água para o agreste

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água para o agreste <introdução>
1
Fred Jordão e Raimundo Rodrigues Pereira
Belo Horizonte
Editora Manifesto
1ª edição
2010
EDITORA MANIFESTO S.A.
PRESIDENTE Roberto Davis
DIRETOR VICE-PRESIDENTE Armando Sartori
DIRETOR ADMINISTRATIVO Marcos Montenegro
DIRETOR EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira
DIRETOR DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Sérgio Miranda
Água para o agreste
Fred Jordão e Raimundo Rodrigues Pereira
PREPARAÇÃO Bruna Bassette [OK Linguística]
REVISÃO Silvio Lourenço [OK Linguística]
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Pedro Ivo Sartori
IMAGEM DA CAPA Fred Jordão
ILUSTRAÇÕES Alex Silva
Todos os direitos reservados à Editora Manifesto S.A.
Rua do Ouro, 1.725 - 2º andar - Serra
CEP 30210-590
Belo Horizonte/MG
Tel. 31 3281-4431
[email protected]
Introdução
E
ste livro é resultado de dois anos de trabalho. No início de 2008,
uma equipe formada pelos fotógrafos Cristiano Mascaro e Fred
Jordão e pelos repórteres Carlos Azevedo e Raimundo Rodrigues Pereira ficou cerca de três meses preparando uma edição especial
sobre o projeto de transposição de águas hoje batizado oficialmente como
Projeto de Integração do São Francisco com as Bacias Hidrográficas do
Nordeste Setentrional (Pisf). O trabalho resultou na edição número 10 da
revista Retrato do Brasil, de maio daquele ano, “A política das águas”. Nela
já se vislumbrava o trabalho atual. Dizia-se: “O governo pernambucano
contribuiu para mudar o plano da transposição. Agora, adianta-se para
tirar proveito do novo projeto.”
A frase é uma referência ao fato de o projeto da transposição ter
sido modificado, por sugestão do governo de Miguel Arraes, ainda no
governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, de sua forma inicial,
com apenas um eixo, que levaria água principalmente para irrigação, para
outro, com dois eixos, um dos quais para suprir essencialmente o agreste
pernambucano. E se referia também ao projeto da Adutora do Agreste,
que o governo de Pernambuco desenvolvia para receber a água que o novo
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eixo a ser feito – hoje o eixo leste do Pisf – projetava entregar, através de
um ramal, num reservatório nas nascentes do rio Ipojuca, um dos principais da região. Água para o agreste, concluído neste final de maio de 2010,
é uma história desse projeto, da luta por água no agreste pernambucano,
uma das regiões do nordeste setentrional de pior abastecimento hídrico. E
que precisa de quatro metros cúbicos de água por segundo para viabilizar
seu abastecimento nos próximos 40 anos.
É uma quantidade modestíssima: aproximadamente 1% da vazão
do rio São Francisco naquela região, tomando-se como referência o mais
severo mês de seca dos últimos 80 anos.
Fred e Raimundo voltaram para
detalhar o trabalho anterior, na área da
adutora, neste começo de 2010. A Editora
Manifesto, que publica este livro e a
revista Retrato do Brasil agradece especialmente à Compesa, a estatal pernambucana de água e saneamento, por seu apoio,
e em particular a Valdeci de Oliveira e
Lucas Martins da Cunha que, em quatro
viagens, entre 2008 e 2010, levaram o
repórter e o fotógrafo por todos os
cantos do agreste pernambucano.
