reys do Jornal de Música, em 1976); e: o Novo (com n maiúsculo): idem, ibidem: p.109; 3 A citação o mal vem de braços e abraços com o bem num romance astral, está na música O trem das sete, do LP Gita, Philips, 1974, de Raul Seixas; e o trecho em que Belchior cita romances astrais está na música Alucinação, do LP de mesmo nome, Op. Cit.; 4 A tese de que Raul Seixas escreveu muitas músicas na primeira pessoa, colocando em muitos títulos, inclusive, a palavra Eu, é discutida em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 31-32; Dr. Paxeco faz parte do LP Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10, CBS, 1971; É fim de mês, está no LP Novo Aeon, Philips, 1975, e a música Meu amigo Pedro é a segunda faixa do LP Há 10 mil anos atrás, Philips, 1976, todos de Raul Seixas; Já a canção de Belchior Pequeno perfil de um cidadão comum, consta do LP Medo de avião, Op. Cit. Todos os caminhos são iguais A obra de Belchior é acentuadamente melancólica. Em suas músicas se escuta: Não sou feliz, mas não sou mudo; Não há motivo para a festa: ora esta! Eu não sei rir à toa, etc. Parece fazer coro com a legião de intelectuais e artistas que insistiram que o brasileiro é antes de tudo um triste.1 A sua voz é lamento e decepção, pois confessa que a nossa esperança de jovens não aconteceu, e conclui: Eles venceram e o sinal está fechado pra nós. A idéia do tempo, trazendo inexoravelmente o novo, também o preocupa: O que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo, e, num recado a John Lennon, disse: O tempo andou mexendo com a gente. Raul Seixas, porém, ainda acreditava na utopia dos jovens. Destilando o seu otimismo libertário veio dizer que o sonho terminou. E era uma boa notícia, pois o fim do sonho implicava no começo da realidade. A mudança já era real, sendo ele a própria prova disso. Enquanto Belchior percebe que continua a viver como os seus pais, Raul Seixas comemora porque sua mãe já ouve Beatles e seu pai já desbundou. Era a revolução em andamento.2 Outra característica da obra de Belchior é a geografia dos oprimidos: o Nordeste e a América Latina são retratados como lugares dos esquecidos, dos condenados, dos ofendidos. O próprio Brasil aparece feito de três raças tristes, signo da nossa inocência índia, o que funde, numa só cartada, o mito das três raças com mito do bom selvagem. Foi esse tipo de abordagem inferiorizada que inquietou Raul Seixas. Para ele, o Nordeste também era uma ficção, mas não por ser desprezado e merecedor de maior atenção, mas porque todas as regiões não passavam de convenções da Velha política. Sobre o assunto, chegou a dizer que a cultura brasileira é uma só e as respostas são iguais em todos os lugares. Portanto, escolher um tango a um blue, só porque se nasceu em algum lugar, era inaceitável. Para Raul, o recorte poderia ser musical ou temporal, mas jamais geográfico. Por isso, ele bradou: Eu não estou me queixando de nada porque eu não sou um rapaz latino- americano. Esse regionalismo não está em mim... Eu sou Raul Seixas, o único. Eu não pertenço a qualquer grupo político ou regional. Com relação ao povo, resumiu: o povo sempre foi povo, sempre foi liderado... Porque sempre existiu povo e quem sempre mandou no povo desde os primórdios da história foi uma elite. Ou seja, fora do indivíduo não havia salvação.3 Mas o tempo parece, de fato, mexer com alguma coisa. Em 1984 Belchior gravou Ouro de Tolo e, quem sabe, o individualismo do roqueiro pode ter-lhe arrancado, mesmo que por alguns instantes, do pessimismo em que sua obra está imersa. Quanto a Raul, um ano antes ele já havia descido, pelo menos por um momento, do seu universalismo otimista. Ao falar do Brasil, lamenta, como tantos outros, que não tem do que se orgulhar, pois nós não temos história, é uma vida sem vitórias, eu duvido que isso vai mudar.4 Notas 1 A frase: Não sou feliz, mas não sou mudo, está na música Galos, noites e quintais, LP Coração Selvagem, Warner, 1977; e Eu não sei rir à toa..., em Conheço o meu lugar, LP Medo de avião, Op. Cit; A discussão de que o Brasil é habitado por um povo triste, opinião que aparece em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Paulo Prado e que também é encontrada na obra de vários cantores populares, está em ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. pp. 251-268; 2 Ver as seguintes composições de Belchior: Não leve flores, Como nossos pais e Velha roupa colorida, do LP Alucinação, Op. Cit.; e Comentário a respeito de John, LP Medo de avião, Op. Cit; Ver também a música Let me sing, let me sing, CD Documento, MZA Music, 1998, de Raul Seixas; Na música A verdade sobre a nostalgia, LP Novo Aeon, Op. Cit., de Raul Seixas, ele diz: Mamãe já ouve Beatles, Papai já deslumbrou..., palavra esta que fica sem muita clareza na frase. Porém, em entrevista de março de 1987, ele fala: ...Papai já desbundou, o que sugere que a mudança pode ter ocorrido por problemas com a censura. Vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 149 (entrevista à revista Bizz, em 1987); 3 Mitos brasileiros na obra de Belchior, ver música: Retórica sentimental, LP Medo de avião, Op. Cit. Sobre a declaração de Raul de que a cultura brasileira é uma só, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 112 (entrevista concedida à Aloysio Reys do Jornal de Música, em 1976); com relação a ele ser único e não pertencer a nenhum grupo: idem, ibidem, p. 111; sobre o povo ser liderado: idem, p. 122 (entrevista concedida ao repórter Ricardo Porto de Almeida, 1980), e que uma elite sempre mandou no povo: idem, p.127 (entrevista à revista Amiga, 1982); 4 A música em que Raul lamenta a situação do Brasil chama-se Não fosse o Cabral; é assinada somente por ele e está no disco Raul Seixas, 1983, Estúdio Eldorado, relacionada em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 283-284. Deixe-me cantar meu Rock and Roll E m 1972 Raul Seixas decidiu transar com o Monstro Sist e, mesmo contrário às suas convicções, participou do VII Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, do Rio.1 Os tempos estavam quentes. Os festivais eram os locais preferidos para as críticas ao regime militar e muitos dos participantes dos eventos anteriores se encontravam no exílio. Cada movimento dos jurados era monitorado. Quando souberam que a música cotada para vencer era uma tal de Cabeça, de Walter Franco, cuja letra fragmentada insistia em perguntar: O que é que tem nessa cabeça, irmão?, os censores não gostaram e acabaram mudando a comissão julgadora. A música Fio Maravilha, composta por Jorge Ben e interpretada por Maria Alcina, terminou como vencedora. A letra comportada faz homenagem a um jogador de futebol que, por coincidência, era do Flamengo, time de grande torcida no País, além de ser o preferido do compositor vitorioso e também do então Presidente Médice. Aliás, estava-se em setembro, mês em que se comemorava o sesquicentenário da Independência, e o ufanismo nacionalista também contaminava setores importantes da música brasileira. Em revide, os artistas mais intelectualizados exigiam dos colegas manifestos explícitos contra o governo.2 É nesse pandemônio que Raul Seixas chega com a música Let me sing, let me sing, pedindo literalmente para deixarem-no cantar o seu som. E o pedido é amplo: à censura, às gravadoras, ao próprio público.3 Num ambiente dividido entre o Bem e o Mal, entre a platéia e os bastidores, entre os alienados e os engajados, Raul abriu o seu cardápio anarquista, o qual o acompanharia por toda a sua carreira. Aos que esperavam um novo líder com uma nova revelação, ele cantou: Não vim aqui querendo provar nada, não tenho nada pra dizer também. Entre as flores e os canhões, sentenciou: Não quero ser o dono da verdade, pois a verdade não tem dono não.4 Esta música, vista em retrospectiva, foi uma grande inovação no festival. Não apenas pela letra fora do eixo ufanismo-crítica; nem somente pela música audaciosa: um rock primitivo enxertado com baião, mas também por que lançou Raul como artista de forte presença de palco. Enquanto chocava os ouvintes dizendo que não fora ali tratar dos problemas deles, tentava, em vão, tranqüilizar a retaguarda, assegurando que só fora curtir seu rockzinho antigo, que não tem perigo, de assustar ninguém, tudo empacotado em roupa de couro e com trejeitos no melhor estilo Elvis.5 O certo é que o rockzinho do Raul tratou e trata dos problemas de muita gente, tendo assustado outro tanto também. Porém, foi lá atrás, no distante setembro de 1972, que surgiu aquela voz dissonante, um misto de anarquismo e metafísica, que veio desestabilizar a equação musical brasileira. O último dos grandes festivais foi, ironicamente, o primeiro contato direto de Raul com o público. E, já naquele momento, ele inaugurava a sua capacidade profética ao subir no palco e revelar à platéia: Eu vim dizer que o sonho, o sonho terminou. Notas 1 Raul Seixas afirma que nunca ligou muito para festivais e que só participou devido à influência de Sérgio Sampaio, que também havia colocado uma música. Vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 78 (entrevista do cantor a Gay Vaquer, em 1972); 2 Sobre os movimentos musicais na época do governo Médice, inclusive o ufanismo nacionalista de alguns compositores brasileiros, dentre eles Jorge Ben; a reação dos setores intelectualizados do País e até a preferência futebolística do Presidente, ver: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. pp. 213-231; Sobre o VII Festival Internacional da Canção, realizado em 1972 pela TV Globo-Rio, ver os sites: www.geocities.com/altafidelidade/festi1972.htm ; www.brgroove.hpg.ig.com.br/festivais.htm ; mas principalmente o site: www.joao.barile.nom.br/1972fic.htm . Ver também a Revista Cultural do Banco 0 do Brasil, Veredas, Rio de Janeiro, ano 7, n 83, novembro/2002, ISSN 14137941, pp. 22-27; 3 As citações de Raul, em todo o texto, foram extraídos da música Let me sing, let me sing, presente no CD Documento, Op. Cit., e também relacionada em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 150-151; 4 Sobre o maniqueísmo da época, vide: Revista Cultural do Banco do Brasil, Veredas, Op. Cit. p. 27; 5 Veja a fotografia de Raul se apresentando no VII FIC em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 38. A legenda na página seguinte diz: Raul Seixas defendendo ‘Let me sing, Let me sing’ no VII FIC, Rio de Janeiro, 1972. Destaque para a vestimenta de couro e para os gestos inspirados em Elvis Presley. Roberto Freire, em artigo intitulado Saravá, Raul, publicado na revista POP, em 1973, falando sobre o cantor, afirma: A gente se viu de relance no último FIC. Depois vi e ouvi você interpretar o seu ‘Let me sing, no Maracanãnzinho. Eu apostava mais em você do que naquela música. Reeditado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 157. Tango, Rock ou Tcha Tcha Tcha A pesar da preferência de Raul Seixas pelo Rock, a sua obra está cheia de outros ritmos, como tango, baião, bolero, etc., alguns deles até juntos em uma só música. Com a sua visão pluralista, dizia: Eu faço boleros, tangos e canto para quem curte isso também. Minha música é para todo mundo. Não é hermética. Daí, muitos falam que ele fundiu, sintetizou ou misturou ritmos, principalmente o baião com o rock. Mas não foi exatamente isso que ocorreu.1 A fusão de ritmos é, antes de tudo, um instrumento da modernidade. Com elementos antigos pode-se criar o novo. Críticos de arte, por exemplo, qualificam de modernos os trabalhos de Moraes Moreira e Chico Science, justamente por apresentarem novidades a partir do tradicional. Para Raul Seixas, porém, o rock and roll era o novo, misturá-lo seria o mesmo que adulterá-lo, diluí-lo. Ele dizia: A música é toda preto e branco... O preto e branco é mais forte e livre porque dá asas a cada um de projetar sua imaginação. Ou seja, a mistura de cores, ao invés de ser uma fórmula criativa, na verdade aprisiona a imaginação. Por respeito aos sons que o haviam influenciado, ele não quis recriá-los ou distorcê-los. Portanto, as experiências rítmicas de Raul foram de colagem e não de mistura.2 A primeira música de maior divulgação do cantor – Let me sing, let me sing – é um rock primitivo cortado várias vezes por um legítimo baião. Mas cada um no seu canto, inclusive com instrumentos musicais exclusivos em cada fase. O mais curioso é que até o idioma realça a estrutura musical: o rock é cantado em inglês e o baião em português.3 Colagens semelhantes se repetem em várias outras músicas suas. Em Mosca na sopa, o rock está lado a lado com batuques africanos; em Como vovó já dizia, o rock divide o palco com sons indianos e o brado de Hare Krishna; e, só para citar mais um exemplo, em É fim de mês, o casamento do rock com o baião é reeditado. Ou seja, em todos os casos não se observa mistura no sentido literal do termo, mas apenas junção de ritmos. A sua fidelidade ao rock primitivo, à velha batida cum-pá-cum-cum, impedia-o de aventuras modernistas, conservando o seu som dentro de estruturas musicais intactas, em limites rigorosamente definidos. O resultado final pode parecer algumas vezes até uma salada, mas jamais seria um suco.4 Mas a colagem, ao invés de nivelar, reafirma a diferença. Daí, ao contrário do que dizia o próprio Raul, colocar o rock e o baião juntos não mostra o quanto eles são semelhantes, expõe o quanto eles são estranhos. Porém, aos olhos do roqueiro, a união de elementos heterodoxos, gestados em espaços-tempos distintos, poderia funcionar como uma insurreição na couraça do velho sistema. Portanto, tais elementos deveriam ser respeitados e preservados. Fundi-los seria enfraquecê-los, atenuar o potencial de mudança de cada um.5 Assim, o novo surge, em Raul, não como a reciclagem do velho, mas como os fragmentos originais do que este tem de melhor. E, se Bob Dylan pode se autonomear um ladrão de pensamentos, no sentido da captura de ideias diferentes, podemos muito bem afirmar que Raul Seixas foi um ladrão de ritmos.6 Enfim, o mosaico musical de Raul agrada exatamente porque uma parte não interfere na outra e, também, porque para ser ouvido não importa o sotaque, e sim o jeito de fazer.7 Notas 1 A citação de Raul está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 107 (entrevista concedida a Carlos Caramez e publicada na revista POP, em 1975); No material pesquisado, existe uma tendência de ver a obra de Raul como uma mistura de ritmos. O entrevistador Walterson Sardenberg, por exemplo, sugere em 1982 que o cantor, ao digerir o rock e a música nordestina, sintetiza, recicla, criando seu estilo; já o entrevistador da revista Bizz, em 1987, disse: Você continua um dos poucos – ou o único – a fazer a fusão do rock com a música popular brasileira, como o baião. Na resposta, Raul trocou o termo e afirmou que juntou os ritmos: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 129 e p. 151, respectivamente. 2 A jornalista Ana Maria Bahiana afirmou que Moraes Moreira foi capaz de trabalhar e misturar as formas mais tradicionais de música brasileira – samba, seresta, frevo principalmente – e dar a tudo uma urgência e uma veemência pessoais, modernas. Já o crítico Tárik de Souza viu que, em Chico Science e sua Nação Zumbi, a modernidade, em mais um ciclo vital, acertava seu relógio com a tradição. Vide: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. pp. 350-351; A opção de Raul Seixas pelo preto e branco, ao invés do colorido, foi citada por Sylvio Passos, no texto Perfil Biográfico, publicado em Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 88; 3 A música Let me sing, let me sing, está presente no CD Documento, Op. Cit., e também foi relacionada em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 150151; 4 Música Mosca na sopa: LP Krig-há, bandolo, Philips, 1973; É fim de mês: LP Novo Aeon, Philips, 1975; a música Como vovó já dizia foi lançada em compacto simples em 1974; Falando sobre a sua música e o rock, Raul diz: Eu gosto é desse ‘cumpá-cum-cum’, é a única que eu sei fazer... citado em Raul Seixas um estudo ‘Eu em noites de sol’, de Ana Maria Bahiana, editado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 27; A música de Raul é comparada a uma salada por André Mauro, no texto Raul Seixas perfil bibliográfico ‘O último anarquista’. Idem, p. 43; 5 A idéia de que a repetição de um texto, portanto, uma colagem, não busca a semelhança, mas afirma a diferença entre as partes, é atribuída ao filósofo Gilles Deleuze, em: MACHADO, Roberto, Deleuze e a filosofia, Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 15; Sobre as possíveis semelhanças entre o rock e o baião, disse Raul: Luiz Gonzaga tocava o dia inteiro em Salvador, nas rádios, nas praças.Idem a loucura de Elvis Presley. Os dois, eu saquei, tinham o mesmo humor. Era idêntica a história de ‘Cintura Fina’ com ‘Blue Suede Shoes’. Havia o mesmo tom safado, irônico. Acho que o humor de nosso nordestino é muito parecido com o humor do americano do Sul, onde nasceu o ‘rock’n’roll’. Citado no texto de André Mauro: Raul Seixas perfil bibliográfico ‘O último anarquista’ publicado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 44; 6 Um verso de um poema de Bob Dylan diz: Sim, sou um ladrão de pensamentos, e foi utilizado pelo próprio Deleuze em sua obra Dialogues, citado por MACHADO, Roberto, Op. Cit., p. 16; 7 A frase final do texto é um verso da música Rock and Roll, lançada no último trabalho do Raul, A panela do diabo, WEA, 1989, feito em parceria com Marcelo Nova, cuja letra ainda diz: ...Há muito percebi que Genival Lacerda tem a ver com Elvis e com Jerry Lee. Vide: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 335. Meu olho que vê O uro de Tolo, música de autoria de Raul Seixas, foi a responsável pelo cantor ficar conhecido em todo o Brasil. O sucesso foi tanto, que o compacto teve que ser prensado duas vezes em uma única semana.1 O ritmo dela e a forma de ser cantada lembram Bob Dylan, semelhança que foi assumida pelo próprio Raul: Eu só podia dizer aquela monstruosidade de letra quase só falando. Então calhou. Aquela coisa de Dylan, falada, calhou.2 Roberto Freire, em artigo de 1977, percebeu que a letra atravessava a música, superava-a, sugerindo, segundo ele, a ansiedade psicológica do personagem, o qual não quer se adaptar de jeito nenhum ao novo ritmo da vida. Esta insatisfação com o novo, mas, ao mesmo tempo, esta recusa do antigo, é evidenciada quando Raul diz que não vai esperar a morte chegar sentado num trono (que é tradicional) de um apartamento (que é moderno). Portanto, o dualismo tradiçãomodernidade seria mais um falso ouro, da mesma forma que seriam ilusórios os pressupostos positivistas de que somos, apenas, pequenas engrenagem na complexa máquina da sociedade. A vida seria muito mais intensa e profunda, e o reducionismo que queriam fazer dela não passava de uma grande piada, apesar de perigosa.3 Mas o período em que Ouro de Tolo surgiu era muito especial no Brasil: a economia se recuperava e, na política, o regime militar intensificava o controle sobre a cultura, chegando a expulsar muitos artistas do País. Assim, não faltou quem visse a música como uma crítica aos que tinham dinheiro e sucesso num país marcado pelo abismo que separa os poucos ricos dos muitos pobres. Outros concluíram que o ouro de tolo seria o milagre brasileiro e a crítica de Raul era uma bofetada na face da alienada classe média. Falaram, ainda, que o personagem da canção se confundia com um pau-de-arara. Parece-nos, entretanto, que a intenção da denúncia transcende as fronteiras brasileiras.4 No final da música, Raul afirma que no seu olho que vê, assenta a sombra sonora de um disco-voador. Mesmo considerando que os seres alienígenas estavam em moda na época, a conclusão aponta para uma amplitude maior da questão. A saída, ou a verdade, estaria fora daqui, lá fora, para além do planeta Terra. Assim, Raul critica as estruturas de todas as sociedades, ditas modernas, da humanidade, e não apenas o caso específico e temporário da sociedade brasileira. Afinal, doutores, religiosos, policiais, jornais e diversões aos finais de semana existem em todos os pontos do mundo.5 Porém, o que deixou Raul feliz foi que todos cantaram Ouro de Tolo, todas as classes. Ele percebeu que as pessoas assimilaram Ouro de Tolo dentro de níveis diferentes, mas [que] no fundo era a mesma coisa. O intelectual recebia de uma maneira. O operário de outra. Raul cita o caso de operários cantando a música, trocando os versos, adaptando-os para a realidade deles, donde conclui: Todo mundo entendeu, dentro de uma conotação própria, dentro de um nível diferente. Porque existem vários níveis. Temos, então, uma negação explícita da modernidade: o sentir vale tanto quanto o pensar. Assim, o saber passa a ser universal e acessível a qualquer um. Ao contrário de uma verdade absoluta e inquestionável, têm-se várias verdades, onde prevalece sempre a do indivíduo.6 Não importa, enfim, se destinemos a crítica de Ouro de Tolo aos donos do mundo, às elites da nossa sociedade ou ao simples engenheiro-chefe da construção. O que importa é que gostamos todos da sua mensagem e, por isso mesmo, devemos agradecer ao Senhor por Raul Seixas ter tido sucesso na vida como artista. Notas 1 O jornal O Pasquim abre uma entrevista com Raul afirmando: Você surgiu publicamente com Ouro de Tolo, que não foi contestada pelo cantor. Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 83 (entrevista aO Pasquim, em 1973); A informação de que o compacto de Ouro de Tolo foi prensado duas vezes em uma única semana foi citada por Sylvio Passos, no texto Perfil Biográfico, publicado em Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 84; 2 A referência de Raul a Bob Dylan está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 102 (entrevista aO Pasquim, em 1973); 3 O artigo de Roberto Freire é intitulado Saravá, Raul, e foi publicado pela Revista Pop, em agosto de 1973. Reproduzido em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 157-158; Para as citações à letra da música Ouro de Tolo, LP Krig-há, bandolo, Philips, 1973, ou: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 165-167; 4 A citação de que Ouro de Tolo seria uma crítica aos que tinham dinheiro e sucesso num país marcado pelo abismo que separa os poucos ricos dos muitos pobres, está em: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit. p. 332; Já a relação da música com o Milagre Brasileiro e que seria uma bofetada da face da alienada classe média, ver artigo O Último Anarquista, de André Mauro, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 44; A relação do personagem de Ouro de Tolo com um pau-de-arara, está no artigo de Roberto Freire, citado no item 3 precedente; 5 Sobre os discos voadores estarem na moda, ver o ensaio critico de Toninho Buda, Os movimentos alternativos, que cita: ...os discos voadores faziam parte do cotidiano das pessoas..., em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 18; ver também entrevista do cantor aO Pasquim, em 1973, quando o entrevistador pede: Você pode falar nisso, já que tá na moda, todo mundo vendo disco voador de novo, publicada em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 89; A idéia de que a verdade está fora daqui, foi inspirada no slogan do seriado de TV Arquivo X (The X-Files), o qual sugere haver manifestações para além da compreensão humana, com origens, inclusive, em inteligências alienígenas. A citação original, em inglês, é: The truth is out there! 6 Os vários níveis de compreensão de Ouro de Tolo, atingindo todas as classes, incluindo os exemplos dados, estão em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 102 (entrevista aO Pasquim, em 1973). Essa metamorfose ambulante N o início da década de 70, quando a geração beat já tirava o pé da estrada, Raul Seixas se desesperava porque ele nem tinha começado ainda. Pelo menos é o que ele diz na música Cachorro Urubu, gravada no LP Krig-há, bandolo! Mas foi a música Metamorfose Ambulante, lançada no mesmo LP e assinada apenas por Raul, que se transformou em um hino a todos os que continuavam imbuídos de luminosas utopias.1 A letra, aparentemente simples, ataca aquela velha opinião formada sobre tudo. Ou seja, se insurge contra a presunção do ser humano, através da ciência moderna, de conhecer a verdade sobre todas as coisas, quando nem a si mesmo o homem é capaz de conhecer. Raul reclama o direito de dizer, agora, o oposto do que disse antes, graças à prerrogativa de que o certo e o errado se confundem de um instante para outro. O ódio e o amor trocam de posição ao sabor dos ventos. Se não se percebe algumas vezes, é devido muito mais à capacidade de representação das pessoas do que em razão de uma suposta imutabilidade das coisas. A própria junção das duas palavras – Metamorfose Ambulante – carrega a idéia de uma constante mutação, de uma perpétua insatisfação, de uma viagem sem fim. Esse não se fixar a nada sugere um nomadismo interminável, como Neal Cassady ensaiou fazer pelas estradas americanas, ou, na expressão clássica de Bob Dylan, like a rolling stone. Enquanto o se fixar pressupõe ser dominado, igual às pedras que choram sozinhas no mesmo lugar, quem se move escapa.2 Walter Benjamim viu que o passeio sem destino era um protesto contra um ritmo de vida orientado unicamente para a produção. O próprio Taylor declara guerra à vagabundagem, vendo-a como uma forma de resistência, contrária à ideologia do trabalho e à estabilidade dos costumes. Entra, então, Raul Seixas dizendo ter decretado feriado, apesar de ser segunda-feira, e que nunca se anima em ir ao trabalho. Esta é a estratégia do errante: tornar-se atento a uma perfeição que virá; exprimir elementos heterodoxos à espera de um equilíbrio que virá. A transformação do indivíduo acabará transformando o todo social. Agora é necessário gritar e cantar Rock e, se for possível, fazer com o planeta assim como Nero fez com Roma. Raul se apresenta como um estrangeiro do mundo, o coringa de todo baralho, propondo uma espécie de antireligião, um desligamento total das verdades estabelecidas. A metamorfose ambulante, as infindáveis idas e vindas, se dá porque o errante não se contenta com nenhum lugar visitado, porque o seu espaço é feito pela não aceitação de tudo aquilo que é dado.3 A música apresenta, ainda, uma visão circular do tempo, que remonta às tradições orientais. Porém o seu brado revela uma potência transformadora. Ao dizer: Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor,..., lhe tenho horror, lhe faço amor..., Raul revela que o eterno retorno não significa voltar ao mesmo ponto. Ódio e horror se tocam, mas são diferentes. Já a ação lhe tenho amor assume uma conotação de vontade, transcendência, totalmente distinta de lhe faço amor, que é uma relação de poder. O que se repete, então, é o diferente, e é na repetição que surge a diferença, ou, como conhecemos, a chuva voltando pra terra traz coisas do ar. Raul, enfim, reclama um ciclo histórico que traga ao mundo uma sociedade diferente, que não tenha nenhuma ligação com a anterior. Ou seja, a sociedade atual não se encontra em um processo de depuração, de melhoramento, aperfeiçoando-se progressivamente. Encontra-se em um estado de desgaste que somente o caos ilimitado poderá lhe salvar.4 Raul grita: eu vim de longe, vim duma metamorfose, e, como o mito de Dionísio, Deus dos vagabundos, chega instaurando a desordem, propondo reinstaurar a circulação da vida, trazendo consigo o além e apontando que um trem – e não um automóvel – já vem trazendo de longe as cinzas do Velho Aeon. Notas 1 As músicas Cachorro Urubu e Metamorfose Ambulante, fazem parte do LP Krig-há, bandolo, Philips, 1973; Sobre Metamorfose Ambulante ser um hino aos que ainda acreditam em utopias, ver Raul Seixas um estudo ‘Eu em noites de sol’, de Ana Maria Bahiana, editado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 46; 2 Neal Cassady e Ken Kesey empreenderam uma louca viagem de ônibus e de ácido, de costa a costa da América, ... , que influenciou toda a literatura e a geração beat, sendo o primeiro transformado no frenético protagonista de “On The Road - Pé na Estrada”, de Jack Kerouac. Vide: Revista Superinteressante, sessão “Quem foi? O pai dos hippies”, São Paulo: Abril, edição 195, dezembro/2003, p. 34; A citação pedras que choram sozinhas no mesmo lugar, está na música Medo da Chuva, de autoria de Raul Seixas e Paulo Coelho, e consta do LP Gita, Philips, 1974; 3 A discussão sobre o nomadismo, está em: MAFFESOLI, Michel, Sobre o nomadismo, vagabundagens pós-modernas, Rio de Janeiro: Record, 1997; as citações de Walter Benjamim e Taylor estão na mesma obra, p. 33; Trechos de músicas de Raul: Hoje é segunda-feira e decretamos feriado..., em Super-Heróis, de Raul Seixas e Paulo Coelho, e, Eu nunca me animo de ir ao trabalho, eu sou o coringa de todo baralho, em Moleque Maravilhoso, de Raul Seixas e Paulo Coelho, ambas no LP Gita, Philips, 1974; Agora é necessário gritar e cantar Rock, em Loteria da Babilônia, de Raul Seixas e Paulo Coelho, LP Krig-há, bandolo, Philips, 1973; Assim como Nero fez com Roma (Like Nero did to Rome), em How Could I Know, de autoria de Raul Seixas, que fez também a tradução para o português, consta do LP Krig-há, bandolo, Philips, 1973, e a tradução em Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 160-163; 4 A discussão do retorno da diferença, está na apresentação das idéias do a filósofo Gilles Deleuze, em: MACHADO, Roberto, Deleuze e a filosofia, 2 Parte, Capítulo 2: Nietzsche e a repetição da diferença, Rio de Janeiro: Graal, 1990, pp. 81-96; O trecho de música a chuva voltando pra terra traz coisas do ar, está em: Medo da Chuva, Op. Cit. Filosofias, políticas e luta R aul Seixas estudou duramente, fez vestibular e acabou entrando na universidade para provar, conforme disse, como é fácil ser burro. O curso de filosofia lhe permitiu romper com um pessimismo que carregava desde cedo, atribuído à filosofia de Schopenhauer, mas deve tê-lo aproximado radicalmente de outro grande filósofo alemão: Nietzsche!1 O cantor afirma, em entrevista de 1973, que a sua infância havia sido de um pessimismo incrível, de Augusto dos Anjos, de Kafka, Schopenhauer. Mais adiante, ele reclama da passividade das pessoas e repete: Tá todo mundo de cabeça baixa, tá todo mundo schopenhauer, todo mundo um pessimismo incrível. Assim, Raul revela que a sua filosofia, apesar de ter surgido de forma reativa, do contra, tornara-se ativa, fez-se objeto de afirmação, passou a reclamar a transformação do mundo a partir da mudança de atitude de cada um.2 Na música I am, Versão de Gita para o inglês, Raul diz: Eu sou o poder da Vontade. Não se trata aqui da Vontade schopenhaueriana, uma coisa etérea, estranha ao homem e que deveria ser combatida. Mas uma Vontade do indivíduo, que deveria, ao contrário, ser estimulada. Nesse aspecto, a ideia se aproxima da tese nietzscheana da vontade de poder. Para Nietzsche, a vontade de poder é o que move os homens, e a vontade em Schopenhauer seria melhor chamar de ausência de vontade. Nietzsche, aliás, trabalha a sua obra como um espelho, uma referência invertida da filosofia de Schopenhauer. Enquanto este, influenciado pelo budismo, propõe uma atitude comedida diante da vida, o caminho do meio, aquele propala o extremo, uma raça afirmativa, uma espécie mais forte. Raul, assumindo uma posição no confronto, aconselha: Queira... você será capaz de sacudir o mundo, [pois] o homem é o exercício que faz.3 A obra de Raul tem tantos encontros com Nietzsche que, em alguns pontos, sugere até uma referência literal. Se, ao propor uma espécie humana mais forte, Nietzsche achava que os fracos deveriam vencer a fraqueza, para se tornarem fortes, Raul desabafava: Se você é mais fraco, dane-se!... Se você é fraco e não quer levar porrada, fique forte e passe a dar. Com relação à guerra, também há coincidências. Nietzsche entendia que a guerra poderia servir de cura para certos povos. Raul via a si mesmo como produto da segunda guerra mundial e, em 1982, ainda acreditava que a terceira guerra poderia ser até bem vinda, pois, para ele, a coisa não poderia ficar nesse marasmo. A guerra, aliás, seria apenas a exteriorização dos conflitos internos do homem. Enquanto Nietzsche dizia que o indivíduo é o campo de batalha de suas diferentes partes, Raul emendava que é de batalhas que se vive a vida.4 Nietzsche recomendava que deveríamos retomar o gosto do egoísmo, pois o ser humano tinha direito ao egoísmo, além de ver o altruísmo como espécie mais mentirosa do egoísmo. Raul, por seu lado, cantava: Eu sou egoísta, e completava na prosa: o egoísmo é mais sincero.5 Para Nietzsche, o Bem e o Mal estão de conivência. Para Raul, eles vêm de braços e abraços, num romance astral.6 Com relação à ideia do homem ser um coadjuvante do trabalho de Deus, Nietzsche dizia que ele tem que escolher entre ser o indivíduo forte que se basta a si mesmo ou o que esforça com ardor ante Deus. Raul resumia em uma frase: Não existe outro Deus senão o próprio homem.7 A raiva do cristianismo, que impediria as pessoas de agir, tentando desencorajar a coragem, foi expressa por Nietzsche ao declarar que o movimento cristão... toma o partido dos idiotas. Já Raul disse: A mão católica põe os débeis em primeiro lugar. Por outro lado, ambos não esqueceram de admirar e até de se espelhar na vida de Jesus. Nietzsche chegou a dizer que o único cristão morreu na cruz, enquanto Raul, dando voz à humanidade, afirmou: Eu vi Cristo ser crucificado, o amor nascer e ser assassinado. Anteriormente, Raul Seixas já havia reconhecido a obra de Jesus, confortando os crentes de que ele não vai mais voltar, [pois] ele fez as regras dele e você sabe muito bem que ele fez juntamente o que devia ser feito. Aliás, tanto Nietzsche como Raul se sentiam unidos ao destino de Cristo: ambos achavam que, de certo modo, também tinham sacrificado as suas vidas pela humanidade.8 É importante citar que Nietzsche foi um grande crítico da modernidade. Sua filosofia intentou contra a autoridade da razão e o espírito científico, presentes em sua época. Do malho nietzscheano também não escaparam o futuro considerado como um progresso e o darwinismo. Nietzsche viu o ideal socialista como uma interpretação tola e inexata do ideal moral-cristão, concluindo: o socialismo não é mais que um meio de agitação do individualismo. Raul Seixas, por sua vez, declarou: Já não existe qualquer diferença entre materialismo, idealismo. Todos os ismos são iguais.9 Mesmo com todas estas semelhanças, é curioso como o nome do filósofo alemão praticamente não aparece na biografia de Raul Seixas. Estimamos que durante um século as ideias de Nietzsche se disseminaram de tantas formas, tendo influenciado tantos outros pensadores, que devem ter chegado ao cantor por diferentes fontes. A própria geração beat e a propalada contracultura encontraram abrigo em Nietzsche, pois este já dizia que a cultura era a domesticação do homem, e que o homem selvagem poderia vir a ser até uma cura da cultura, um retorno à natureza.10 Porém, Raul Seixas, já próximo ao fim da sua vida, já desgastado pela doença, dá sinais de reconciliação com o pessimismo schopenhaueriano. Em seu último disco, lançado dois dias antes da sua morte, surge-lhe uma espécie de última tentação de negar a sua valiosa idéia do super-homem. Na música que leva o sugestivo nome de Carpinteiro do Universo, ele desabafa: Não sei por que nasci para querer ajudar, a querer consertar o que não pode ser... Notas 1 Raul fala que, depois de passar no vestibular, chegou para o pai da sua primeira esposa, ainda sua namorada, e disse: Viu como é fácil ser burro?, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 130 (entrevista à revista Amiga, em 1982); 2 Sobre o pessimismo em sua infância e o mundo atual estar pessimista: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 87 e p. 96, respectivamente (entrevista aO Pasquim, em 1973); 3 A música I am, versão em inglês de Gita, fala: I am the power of Will, que foi traduzido para: Eu sou o poder da Vontade por Toninho Buda. Vide: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 308-312; Todas as referências à obra de Nietzsche, bem como as suas críticas à Schopenhauer, foram consultadas em: NIETZSCHE, Vontade de Potência, tradução, prefácio e notas de Mário D. Ferreira Santos, Rio de Janeiro: Ediouro, sem referência do ano da publicação. Pela quantidade de citações desta obra, simplificaremos a sua referência para: “N.VP”; A tese de Nietzsche, em alemão literal, chama-se Vontade de Poder (Der Wille zur Macht). Porém o tradutor preferiu intitular como Vontade de Potência, acompanhando as opções feitas pelos principais tradutores da obra para o francês e para o italiano. Segundo o tradutor, a transliteração do título poderia levar a equívocos em nossa língua. NIETZSCHE, Vontade de Potência, Prólogo, “Vontade de Potência”, Op. Cit. pp. 62-64; A vontade em Schopenhauer como ausência de vontade, N.VP, Livro Primeiro, O Niilismo Europeu, II – Para uma crítica da Modernidade, Op. Cit. p.101; A proposição de formação de uma espécie mais forte e uma raça afirmativa, Idem, Livro Quarto, Disciplina e Seleção, II – A Nova Hierarquia, pp. 290-291; Citações de músicas de Raul: Queira... você será capaz de sacudir o mundo, em Tente outra vez, de Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta; o homem é o exercício que faz, em Eu sou egoísta, de Raul Seixas e Marcelo Motta, ambas estão no LP Novo Aeon, Philips, 1975; 4 Citações de Nietzsche: a guerra como cura para certos povos: N.VP, Prólogo “O tema da guerra”, Op. Cit. pp. 58-62; o indivíduo como campo de batalha de suas diferentes partes, Idem, Livro Terceiro, Princípio de uma Nova Escala de Valores, II – A Vontade de Potência na Natureza, pp. 240-258; Citações de Raul: Se você é fraco... fique forte, etc: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 113 (entrevista a Aloysio Reys, em 1976); que a terceira guerra mundial seria até bem-vinda: idem, p. 127 (entrevista à revista Amiga, em 1982); ...é de batalhas que se vive a vida, trecho da música Tente outra vez, Op. Cit.; 5 Citações de Nietzsche: perdemos o gosto do egoísmo, N.VP, Livro Primeiro, O Niilismo Europeu, I – Niilismo, Op. Cit. p. 91; o altruísmo como espécie mais mentirosa do egoísmo, Idem, Livro Primeiro, O Niilismo Europeu, II – Para uma crítica da Modernidade, p.109; direito ao egoísmo, Idem, Livro Segundo, Crítica aos Valores Superiores, III - A Moral como expressão de Decadência, p. 196; Citações de Raul: Eu sou egoísta, música de mesmo nome, Op. Cit.; o egoísmo é mais sincero: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 110 (entrevista a Aloysio Reys, em 1976); 6 Citação de Nietzsche: o Bom e o Mau estão de conivência, N.VP, Livro Primeiro, O Niilismo Europeu, II – Para uma crítica da Modernidade, Op. Cit., p. 120; Citação de Raul: o bem e o mal, vêm de braços e abraços, num romance astral, trecho da música Trem das Sete, Op. Cit,; 7 Citação de Nietzsche: o indivíduo forte que se basta a si mesmo..., N.VP, Livro Primeiro, O Niilismo Europeu, II – Para uma crítica da Modernidade, Op. Cit., p. 103; Citação de Raul: Não existe outro Deus senão o próprio homem, Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 110 (entrevista a Aloysio Reys, em 1976); 8 Citações de Nietzsche: o cristianismo toma o partido dos idiotas e desencoraja a coragem, N.VP, Livro Segundo, Crítica aos Valores Superiores, II – Crítica ao Cristianismo, Op. Cit., p. 150 e p. 161, respectivamente; o único cristão morreu na cruz, Idem, Prólogo “Cristo, um transmutador de idéias”, Op. Cit., p. 40; Citações de Raul: A mão católica põe os débeis em primeiro lugar, ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 91 (entrevista à Radio Transamérica, em 1988); Eu vi Cristo ser crucificado..., trecho da música Eu nasci há 10 mil anos atrás, de Raul Seixas e Paulo Coelho, LP Há 10 mil anos atrás, Philips, 1976; Porque Jesus Cristo, cara, não vai voltar mais... (Cause Jesus Christ, man, won´t be coming back no more...), trecho da música How Could I Know? (Como eu poderia saber?), de Raul Seixas, LP Krig-Há, Bandolo!, Op. Cit., a tradução foi feita pelo próprio cantor e foi publicada em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 160-163; Para a relação entre o sacrifício de Jesus e a vida de Nietzsche, ver N.VP, Livro Segundo, Crítica aos Valores Superiores, II – Crítica ao Cristianismo, Op.Cit., Nota 7, p. 148; com relação a Raul, vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 110 (entrevista a Aloysio Reys, em 1976); 9 Citações de Nietzsche: crítica à modernidade: autoridade da razão, espírito científico, e o futuro como progresso, N.VP, Livro Primeiro, O Niilismo Europeu, II – Para uma crítica da Modernidade, Op. Cit., pp. 108-110; crítica ao darwinismo, Idem, Livro Terceiro, Princípio de uma Nova Escala de Valores, II – A Vontade de Potência na Natureza, pp. 255-256; o socialismo como interpretação do ideal moral-cristão, Idem, Livro Segundo, Crítica aos Valores Superiores, II – Crítica ao Cristianismo, p. 159; o socialismo como agitação do individualismo, Idem, Livro Terceiro, Princípio de uma Nova Escala de Valores, III - A Vontade de Potência como Moral, p. 264; Citação de Raul: todos os ismos são iguais, Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 111 (entrevista a Aloysio Reys, em 1976); 10 Das biografias pesquisadas, a única que cita o nome de Nietzsche é Raul Seixas, uma antologia, Op. Cit., p. 45. Mesmo assim, entre nomes que teriam influenciado a obra de Raul, sem entrar em detalhes. Citações de Nietzsche: a cultura como domesticação do homem e o homem selvagem