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Índice
Capítulo 1
IMAGENS DO AGRESTE p. 9
Capítulo 2
ÁGUA PARA O AGRESTE p. 21
Capítulo 3
AS ÁGUAS SOBEM p. 35
Capítulo 4
ENTRE O AGRESTE E O SERTÃO p. 55
Capítulo 5
NO ESPINHAÇO DO AGRESTE p. 65
Capítulo 6
A ÁGUA SALOBRA DO CAPIBARIBE p. 75
Capítulo 7
NA CAPITAL DO AGRESTE p. 87
Capítulo 8
LIÇÕES DE CHÃ GRANDE p. 99
Capítulo 9
TEM ÁGUA PARA TUDO? p. 109
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Capítulo I
Imagens do agreste
por Fred Jordão
S
endo um pernambucano nascido no agreste, aprendi na escola e nos
manuais de geografia as distinções entre o agreste e o sertão. Mas foi
fotografando “este sertãozão de meu Deus” que descobri serem as
épocas de chuva e de seca que dizem quem de fato somos. Se não chove,
somos todos – agrestinos ou sertanejos – personagens mambembes de Vidas
Secas, a penar embaixo de um céu de aço e de um sol escaldante. Morte e Vida
Severina esculpida e impregnada em nós por tantos romances, filmes, histórias
e lendas. O agreste é um imenso sertão, já ali depois de Gravatá, nas barbas
da Serra das Russas, e o que vier depois é só pedra, pau e poeira. É o mundo
fantástico dos cantadores de feira, do cordel de J. Borges, de Onças Mariscadas, de Serpente de milhares de cabeças, de profetas e de visionários perdidos
num tempo e num espaço chamado sertão.
Mas basta santo Antônio soprar com força suas nuvens cinzentas de
chuva para alagar tudo no mundo, pra descer boi boiando pelo minguado rio
Una, esborrando de água e de espanto o povo das beiradas do Pajeú, limpando e dando força às águas do Ipojuca. É a força da água que traz o Capibaribe lá do alto de Poção, que se junta ao Beberibe e, então, ajuda a formar
o oceano Atlântico. É tanta água que o sertão se transforma num agreste
imenso. Brejos, várzeas e alagados. É a caatinga florindo, o milho crescendo
e o povo desta terra se alegrando, convertendo suas histórias fantásticas em
dança e em canção que brinca em louvor de são João.
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Para nós, sertão e agreste são um mundo só, e, se Arcoverde é a porta
do sertão, por todos os lados há janelas que escancaram tudo o que é agreste
a se misturar ao sertão. São os lajedos, serrotes e serras; as macambiras, xiquexique, facheiro e o mandacaru. É o cheiro da umburana, a água da raiz do
umbuzeiro, é o sorriso de juá. Sertão e agreste são um só.
A água, seja a da chuva divina, seja aquela trazida no matulão por
muitas léguas e, principalmente, pela astúcia e pela inteligência do homem, é a
força que transforma a vida de nossa gente. É ela que transforma este mundo
em beleza de se ver, de se morar e de se viver. É alegria, é fartura, é riqueza.
Água, para essa nossa gente, é Vida!
Fred Jordão, 45 anos, é formado em jornalismo e pós-graduado em
economia da cultura. Fotógrafo documentarista, é pernambucano de Bonito e
há 25 anos fotografa profissionalmente a região do litoral ao sertão
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Do sertão para o agreste, Serra Talhada
A pedra de Riacho do Navio
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água para o agreste <capítulo 1 Imagens do Agreste>
Esculturas do vento,
Vale do Catimbau
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água para o agreste <capítulo 1 Imagens do Agreste>
Caatinga:
a umburana-de-cheiro
e sua textura
Caatinga:
vivente, xique-xique e flor
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Serra Negra, vista de Riacho das Almas
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Saindo do agreste:
Bonito, cachoeira Véu da
Noiva; Serra das Russas
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Capítulo 2
Água para o agreste
N
o conjunto do globo terrestre, prevalece um relativo equilíbrio entre as massas de água que caem na forma de chuvas
e as que se evaporam e sobem para formar as nuvens. No
entanto, entre as regiões, há um desequilíbrio relativo no volume dessas
massas. Em umas, como no interior do Nordeste brasileiro, chove muito
pouco, e as condições atmosféricas são tais que o solo rapidamente fica
seco, os rios perdem água, secam também os pastos e a vegetação. E
outras são úmidas, como a Amazônia, onde há uma enorme evaporação e, mesmo assim, os rios e a vegetação ficam verdes, mantêm água
durante todo o ano.
Pernambuco não é muito diferente dos outros estados do
nordeste setentrional, a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o Ceará.
Toda essa área está submetida a um certo padrão climático. Esse
padrão decorre do movimento das águas que circulam pela atmosfera
entre o Pacífico e o Atlântico, os principais reguladores do clima no
planeta. Também tem a ver com o relevo da região. Ela é dividida por
um paredão montanhoso formado pela Chapada do Araripe e pelo
Planalto da Borborema, com alturas entre 500 metros e até mais de mil
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Água para o agreste
metros. Ele forma uma espécie de arco elevado, entre Pernambuco e as
regiões sul do Ceará e da Paraíba, e altera o movimento das correntes
de ar. Também faz o São Francisco, que vem de Minas para o norte,
mudar de rumo, desviar-se em mais de noventa graus para a direita e
desembocar no Atlântico, em Sergipe.
Muito tem de ser conhecido ainda sobre o clima da região. Há
poucas décadas, por exemplo, se descobriu o El Niño, o Menino Jesus,
um fenômeno do final de dezembro. É um aquecimento periódico
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capítulo 2 Água para o agreste
AGRESTE: MUITA GENTE...
As densidades demográficas nas várias regiões de
Pernambuco, em habitantes por quilômetro quadrado
Limites do agreste
Fonte: Atlas de Bacias Hidrográficas
de Pernambuco, 2006
Até 10
51 a 100
301 a 800
11 a 25
101 a 200
3.000 a 6.000
26 a 50
201 a 300
mais de 6.000
no oceano Pacífico, próximo do Peru e Equador. Dá origem a um
movimento de águas quentes para o oeste que inverte o sentido das
correntes de ar da atmosfera. E, associado a outros fatores, provoca
seca no Nordeste setentrional. Agora se conhece também o fenômeno oposto, La Niña ou El Viejo, um esfriamento das águas no Pacífico Equatorial Tropical. E também o Dipolo do Atlântico, que os
cientistas acham especialmente importante para o clima do agreste
pernambucano, e corresponde a uma diferença de temperatura entre
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Água para o agreste
águas vizinhas, as ao sul e as ao norte do Equador. Quando o norte é
mais frio, chove mais. Simplificadamente, quanto às chuvas, a região
pode ser dividida em duas partes. No litoral chove bem, a área é
úmida. Já as áreas do interior - do agreste e do sertão - são áridas ou
semiáridas, chove pouco e, periodicamente, há anos secos, quase sem
chuva.
A caatinga é a vegetação que corresponde ao clima dessas regiões
áridas e semiáridas. Mesmo em anos considerados normais, só por três
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capítulo 2 Água para o agreste
...UM CLIMA SEMIÁRIDO...
A classificação dos climas
nas várias regiões de Pernambuco
Limites do agreste
Fonte: Atlas de Bacias Hidrográficas
de Pernambuco, 2006
Climas áridos
Climas úmidos-subúmidos
Climas semiáridos
Climas úmidos
Climas secos
subúmidos
meses as plantas são verdes. No resto do tempo, secam, evitam transpirar, “se fingem de mortas”, como diz Francis Lacerda, coordenadora
do Laboratório de Meteorologia da Universidade Federal de Pernambuco. Embora esteja hoje bastante devastada pela ocupação humana
oriunda da colonização europeia da região, a caatinga é um bioma que
se formou bem antes, ao longo de milhares de anos. Seu nome vem do
tupi, de caa e tinga, mata esbranquiçada. Ela já existia quando começou
a colonização europeia do Brasil.
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Água para o agreste
Do mesmo modo, são antigos outros biomas em ambientes
semelhantes, em outros cantos do mundo. No norte da África, destacase a região hiperárida do deserto do Saara. Existem regiões áridas ou
semiáridas no oeste da América do Norte, da América do Sul, no sul
da África, numa extensa região da Ásia, em grande parte da Austrália.