como cura da cultura, um retorno à natureza, N.VP, Livro Terceiro, Princípio de uma Nova Escala de Valores, II – A Vontade de Potência na Natureza, p. 257. O Diabo é o pai do Rock A figura do Diabo está sempre presente na obra de Raul Seixas. Porém, jamais conseguiríamos entendê-lo ficando apenas no conceito cristão do demônio.1 Para os hindus, o universo obedece a um eterno ciclo de criação, preservação e destruição. Daí existirem três deuses supremos: Brahma, que simboliza a criação; Vishnu, o equilíbrio, e Shiva, a destruição. Estes dois últimos figuram como pólos opostos, sendo, por isso mesmo, os mais cultuados. Cabe a Shiva, portanto, a tarefa de destruir para criar, ou seja, de renovar o cosmos com o caos. Assim, Shiva está ligado à fertilidade e é comumente venerado com festas e danças.2 Já para os gregos, Dionísio foi o deus da renovação, tendo ele próprio renascido. Criador do vinho, passou a percorrer o mundo levando a novidade aos homens. Como deus andarilho, não se fixou em nenhum lugar, fundando em cada canto um tempo diferente. A sua negação do estabelecido se converteu na transfiguração da existência... uma promessa de vida. Igualmente ao deus hindu, é representado através de orgias e danças. Dionísio também foi chamado de Zagreu, ou criança de chifres, pois, para escapar dos inimigos, Zeus, seu pai, o havia transformado em um bode. A associação Bode-Diabo sobrevive até hoje e não passou despercebida por Raul Seixas. Na música Rock do Diabo, dele e Paulo Coelho, há um trocadilho lingüístico onde a escrita registra a frase: Então everybody rock, e Raul diz nitidamente: Então every Bode rock.3 O diabo cristão, apesar de semelhante na aparência, é diferente no objetivo. Ao inaugurar uma visão linear da história, o cristianismo estabeleceu, para o mundo, um início – a criação -; um meio – a vinda do Salvador -, e um fim – o Apocalipse. Nesse movimento para frente, acíclico, não coube mais ao Diabo a função de renovador, restando-lhe o odiado papel de eterno adversário, de anticristo. Mesmo assim, o diabo cristão não deixou de ser visto como aquele que traz o conhecimento ao homem. A palavra Lúcifer, em latim, significa brilhante, e foi associado ao Diabo pela citação bíblica de que o mesmo seria um arcanjo caído do céu, sendo também chamado de estrela da manhã, filha da alva. É com essa intenção que Raul afirma: Eu sou o anjo do inferno; ou que comemora: vai sair um filho pra luz, ou que avisa: o Diabo diz que vai baixar... [mas], pode ser um trote do Diabo, que já desceu!!! Ou, de maneira ainda mais clara: Filho da Luz, fui nascido da Lua e do Sol.4 Porém, a luz do saber é como a maçã do paraíso: tem o seu preço. Goethe, a partir de lendas antigas, construiu a sua versão da tragédia do Fausto, o homem que vendeu a alma ao Diabo. Este, ao aparecer e ser perguntado quem era, respondeu: Sou o espírito que tudo nega, pois tudo que existe merece perecer. Então, de que servem todas as maravilhas da vida moderna? De que adianta ser um doutor, padre ou policial, se necessitamos sempre da embriaguez de um vinho novo? Raul responde: Você vendeu sua alma ao acaso... Se você correu, correu, correu tanto e não chegou a lugar nenhum... me dê a mão que eu vou te levar, sem carro sem medo, pra outro lugar. O conceito de Diabo em Raul Seixas é justamente este: o da transformação pessoal e da destruição dos velhos conceitos, os quais ele resumiu com o termo Velho Aeon. O Rock seria a mais elevada expressão do Diabo, o veículo da renovação e do autoconhecimento.5 O sociólogo francês Michel Maffesoli se considera pósmoderno, ou seja, não mais enxerga na sociedade atual os valores antes chamados modernos. Para ele, a figura de Dionísio é emblemática de nosso tempo. E, rebuscando Nietzsche, afirma: Dionísio, o deus-bode de pés bipartidos, é bem o espírito demoníaco que vem perturbar as certezas estabelecidas e as instituições pesadonas. Instaura a desordem, reinstaura a circulação da própria vida. O curioso é que Raul, em entrevista bem anterior, já havia dito: O Diabo é uma pessoa simpática, é o momento que estamos vivendo agora... é a mudança de valores culturais, morais, políticos, metafísicos, ontológicos. Em matéria de amor, o Diabo muda o valor do homem e da mulher. Mais adiante Raul diz que, nesse novo cenário, a lei trabalhista é completamente modificada, justamente porque o trabalho não dá trabalho e a gente ganharia fazendo o que gosta. Maffesoli, por seu lado, assegura que o nomadismo contemporâneo, à Dionísio, é um modo de relativizar esse imperativo categórico que foi o trabalho no tempo moderno. E isso para não falar no tal Ócio Criativo do sociólogo italiano Domenico de Masi.6 A inquietude dionisíaca, enfim, arrancou Raul Seixas do seu tempo, fazendo-o ver o mundo como um para-inferno de Adão na gente, uma construção de algo diferente, uma busca de um paraíso imaginário.7 Portanto, quando Raul diz que o Diabo é o pai do Rock, não seria errado dizer que Shiva, Dionísio e Mefistófeles também o são. E se o Diabo é, de fato, uma outra face de Deus, responsável pela renovação do mundo, não soa estranha a assertiva de Raul de que a gente agrada a Deus fazendo o que o Diabo gosta.8 Notas 1 Falando do diabo em sua obra, diz: ...não o diabo bíblico do Deus de barba, que vem vingar. O Deus justiceiro. Em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 117 (entrevista a Ricardo Porto de Almeida, em 1980); 2 Informações sobre o http://bonsfluidos.abril.uol.com.br/edicoes/0046/espirito/c.shtml hinduísmo: 3 Citação: transfiguração da existência,... uma promessa de vida: NIETZSCHE, Vontade de Potência, Livro Quarto, Disciplina e Seleção, V – Dionísio, Op. Cit. pp. 316-327; O mito de Dionísio: MEEUNIER, Mário, Nova Mitologia Clássica, A Legenda Dourada: História dos Deuses e Heróis da Antiguidade, XIII – Dionísio ou Baco, São Paulo: IBRASF, 1997, pp. 103-113; DURANT, Will, História da Civilização II, Nossa Herança Clássica, Cap. a VIII: Os Deuses da Grécia, Rio de Janeiro: Record, 3 edição, 1995, pp. 139-159; Música: Rock do Diabo, de Raul Seixas e Paulo Coelho, LP Novo Aeon, Philips, 1975; 4 Citação sobre Lúcifer na Bíblia: Isaías, 14:12; Citações de Raul: Eu sou o anjo do inferno, trecho da música Rockixe, de Raul Seixas e Paulo Coelho, LP Krig-Há, Bandolo!, Op. Cit.; Vai sair um filho pra luz, trecho da música Dentadura Postiça, de Raul Seixas, Idem; O Diabo diz que vai baixar..., trecho da música DDI (Discagem Direta Interestelar), e Filho da Luz, Fui nascido da Lua e do Sol, faz parte da música Segredo da Luz, ambas de Raul Seixas e Kika Seixas, LP Raul Seixas, Estúdio Eldorado, 1983;, 5 A resposta de Mefistófeles: Sou o espírito que tudo nega..., foi retirada da obra: BERMAN, Marshall, Tudo que é sólido desmancha no ar, A aventura da Modernidade, Cap. I - O Fausto de Goethe: A tragédia do desenvolvimento, São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 48; ver também: GOETHE, Fausto, tradução de Agostinho D’Ornellas, São Paulo: Editora Martin Claret, 2002; Citações de Raul: ...um doutor, padre ou policial, trecho da música Ouro de Tolo, Op. Cit.; Você vendeu a sua alma ao acaso... Se você correu, correu..., trecho da música Século XXI, de Raul Seixas e Marcelo Nova, LP A Panela do Diabo, WEA, 1989; ...me dê a mão que vou te levar..., trecho da música Não pare na pista, de Raul Seixas e Paulo Coelho, LP O Rebu, Som Livre, 1974; 6 Michel Maffesoli: Sobre o nomadismo, Vagabundagens pós-modernas, Op. Cit., p. 127 e p. 133; Citações de Raul: vide item 1 anterior; MASI, Domenico, O Ócio Criativo, Rio de Janeiro: Sextante, 2000; 7 Citação: ...para-inferno de Adão na gente, trecho da música Novo Aeon., de Raul Seixas, Cláudio Roberto e Marcelo Motta, LP Novo Aeon, Op. Cit.; 8 A citação de que o Diabo seria uma outra face de Deus, MAFFESOLI, Michel, Sobre o nomadismo, Vagabundagens pós-modernas, Op. Cit., p. 171. O número 666 U ma das grandes influências na obra de Raul Seixas, assumida por ele mesmo, foi o mago inglês Aleister Crowley, o qual, em resposta às críticas recebidas pelo seu estilo de vida controvertido, se autoproclamou A Besta do Apocalipse e A Besta 666.1 Crowley, morto em 1947, ficou famoso pelo seu envolvimento com sexo, drogas, magia, mas também por ter fundado várias sociedades secretas. Os poderes que dizia ter eram utilizados para conseguir adeptos e satisfazer as suas extravagâncias sexuais. A sua primeira mulher foi considerada uma porta de comunicação com os deuses, mas acabou louca, o que lançou ainda mais mistérios sobre o poder do bruxo. Ele escreveu diversos livros, onde propõe a libertação total da vontade do indivíduo. O seu trabalho mais famoso chamou-se exatamente O Livro da Lei e funcionou como uma espécie de manual de conduta da Nova Era.2 Raul Seixas tomou conhecimento de Crowley através de Paulo Coelho, o qual já participava de uma organização que estudava as idéias do bruxo. Ambos logo se convenceram de que O Livro da Lei reunia os mandamentos do Novo Aeon. Daí surgiu a Sociedade Alternativa, que contou com manifesto e chegou a ter reconhecimento internacional.3 A filosofia crowleyana foi convertida em belas músicas pela dupla de admiradores, sendo que a mais evidente levou o próprio nome de Sociedade Alternativa. Mas Raul logo mostrou a força que estas idéias causou em si. Mesmo sem a parceria de Paulo Coelho, ele compôs a música Novo Aeon, lançada em 1975 no LP do mesmo nome. Em 1987, saiu a versão inglesa de Gita (I am), traduzida apenas por Raul e que teve uma acentuada influência de Crowley. Mas foi no LP seguinte, A Pedra do Gênesis, de 1988, que Raul gravou a mais nítida referência ao mago inglês. Na música denominada A Lei ele praticamente desfila a página introdutória do Livro da Lei. Esta canção, aliás, seria o destaque do projeto Opus 666, que reuniria a visão de Raul sobre a obra de Crowley. Porém, não chegou a ser realizado. As músicas já feitas foram lançadas em outros discos e o próprio estudo da capa foi aproveitado naquele mesmo LP de 1988.4 Pode-se dizer, portanto, que a ligação entre o roqueiro e o bruxo se limitou muito ao campo da filosofia. O sexo, em Raul, sempre foi tratado com lirismo e até as drogas aparecem, nas músicas, muito mais como contestação, rebeldia, do que como um valor em si. O próprio Raul se achava um biriteiro e dizia temer tomar drogas. Isto é, se ele usava algumas drogas, não fazia, ao contrário de Crowley, nenhuma apologia delas. Quanto ao misticismo e o esoterismo, ele deu vários sinais de que tinha um medo terrível destas coisas.5 A sua extrema irreverência também o impedia de participar por muito tempo de qualquer seita ou organização. Uma ordem crowleyana chamada AA, que foi interpretada como Argentum Astrum, simpatizou com Raul e o iniciou. Porém, logo teve que expulsá-lo, pois, conforme revelou em tom brincalhão e metafórico, ele enrolou um baseado em um papiro egípcio... que era tido como uma coisa sagrada. Ao contar a história, ele explicou que Aleister Crowley se baseava nos papiros egípcios, e concluiu com gracejo: não aquele que eu fumei maconha. Esses deviam ser mais gostosos. E, ao ser indagado sobre o segredo que o bruxo descobriu no Egito, respondeu: Eu não sei, porque eu era neófito. Só na quarta iniciação eles contavam o segredo... e desatou a rir. Ou seja, não importava onde estivesse a crença, ali estaria também a sua ironia.6 A obra de Crowley, enfim, é composta de várias fases paralelas. Enquanto Paulo Coelho parece tê-las apreendido inteiramente, para depois negá-las, a ponto de não mais recomendar o bruxo, Raul Seixas entendeu esta fragmentação de imediato, o que o fez rejeitar certas posições desde o início e admirar outras até o fim. De maneira que o cantor foi sincero ao dizer: Não levei Aleister Crowley totalmente a sério, não... Tirei coisas dele para mim, aproveitei.7 Para Raul, ser crowleyano não é tentar repetir ou imitar o bruxo, mas é seguir os próprios desejos, afinal, é a Lei do Forte que impõe: Faze o que tu queres pois é tudo da lei. Notas 1 Ver: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 65; e ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 32; 2 Sobre a vida de Aleister Crowley: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 65-75; e ALVES, Luciane, Op. Cit. pp. 31-37; com relação ao uso dos seus poderes para atrair adeptos e satisfazer suas exigências sexuais exacerbadas, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 47 (citado no texto: O Último Anarquista, de André Mauro); 3 O encontro de Raul Seixas com Paulo Coelho, o qual já participava de uma organização chamada Sociedade Secreta da Besta do Apocalipse, ou seja, de orientação crowleiana, está em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 22; ver também o início da parceria que teria na música Sociedade Alternativa a primeira manifestação da influência de Crowley, ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 29 e p.44; Sobre a escolha, por Raul e Paulo Coelho, da obra de Crowley como a Obra do Novo Aeon, vide: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 66; A propalada Sociedade Alternativa foi fundada em setembro de 1973 e foi reconhecida mundialmente em 17 de fevereiro de 1974, conforme: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 22; o seu manifesto pode ser visto em: http://www.raulseixashp.kit.net/sociedade.htm ; 4 A música Sociedade Alternativa, de Paulo Coelho e Raul Seixas, foi gravada no LP Gita, Philips, 1974; a música Novo Aeon, é de autoria de Raul Seixas, Cláudio Roberto e Marcelo Motta; A versão de Gita para o inglês, chamada I am, tem, pelo menos, duas intromissões crowleianas, ausentes no original: Eu sou a Lei de Thelema e Eu sou o poder da Vontade, e foi percebido por Toninho Buda, em seu Ensaio Crítico publicado em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 31; Sobre o projeto Opus 666, incluindo a música A Lei e o estudo para a capa, vide: ALVES, Luciane, Op. Cit. pp. 134-135; ver também: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 72-75; e: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 118 (entrevista ao repórter Ricardo Porto de Almeida,, em 1980); a página do Livro da Lei, chamada Líber LXXVII OZ, que inspirou Raul, foi publicada em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 34; e: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 68; 5 Sobre músicas simplesmente líricas falando de sexo, na obra de Raul, ver: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 49; já a ausência de intenção de Raul de divulgar ou promover o uso de drogas, idem, ibidem, 47; a expressão de Raul se considerando um biriteiro, vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 18 (citado em: Raul Seixas, um estudo: Eu em Noites de Sol, de Ana Maria Bahiana); para o seu temor das drogas: Idem, p. 138 (entrevista à revista Amiga, 982); já o temor do sobrenatural em Raul, foi citado por Sylvio Passos, editado em: ALVES, Luciane, Op. Cit. pp. 128-129; o não misticismo de Raul está em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 45 e p. 67; 6 A história da ordem AA e do papiro egípcio foi contada pelo próprio Raul e editada em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 145 (entrevista à revista Bizz, em 1987); a dificuldade de fazer projetos com Raul também está explícita no caso em que, ele e Paulo Coelho, tentaram compor músicas em um hotel, mas o cantor ficou o tempo todo trancado no apartamento e quase morreu de inanição, citado em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 39; 7 A informação de que Paulo Coelho não mais recomenda Crowley e até sugere a leitura de livros críticos ao bruxo, está em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 40-41 e p. 67; a citação de Raul sobre Crowley está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 48 (texto: O Último Anarquista, de André Mauro). Chamei Dom Paulo Coelho O s caminhos de Raul Seixas e Paulo Coelho se tocam, se cruzam e se afastam. Como se sabe, este rápido contato deixou uma herança musical fantástica. Porém, a diferença entre eles era tanta, que a pergunta passa a ser não por que eles se separaram, mas como eles conseguiram ficar tanto tempo juntos. Por outro lado, a obra posterior de Paulo Coelho vem reunindo, a um só tempo, sucesso e polêmica. Portanto, será abordada somente a fase inicial do seu trabalho, ou seja, a parceria com Raul Seixas, e alguma outra referência detectada em sua carreira literária. É comumente aceito que o tema dos discos voadores aproximou os dois. As idéias de Aleister Crowley, já estudadas por Coelho, adicionadas ao sonho da Sociedade Alternativa, veio sedimentar a amizade, tendo como resultado a parceria musical. Pode-se dizer que ocorreu uma relação simbiótica: a erudição de Paulo, que era ligado à literatura e não à música, deu maior amplitude à mensagem sonora de Raul; já o som do roqueiro, de grande competência e aceitação popular, além de dar corpo às idéias do parceiro, serviu para testar o trabalho deste junto ao público, sem necessidade nem mesmo da sua exposição. Sobre isso, o próprio Paulo Coelho escreveu que o anonimato para o grande público era até engraçado – mais de uma vez saboreou o gostinho de ver alguém comentando sobre o seu trabalho – sem perceber que o autor estava perto escutando.1 No primeiro LP de maior repercussão, Krig-há, bandolo!, 1973, apesar das músicas mais importantes serem de autoria apenas de Raul, a parceria já estava presente com cinco faixas. Nessa época, Raul, curtindo o sucesso rápido, chamava o ainda amigo de meu parceiro. Enquanto as músicas exclusivas do roqueiro tinham um acentuado peso do cotidiano - mosca na sopa; comprar um Corcel; um novo gibi; dar pipocas aos macacos... dentro de uma estrutura filosófica - eu sou a mosca; eu prefiro ser... - as com Paulo Coelho vinham carregadas com a sua metafísica esotérica - jogue as cartas, leia a minha sorte; traga a sua bola de cristal; o anjo do inferno...- mas, também, com a preocupação histórico-geográfica, desenvolvida posteriormente em seus livros incenso do Nepal; tumba de um sábio faraó; Dom Quixote, o cavaleiro andante; as minas do Rei Salomão [e, até,] o que houve na França.2 Em 1974 Raul atingiu o ápice do sucesso com o LP Gita, o qual vendeu 600.000 cópias. A parceria funcionou completamente, dando sete músicas ao disco, as quais ficaram gravadas na memória dos brasileiros. Mergulhamos mesmo no exotismo, disse Raul. Um tema iniciado no disco anterior - o medo e sua superação - ganhou destaque. Na música Rockixe, eles haviam antecipado: Eu tinha medo do seu medo do que eu faço. De volta ao assunto, disseram: Eu perdi o meu medo da chuva, e: das tempestades já não tenho medo. E era a amizade deles, de fato, que estava longe de um céu de brigadeiro. O descontentamento mútuo começou a se mostrar. Mas eles respiravam, ainda, o sonho utópico das Sociedades Alternativas, sobre as quais Paulo Coelho publicou um artigo em revista; veio, também, o exílio repentino e, por fim, o sucesso e o retorno: ainda fora possível suportar as divergências. 