Além da caatinga, biomas típicos das regiões semiáridas são as estepes,
como as do Cazaquistão, as pradarias americanas e os outbacks australianos. A caatinga tem diferenças essenciais. Tanto as savanas africanas
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capítulo 2 Água para o agreste
...E POUQUÍSSIMA CHUVA
Quantidade de chuvas nas várias regiões de Pernambuco,
com precipitações médias em milímetros por ano
Limites do agreste
Fonte: Atlas de Bacias
Hidrográficas de
Pernambuco, 2006
1.750 a 1.900
400 a 550
850 a 1.000
1.300 a 1.450
1.900 a 2.050
550 a 700
1.000 a 1.150
1.450 a 1.600
2.050 a 2.200
700 a 850
1.150 a 1.300
1.600 a 1.750
2.200 a 2.350
como as estepes asiáticas e as pradarias americanas têm oscilações de
temperatura muito grandes, invernos rigorosos. No Semiárido brasileiro, a temperatura é bastante estável o ano inteiro.
No Semiárido pernambucano chove pouco, tanto no sertão
quanto no agreste, a região mais próxima do litoral úmido. Do ponto
de vista do abastecimento humano, no agreste a falta de água é maior.
Em grande parte de suas áreas chove tão pouco quanto no sertão. Mas
existe mais gente por quilômetro quadrado, então a disponibilidade de
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Água para o agreste
água por habitante é menor. Usando os indicadores da ONU, o agreste
pernambucano, com cerca de 1,4 milhão de habitantes, tem cerca de
metade da água necessária para manter um padrão de vida considerado
satisfatório.
A ideia de levar água do São Francisco para o Semiárido se
apoia numa constatação. As terras de Minas Gerais, onde o rio nasce,
funcionam como uma esponja. Retêm as águas abundantes na região
na estação chuvosa e as liberam lentamente. Assim, ao longo de todo o
ano, elas correm em direção às áreas secas do Nordeste.
Planos para desviar parte das águas do rio, em seu curso final,
quando ele se volta para o leste, forçando-as, por meio de bombas
hidráulicas e de canais, em direção ao Nordeste setentrional, existem
desde o Império. D. Pedro II se disse disposto a “empenhar as joias
da Coroa” para acabar com a seca. Em 1852 ordenou um estudo detalhado para levar água do São Francisco para o Semiárido. O estudo foi
feito, mas o plano não foi levado adiante.
Houve vários outros projetos nos séculos XIX e XX. Mais recentemente, no começo da Nova República, em 1985, no governo José
Sarney, foi apresentado um estudo para levar 360 metros cúbicos por
segundo de água para projetos de irrigação em larga escala no Ceará,
por meio de um único canal. Dez anos depois, no governo Fernando
Henrique Cardoso, previa-se, também com um único canal, levar, numa
primeira etapa, 70 metros cúbicos por segundo e, numa segunda, mais
110 metros cúbicos por segundo para Ceará, Rio Grande do Norte e
Paraíba.
O principal crítico desta proposta foi Miguel Arraes, eleito governador de Pernambuco em 1994. Seu argumento central era o de que o
plano não contemplava o maior problema de água do seu estado, o do
agreste. E em grande parte como consequência da pressão do governo
Arraes, começou, já no primeiro governo de Fernando Henrique, o
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capítulo 2 Água para o agreste
estudo do chamado Eixo Leste. Os dois eixos, esse novo e o antigo, o
Eixo Norte, são as estruturas básicas do que é hoje conhecido como
Projeto de Integração do rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, resumidamente Pisf, do governo Luiz
Inácio Lula da Silva. Foi também no governo Fernando Henrique,
quando era conhecido como “Transposição do São Francisco”, que
o plano foi reorientado para os objetivos atuais de assegurar, acima de
tudo, o abastecimento humano das populações do sertão e do agreste
setentrionais.
O Eixo Leste sai do São Francisco perto de Floresta, no lago de
Itaparica, no sentido nordeste. Atravessa o Planalto da Borborema e
chega a Monteiro, na Paraíba. Tem capacidade para transportar até 28
metros cúbicos por segundo de água, especialmente para os agrestes
de Pernambuco e da Paraíba. O Eixo Norte sai de Cabrobó, atravessa
a Chapada do Araripe e é capaz de levar até 99 metros cúbicos por
segundo de água para os sertões de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio
Grande do Norte.
Criado por pressão de Miguel Arraes, como se viu, o Eixo Leste
tornou-se peça estratégica nos planos do governo de Pernambuco. Em
2006, Eduardo Campos (PSB), neto de Arraes, ganhou a eleição com
um programa cujo “eixo estratégico” era a questão da água. E pôs
em movimento, desde o primeiro dia de seu governo, um conjunto
de ações com o objetivo de universalizar no estado, em oito anos, os
serviços públicos de abastecimento de água e, em doze, os de esgotamento sanitário.
Essas ações foram facilitadas por iniciativas federais anteriores.
Em seu segundo governo, Fernando Henrique havia criado a Agência
Nacional de Águas (ANA) para estabelecer uma política nacional e o
gerenciamento dos recursos hídricos do País. Quando o governo Lula
decidiu levar adiante o projeto de transposição das águas do rio São
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Água para o agreste
Francisco, logo após sua posse, no início de 2003, a ANA desencadeou um grande levantamento sobre o saneamento básico, que incluiu
toda a região do Semiárido. Várias empresas e inúmeros pesquisadores
foram, afinal, contratados no fim de 2004. E, poucos meses depois,
começaram oficialmente o trabalho, que durou 18 meses e foi apresentado com o nome de Atlas Nordeste – abastecimento urbano de água (ANA,
2006).
No primeiro semestre de 2007, uma numerosa equipe da Secretaria de Recursos Hídricos do estado de Pernambuco e da Compesa
(Companhia Pernambucana de Saneamento) atualizou o plano da ANA
para a região. Esse trabalho abrangeu todos os municípios com mais de
5 mil habitantes e apresentou soluções para seus problemas de abastecimento de água. Procurou, ainda, integrar o sistema de adutoras para
o abastecimento urbano do interior, esboçado pela ANA, aos projetos
da transposição. Dessa integração surgiu a Adutora do Agreste.
No início de 2008, foi incluída no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula a construção do Ramal do Agreste, de
onde virá a água para a adutora. É um canal que sai do Eixo Leste, acima
de Sertânia, perto da Paraíba, para levar água a um grande reservatório situado próximo das nascentes do rio Ipojuca, um dos principais
do agreste. É deste reservatório que partirá a adutora. Com cerca de
1300 km de tubulações, ela levará, em média, quatro metros cúbicos de
água por segundo para 64 cidades e outras 80 localidades menores do
agreste, garantindo o seu abastecimento, que é atualmente precário.
Um dos argumentos apresentados até hoje contra a transposição de águas do São Francisco para outras bacias hidrográficas do
Nordeste setentrional se apoia na avaliação de que o rio pode ser muito
O São Francisco, no cânion depois de Sobradinho,
quando se volta para o leste, em direção ao mar
30
capítulo 2 Água para o agreste
31
Água para o agreste
prejudicado com a retirada dessas águas. O argumento tem de ser visto
nos seus detalhes. E isto será feito mais adiante, no último capítulo
deste livro, quando serão examinados os projetos de irrigação e de
colonização, que também fazem parte do Pisf e que demandam mais
água.
No momento, examinemos o volume de água previsto apenas
para o abastecimento humano, diante do volume de água do rio. É
um volume mínimo, comparado ao das outras duas grandes transposições de água em território brasileiro, as efetuadas para beneficiar
as áreas metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro. No caso
paulistano, boa parte do abastecimento de água da cidade, cerca de
30%, passou a ser feito, a partir dos anos 1980, pela bacia do rio Piracicaba, situada para além da Serra da Cantareira, no limite norte da
capital paulista. Da vazão total do Piracicaba, mais da metade é retirada para esse fim. O Rio de Janeiro, por sua vez, retira água do Paraíba
do Sul. Entre 8 e 50 metros cúbicos por segundo, dependendo da
época, são desviados para o rio Guandu, local em que está instalado
o principal sistema de abastecimento da região metropolitana do Rio
de Janeiro.