3 No ano seguinte apareceu o LP Novo Aeon, também com sete músicas da parceria. Segundo Paulo Coelho, eles precisavam dar uma continuidade ao trabalho. Raul, por seu lado, estava otimista: Agora é diferente. Eu já posso entender o Paulo de um modo diferente, diferente de mim, e ele pode me ver diferente dele. Mas o sucesso não se repetiu e logo o roqueiro mudou de opinião: Às vezes, Paulo e eu começávamos a fazer uma letra, e as ideias se chocavam. Então, cada um foi para o seu lado. 4 Mas não foi bem assim... ainda! Em 1976 a dupla voltou à carga e produziu quase completamente o LP Há 10 Mil Anos Atrás, compondo nada menos do que dez das onze músicas do disco. O sucesso voltou e, com ele, o sabor de que a fórmula continuava a dar resultado. Existe, porém, um fato curioso sobre estes dois últimos discos, que pode explicar um pouco as visões diferentes dos dois compositores. O LP Novo Aeon, de 1975, foi, para Raul, o seu melhor trabalho, mesmo tendo vendido pouco. É o disco que traz essa nova maneira de pensar... é o disco de que mais gosto, disse. Sobre o fato de não ter agradado tanto, justificou que o disco saiu muito antes da hora, em um momento histórico errado. Para Paulo Coelho, entretanto, não passou de um falso tratado de paz, um estigma do conchavo, um disco egocêntrico, autoexpressivo, numa linguagem... mal realizada, e não teria dado certo porque eles não teriam pensado neles ou no público, mas apenas em realizar um trabalho.5 O LP seguinte, Há 10 Mil Anos Atrás, foi considerado por alguns críticos como sem novas ideias e musicalmente insípido, e que o disco foi diretamente para as paradas de sucesso... só para mostrar como para ele [Raul] é fácil. O próprio roqueiro diz: Eu estou vomitando 1976 em cima das pessoas. Paulo Coelho, porém, achou a experiência tão extraordinária que se sentiu motivado a escrever um artigo sobra ela, colocando um sugestivo título: Raul, o Parceiro: Uma Inimizade Íntima. No texto, Coelho exulta uma competência ainda não declarada: nós somos comerciais, para espantar o tal fantasma da ‘indústria do lazer’. Se alguns pobres ´pesquisadores’ se arvoram em ‘operários da arte’, então nós podemos dizer que somos os ‘executivos da arte’. Um operário serve à arte. Um executivo comanda a arte. O compositor chega ao júbilo de anunciar que a tecnologia está a nosso serviço. Depois, ele deu mais pistas sobre o que realmente pensava naquela época, escrevendo que o que contava é que estava ganhando dinheiro, [pois] isso permitiria que colocasse as ideias em andamento (negrito meu).6 Mas veio a crise, inclusive financeira. Paulo Coelho, quem sabe, talvez já estivesse com a mente no Caminho de Santiago e no idioma de Cervantes, resolvendo se fazer de tradutor e nos dar a versão de Soy Rebelde, sucesso estrondoso na voz da Lílian. Estava-se em 1978, hora de colocar as diferenças de lado e tentar, mais uma vez, a parceria com Raul. Saiu o LP Mata Virgem, último trabalho conjunto da dupla. As cinco músicas da parceria, porém, já estavam permeadas de apóstolos, profetas, sábios, loucos, anjos, ciganos, ou seja, toda espécie possível de andarilhos. As letras continham, ainda, a reafirmação do Apocalipse e, agora, recomendava: Conserve o seu medo. Em um soneto macabro, dedicado ao Conde Drácula, parece até que usaram o rascunho do Manual do Vampirismo: atacaram com estaca, alho, fogo, sal, cruz... Não deu certo! Em outra música eles dizem: Tá na hora de ir pra casa, certamente que era cada um para a sua.7 Paulo Coelho partiu, finalmente, para a Espanha, para o gnosticismo e para a literatura, não necessariamente nessa ordem. Raul Seixas ficou com a sua mensagem existencial através do rock, se autoproclamando, do ponto de vista metafísico, próximo do agnosticismo.8 Em meados da década de 80, uma gravadora tentou o impossível: reunir a dupla para lançar mais um disco. Paulo morava no Rio, Raul em São Paulo. Ninguém queria ceder e ir para o território inimigo. Veio o acordo e marcaram um local equidistante: um hotel no meio do caminho. As excentricidades de Raul fizeram com que se levasse orquestra e piano de cauda. Os dois necessitavam de dinheiro e sucesso, precisavam se render às circunstâncias. Porém, durante quatro dias Raul não saiu do seu quarto. Paulo Coelho se cansou de esperar e foi embora. O gerente do hotel mandou quebrar a porta do apartamento, encontrando o roqueiro desmaiado na cama, com o violão sobre o corpo. Em entrevista recente, Paulo reconhece que não deveria ter ido pois tudo não passara de uma forçada de barra da gravadora. A nossa parceria já tinha acabado. A parceria emocional havia acabado, conclui. Raul sabia disso, e aquela foi a maneira que ele encontrou de dizer: Não! 9 É importante verificar, ainda, como os dois sentiram posteriormente esta parceria, imortalizada em tantos sucessos inesquecíveis. A queixa mais frequente de Raul é com relação ao controle da criação. A gente deixou de transar porque havia uma competição... Ele usava muito ‘mind game’ comigo, sabe? Fiquei cansado. Em 1987, dois anos antes de morrer e já no início do sucesso literário de Paulo Coelho, Raul mantém praticamente a mesma ideia sobre o ex-parceiro: Eu digo que tinha uma briga cultural com ele, para ver quem ganhava... Com o passar dos anos, houve um desgaste. E reconhecia: Mas sempre foi uma boa parceria, com afinco, e saíram obras lindíssimas. Porém, lá atrás, ainda em 1975, na época da primeira separação, Raul deixa escapar uma frase sobre um tema que, certamente, não esteve ausente no conflito: o contexto filosófico religioso. Falando da alegria de ter descoberto Marcelo Motta, também seguidor de Aleister Crowley, ele, ao mesmo tempo, lamenta que o antigo parceiro tenha abandonado aqueles ideais. Paulo saiu logo, disse, mas eu continuei.10 Paulo Coelho também vê a parceria que teve com Raul como uma experiência positiva. Já em 1976, no artigo sobre a criação do LP Há 10 Mil Anos atrás, ele reconhecia: Eu e o Raul tivemos um relacionamento dificílimo, uma amizade marcada pela inimizade, e conclui: uma guerra íntima que termina necessariamente se refletindo na música. Em entrevista recente, ou seja, depois de se tornar um escritor conhecido e com publicações em várias partes do mundo, ele fala sobre o assunto e diz: As coisas acabam. Até as boas. Entretanto, em apenas um dos seus livros ele se refere ao trabalho que fez com Raul e o resultado foi, no mínimo, surpreendente.11 Em As Valkírias, Paulo Coelho empreende uma viagem pelo deserto americano do Mojave, com a fixação de ver um anjo a todo custo. Após uma experiência mística, é solicitado que busque algo de ruim no seu passado, para que possa romper com aquilo. E ele foi buscar justamente a influência de Crowley, quando afirmou que, naquela época, tinha um acordo com as trevas. Ou seja, A Besta do Apocalipse não era mais a mensageira da transformação do mundo. Voltou a ser o antiguíssimo Senhor do Mal. Ele, Crowley, A Besta, tentara se estabelecer na Itália, mas fracassara, não sabia como ganhar dinheiro. Mesmo sem envolver Raul diretamente na questão, o texto de Paulo Coelho sugere que a música Sociedade Alternativa – era um mantra de ritual mágico, com as palavras da Besta do Apocalipse sendo lidas atrás, em tom baixo. E ameaça: Quem cantasse aquela música estaria invocando as forças das Trevas. Mesmo o autor advertindo que se trata de uma obra em que a ficção não está ausente, soa repetitiva a máxima faustiana de que o sucesso pode ser o resultado de um pacto com o Demônio. Por outro lado, fica claro que, se Raul Seixas continuou a insistir com Crowley, significa dizer que o coitado continuou prisioneiro das forças das Trevas. Poderíamos, então, arriscar uma inversão e dizer que, se Paulo finalmente encontrou o que procurava nos desertos por onde peregrinou, não há dúvida de que Raul morreu procurando. O fato é que, mesmo com toda a sua vasta erudição, Paulo Coelho passou deliberadamente, pelo menos neste caso, para o lado do senso comum, defendendo posições que só pessoas sem um discurso mais amplo poderiam ter.12 A obra literária de Paulo Coelho, de um modo geral, além do deslumbramento com o estrangeiro, com o lugar do outro, apresenta uma espécie de budismo-cristão, onde é valorizado o indivíduo em si mesmo, não mais enquanto movimento coletivo, e são consolados os emocionalmente frágeis, aqueles que sentem o peso existencial além das suas capacidades de argumentação e compreensão. Tenta ajudá-los a enfrentar os moinhos-de-vento do espírito, assegurando, não mais que qualquer um pode lutar e ser forte, mas que todos são fracos, e o que é dado a cada um, o inevitável, é o bastante. Paulo Coelho, enfim, sugere o recomeço sobre os escombros da guerra; tenta colar os pedaços da filosofia e da religião que ele mesmo, junto com Raul, se propuseram a quebrar.13 O leitor atual de Paulo Coelho, que procurá-lo nas músicas de Raul Seixas, terá grandes dificuldades de encontrá-lo. E, diante do vazio, é possível até repetir: Ou você já esteve aqui ou nunca vai estar.14 Notas 1 A aproximação de Raul e Paulo Coelho por conta do interesse comum em discos voadores, está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 46 (texto: O Último Anarquista, de André Mauro); o próprio Raul declara em entrevista que conheceu o parceiro num dia que avistou um ufo: idem, p. 89 (entrevista aO Pasquim, 1973); ver também: Paulo Coelho... fundou uma revista chamada 2001 com matérias sobre nova física, alimentação, discos voadores, etc. Raul se interessou pelos assuntos da revista e resolveu procurar Paulo Coelho, em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 29; e, ainda, Raul procurou Paulo Coelho para comentar acerca de um artigo sobre discos voadores, em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 22; Sobre o sucesso anônimo de Paulo Coelho, através das músicas de Raul, ver: COELHO, Paulo, As Valkírias, Rio: Rocco, 1995, p. 66; 2 Para a relação dos discos e letras de músicas de Raul, citados em todo o capítulo, vide: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 131-352; Raul chama Paulo Coelho de meu parceiro: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 85 (entrevista aO Pasquim, 1973); Letras de músicas citadas do LP Krig-há, bandolo! – Somente de Raul: Mosca na Sopa; Dentadura Postiça; Ouro de Tolo; Metamorfose Ambulante – Em parceria com Paulo Coelho: As Minas do Rei Salomão e Cachorro Urubu; 3 O LP Gita vendeu 600.000 cópias: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 49 (texto: O Último Anarquista, de André Mauro); vide, também, declaração do próprio cantor: idem, p. 128 (entrevista à revista Amiga, em 1982); Músicas que falam em Medo no LP Gita: Medo da Chuva e Moleque Maravilhoso; Paulo Coelho publicou em 1974, na revista Planeta, um artigo chamado As Sociedades Alternativas, onde apresenta e defende as idéias de Aleister Crowley, que posteriormente veio a combater. Referência: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 40 (Ensaio crítico: Os Movimentos Alternativos, de Toninho Buda); 4 Citação de Paulo Coelho sobre o LP Novo Aeon: a gente precisava dar uma continuidade ao trabalho, em Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 161 (texto: Raul, O Parceiro: Uma Inimizade Íntima, de Paulo Coelho); Declaração de Raul dizendo que agora é diferente, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 30 (citado em: Raul Seixas, um estudo: Eu em Noites de Sol, de Ana Maria Bahiana); Declaração de Raul dizendo que as idéias se chocavam e que cada um foi para o seu lado, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 105-106 (entrevista a Aloysio Reys, 1976); 5 Novo Aeon é o disco que traz essa nova maneira de pensar, ver: : Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 110 (entrevista a Aloysio Reys, 1976); e: é o disco de que mais gosto, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 153 (entrevista à revista Bizz, em 1987); porém, teria saído em um momento histórico errado, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 126 (entrevista à revista Amiga, em 1982); Já a opinião contrária, de Paulo Coelho, está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 161-162 (texto: Raul, O Parceiro: Uma Inimizade Íntima, de Paulo Coelho); 6 O LP Há 10 Mil Anos Atrás foi considerado sem novas idéias e musicalmente insípido, por André Mauro, no artigo O Último Anarquista, publicado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 49; já a opinião de que o disco foi só para provar como era fácil, para Raul, fazer sucesso, foi defendida por Nelson Motta, no artigo: Louco, Paranóico, Revolucionário? Idem, p. 160; A citação de Raul que estaria vomitando 1976 em cima das pessoas, está em: Idem, p. 111 (entrevista a Aloysio Reys, 1976); Artigo de Paulo Coelho sobre Raul: Idem, pp. 161-164; A citação de que, naquela época, para Paulo Coelho, o que contava é que estava ganhando dinheiro, ver: As Valkírias, Op. Cit. p. 66; 7 A insinuação de que Paulo Coelho pode ter adentrado na música cafona por necessidade de sobrevivência, está em: ARAÚJO, Paulo César de, Op. Cit., p. 210; sobre a música Soy Rebelde, Idem, p. 210 e p. 423; Músicas do LP Mata Virgem, pela ordem de citação: Conserve Seu Medo; Judas; As Profecias; Magia de Amor e Tá na Hora; O Manual Prático do Vampirismo foi um livro lançado por Paulo Coelho em 1986, que se encontra esgotado e, segundo o próprio autor, teve os exemplares recolhidos e sua reedição está proibida. A justificativa para isso, ainda conforme o autor, é que ele não teria conseguido explicar bem o mito do vampiro. Vide: http://www.paulocoelho.com.br/port/faq.shtml ; já para Toninho Buda, no ensaio crítico: Os Movimentos Alternativos, Paulo Coelho teve grande má vontade em cumprir o compromisso com a editora, pois não queria mais falar disso, de coisas diabólicas, arquivos do inferno, etc. Ele estava já em outra. Ver: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 40; 8 Raul se diz perto do agnosticismo, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 136-137 (entrevista à revista Amiga, em 1982); 9 O caso do hotel que serviria para Raul e Paulo Coelho comporem mais um disco, foi narrado em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 39 (Ensaio crítico: Os Movimentos Alternativos, de Toninho Buda); a história foi confirmada por Paulo Coelho, que fez os comentários sobre a forçada de barra da gravadora, e que a parceria havia acabado: entrevista publicada no Jornal da Paraíba, Paraíba, 01.07.2003, Caderno Vida e Arte, p. 01; 10 Citação de Raul sobre Paulo Coelho, que havia competição entre eles e que ele usava ‘mind game’, ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 134 (entrevista à revista Amiga, em 1982); Declaração que houve um desgaste na relação, mas que foi uma boa parceria, vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 152 (entrevista à revista Bizz, em 1987); Raul já havia dito, em 1983, falando sobre Paulo Coelho, que é muito difícil e vom trabalhar com ele, Idem, p. 37 (citado em: Raul Seixas, um estudo: Eu em Noites de Sol, de Ana Maria Bahiana); Afirmação de Raul que Paulo saiu logo, mas eu continuei, idem. Ibidem, p. 30; 11 As declarações de Paulo Coelho sobre o difícil relacionamento com Raul, está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 161 (texto: Raul, O Parceiro: Uma Inimizade Íntima, de Paulo Coelho); Sobre as coisas acabarem, até as boas, vide entrevista publicada no Jornal da Paraíba, Op. Cit.; 12 Ver: As Valkírias, Op. Cit. pp. 65-74; 13 O lugar do outro, seja histórico ou geográfico, ou ambos, foi utilizado como base para os roteiros de, pelo menos, cinco obras de Paulo Coelho: O Alquimista, com a travessia do deserto e as pirâmides do Egito (Rio: Rocco, 1988); As Valkírias, com o deserto do Mojave (Op. Cit.); O Diário de um Mago, com o Caminho de Santiago, na Península Ibérica, rebuscando o cristianismo medieval (Rio: Rocco, 1995); Verônica Decide Morrer, com a situação da Eslovênia, após os conflitos de independência (Rio: Objetiva, 1998); e O Monte Cinco, romance-ficção baseado em relatos bíblicos (Rio: Objetiva, 1996); este último livro discute também a idéia do inevitável; 14 Trecho da música: A Hora do Trem Passar, de Raul Seixas e Paulo Coelho, integrante do LP Krig-ha, bandolo!, Op. Cit. Viva a Sociedade Alternativa E m sua última entrevista, concedida ao programa Jô Soares Onze e Meia, em 1989, Raul Seixas falou do seu breve exílio e debochou: Queriam saber quem eram os donos da Sociedade Alternativa, quando era apenas uma música. Porém, apesar de não constituir nenhuma ameaça organizada ao regime militar, é óbvio que o movimento alternativo estava muito além de uma simples composição musical.1 O mundo ocidental foi sacudido, nos anos 60, por um movimento de jovens que ameaçava assumir aspectos de uma revolução. No Brasil, paradoxalmente, os militares tentavam deter a roda de Aquarius através do autoritarismo. Instalou-se, então, um terrorismo cultural, admitido pelo próprio regime, onde nem pintores de paisagens escapavam e cujo objetivo seria evitar propaganda subversiva através da arte. O próprio Raul teve, já no seu primeiro LP de grande divulgação, em 1973, dezoito músicas censuradas, deixando-o ao lado de Chico Buarque como alvos prediletos da censura. Não havia, portanto, tempo nem espaço para separar comunistas de anarquistas, nem ativistas de idealistas.2 A música Sociedade Alternativa, de Raul Seixas e Paulo Coelho, do LP Gita, de 1974, lançava o brado libertário de Aleister Crowley, insuflando que cada um deveria fazer a sua própria lei, sugerindo a desobediência ao Estado, à Igreja e à Polícia. Houve quem visse nessas idéias uma crítica direta ao estatuto da sociedade moderna, [onde] a individualidade não deve se sobrepor ao coletivo.3 Para complicar, a tal Sociedade Alternativa se dizia uma organização secreta, coisa em moda na época, criada pelos dois compositores em 1973. No entanto, possuía estatuto, sede alugada, papel timbrado, relatórios mensais e chegou a ser reconhecida internacionalmente no ano seguinte. Assim, somente o discurso da Sociedade, unido ao poder de penetração da música de Raul, já reunia elementos suficientes para chamar a atenção dos militares.4 Porém, ocorreu um agravante. Uma sociedade esotérica, de orientação crowleiana e conhecida apenas pelas letras AA, tentou iniciar Raul e ofereceu um terreno em Minas Gerais para a construção da Cidade das Estrelas. Seria uma comunidade anárquica, uma espécie de anticidade, onde se permitiria tudo o que lá fora fosse proibido. Havia arquitetos, advogados, engenheiros, uma pá de gente querendo morar na cidade. Parece claro que Raul se inspirava em Crowlwy, na teoria, e no movimento hippie, na prática. Para os militares, no entanto, era um movimento revolucionário contra o governo. Observe-se que o LP Gita foi lançado em meados de 1974, mesma época em que o exército conseguia, com muito custo, debelar a célula esquerdista que se instalara às margens do rio Araguaia, no sul do Pará. A resistência armada ao governo tinha abandonado o confronto urbano e, seguindo os exemplos da China e de Cuba, se preocupava em abrir focos rurais. Portanto, do ponto de vista do governo, não dava para ariscar e tolerar outros movimentos de barbudos desobedientes pelo interior, fossem quais fossem as suas intenções. A melhor saída seria convidar os cabeças a deixar o País.5 Estava, assim, decretado o fim do sonho da Sociedade Alternativa, enquanto movimento concreto. O retorno de Raul ao Brasil deu início a uma fase mais intimista do cantor. A Sociedade Alternativa passou a ser encarada como algo que existe, mas não é palpável, um movimento de pessoas para consigo mesmas. Raul professa agora que cada um faça a sua, e desabafa: não vou ser mais guru de ninguém. O momento vivido era o Novo Aeon e, num arroubo antimoderno, gritou: já não há mais culpado nem inocente, cada pessoa ou coisa é diferente! 6 Porém, passados tantos caminhos, tantas portas, dois anos antes de morrer Raul revela: Até hoje a Sociedade Alternativa fica comigo como uma boa lembrança, certamente não só para ele. O refrão anarquista de Faze o que tu queres ganhou vida e se transformou no hino dos Festivais de Música de Águas Claras, em São Paulo. A música ressurgiu, também, como hino dos jovens rebeldes que, em 1992, marcharam em passeata pelas ruas das grandes cidades do País, pedindo o impeachment do então Presidente Fernando Collor.7 Fica, por fim, a mensagem libertadora de que podemos, de fato, fazer o que quisermos, até dar três vivas à Sociedade Alternativa, porque, afinal, há de ser tudo da Lei. Notas 1 Entrevista de Raul Seixas no programa Jô Soares Onze e Meia: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 101; 2 A roda de Aquarius é um capítulo do livro As Ilusões Armadas, A Ditadura Envergonhada, GASPARI, Elio, Op. Cit. pp. 211-235, o autor discute o movimento alternativo mundial e as repercussões no Brasil durante a ditadura militar, afirma que o governo Castello Branco tentou mover a roda da autoridade esperando que a de Aquarius parasse, idem. Ibidem, p. 220; a frase terrorismo cultural foi cunhada pelo escritor Alceu de Amoroso Lima ainda para a época de Castello Branco, idem. Ibidem, p. 220; ao reclamar ao general Ernesto Geisel sobre a prisão e apreensão de livros do editor esquerdista Ênio Silveira, o Presidente escreveu: Nunca se fez isso no Brasil... É mesmo um terror cultural, idem. Ibidem, p. 231; a pintora Djanira teve que se explicar à polícia, pois, numa das suas paisagens de Parati, havia um suposto chinês atrás de uma palmeira, idem. Ibidem, p. 220; a opinião de que era preciso evitar a propaganda subversiva através das artes, é atribuída ao general Riograndino Kruel, idem. Ibidem, p. 222; Sobre as dezoito músicas de Raul Seixas censuradas em 1973 e a comparação com a censura imposta a Chico Buarque, Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 46 (texto: O Último Anarquista, de André Mauro); 3 A relação entre a Sociedade Alternativa e a crítica às três grandes instituições: o Estado, a Polícia e a Igreja, foi estabelecida em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 32-34 (Ensaio crítico: Os Movimentos Alternativos, de Toninho Buda); Com relação à obra de Raul ser uma crítica ao estatuto da sociedade moderna, vide: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 101; 4 A Sociedade Alternativa foi a terceira organização que Raul Seixas participou. Antes, ele já havia integrado a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista e a Fundação de Krig-há, todas criadas pelo Raul: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 128; a última foi fundada em setembro de 1973 e foi reconhecida mundialmente em 17 de fevereiro de 1974, conforme: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 22; o seu manifesto pode ser visto em: http://www.raulseixashp.kit.net/sociedade.htm ; sobre sede alugada, papel timbrado e relatórios, vide: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 84 (Perfil Bibliográfico, por Sylvio Passos); havia, pelo mundo, outras sociedades semelhantes como, por exemplo, a New Utopian, fundada por John Lennon, vide: , ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 82 e p. 90; 5 A doação do terreno para a construção da Cidade das Estrelas, está em: Raul Seixas, Uma antologia, idem. Ibidem, pp. 83-84; e que esta seria uma anticidade: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 83 (entrevista à rádio Globo AM, programa Paulo Lopes, 1987); já a citação de Raul de que vários profissionais se interessaram em morar na cidade, está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 127 (entrevista à revista Amiga, em 1982); uma idéia de como seria esta cidade foi dada por Raul, na música De cabeça-pra-baixo, incluída no LP O dia em que a Terra parou, WEA, 1977; já a Sociedade Alternativa como movimento revolucionário contra o governo, vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 146 (entrevista à revista Bizz, em 1987); O movimento armado de orientação esquerdista no Brasil, durante o regime militar, foi discutido em: GASPARI, Elio , As Ilusões Armadas, A Ditadura Escancarada, São Paulo: Companhia das Letras, 2002; a opção dos guerrilheiros pelos focos rurais está citada no capítulo O grande golpe, notadamente na página 98; O convite feito a Raul e Paulo Coelho para deixarem o País, foi citado como ironia pelo próprio cantor: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 128 (entrevista à revista Amiga, em 1982); 6 Reflexões de Raul sobre a Sociedade Alternativa: existe mas não é palpável: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 106 (entrevista à revista POP, suplemento Hit POP, 1975); um movimento de pessoas para consigo mesmas: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 88 (entrevista à Rádio Transamérica, feita por Marcelo Nova, 1988); cada um faça a sua... não vou ser mais guru de ninguém: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 31 (citado em: Raul Seixas, um estudo: Eu em Noites de Sol, de Ana Maria Bahiana); Já não há mais culpado nem inocente..., trecho da música Novo Aeon, do LP de mesmo nome, Philips, 1975; 7 A Sociedade Alternativa como uma boa lembrança: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 144 (entrevista à revista Bizz, em 1987); A música Sociedade Alternativa como hino dos Festivais de Águas Claras, em São Paulo: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 47 (texto: O Último Anarquista, de André Mauro); e como hino dos estudantes que pediam o impeachment de Fernando Collor: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 62 e p. 149. Eu sou o tudo e o nada O LP Gita, de 1974, fez tamanho sucesso que acelerou a volta de Raul Seixas do exílio. A música principal, de mesmo nome, além de trazer inovações, como toques de sinos, clarins e um final apoteótico, carrega acentuado teor doutrinário na letra, baseado em antiga tradição indiana.1 Gita, composição de Raul e Paulo Coelho, invoca o BhagavadGita, ou Canto do Senhor, livro sagrado do hinduísmo, mais precisamente o capítulo que versa sobre “A Opulência do Absoluto.” Nesse texto, um guerreiro pergunta ao Deus o por que de tantas guerras e de tantas mortes entre irmãos. O “Senhor Supremo” responde-lhe, através de metáforas, que ele é o Tudo e também o Nada. Que Ele está em Tudo e Tudo está nEle, inclusive as coisas ruins. Portanto, pedir o fim das angústias não faz sentido, pois Tudo faz parte Dele, ou seja, da vida. 2 A música Gita mantém esta estrutura filosófica, considerando o Bem e o Mal como se fossem dois lados de uma mesma moeda. Os autores chegam mesmo a fazer algumas transliterações do texto original. Entretanto, enquanto o deus indiano busca exclusivamente a natureza como expressão metafórica do poder divino, a música inclui o cotidiano, o qual, obviamente, também faz parte do Todo. Outra diferença é que, no livro hindu, a angústia que aflige o guerreiro são as guerras, a desunião e as mortes entre irmãos. Já os autores de Gita preferiram enfatizar os conflitos do dia-a-dia, sugerindo até questões afetivas e amorosas. Estas “atualizações” têm uma intenção óbvia: tornar a mensagem mais clara para as pessoas de hoje, o que revela, por outro lado, o caráter realmente doutrinário da composição. Observe-se, ainda, que, na montagem musical do texto, o cantor interpreta a própria voz do Deus. Portanto, se o conteúdo doutrinário não foi totalmente absorvido, pelo menos a identificação com o ouvinte não deixou de ocorrer. O próprio Raul se surpreendeu ao ouvir um pedreiro cantando, ao seu modo, esta música. Sylvio Passos, fundador do fã-clube oficial do Raul, é ainda mais direto. Ele ficou perplexo ao perceber que tem gente que acha que Gita é uma canção de amor, e canta para a namorada como se fosse uma declaração amorosa, romântica. Ora, nos parece que não podia ser diferente, pois o objetivo era exatamente este: colocar o ouvinte como sujeito da trama.3 A música Gita é, sem dúvida, um capítulo à parte do disco de 1974. Por ter outra mensagem e objetivos definidos, a influência de Aleyster Crowley praticamente desaparece. A natureza, no livro sagrado, ou o cotidiano, na música, assumem o lugar do homem na História, restando a este aprender com a sua insignificância. Posteriormente, porém, Raul fez sozinho a versão da música para o inglês, denominando-a I am, e injetou nitidamente elementos crowleyanos, os quais não deixaram de figurar como corpos estranhos ao texto hindu. Apesar de ambos verem o Mal como parte necessária à vida, situação comum nas tradições orientais, a Lei do Forte de Crowley, baseada na força interior de cada um, nada tem a ver com a demonstração de poder do Deus indiano. Em I am, Raul tentou adaptar o livro sagrado para uma conotação crowleyana. Mas, ao contrário de unir as duas filosofias, como sugeriram alguns, a música expõe mesmo as suas diferenças. Longe estão de terem outros pontos em comum.4 Já Gita se mantém em consonância com a mensagem do Deus do guerreiro hindu, propondo ajudar ao ser humano, pequena criatura, a encontrar o seu lugar no imenso mundo que o criou. Raul certa vez declarou: ...que Gita ecoe no coração dos homens e os faça levantar novamente a cabeça. É a idéia, em suma, de que a vida é feita com as coisas da vida, e é com elas que deve ser vivida e sentida. E não adianta você fazer perguntas, pois, como ele tentava sintetizar em sua metafísica, perguntas não vão lhe mostrar.5 Notas 1 Referência de que o sucesso de Gita acelerou o retorno de Raul Seixas do exílio está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 48 (texto: O Último Anarquista, de André Mauro); idem, p. 110 (entrevista a Aloysio Reys, em 1976); idem, p. 128 128 (entrevista à revista Amiga, em 1982); ver também: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 83 (entrevista à rádio Globo AM, programa Paulo Lopes, 1987); e: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 40 (Perfil Biográfico, de Sylvio Passos); 2 Os trechos do Bhagavad-Gita que inspiraram a música está em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 25-30 (Ensaio crítico: Os Movimentos Alternativos, de Toninho Buda); 3 Raul declarou ao programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, quando do lançamento do clip da música Gita, que esta mostrava o Bem e o Mal como se fossem dois lados de uma mesma moeda; Com relação às transliterações, o texto original fala: Eu sou o fogo... Eu sou o oceano... Eu sou os Himalaias... Eu sou o vento; e Gita: Eu sou feito da terra, do fogo da água e do ar. Original: Eu sou o sol... e entre as estrelas eu sou a lua. Gita: Eu sou a luz das estrelas, eu sou a cor do luar. Original: Eu sou também o jogo de azar dos enganadores. Gita: Eu sou... o blefe do jogador. Original: Dos peixes eu sou o tubarão. Gita: Eu sou... o dente do tubarão. Original: Das letras eu sou a letra A. Gita: A letra A tem meu nome. Finalmente, diz o texto original: Eu sou o começo, o meio e o fim de todos os seres. E Gita: Eu sou o início, o fim e o meio. Logo no início, porém, ao ser indagado pelas dúvidas do guerreiro, o Deus responde: Como devo meditar em você? Ao que foi traduzido: Por que você me pergunta? Perguntas não vão lhe mostrar. Vide item 2 anterior; A surpresa de Raul por ver um pedreiro cantando Gita, a seu modo, está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 107 (entrevista à revista POP, suplemento Hit POP, 1975); A frase de Sylvio Passos, está em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 135; 4 Ver a tradução da música I am (Eu sou), feita por Toninho Buda em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 310-312, a letra chega a dizer: Eu sou o poder da Vontade (I am the power of will), e: Eu sou a Lei de Thelema (I am the law of Thelema), além de uma frase de cunho nitidamente crowleyano: Eu sou a esperança daquele que quer (I am the hope of the wisher); A relação entre o Bhagavad-Gita e Aleister Crowley, cujas “leis” se resumiriam ao faça o que tu queres, foi sugerida em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 47; Toninho Buda, porém, reconhece que Raul acrescentou Crowley ao reescrever Gita em inglês, em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. P. 74; 5 A frase de Raul: ...que Gita ecoe no coração dos homens e os faça levantar a cabeça novamente, está em: Baú do Raul, pp. 114-115, citado em: Idem, Ibidem, p. 47. Tento uma transmutação A obra de Raul Seixas se apresenta diversas vezes sob uma ótica escapista, de fuga e distanciamento da realidade, tendo como veículo preferido o disco voador. A música S.O.S, lançada no LP Gita, de 1974, e de autoria apenas de Raul, é explícita desde o título: um pedido de socorro ao moço do disco voador, para que o leve daqui, do mundo que ele se recusou a entender. O desespero do cantor assemelha-se ao de Josef K., personagem kafkiano, cujo processo natural da vida sempre lhe pareceu estranho e sem sentido.1 Por outro lado, ao se referir às pessoas como formigas que trafegam sem por que, Raul se sente afastado, colocando-se em um ponto de observação elevado. O sociólogo francês Michel de Certeau, ao discorrer sobre a ficção do saber, diz que aquele que sobe até lá no alto, foge à massa que carrega e tritura em si mesma toda identidade de autores ou de espectadores. O corpo não está mais enlaçado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo uma lei anônima... Sua elevação o transfigura em “voyeur”... permitindo-lhe um olhar divino... excluindo-se do obscuro entrelaçamento dos comportamentos do dia-a-dia e fazendose estranho a eles... Embaixo,..., vivem os praticantes ordinários da cidade. Temos, assim, o inútil movimento dos centros urbanos: Domingo, missa e praia, céu de anil, tem sangue nos jornais, bandeiras na avenida...2 Eis que, ao escolher a cidade como materialização imagética das suas idéias, Raul atacou um dos mais legítimos representantes da racionalidade: o espaço urbano moderno. A sua crítica não é para transformar, nem para propor mudanças, mas para rejeitar por inteiro. E somente o distanciamento possibilitaria tal atentado contra a lógica modernista. Raul, ao ser entrevistado em 1973, fantasiou sobre o seu primeiro encontro com Paulo Coelho, no qual eles haviam observado um disco voador. Mais adiante, porém, comenta a conversa que teve com o seu futuro parceiro com bastante lucidez: Foi como se a gente tivesse feito uma viagem no próprio disco. E vendo a problemática toda do planeta. Portanto, ao proferir o discurso das alturas, Raul Seixas pretende autorizar uma argumentação supostamente desligada, independente e desinteressada, longe das pessoas comuns, que não percebem nada porque estão muito ocupadas pra pensar.3 Para sair do real e conseguir um afastamento necessário, a metáfora mais utilizada na época era mesmo a tal fuga num disco voador. E Raul abusou dela. Já em 1972, ao ser indagado sobre um dos seus desejos, respondeu: Pegar um disco voador e ir embora. O disco voador é, portanto, estranho e distante ao mesmo tempo. Esta é a mesma metáfora utilizada pela revista Veja ao criar o personagem Arc, um marciano que não consegue entender as maluquices dos terráqueos.4 É, então, de se perguntar: qual era mesmo a esperança de Raul? Era que cada vez mais pessoas embarcassem, com ele, em uma nave espacial e, lá do alto, também pudessem ver o mundo da maneira que ele via, de uma forma diferente. Em 1977, na música Que luz é essa?, ele ainda fala de uma luz que vem chegando lá do céu, mais forte que o sol, e que vem trazendo a esperança... vem mostrar que nunca é tarde.5 Mas, em 1978, na última parceria com Paulo Coelho, Raul, certamente menos irritado com os alienígenas, que não vieram, do que com os terráqueos, que não embarcaram na aventura, constata que não é só a realidade que vira ficção, o sonho também. Pois, quando ele já estava preparado para o contato imediato de terceiro grau, alguém lhe disse: você vai ver tudo no cinema. Este temor, aliás, ele carregava desde o início. No LP dos Kavenistas, de 1971, em uma das falas entre as faixas, o companheiro afirma, irônico, ter visto o seu ídolo da juventude, ao que Raul emenda: É amigo, assim os Discos Voadores nunca irão pousar! 6 Notas 1 KAFKA, Franz, O Processo, São Paulo: Ediouro, sem referência do ano da publicação, ISBN 85-00-71330-5; 2 CERTEAU, Michel, A Invenção do Cotidiano, Cap. VII: Caminhadas pela cidade, Petrópolis: Editora Vozes, 1994, pp. 169-172; 3 Entrevista de Raul em 1973: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 89 (entrevista aO Pasquim); 4 Os discos voadores faziam parte do cotidiano das pessoas, citado em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 18 (Ensaio crítico: Os Movimentos Alternativos, de Toninho Buda); Entrevista onde Raul diz que o seu desejo era pegar um disco voador e ir embora, está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 80 (entrevista feita por Gay Vaquer, em 1972); O personagem “Arc”, da revista Veja, é assim definido: Arc é marciano e invisível e vem regularmente à Terra, inclusive ao Brasil, para ver se vale a pena Marte investir aqui. Por enquanto ele está achando que não dá...([email protected] ), revista Veja, São Paulo: Abril, 28.03.2001, p. 39; 5 Música Que luz é essa?, é a nona faixa do LP RAUL SEIXAS – o dia em que a terra parou, WEA, 1977; 6 Na música Tá na hora, de Raul e Paulo Coelho, a referência aos ET´s, e 0 ao filme Contatos Imediatos de 3 Grau, de Steven Sbielberg (EUA, 1977), é textual: Andei durante dez anos / Fazendo planos para falar / Com seres vindos do espaço / Com uma resposta para me dar / Porém quando eu estava pronto / Para o contato, minha pequena / Me falou: você vai ver tudo no cinema, LP Mata Virgem, WEA, 1978. Profeta do Apocalipse A música As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor – LP Gita, 1974 – é o que propõe o título: um super-herói com o seu martelo, verbal e sonoro, vibrando como um trovão sobre os infiéis. Na verdade, trata-se de um manifesto bem humorado contra os donos da verdade. A canção, de autoria exclusiva de Raul, traz o otimismo doutrinário e as certezas filosóficas que o cercavam naquela época. Mesmo assim, tempos depois ele recorda com satisfação esta musica, declarando gostar muito dela.1 O cantor inicia rindo daqueles que se acham donos do mundo, mas que, se são carrascos, são também vítimas do próprio processo de dominação. Ainda mais com o advento da máquina, com os seus relógios e seus olhos eletrônicos, que, ao invés de libertar, escraviza muito mais o homem.2 Raul também brinca com o seu sucesso: se o Monstro Sist quer transar com ele, e faturar com o seu trabalho, é porque não percebe que está tratando com uma coisa diferente, com algo que intenta contra a própria estrutura que o alimenta. Para Raul, a sorte estava lançada, ou, nas suas palavras, a arapuca estava aramada.3 A própria civilização, ao se tornar complexa, tornara-se também frágil, como se fosse um computador, o Aquiles da modernidade. E aqui entra o dom de Raul Seixas de antecipar algumas questões: ele previu a facilidade de violação dos sistemas de informática muito antes do surgimento dos hackers, e até mesmo antes da revolução dos PC´s na década de oitenta.4 Mais adiante Raul rebusca a Teoria Gaia. Segundo esta teoria, o planeta Terra agiria como um ser vivo, defendendo-se das agressões impostas pelo homem, sendo este uma espécie de parasita. Assim, a Terra aparece na música como um cachorro e os humanos como pulgas, as quais podem ser expulsas a qualquer momento, num sacolejo. Apesar de estar contida, nesta frase, a preocupação com a Guerra Fria e uma possível hecatombe nuclear, está presente também uma antecipação dos movimentos ambientalistas e da ecoeconomia, recente ciência que preconiza a destruição da vida humana na Terra, caso continue o mesmo ritmo de agressão à natureza.5 Como Raul sabia de tudo isso? Sua resposta é imediata: há muito tempo que desconfiava da verdade absoluta. Quando lançou esta música, em 1974, pode-se dizer que Raul estava ainda em início de carreira. Porém, já havia arrebanhado uma legião de admiradores e de críticos ferrenhos. Assim, ele aproveitou a ocasião para atacar os desafetos, mas também para combater idéias que discordava. O malho que arrebentou sobre o homossexualismo foi o mesmo que esmagou a MPB.6 E não faltaram bordoadas para os que o chamaram de Profeta do Apocalipse, referindo-se ao sucesso anterior de Ouro de Tolo. Raul chama estes de imbecis, e que só vão entender o que ele falou no esperado dia do eclipse. Aliás, esta mensagem cifrada levou o presidente do fã-clube oficial de Raul, Sylvio Passos, a relacioná-la com a premeditação da própria morte do cantor, ocorrida próximo de um eclipse lunar. Parece-nos, no entanto, uma resposta pura e simples aos que não entenderam a revelação na mensagem das suas músicas. De fato, Ouro de Tolo faz referência ao livro do profeta João ao citar que o protagonista não iria ficar no trono de um apartamento, esperando a morte chegar. Ora, o texto bíblico diz exatamente que Deus está sentado num trono, esperando a catástrofe que se abaterá sobre o mundo. Porém, as críticas só enxergaram o lado mórbido da letra, esquecendo o seu lado revolucionário, da mesma forma que o Apocalipse é referido muito mais à destruição do mundo do que à sua transformação. O próprio Raul filosofa dizendo que o Apocalipse foi escrito em uma época incrível, você tinha que falar uma linguagem simbólica, uma linguagem mágica. Mas o Apocalipse é uma coisa que se adapta a qualquer época. E conclui: É quase a mesma linguagem que nós estamos usando... Portanto, o revide de Raul se dá pela falta de entendimento e menosprezo da sua proposta, e não pela associação em si.7 Em entrevista ao jornal O Pasquim, em novembro de 1973, Raul utilizou muitos elementos presentes na música em discussão. O que faz supor que, se ele já havia concluído a letra, a mesma ainda estava muito viva em sua memória. Ele fala, por exemplo, dos cabeludos que não deixam mais saber quem é quem, e dispara: tá todo mundo estereotipado. Diz, também, que se tem de transar de rato para entrar no buraco do rato. Observe-se que, mesmo com todas as músicas maravilhosas do disco de 1974, Raul prefere citar trechos das suas Aventuras na Cidade de Thor, das suas peripécias no mundo, e a razão para isso é óbvia: a música já era uma resposta direta às censuras e indagações jocosas da crítica.8 Antes de acabar a música ele ainda se sente seguro o suficiente para revelar a identidade secreta do super-herói Raul Seixas: o pacato e tímido Rauzito, um sujeito totalmente diferente do artista.9 Mas o ritmo dAs Aventuras... traz ainda outra surpresa. A música começa com uma seca batida de viola que se repete entre os versos das estrofes, as quais, por sua vez, são separadas por gritos ritmados, numa espécie de aboio violado. É bastante clara a referência aos desafios de viola, comuns no Nordeste, onde um cantador, a cada vez, tenta desacatar e desmoralizar o outro. É dessa forma que Raul dá o troco e ataca os seus adversários. E para os que ainda têm dúvidas quanto às suas intenções, ele encerra a música com uma expressão de admirado sarcasmo: Oxente, mas não é! Notas 1 A música As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor é a terceira faixa do Lado A do LP Gita, PHILIPS, 1974. A letra também pode ser vista em Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 174-176; Thor: divindade da Noruega que, com o uso do seu martelo, provocava os raios e trovões. Cruzava os céus em uma carruagem puxada por – vejam só – dois bodes. A palavra Thor-don em norueguês significa o rugido de Thor. Como estava relacionado à chuva, era adorado como o deus da fertilidade. Vide: GAARDER, Jostein, O Mundo de Sofia, Romance da história da filosofia, Cap: a Os Mitos, São Paulo: Cia das Letras, 22 reimpressão, 1997, p. 35; o deus norueguês também havia se convertido, na época da música, em super-herói do desenho animado da Tv e também do gibi; Em entrevista em 1982, ao ser indagado pela crítica à MPB na música, ele inicia a resposta dizendo: Eu gosto muito dessa música. Tem aquele pedaço que diz: Eu vou contar, meu compadre, como os donos do mundo piraram. Em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 137 (entrevista à revista Amiga); 2 a 3 a Trecho da música (1 estrofe): Tá rebocado, meu compadre / Como os donos do mundo piraram / Eles já são carrascos e vítimas / Do próprio mecanismo que criaram; Trecho da música (2 estrofe): O monstro Sist é retado / E tá doido pra transar comigo / E sempre que você dorme de touca / Ele fatura em cima do a inimigo; 3 estrofe: A arapuca está armada / E não adianta de fora protestar / Quando se quer entrar num buraco de rato / De rato você tem que transar; 4 A sétima estrofe diz: A civilização se tornou tão complicada / Que ficou tão frágil como um computador / Que se uma criança descobrir o calcanhar de Aquiles / Com um só palito pára o motor. Raul consegue antever que os sistemas de computação seriam os gigantes do futuro, mas que poderiam ser ameaçados por qualquer criança que “descobrisse o calcanhar de Aquiles.” Não deixa de ser curioso o fato de que muitos hackers, que causam grandes danos e conseguem parar as redes de informações, são geralmente jovens e até mesmo crianças; Em entrevista de 1980, Raul fala sobre o estabelecimento de uma nova ordem e diz: Seremos a agulha que vai enfiar no calcanhar de Aquiles que existe na nossa civilização, que está completamente destruída. Depois, referindo-se ao lançamento do LP Abre-te Sésamo, diz que no disco está presente essa agulha incisiva que penetra no calcanhar de Aquiles. Mais adiante, falando da época em que foi relacionado ao Apocalipse, ele reconhece: Na época, as fábricas me forçaram, gostaram da idéia, né? Eu tive que aprender com o sistema, a me adaptar a ele ardilosamente, a procurar os calcanhares de Aquiles, vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 117-118 e p. 122 (entrevista ao jornalista Ricardo Porto de Almeida); 5 a Trecho da música (4 estrofe): Buliram muito com o planeta / O planeta como um cachorro eu vejo / Se ele já não guenta mais as pulgas / Se livra delas num sacolejo; 6 a A crítica ao homossexualismo está explícita na 5 estrofe: Hoje a gente já nem sabe / De que lado estão certos cabeludos / Tipos estereotipados / Se é a da direita ou da traseira / Não se sabe lá mais de que lado; sobre a MPB, a 10 estrofe diz: Acredite que eu não tenho nada a ver / Com a linha evolutiva da música popular brasileira / A única linha que eu conheço / é a linha de se empinar uma bandeira; 7 A nona estrofe, diz: Quando eu compus, fiz “Ouro de Tolo” / Uns imbecis me chamaram de “Profeta do Apocalipse / Mas eles só vão entender o que eu falei / No esperado dia do eclipse. A análise de Sylvio Passos sobre a passagem está em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 135; Sobre a citação bíblica de que um trono estava posto no Céu, e Um assentado sobre o trono, ver: Apocalipse, 4-2; A referência de Raul ao Apocalipse, como tendo sido escrito em uma época incrível, foi dada na entrevista ao jornal “O Pasquim” , em novembro de 1973. Anteriormente, na mesma entrevista, ele revela que essa história de “Profeta do Apocalipse” havia sido criado por jornais sensacionalistas. Vide: Raul 0 Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 89 e p. 94; vide também 2 parágrafo do item 4 precedente; 8 Na entrevista ao jornal O Pasquim, em novembro de 1973, portanto, já próximo ao LP Gita, lançado no ano seguinte, Raul faz menção explícita à idéia a do “buraco de rato” (vide item 3 anterior, 3 estrofe), e também aos tais cabeludos estereotipados, para o que faz referência a uma reportagem da revista Veja sobre Pasolini, e conclui assustado: cês leram? ... Você já não sabe mais quem é quem, Tá aquela coisa de cabeludo, tá todo mundo estereotipado. Por isso é que eu faço questão de dizer que eu não sou da turma pop. Mais adiante, Raul revela que está, de fato, pensando no próximo disco: Eu já tô com o meu segundo LP na cabeça. Vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. pp. 83-103; 9 a A 12 e última estrofe diz: Raul Seixas e Raulzito / Sempre foram o mesmo homem / Mas para aprender o jogo dos ratos / Transou com Deus e com o Lobisomem; Sobre as diferenças entre o homem e o personagem-cantor, ele diz: Eu sou mesmo um cara muito tímido e com uma sensibilidade à flor da pele. Aquele negócio de canceriano, de arrepios, de coração. Agora, no palco é hora de vomitar. Vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 136 (entrevista à revista Amiga, 1982). Muitas mulheres eu amei e com tantas me casei R aul Seixas se dizia um revolucionário. Professava um anarquismo egocêntrico onde o indivíduo tudo podia. Curiosamente, mas talvez por conta disso, sob muitos aspectos ele aparece como o que hoje se poderia chamar de conservador. O próprio cantor admitia esta condição ao se dizer espremido entre duas gerações. Em entrevista ele assume: A minha geração eu costumo chamar de ‘geração sanduíche’, que segurou os valores dos pais e os valores dos surfistas de hoje, e conclui: Tá no meio, bicho. Assim, ele se sentia híbrido, habitando e adorando as características de dois mundos. Em outra entrevista, ele chegou a dizer: Tem uma fase na vida em que falamos muito mal dos nossos pais. Mais eles têm mais experiência do que a gente.1 Sobre drogas ilícitas, ele também tinha um discurso diferente de grande parte da geração hippie: Juntamos a caretice com a loucura, disse. E, mais especificamente sobre si mesmo, explica: Sempre fui meio careta. Morro de medo de tomar drogas. Nunca tomei LSD e jamais tomarei. Morro de medo. O maluco beleza – diz – não é um maluco louco, envolvido com drogas como o povo pensa não... O Maluco Beleza é você estar iluminado, estar certo de você mesmo... Certo da sua loucura.2 Raul se dizia um heterossexual convicto e tinha uma tolerância muito pequena com o homossexualismo, indo mesmo, algumas vezes, ao deboche. Ele mexe com os cabeludos tipo estereotipados, no LP de 1974 e, em 1980, ataca o lesbianismo com o seu Rock das ‘Aranha’, onde sentencia: vi uma transa que não é normal, e se pergunta admirado: Cumé que pode duas aranhas se esfregando... deve ter uma boa explicação. Sobre a música, que era proibida no rádio e na televisão, mas que em show podia escancarar, ele justificou: Tomada com tomada e plugue com plugue não dá nada, o mundo foi feito tomada com plugue. Aí dá uma sequencia ao que Deus nos fez, ao que Deus mandou a gente fazer. Em outra entrevista, lá em 1976, ele é indagado sobre um festival em Saquarema, onde a multidão curtira a música Sociedade Alternativa, e responde sem entusiasmo: Saquarema estava muito chato. Tava muito Ângela Rô-Rô... Na mesma entrevista ele já havia discorrido sobre o egoísmo, ao seu modo, e disparara: Se eu descobrisse que era bicha, ia sair por aí transando com todo mundo na maior e ia ser o maior barato. Observe-se que, neste caso, ele utiliza o homossexualismo como recurso extremado para expressar o quanto radical era o seu pensamento sobre a vontade do indivíduo, a qual deveria ser respeitada até nas piores circunstâncias. Isso sem falar que a própria construção da frase impõe um sentido vulgar e pejorativo à questão.3 Já a mulher, para Raul, tinha um sentido mágico, divino. Deveria ser adorada que nem santa num altar. Ele gostava da palavra Nuit, que foi nome de música e quase vira título de disco. Nuit, como revelou, era uma divindade egípcia... a mulher total, o prenuncio de uma nova era, de um novo tempo mulher. Um entrevistador, ao ouvir tal definição, perguntou se isso seria um retorno ao matriarcado, à supremacia feminina. Ele explicou, então, que a mulher joga você pra fora, no papel de mãe, e recebe você novamente, como sua esposa. É ela que faz tua vida... Porém adverte: Mas existe o equilíbrio. A mulher é a noite e o homem é o dia. Ou seja, a harmonia entre os sexos só seria possível com a separação de papéis, cabendo à mulher mais ou menos o que Chico Buarque desenhou em Mulheres de Atenas. O Novo Aeon precisa vir rápido, porque até as mulheres, ditas escravas, já não querem servir mais.4 Em um rock bem humorado chamado Babilina, lançado em 1983, Raul canta a história de um homem apaixonado por uma prostituta e, ao pedir pra ela deixar o bordel, justifica: À noite cê trabalha / Diz que é pra me sustentar / Passa o dia exausta / Que nem pode me olhar... E completa: É dentro de casa que eu te quero, meu amor / Larga desse emprego, Baby, por favor! Como Raul adorava metáforas, não é absurdo supor que, por trás da mensagem óbvia, estivesse uma crítica à mulher moderna e ao seu distanciamento de valores anteriormente assumidos na equação social.5 A mulher também é vista como um mal necessário. Perguntado se já haviam inventado algo melhor que mulher, responde: Mulher é problema, rapaz. Mulher é problema. Mas, mesmo assim, não inventaram não.6 Raul se casou cinco vezes e em todas elas, como qualquer romântico, buscou encontrar a mulher ideal. Já em 1976, através da música Canto para minha morte, ele dizia temer morrer antes de encontrar a mulher que lhe havia sido destinada. Ironia ou não, anos mais tarde, ao ser interrogado se havia esgotado a cota de casamentos após o quinto, respondeu: Agora eu parei... Encontrei a mulher que eu queria. Mas a questão é que Raul era um sujeito de dificílima convivência. Ele mesmo admitia: É que eu sou chato, bicho. Eu sou o plim-plim do pentelho do pentelho do pentelho. Eu sou muito chato. Por outro lado, ele não conseguia ficar descasado. Não consigo. – disse – Eu gosto de ficar com minha mulher, assistindo videocassete. Porém, como a sua impetuosidade o impedia de manter por muito tempo a sonhada passividade doméstica, sobravam os lamentos de um homem preso aos grilhões do casamento, como aparece nas músicas Sessão das Dez, Medo da Chuva e A Maçã. Ou até consequência pior: Eu tive que perder minha família para perceber o benefício que ela proporcionava, lastimase em Diamante de Mendigo, de 1979.7 Questões como a virgindade e o casamento religioso também cruzavam o imaginário de Raul Seixas. Sua primeira mulher, a americana Edith, era filha de um pastor protestante, conhecia a Bíblia e tocava órgão na igreja. Como o próprio cantor declarou, ela nunca havia ido ao cinema, porque, para os pais dela, cinema era um lugar escuro, pra se fazer coisa feia. Depois, num gracejo, Raul justifica a sua opção: Eu, com toda a minha baianice na cabeça, tinha que me casar com uma virgem protestante. E é exatamente Edith, a primeira, que, conforme seu fã e amigo Sylvio Passos, mais teria marcado a sua vida. Com ela Raul teve a sua filha Simone.8 A segunda esposa do cantor foi também uma americana: Glória Vaquer que, aliás, assinava Spacey Glow. O biênio 1975/76 foi muito tumultuado para Raul, principalmente do ponto de vista existencial. O relacionamento não suportou muito, mas, mesmo assim, restaram parcerias de músicas como Love is Magick e a bela Sunseed. Glória também lhe deu sua segunda filha: Scarlet.9 No seu terceiro casamento, com Tânia Menna Barreto, o tema da virgindade voltou a ser explorado. Na música Mata Virgem, de autoria do casal e que levou o título do disco de 1978, é dito: Você é Mata Virgem, pela qual ninguém passou. Porém, no casamento seguinte, com Ângela (Kika) Seixas, que já vinha também de uma separação, ele assume que tinha superado essa história de virgindade e revela: Abri mão, casei com Lori, que já era desquitada. Aliás, é para ela que ele compôs a belíssima Ângela, a mulher desejo, tentação, mas também a mulher acolhedora e materna. Kika deu-lhe a sua terceira e última filha: Vivian.10 Com a sua quinta e última esposa, Lena Coutinho, ele foi menos dissimulado e mostrou, mais uma vez, que as suas composições confirmam os seus depoimentos. Na música Fazendo o que o Diabo gosta, de autoria também dos dois, ele diz: Casamos no motel / Bem longe do altar... Não fui o seu primeiro / Você já tinha estrada / Dois filhos, um travesseiro e a empregada. – e justifica: - Casamos por tesão / Tesão, tesão, tesão / Bateu, pegou, não tem mais solução.11 Dos cinco casamentos ficaram-lhe três filhas. Mas a velha idéia patriarcal de se ter um filho homem, varão, para dar continuidade ao legado existencial, também preocupava o cantor. Entrevistado em 1982, ele disse: Meu sonho era ter um filho homem, bicho. Um Rauzinho para dar continuidade à minha existência através de um filho homem. Mas está tudo bem assim. Tudo bem.12 Não por acaso, o Eduardo Dusek chamou Raul de Aracy de Almeida do rock e, também não por acaso, Raul ficou sem saber se era uma crítica ou um elogio. Portanto, ele se permitia portar valores supostamente do Velho Aeon. Mas eram exatamente aqueles que mais negavam os pressupostos modernistas e, de tão antigos, nem eram mais defendidos pela tradição. Se essa era a condição de ser Raul Seixas, que assim fosse. Essa era a sua verdade e também a sua coragem de dizer: Eu quero ser o homem que sou, assim, da maneira que sou.13 Notas 1 As declarações de Raul fazem parte de duas entrevistas: em 1980, ao repórter Ricardo Porto de Almeida, e, em 1982, à revista Amiga, editadas em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 116 e p. 138; 2 Sobre as drogas, vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 138 (entrevista à revista Amiga, 1982); Sobre Maluco Beleza, ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 78 (Entrevista à Rádio Globo AM, Programa Paulo Lopes, 1987); 3 Raul fala de cabeludos, tipo estereotipados, que não sabem de que lado estão, na música As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor; a Rock das ‘Aranha’, música de Raul e Cláudio Roberto, 7 faixa do LP Abre-te Sésamo, CBS, 1980; Entrevista de Raul sobre a música Rock das ‘Aranha’: vídeodocumentário Raul Seixas Documento 1979-1989, fornecido pelo Raul Rock Club/SP; Outras citações de Raul: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 110-112 (entrevista à Aloysio Reys, 1976); 4 A frase Como podes ficar presa que nem santa num altar, está na música A Maça, de Raul e Paulo Coelho, LP Novo Aeon, PHILIPS, 1975; A definição de Nuit foi dada por Raul em entrevista ao repórter Ricardo Porto de Almeida, em 1980, e à revista Amiga, em 1982: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 117 e p. 126, respectivamente; Mulheres de Atenas é uma música de Chico Buarque e Augusto Boal, e consta no LP Meus Caros Amigos, PHILIPS, 1976; a letra faz parte de uma peça teatral do segundo dos autores e fala da submissão das mulheres atenienses antigas, as quais viviam pros seus maridos; a frase: até as mulheres, ditas escravas, já não querem servir mais, está na música Novo Aeon, de Raul Seixas, Cláudio Roberto e Marcelo Motta, e aqui existem coincidências com a música de Chico Buarque, além da temática da letra: foram lançadas em anos próximos (1975/76) e pela mesma gravadora; 5 Babilina é uma versão feita por Raul da música Be Bop A LuLa, de Gene Vicent e Tex Davis, e consta do LP Raul Seixas, ESTÚDIO ELDORADO, 1983; 6 Vide: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 96 (Entrevista à Radio Transamérica, feita por Marcelo Nova, 1988); 7 Encontrei a mulher que eu queria: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 81 (Entrevista à Rádio Globo AM, Programa Paulo Lopes, 1987); Eu sou chato...: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 122 (entrevista ao repórter Ricardo Porto de Almeida, 1980); a dificuldade de se conviver com Raul é citada também por Sylvio Passos, em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 131, e por Toninho Buda, no seu ensaio crítico: Os Movimentos Alternativos, em: : Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. P. 43; Não consigo ficar descasado: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 146 (entrevista à revista Bizz, 1987); o artigo do jornal O Globo, de 26.04.1983, intitulado Dez mil fãs exaltados, começa relatando o cotidiano da casa de Raul: ele, que acaba de acordar, brinca com a esposa Kika, preocupada com a febre de sua filha Vivian, enquanto a empregada prepara um suco de laranja e sogra do cantor leva uma mamadeira para a neta. O jornalista surpreso, diz: Tudo caseiro, calmo e íntimo no apartamento de Copacabana, simples e usual. Idem, p. 32; A música Diamante de Mendigo, de Raul e Oscar Rasmussem, está no LP Por Quem os Sinos Dobram, WEA, 1979; 8 Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 139 (entrevista à revista Amiga, 1982); Citação de Sylvio Passos: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 130; 9 Biênio conturbado 1975/76: Toninho Buda, no seu ensaio crítico: Os Movimentos Alternativos, em: : Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. P. 43; Love is Magick, com “k” no final, foi feita por Raul e Spacey Glow, lançada em compacto simples em 1976 e relançado no CD Documento, MZA, 1998; a palavra magick foi cunhada por Aleister Crowley para se diferenciar de magic (mágica). Para ele, magick era a ciência e a arte de causar a mudança que ocorra em conformidade com a vontade, ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 44; Sunseed também foi composta por Raul e Spacey Glow e foi lançada no LP Novo Aeon, de 1975; 10 A declaração de Raul está em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 139 (entrevista à revista Amiga, 1982); A música Ângela é uma composição de Raul e Cláudio Roberto e está no LP Abre-te Sésamo, CBS, 1980; em um trecho da música ele diz: Quantas vezes eu me quis negar / Mas o meu rio só corria / Em direção ao mar de Ângela... Eu que me achava / O rei do fogo e dos trovões / Eu assisti meu trono desabar / Cedendo às tentações de Ângela... 11 A música Fazendo o que o Diabo gosta, foi feita por Raul e Lena Coutinho e consta do LP A Pedra do Gênesis, COPACABANA, 1988; 12 Citação do cantor: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 138 (entrevista à revista Amiga, 1982); 13 Comparação com Aracy de Almeida: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 130. Eu vou fazer o que eu gosto A pós o rápido exílio nos Estados Unidos, Raul Seixas abandonou o seu ar doutrinário para adotar uma posição mais intimista. Acabou criando um neologismo que o acompanhou, quase sem alteração, até os seus últimos dias: o raulseixismo. O termo aparece em 1975. Numa entrevista, falando sobre o distanciamento do seu parceiro Paulo Coelho, ele diz: Acontece que a minha linha agora é o egoísmo, ou raulseixismo. Daí por diante, a idéia do raulseixismo se consolidou no discurso do cantor. Ainda em 1975, ele gravou a música Eu sou egoísta e falou, em entrevista, que não era melhor nem pior que ninguém, era único. Essa história de Raul Seixas, o único, foi também repetida em 1976.1 No ano seguinte ele resolve, através da música, explicar melhor o raulseixismo, mandando às favas qualquer padrão cultural. O LP de 1977 traz o Maluco Beleza revelando o caminho que ele mesmo escolheu. Na música Eu quero mesmo, ataca de yê-yê-yê: Eu quero mesmo é cantar yê-yê-yê... eu quero mesmo é falar de amor... Por muito tempo eu sentia vergonha das coisas que eu sinto... Eu gosto de ‘Besame Mucho’, etc. Em outra música do mesmo disco – Sapato 36 – reafirma: Vou escolher meu sapato e andar do jeito que eu gosto. E, não se dando por satisfeito, tacou uma frase tirada diretamente de um velho sucesso de Odair José, cantor que se via às voltas com o preconceito musical: Eu vou tirar você desse lugar. Mais adiante, na música Que luz é essa?, cujo ritmo é um forró, dispara: Não tem certo nem errado, todo mundo tem razão. E arremata no bolero Você: Você alguma vez se perguntou por que faz sempre aquelas mesmas coisas sem gostar? Por que você não pára um pouco de fingir? Este é o raulseixismo na teoria, o qual seguiria pregando em 1982: Eu sou eu mesmo, o do raulseixismo.2 No Programa Jô Soares Onze e Meia, em 1989, Raul, na companhia de Marcelo Nova, concedeu a sua última entrevista para a televisão. O entrevistador perguntou como se chamava o tipo de música que estava fazendo à época, e ele respondeu irônico: Raulseixismo! Jô, então, replicou: E o Marcelo está fazendo o quê: Marcelonovismo ou Raulseixismo? A resposta, dada por Marcelo Nova, foi vaga, mas a pergunta já havia explicitado que o raulseixismo só serviria para uma única pessoa no mundo: para Raul Seixas. E ele confirmava: Não sou melhor nem pior que ninguém... todo mundo [é] embaixador do seu próprio país.3 Já antes, em 1987, no LP Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum, o raulseixismo ganhara tons mais nítidos: Agora eu vou cantar por cantar, disse. Reeditou, também, o refrão de dez anos atrás: Tudo é igual, nada é melhor. E, falando em entrevista sobre o lançamento do disco, esclareceu: É a continuidade de um trabalho. Não de pregação, mas de um trabalho raulseixista.4 Para André Mauro, autor de um Perfil Bibliográfico do cantor, o raulseixismo é a rejeição dos tempos presentes. Raul, de fato, afirmou: Não assisto televisão, não ouço rádio, não leio jornal. Isolando-se, como se fosse um membro da comunidade amish, ele esperava continuar em estado puro, sem se contaminar com os tempos modernos, definidos por ele mesmo como uma época caótica.5 Por outro lado, o raulseixismo, na prática, pode ser exemplificado com alguns episódios que marcaram a vida do cantor, os quais ele sempre repetia nas entrevistas. Em seis delas, num período de nove anos, Raul contou o embaraço que teve ao conversar com John Lennon, em Nova York. Os dois falavam de figuras da história mundial, como Jesus, Nero, Calígula, Gandhi, etc, quando o Beatle indagou quem era a personalidade do Brasil. A pergunta pegou Raul de surpresa, que, gaguejando, largou: Café Filho! Lennon não entendeu nada e retrucou: Quem? Aí o brasileiro recobrou a lucidez, desconversou e mudou de assunto. Raul costumava andar sem documentos, o que era, por si só, uma rebeldia contra a organização da sociedade instituída. Ele foi fazer um show político em Caieiras, interior de São Paulo, e os adversários do candidato começaram a espalhar que se tratava de um impostor. Segundo Raul, os próprios organizadores, que não queriam pagar o valor negociado, ajudaram a espalhar o boato. Por fim, após muito atraso, entregaram um cheque sem fundos e o show teve início. Porém, conforme relato do cantor, nêgo já tava olhando com pau e pedra na mão, o povo começou a ameaçar a subir no palco [e] começaram jogar garrafas e latas. Baixou a polícia e Raul foi preso. O delegado chegou logo me batendo, contou. Olhou pra minha cara e disse logo: ‘Né ele não!’ Puxou minha barba, pra ver se era verdadeira, tirou meus óculos... Enfim, Raul apanhou por não conseguir provar, de maneira indiscutível, quem realmente era. De outra feita, Raul foi fazer um show em plena Serra Pelada. Ficou hospedado na casa de uma prostituta, que era o lugar mais confortável do garimpo. À noite, antes do show, ele foi acometido por uma forte disenteria e teve que se servir de um buraco no chão, no escuro e a céu aberto. Era ele suando frio, acocorado, e nêgo pedindo autógrafos... com um isqueiro aceso. Para Raul, o que valia era aquilo que acontecia somente com ele, o que lhe marcava e lhe construía, como as batatas fritas com catchup que comeu, junto com um palhaço desconhecido, nas latas de lixo das frias madrugadas do Greenwich Village, em Nova York. Fatos como estes lhes eram tão valiosos, que ele os imortalizou no seu LP de despedida, em 1989. A música Banquete de Lixo revive não apenas a história do palhaço, mas também as suas aventuras em Serra Pelada. Inesquecível e inestimável, para o cantor, foi também a noite vivida em uma boate esquisita em Memphis, no Tennessee, chamada Bad Bob. Conforme descreveu, as garçonetes tinham roupas cafonérrimas e um conjunto tocava country. De repente, chegou Jerry Lee Lewis com a gangue dele e com um charuto desse tamanho. Ele era, continua Raul, o protótipo do ‘red neck’ (pescoço vermelho), que é como os americanos chamam os caipiras. O cantor brasileiro se aproximou do ídolo americano e foi logo malhando o rock moderno. Passou mesmo a esculhambar o progressive rock e sentenciou: esses rocks de hoje em dia não estão com nada. Os dois se entenderam e acabaram tocando piano e cantando juntos. Encerraram a noite mergulhados no Bourbon e no rock dos anos 50, para delírio dos americanos presentes que aclamavam pedindo mais. Não há dúvida de que Raul, naquela noite, se sentiu um pouco na ante-sala de Deus, de volta ao útero que o criou.6 Este é o raulseixismo: um anarquismo individualista, com recheio oriental, em que a felicidade coletiva só seria possível com a experiência e a satisfação de cada um, longe da cultura de massa e da padronização dos valores. O raulseixismo era aquilo que o distinguia, e distinguia cada um, dos outros. Por isso Raul ensinou: Você é a única coisa que você tem na vida. Mas, para os que tentam fazer do raulseixismo uma idolatria, também advertiu: o que eu como a prato pleno, bem pode ser o seu veneno.7 Notas 1 Entrevista de Raul em 1975: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 105 (revista POP, Hit POP); Entrevista de Raul em 1976: Idem, p. 111 (entrevista a Aloysio Reys); 2 LP de 1977: O Dia em Que a Terra Parou, Op. Cit. Música de Odair José: Vou tirar você desse lugar, compacto Odair José, CBS, 1972. Um fato curioso é que se trata da mesma gravadora em que Raul havia trabalhado até pouco tempo antes. Outro dado é que a música possui um refrão bastante sugestivo: Eu vou tirar você desse lugar / Eu vou levar você pra ficar comigo / E não me interessa os que os outros vão pensar. Autêntica frase raulseixista. Citação: Eu sou eu mesmo, o do raulseixismo: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 137 (revista amiga, 1982); 3 Entrevista ao programa Jô Soares Onze e Meia, editada em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 103; Citação: Não sou melhor nem pior que ninguém: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 137 (revista POP, Hit POP, 1975); Citação: Todo mundo embaixador do seu próprio país: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 89 (entrevista à Marcelo Nova na Rádio Transamérica, 1988); 4 Citação sobre o trabalho raulseixista:Raul Seixas por ele mesmo, Op.Cit. p. 153 (revista Bizz, 1987); 5 O Último Anarquista, perfil bibliográfico de Raul Seixas, inclusive as citações: Idem, p. 54; Raul sempre repetia que estamos vivendo uma época caótica e, no show no Sesc Fábrica Pompéia, São Paulo, em 01.06.1983, completou: prenúncio de uma nova era, conforme vídeo-documentário Raul Seixas Documento 1979-1989, fornecido pelo Raul Rock Club/SP; Para a comunidade amish, ver na Internet: Folha Online – Turismo – Americanos – Filadélfia – Amish (http://www1.folha.com.br ) 6 Entrevistas em que Raul citou fatos da sua vida: - Conversa com John Lennon: Rádio Globo AM, 1987; Rádio Transamérica, 1988; Jô Soares Onze e Meia, 1989: ALVES, Luciane, Op. Cit. pp. 83-84, pp. 90-92 e pp. 100-101, respectivamente; jornalista Ricardo Porto de Almeida, 1980; revista Amiga, 1982; Bizz, 1987: Raul Seixas por ele mesmo, Op.Cit. p. 120, p. 128 e p. 148, respectivamente. Informações posteriores dão conta de que esse encontro com John Lennon pode nunca ter ocorrido e que Raul teria inventado só para não assumir, no retorno ao Brasil, que havia perdido a viagem. Depois, passou a reafirmar a brincadeira todas as vezes em que foi indagado; - O palhaço nova-iorquino: Jô Soares Onze e Meia, 1989, Op. Cit. e Bizz, Op. Cit.; - Jerry Lee Lewis: revista Amiga, Op. Cit. e Bizz, Op. Cit.; - Show em Serra Pelada: Jô Soares Onze e Meia, Op. Cit.; Rádio Transamérica, Op. Cit.; Show em Caieiras: Rádio Transamérica, Op. Cit.; Entrevista concedida em 26.5.1982, sobre os problemas ocorridos em 15.5.1982, na presença, inclusive de advogado, e reproduzida no vídeo-documentário Raul Seixas Documento 1979-1989, fornecido pelo Raul Rock Club/SP; Com relação ao episódio do palhaço, Raul já havia feito a seguinte referência em 1976: um palhaço que como lixo... Ver a música O Dia da Saudade, de Raul Seixas e Gay Vaquer, LP Há 10 Mil Anos Atrás; - 7 Citação: Você é a única coisa que você tem na vida: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 89 (entrevista à Marcelo Nova na Rádio Transamérica, 1988). Minha imagem na sua televisão A imagem era algo de importância capital para Raul Seixas. Até porque, para ele, todo o movimento Rock só ganhou visibilidade com a dança agressiva e incomum de Elvis Presley. Em seu último trabalho, ele comemora por ter percebido, há muito tempo, que Genival Lacerda tem a ver com Elvis e com Jerry Lee. Isto é, que a imagem é contestadora por si mesma. Na música em que faz tal comparação, Rock and Roll, Raul exalta que ele próprio se contorcia [e] as pessoas se afastavam pensando que [ele] estava tendo um ataque de epilepsia.1 As suas roupas também comunicavam. Certa vez ele usou uma capa tão extravagante, que chegou a tomar a atenção de um auditório inteiro, atrapalhando, na televisão, o programa do Sílvio Santos. E em um show em Brasília, quando todos esperavam que viesse com o traje de couro, à Mick Jagger, ele apareceu de pijama com um copo d’água na mão e escovando os dentes. A platéia foi ao delírio e ele à prisão, onde passou cinco dias. O fato é que o seu show não ficava restrito ao cantor e ao microfone: Nós usamos muitos elementos plásticos, usamos muito teatro, cinema, revelou.2 Raul não poderia deixar de ver, também, a própria capa dos discos como um espaço de veiculação de mensagens. Dessa forma, a seqüência das capas dos seus discos conta um pouco da trajetória intelectual do próprio artista.3 O primeiro LP: Raulzito e os Panteras, de 1968, tinha inspiração na Jovem Guarda, mas também nos Beatles. A capa, aliás, é um inegável plágio do álbum With The Beatles, de 1963: os rostos dos componentes impostados sobre um fundo escuro. Esta influência fica ainda mais nítida com a inclusão de uma versão que Raul fez para a música: Lucy in the sky with diamonts. Na primeira tradução, o refrão seria: Pense num dia com gosto de jaca, que, segundo ele, era uma boa transposição para o português. Mas os caretas, como ele disse, não concordaram, e acabou ficando: Você ainda pode sonhar.4 No trabalho seguinte, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: Sessão das 10, em 1971, o Rio de Janeiro aparece de forma hilária. A grande cidade é apresentada como um grande teatro, em cujo palco cabe até uma bem humorada autocrítica. Na capa, a peça em cartaz, com letras em sangue, e os personagens da comédia: o malandro sambista, o torcedor da seleção, o poderoso super-homem e até um hippie fazendo contrapeso. Por ter sido gravado sem autorização, Raul foi posto pra fora da CBS, onde trabalhava como produtor, e pôde escolher finalmente a carreira de cantor.5 O LP que o lançou nacionalmente, Krig-há, bandolo!, de 1973, traz o busto nu do cantor, extremamente magro e com as mãos levantadas, como se estivesse crucificado, além dos olhos fechados e o rosto aparentando desmaio ou transe. A chave no meio de uma das mãos sugere a revelação da boa nova. É clara, portanto, a referência ao Cristo crucificado. Raul aparece como o mensageiro dos novos tempos, pronto a se sacrificar pela nova ordem. Posteriormente, ele próprio, falando dessa época, reconheceu que o tempo de sofrer havia passado. Ser crucificado como Jesus Cristo é coisa do passado.6 Mas lá em 1974, no LP Gita, Raul surge mais doutrinário ainda. A foto principal foi tirada de baixo para cima, o que lhe confere um aspecto superior. Uma luz forte sobre o cantor, além de um fundo preto que lhe rouba as pernas, empresta à cena uma leveza angelical. Como se não bastasse, enquanto ele canta as novidades ao microfone, o dedo em riste aponta os mistérios que pairam sobre nossas cabeças. Mais uma vez é o próprio Raul que faz o julgamento do período. Falando sobre Gita, disse: É um disco doutrinário. Já reparou na capa? Estou eu lá, de dedo pra cima, veja se é possível? Como se eu quisesse indicar caminhos para as pessoas. Tendo conseguido indicar caminhos ou não, o LP lhe deu o mais que merecido primeiro disco de ouro.7 O trabalho seguinte, Novo Aeon, de 1975, foi, sem dúvida, um divisor de águas na obra do cantor. Raul já se sentia mais tranquilo: agora estou bem comigo, disse. A relação com Paulo Coelho parecia mais madura, um reconhecendo as diferenças do outro e se tolerando mutuamente. A capa do LP também reflete este espírito apaziguado: apenas um simples artista em seu estúdio de gravação. Estranhamente, o disco que Raul considera o seu melhor trabalho, quase não vendeu. Na foto da capa, Raul também apresenta um ar de surpresa, como se adivinhasse o inexplicável fracasso. Diante da negação do mercado e dos fãs, ele parece perguntar: Por que não?...8 Em 1976, no LP Há 10 Mil Anos Atrás, vem a vingança. O ex-produtor da CBS se une ao marqueteiro Paulo Coelho e lançam um trabalho de qualidade questionável mas que vendeu horrores. Na capa, lá está o Raul profeta, irônico, conhecedor das coisas, porém não mais interessado em intervir nas verdades dos outros, mesmo que estes estivessem ainda do outro lado, no Velho Aeon. Este disco encerra, também, a fase mais conhecida e admirada de Raul.9 No LP O Dia em que a Terra Parou, de 1977, o cantor aparece meio enterrado vivo, em meio do deserto. O seu sucesso estava diminuindo, mas a metáfora apontava também em outra direção: pela primeira vez, depois de chegar ao estrelado, ele rompia com uma gravadora de peso, a poderosa Philips, indo arriscar um recomeço na WEA. Portanto, Raul se via emergindo, renascendo, mesmo que fosse em plena aridez do deserto. Em 1978 houve a tentativa de restabelecer a parceria com Paulo Coelho, mas a fórmula já estava gasta e não mais atingiu o público como se esperava. Na capa, um soldado embrenhado em uma Mata Virgem, buscando, talvez, respostas para a própria luta. Na música Tá na Hora, eles concluem: Tá na hora da velhice, tá na hora de deitar, tá na hora da cadeira de balanço, do pijama, do remédio pra tomar... Mas Raul ainda tinha muita lenha pra queimar. Em 1979 ele sai com Por Quem os Sinos Dobram. Na capa há uma reedição do Novo Aeon: o cantor no estúdio de gravação. Dentro, fala do segredo do universo, grita: Coragem – coragem! E: Dá-lhe que dá. Raul culpa os produtores pela pouca repercussão, achando que a divulgação fora insuficiente. E talvez tenha razão, pois se trata de um bom disco e certamente mereceria melhor sorte. Por essa época, a sua saúde dá sinais de fraqueza e ele passa a ser visto, no ambiente das gravadoras, como um artista difícil. É o fim da sua trilogia na WEA, período que é considerado o mais obscuro de sua carreira. A situação estava complicada, mas ele ainda tranqüilizava os fãs: Vem sem medo que não vamos naufragar.10 Raul adentra os anos 80 com bastante pessimismo. Ele estava de volta à CBS, desta vez como cantor e não como produtor. No entanto, a reviravolta não o deixou seguro, e ele abre o disco com a frase: Lá vou eu de novo, um tanto assustado... Chega a dizer que hoje é uma época caótica, não temos nada... Agora não há nada, não está acontecendo nada. Os anos 80 são isto: nada. O título do LP é Abre-te Sésamo, talvez porque achasse que, agora, mudança só com um passe de mágica. Ele não caiu nos braços de uma abertura mentirosa, e viu que o mundo se assemelhava muito mais a uma charrete que perdeu o condutor. Quanto a si mesmo, disse: Estou como Nero, tocando harpa. A capa trouxe o cantor vestido de branco, sem instrumentos e calado. Por trás, uma praia difusa com um céu indefinido, que nem é dia nem é noite. Mesmo assim, o tempo fechou com o agravamento da sua doença, provocada pelo álcool. O cantor continuou tendo problemas com os shows, até que um produtor pediu para ele fazer um disco em homenagem à Lady Diana. Foi a gota d’água e Raul abandonou pela segunda e última vez a CBS.11 Após alguns anos de ausência, surgiu, em 1983, um novo trabalho chamado apenas Raul Seixas. O tal rock nacional, que ele tanto rechaçava, vivia o auge, e Raul se viu obrigado a aceitar um projeto apressado, bancado pela inexpressiva Estúdio Eldorado. A capa teve apenas o close do seu rosto. Sobre isso, disse: chega daquelas minhas caras complicadas, fechadas, com as mãos na frente. E desfechou: É só um começo... O começo de um caminho, depois vem mais coisas... Tempos depois, porém, reconheceu: Aquele foi um disco que eu fiz numa fase difícil... Eu não tinha nada, não tinha músicas, não tinha uma estrutura. De qualquer forma, com a faixa Carimbador Maluco, uma espécie de texto anárquico para crianças, Raul participou do especial infantil PlunctPlact-Zumm, da Rede Globo, e decolou nas vendagens, chegando a ganhar o seu segundo disco de ouro.12 Porém, se o rock estava novamente na moda, ninguém melhor para falar dele do que o próprio Raul Seixas. Em 26.2.1983 ele realizou um show na Sociedade Esportiva Palmeiras, em São Paulo, para mostrar o rock desde as raízes. Juntou cerca de dez mil fãs exaltados, que ele definiu: Todo mundo aqui é rocker! Raul destilou as origens do rock: do blue de Arthur Big Boy Crudup, que influenciou Elvis, ao jazz de Louis Alter e Eddie De Lange; passou pelo country de Lee Morris e chegou, finalmente, ao rock and roll de Chuck Berry, de Carl Lee Perkins e da dupla Gene Vincent e Tex Davis. Esse show foi demais, lembrava anos depois. Parte do show foi lançado no LP Raul Seixas ao vivo, Único e Exclusivo, pela Estúdio Eldorado, em 1984. A capa, feita pela gravadora, tem apenas uma silhueta disforme do cantor.13 Por essa época, Raul já estava de contrato assinado com a Som Livre onde lançou, quase simultaneamente, um disco que disse ser preto e branco: música preto e branca. Tudo madeira, vozes, só o baixo é elétrico. Não vai haver o colorido condicionado dos clichês de violinos nem de metais e nem de guitarras elétricas. E afirmou: Eu vou juntar uma concepção musical à concepção visual, nesse LP. E, na concordância do som com a imagem, a capa de Metrô Linha 743 foi feita, literalmente, em preto e branco. Na única foto, Raul aparece consultando um jornal, buscando, quem sabe, uma pista que o leve a reinventar a sua própria linha. E lamenta: Ah! Quantas ilusões. Agora, nada mais é coerente... E vendo o povo confuso, aconselha: Siga o seu próprio caminho, pra ser feliz de verdade. Entretanto, duas coisas não saíram a contento: a briga das gravadoras, lançando os dois discos ao mesmo tempo, atrapalharam as vendas. Fiz concorrência comigo mesmo, lamenta o cantor. O segundo ponto é que o trabalho, ao invés de se aproximar, acabou se distanciando do rock primitivo. 14 Havia no ar uma espécie de exaustão não só criativa, mas também física. Raul precisava descansar e desapareceu do mercado. A imagem dos dez mil fãs exaltados continuava na sua cabeça. Era necessário fazer alguma coisa pelos verdadeiros rockers do Brasil. Mas, por conta da sua doença, o disco previsto para 1986 só saiu no ano seguinte, desta vez pela gravadora Copacabana. É, também, o início da sua última trilogia. A obra é vista como uma aula de rock’n’roll, para mostrar de onde vêm as raízes básicas do rock’n’roll, e teve o próprio ritmo como título: Uah-Bap-lu-Bap-lah-Béin-Bum. Na capa, somente os elementos primários: ele próprio, uma guitarra e um carro Opala da década de 70, filho direto do modelo Opel Rekord, o rock & roll car, nascido em 1953. Ou seja: uma analogia perfeita. Até as cores escolhidas são também as primárias: amarelo, ao fundo; azul, em duas faixas transversais, e as letras em vermelho; o cantor, a guitarra e o carro são expressos em preto e branco. As composições são também mais simples, sem mensagens complicadas. Sobre isso, revela: Eu fiz este LP bem tribal... fora de compromisso de letra. Porém, não deixa de desabafar: O século XX é uma praga de maldade e lixo... agora eu vou cantar só por cantar. E, num arroubo romântico, diz: Esse disco vai, assim, como um presente meu, para não deixarem o Rock morrer. Entre as faixas, está a versão inglesa de Gita (I am) e, dessa forma, está decretada a morte do projeto Opus 666, um disco síntese que faria nos Estados Unidos, com músicas em inglês. Com a faixa Cowboy fora-da-lei Raul pôde, mais uma vez, fazer as pazes com o público: a música puxa as vendagens e lhe dá o terceiro disco de ouro, além de ser incluída na trilha sonora da novela Brega & Chique, da Rede Globo. Sobre essas retomadas do sucesso, o próprio cantor se surpreende: Eu desapareço, mas, quando eu volto, sempre encontro caminhos abertos. É incrível!15 Em 1988 o cantor permaneceu na Copacabana e lançou A Pedra do Gênesis, aproveitando algumas músicas censuradas anteriormente. Utilizou, também, o que restara do projeto Opus 666, incluindo o estudo para a capa, onde aparece um Raul enigmático protegendo o seu livro de sabedoria, ou seja, as verdades que descobriu desde cedo e das quais jamais arredaria pé. Se fosse o último ou o único a manter aquelas certezas, pouco importava! Continuava ele com a censura à idéia do diabo cristão e a adesão crítica a Aleister Crowley. Tanto, que editou a música A Lei, tradução literal dos ensinamentos do mago. Só que, agora, ele estava bem menos doutrinário: Eu tô fazendo o meu caminho e não peço que me sigam, cada um faz o que pode, os homens passam, as músicas ficam.16 O roqueiro empreendeu, então, uma série de shows pelo Brasil ao lado do amigo Marcelo Nova. O resultado foi um disco da dupla: A Panela do Diabo, que seria o último de Raul. O LP, gravado em 1989 pela WEA, traz em muitas músicas o tom da despedida, mas também o tom da síntese. Curiosamente, a capa apresenta um Raul sentado num trono de um apartamento, como se estivesse esperando a morte chegar, a qual, de fato, lhe veio dois dias após o lançamento da obra. Sobre a morte, o cantor, lá atrás, já havia indagado: Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho de fazer? Pergunta difícil de responder. Porém, ele parecia ter encontrado a sua verdade: o Rock and Roll! A isto, respondia: Até chegar a minha hora eu vou com ele até o fim, porque, meu nêgo, o negócio é rocão antigo.17 Notas 1 Trechos da música Rock and Roll, do LP A Panela do Diabo, WEA, 1989; A comparação entre um roqueiro e um ataque de epilepsia, foi feita por Raul em 1987: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 143 (entrevista à revista Bizz); no ano seguinte, em entrevista a Marcelo Nova na Rádio Transamérica, ele afirma que nos seus shows as pessoas deixavam as primeiras filas livres, pois quando ele caía no chão, imitando Little Richard, elas pensavam tratar-se de um ataque epilético (ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 88). A idéia, enfim, foi aproveitada na letra da música Rock and Roll, citada no item precedente; 2 Os problemas que a capa que Raul usava provocou ao Programa Sílvio Santos, foram descritos pelo cantor em entrevista de 1987: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 152 (entrevista à revista Bizz). Duas fotos do evento estão reproduzidas em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 77, e Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 212, nesta última, de fato, o cantor está de costas, com os braços estendidos, abrindo a capa, e o apresentador de televisão fazendo nítida referência aos símbolos presentes no traje; O show em que Raul aparece de pijama, foi contado pelo próprio, em entrevista a Aloysio Reis, em 1976 (Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 112); Quanto aos elementos plásticos utilizados nos shows, foram revelados na entrevista ao jornal O Pasquim, em 1973, (Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 91); 3 As capas de todos os discos do Raul estão reproduzidas no livro: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. Entretanto, são editadas em preto e branco. A maior parte está também reproduzida neste livro. Para visualização em cores, ver o site oficial do cantor: http://www.raulseixas.com.br ; 4 With The Beatles, PARLAPHONE, 1963; A tradução da música de Lennon e McCartney, Lucy in the sky with diamonts: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 42 (texto: O Último Anarquista, de André Mauro); 5 Raul fala que, ao ser expulso da CBS, disseram: ‘Ou você é produtor ou você é cantor.’ E conclui: Eu tinha que optar. Ver: entrevista aO Pasquim, em 1973, (Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 98); 6 A citação de Raul de que o tempo de ser crucificado como Jesus era coisa do passado, foi citado em entrevista do cantor a Aloysio Reis, em 1976, falando sobre a nova fase inaugurada pelo LP Novo Aeon. Ver: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 110; 7 As afirmações do cantor sobre o disco Gita, que seria doutrinário, foram descritas por Ana Maria Bahiana, no estudo Eu em Noites de Sol, publicado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 30; 8 O cantor achava que, com o LP Novo Aeon, ele estaria bem consigo mesmo e também com o parceiro Paulo Coelho: idem. Ibidem, p. 30; 9 A opinião de que o disco Há 10 Mil Anos Atrás vendeu muito, mas que era de baixa qualidade artística, foi dada por André Mauro, em seu perfil bibliográfico sobre Raul intitulado: O Último Anarquista: idem, p. 49; 10 Os trechos citados são das seguintes músicas: O Segredo do Universo; Por Quem os Sinos Dobram e Dá-lhe que Dá, respectivamente; Que Raul estava se transformando em um artista difícil, bem como a trilogia na gravadora WEA teria sido a fase mais obscura da carreira do cantor, está em: André Mauro, O Último Anarquista, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 49; O trecho: Vem sem medo que não vamos naufragar, faz parte da música A Ilha da Fantasia; 11 O trecho: Lá vou eu de novo, um tanto assustado, faz parte da música Abre-te Sésamo; Sobre os anos 80 serem uma época caótica, um nada, vide: André Mauro, O Último Anarquista, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 51; Sobre o LP Abre-te Sésamo combater uma abertura mentirosa, e o cantor estar, como Nero, tocando harpa, ver: entrevista do cantor a Ricardo Porto de Almeida, em 1980, e publicada em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 118 e p. 120, respectivamente; Problemas que Raul teve com os shows, bem como a sugestão da homenagem à Lady Diana, que o fez deixar a CBS, foram levantados por: André Mauro, O Último Anarquista, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 51; Esta questão da homenagem à Lady Diana foi assumida pelo próprio cantor em entrevista à revista Amiga, em 1982: idem, p. 135; O trecho: Charrete que perdeu o condutor, faz parte da música Anos 80; 12 A idéia do rock nacional é criticada diversas vezes por Raul Seixas. Já em 1976, em entrevista a Aloysio Reis, ele afirma que não existe rock brasileiro; em 1983, no jornal O Globo, o cantor também afirma que acha tudo isso muito esquisito, e que essas coisas não lhe dizem nada; no texto de André Mauro, O Último Anarquista, está escrito que Raul, se referindo aos grupos de rock brasileiros, disse: Nenhum desses conjuntos me arrepia. São alienados mesmo. Tudo acomodado... (vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 112; p. 36 e p. 54, respectivamente); ver, ainda, a afirmação que o rock, no Brasil, havia regredido, ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 89 (entrevista à Rádio Globo, AM, 1987); Sobre a capa do LP ser simples, pois ele se cansara de caras complicadas; ter sido gravado em pouco mais de duas semanas, bem como se tratar de um novo caminho: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, pp. 32-33 (Jornal O Globo, de 26.04.1983); A citação do cantor de que o disco fora lançado em uma fase difícil, conta do trabalho de André Mauro, O Último Anarquista, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 52; A ligação entre a música Carimbador Maluco e um texto anarquista de Proudhon, e que seria um fantástico recado pra criançada, foi sugerida e discutida no texto O anarquista Raul Seixas e a Rede Globo de Televisão, de Toninho Buda, publicado em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. pp. 36-38; 13 A data do show em São Paulo foi vista em: http://www.raulseixas.com.br/fichas.htm ; Dez mil fãs exaltados é o título de um artigo sobre o show de Raul, publicado pelo jornal O Globo, em 26.04.1983. O referido artigo revela que Raul dissera: Esse show foi demais. Vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 35; Todo mundo aqui é rocker: expressão cunhada por Raul, durante o show em São Paulo, antes de cantar a música So Glad You’re Mine, de Arthur Big Boy Crudup, e incluída como a última faixa do LP Raul Seixas, Eldorado, 1983; E que o show iria mostrar o rock desde as raízes, ver: André Mauro, O Último Anarquista, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 53; 14 As referências às músicas em preto e branco, sem colorido, Idem, ibidem, p. 53 e p. 56; Os trechos: Quantas ilusões e Vendo o povo confuso... Siga o seu próprio caminho, fazem parte da música O Messias Indeciso; Já o trecho: Nada mais é coerente, faz parte da música Meu Piano; Juntar uma concepção musical à concepção visual, está registrado em: André Mauro, O Último Anarquista, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 53; O cantor afirma que fez concorrência com ele mesmo, Idem, ibidem, p. 53; A tese de que o LP se afastou do rockabilly, foi defendida por André Mauro: Idem, ibidem, p. 56; 15 A exaustão criativa de Raul, no período apontado, também foi citada por André Mauro: idem. Ibidem, p. 57; Que o disco de 1987 deveria ter sido lançado em 1986, não fossem os problemas de saúde do Raul: idem. Ibidem, p. 57; Veja também o perfil bibliográfico do cantor, feito por Sylvio Passos, em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit., p. 89; Que o disco seria uma aula de rock: citação feita pelo jornalista da revista Bizz, na abertura da entrevista que fez com o cantor, em 1987: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 141; Um disco só de rock´n´roll, foi uma expressão cunhada pelo próprio cantor: idem. Ibidem, p. 144; Já que o disco traria as raízes básicas do rock’n’roll, foi dito por Raul em entrevista à Radio Globo AM, em 1987, e reproduzida em: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 75; A relação do carro Opala com o modelo Opel Rekord, e a idade deste, ver as páginas Opala – História, e Opel Rekord: o modelo que originou o Opala, no site: http://www.chuvadedownloads.hpg.ig.com.br/opala ; já a citação de que o modelo 1959 Opel Rekord P1 Convertible seria a real rock & roll car, está no site: http://www.pink-cadillac.de/site/opel/59opel.htm ; A afirmação de que não havia, no LP de Raul, compromisso de letra: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 77; Raul fala em várias ocasiões que o disco fora um presente dele, para não deixarem o rock morrer: citado duas vezes na entrevista à revista Bizz, em 1987 (vide: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 142 e p. 144), e na entrevista à Radio Globo AM, naquele mesmo ano (vide: ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 77); as palavras foram citadas também por André Mauro, O Último Anarquista, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 58; O trecho em que diz que o século XX é uma praga, faz parte da música Cambalache; Já o trecho em que ele diz que agora eu vou cantar por cantar, faz parte da música Cantar; A novela Brega & Chique, da Rede Globo de Televisão, cuja música Cowboy fora-da-lei faz parte da trilha sonora nacional, é de autoria de Cassiano Gabus Mendes e foi ao ar em 20.04.1987 (vide o site: http://dirce.globo.com/Dirce/canal ); A declaração de Raul sobre o seu retorno ao sucesso é parte de uma entrevista do cantor, montada no vídeo Raul Seixas também é documento, MZA Music, 1998; 16 As músicas censuradas anteriormente, e que foram incluídas no LP A Pedra do Gênesis, são: Check-Up e Não Quero Mais Andar na Contra-Mão. O cantor afirma a censura às mesmas em três entrevistas: à revista Bizz, 1987 (Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 143-144); entrevista à Radio Globo AM, naquele mesmo ano (ALVES, Luciane, Op. Cit. p. 84); e entrevista à Marcelo Nova, na Rádio Transamérica FM, em 1988: idem. P. 97; A capa do disco A Pedra do Gênesis apresenta o mesmo estudo, de 1974, feito para a capa do álbum Opus 666, que não chegou a ser produzido. A roupa é a mesma usada no programa do Sílvio Santos e que tomou a atenção do auditório. Vide fotografias reproduzidas em: Raul Seixas, Uma antologia, Op. Cit. p. 212 e p. 242; Os trechos: Tô fazendo meu caminho... as músicas passam... etc., estão na música Senhora Dona Persona; 17 A citação, se referindo à morte: Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho de fazer?, faz parte da música Canto para minha morte, do LP Há 10 Mil Anos Atrás, PHILIPS, 1976; O trecho: Até chegar a minha hora eu vou com ele até o fim, faz parte da música Rock and Roll. No meio desta música, Raul cita subliminarmente a frase: O negócio é rocão antigo! Semelhança do álbum dos Beatles com o 10 disco de Raul Seixas With The Beatles Parlophone 1963 Raulzito e os Panteras Emi-Odeon 1968 CBS Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: Sessão das 10 CBS 1971 FASE PHILIPS Krig-há,bandolo! PHILIPS 1973 Gita PHILIPS 1974 FASE PHILIPS Novo Aeon PHILIPS 1975 Há 10 Mil Anos Atrás PHILIPS 1976 FASE WEA O dia em que a Terra parou WEA 1977 Mata Virgem WEA 1978 Por quem os sinos dobram WEA 1979 RETORNO À CBS Abre-te Sésamo CBS 1980 FASE ESTÚDIO ELDORADO Raul Seixas Estúdio Eldorado 1983 Raul Seixas ao vivo Estúdio Eldorado 1984 SOM LIVRE Metrô Linha 743 SOM LIVRE 1984 FASE COPACABANA Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! Copacabana 1987 A Pedra do Gênesis Copacabana 1988 RETORNO À WEA A Panela do Diabo WEA 1989 Não quero mais andar na contramão E m 1971 os Kavernistas faziam coro com Miriam Batucada e afirmavam que o que eles queriam mesmo era a praia, o sol e a contramão. Pelo menos esta última parte foi seguida à risca por Raul Seixas.1 Ana Maria Bahiana, em seu estudo Eu em Noites de Sol, concluiu que Raul se firmou como um corpo estranho, incoerente e colorido, no uniforme cenário da música popular (digo, de massa) brasileira. Ele, de fato, conduziu o seu disco voador na contramão dos movimentos que conviveu, provando não só ser possível agradar ao público com uma proposta aparentemente anacrônica, como, exatamente por isso, ter muito mais chance de perdurar no imaginário das pessoas.2 Raul não parou na pista, nem capotou na curva do futuro. Sua ideia de redenção do mundo através de quatro letras: R-O-C-K, apesar de utópica, manteve-se durante toda a sua vida e, talvez por causa disso, a sua estrada não parou. Se as coisas não correram conforme o esperado, veio o desabafo: Não me cobrem essa época caótica, e o lamento: É triste ver que tudo isso é real.3 A viagem fora da lógica que Raul empreendeu, desde quando criava heróis de gibis na infância, transformou o seu futuro em um simples furo, por onde jorrava constantemente o passado. O lugar de destino o deixou isolado, sem perdão. Ele manteve o sonho do rock até o fim e, por não trair o seu sonho, fez-se eterno rebelde. Mas o rebelde vive o trágico em seu ponto mais alto: não acha nenhum lugar.4 Na música Não quero mais andar na contra-mão, LP A Pedra do Gênesis, 1988, Raul afirma: Eu já estou calejado. E, em entrevista, confirma: É uma música em que eu falo que parei com tudo, não quero mais... Era, porém, muito tarde para isso.5 Lá atrás, no início da jornada, ele cantou: Se hoje eu sou estrela, amanhã já se apagou, destino inexorável de todas as coisas, até dos astros. Entretanto, a sua atemporalidade emprestou-lhe uma dimensão astronômica, lançando o seu brilho para além da sua morte. As estrelas, aponta Raul, elas brilham como eu!!!6 O último LP de Raul, A Panela do Diabo, feito em parceria com Marcelo Nova, traz letras que falam de passagens da vida do cantor, como se fosse uma síntese. É clara a intenção de que se tratava mesmo do último trabalho. Neste disco, Raul tenta reunir cacos de vida de uma vida inteira. Reconhece: Não sou nenhuma ficção. Percebendo, talvez, sua condição de mortal, anuncia: Por aí os sinos dobram, isso não é tão ruim. Quanto ao seu futuro, brinca: Eu não sei se o céu ou o inferno. Só lhe resta, então, continuar cantando rock, antes que chegue a vida eterna. E quanto a ter valido a pena, responde: Nós gritamos um pouco, quebramos algumas vidraças, mas tudo bem...7 No Olympia, em São Paulo, dois meses e meio antes da sua morte, as pessoas gritavam o seu nome, cantavam as suas músicas, apreensivas com a possibilidade dele não participar do show. Raul, enfim, apareceu visivelmente abatido, com a voz trêmula e uma dificuldade enorme de cantar, só conseguindo manter-se no palco com a ajuda do amigo Marcelo Nova.8 Raul Seixas morreu sozinho, trancado em seu apartamento. Poderia ter se demorado mais, porém não quis ser diferente dos ídolos Elvis Presley e John Lennon. Afinal, todo homem tem direito de morrer quando quiser. Além de tudo, ele já havia dado o recado: A semente que eu ajudei a plantar já nasceu! Eu vou, eu vou m’embora apostando em vocês...9 No dia 21 de agosto de 1989 Raul nos deixou, pegou seu ‘disco voador’ para outra dimensão. No seu enterro não teve artistas, somente seus amigos e milhares de fãs. A estes, mais tarde iriam se juntar outros fãs, os que estavam esperando por ele em algum lugar do futuro. Para todos, no entanto, Raul já havia deixado gravada a sua despedida. A música Banquete de Lixo, do último disco, termina com um indiscutível e contundente adeus: E assim, torto de verdade, com amor e com maldade, um abraço e até outra vez...10 Notas 1 O trecho citado faz parte da música Chorinho Inconseqüente, de Miriam Batucada, gravada no LP Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10, Op. Cit. 2 Ana Maria Bahiana, Raul Seixas, Um Estudo: Eu em Noites de Sol, publicado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 28; 3 Na música Não pare na pista, da dupla Raul-Paulo Coelho, o cantor pede: Não pare na pista, ... se você pára o carro pode te pegar, grava da em compacto simples em 1974, e incluída do LP Let Me Sing My Rock and Roll, em 1985, pela gravadora RRC; A música A verdade sobre a nostalgia, também de Raul e Paulo Coelho, a letra diz: Na curva do futuro muito carro capotou, talvez por causa disso é que a estrada ali parou; Raul diz: O rock ficou. Ficou e foi aceito... é uma arma poderosíssima hoje em dia, um meio incrível. Rock é as quatro letras. É R-O-C-K. Em: Ana Maria Bahiana, Raul Seixas, Um Estudo: Eu em Noites de Sol, publicado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 27; Citação de Raul: Não me cobrem essa época caótica, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 123 (entrevista ao repórter Ricardo Porto de Almeida, 1980); A frase: É triste ver que tudo isso é real, consta na música Movido a álcool, de Raul Seixas, Tânia Barreto e Oscar Rasmussem, lançada no LP Por quem os sinos dobram, Op. Cit., 4 A criação de heróis de gibis na infância, como uma viagem fora da lógica, faz parte de um depoimento de Raul, reproduzido em: Ana Maria Bahiana, Raul Seixas, Um Estudo: Eu em Noites de Sol, publicado em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 13; A frase: O hoje é apenas um furo no futuro, por onde o passado começa a jorrar, faz parte da música Banquete de Lixo, de Raul e Marcelo Nova, incluída no LP A Panela do Diabo, Op. Cit.; A relação do rebelde – o peregrino – com a tragédia de não encontrar solução nem lugar, foi abordada por: MAFFESOLI, Michel, Sobre o nomadismo, vagabundagens pós-modernas, Op. Cit, p. 160; 5 Citação de Raul foi publicada em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit. p. 143 (entrevista à revista Bizz); 6 Citação: Se hoje eu sou estrela, amanhã já se apagou, faz parte da música Metamorfose Ambulante, de Raul, lançada no LP Ouro de Tolo, Op. Cit., Citação: As estrelas brilham como eu!!! faz parte da música Segredo da Luz, de Raul e Kika Seixas, lançada no LP Raul Seixas, Op. Cit.; 7 Trechos de músicas do LP A Panela do Diabo: - Cacos de vida de uma vida inteira, faz parte da música: Século XXI; - Não sou nenhuma ficção, faz parte da música: Banquete de Lixo; - Por aí os sinos dobram, isso não é tão ruim, faz parte da música: Rock and Roll; - Eu não sei se o céu ou o inferno, faz parte da música: Pastor João e a Igreja Invisível; - Antes que chegue a vida eterna, faz parte da música: Best Seller; - Nós gritamos um pouco, etc..., faz parte da música: Câimbra no Pé. Todas as músicas citadas são de autoria de Raul Seixas e Marcelo Nova. 8 O show no Olympia, em São Paulo, foi em 02.06.1989: vídeodocumentário Raul Seixas Documento 1979-1989, fornecido pelo Raul Rock Club/SP; 9 A referência: todo homem tem direito de morrer quando quiser, faz parte da música A Lei, de Raul Seixas, e consta do LP A Pedra do Gênesis; a outra citação é um trecho da música Geração da Luz, de Raul e Kika Seixas, do LP Metrô Linha 743, Op. Cit.; 10 Pegou seu ‘disco voador’ para outra dimensão, citado por André Mauro, O Último Anarquista, em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 59; Sobre a ausência de artistas no enterro de Raul: O Guerreiro Solitário, entrevista concedida por Marcelo Nova a Luís Cláudio Garrido, no dia seguinte ao sepultamento do cantor. Publicada em: Raul Seixas por ele mesmo, Op. Cit, p. 167. 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Por isso festeja a Regionalidade, vivenda de quem canta a sua aldeia sem escarnecer as dos outros, e condena o Regionalismo, doença de quem só vislumbra o seu lugar como importante. Atualmente publica artigos e crônicas em jornais sobre temas variados. Pretende editar cordéis e contos sobre histórias de Sumé e, possivelmente, contos ficcionais e poesias. Contatos: Sonielson Juvino Silva e-mail: [email protected] site: www.sonielson.com