O São Francisco não é um dos rios mais volumosos do País. Sua
bacia hidrográfica é uma das maiores, tanto em área como em relação
à população que a habita, mas não em quantidade de água – em água e
área, a do Amazonas é muito maior. Mesmo assim, o São Francisco é
um gigante quando comparado com o Piracicaba e com o Paraíba do
Sul. As vazões do São Francisco são medidas regularmente há cerca
de 80 anos. Tem-se os volumes médios, máximos e mínimos todos
os meses. Em todo esse tempo, a vazão do São Francisco na sua foz
nunca foi, mesmo no mês mais seco, setembro, menor que 500 metros
cúbicos por segundo. E no mês mais chuvoso, março, chegou a até
16.000 metros cúbicos por segundo.
32
capítulo 2 Água para o agreste
MUITA ÁGUA
Desde que são feitas medições regulares, o São Francisco despeja no mar entre
500 e 15.000 metros cúbicos de água por segundo
16.000
14.000
12.000
Vazões mensais na foz do rio, em metros
cúbicos por segundo (1931-2001)
10.000
mínima
média
máxima
8.000
6.000
4.000
2.000
0
out
nov dez
jan
fev
mar
abr mai
Fonte: Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia do Rio São Francisco (2004-2013)
POUCA ÁGUA
Com menos de 4.000
litros – quatro metros
cúbicos – por segundo,
na média diária, o agreste
está abastecido até 2037
Fornecimento de água previsto pela
Adutora do Agreste para 2037, para
o conjunto do agreste e cidades
selecionadas. Médias mensais,
máximas diárias e máximas
horárias, em litros por segundo
Cidades
jun
jul
ago
set ANO
Média/mês
Máx./dia
Máx./hora
Arcoverde
162
195
292
Belo Jardim
161
193
289
Bezerros
130
156
235
Caruaru
651
781
1.171
Garanhuns
283
340
510
Gravatá
154
185
278
Santa Cruz do
Capibaribe
255
306
459
Surubim
119
143
214
Outras
localidades
1.405
1.685
2.529
Total do
agreste
3.320
3.984
5.977
Fonte: Termo de Referência do projeto da Adutora do Agreste, Compesa, 2010
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Água para o agreste
Os dois eixos do Pisf carregarão para o Nordeste setentrional
25 metros cúbicos de água por segundo, no máximo. A Adutora do
Agreste, apenas quatro metros cúbicos por segundo - menos de 1% do
mínimo que o São Francisco despejou na sua foz no mês mais seco de
seus 80 anos de história medida.
A água do São Francisco terá ainda outro efeito extremamente positivo no abastecimento para consumo humano no sertão e no
agreste do Nordeste setentrional. A região tem sol abundante, calor
o tempo todo e solo rico em fósforo, condições muito boas para a
nutrição e o desenvolvimento de vegetais nos açudes, particularmente
quando eles são pequenos e “sangram” pouco, ou seja, não têm suas
águas renovadas frequentemente pelas enchentes.
O caso que deve ser sempre lembrado, diz a engenheira química
Salete Oliveira, da Compesa, é o da clínica de diálise de Caruaru, de
1996, quando 60 pessoas morreram em função da má qualidade da
água. Na ocasião, o abastecimento da cidade era precário e a própria
clínica tratava a água que comprava de carros pipa, de reservatórios
particulares e mesmo a que adquiria, em bruto, da Compesa.
Salete foi uma das técnicas que estudou o assunto junto com
especialistas internacionais. As mortes foram causadas por substâncias
tóxicas liberadas pelas cianobactérias, seres vivos catalogados entre o
reino vegetal e o reino animal e que até poucas décadas atrás eram
pouco conhecidos, mas hoje são muito estudados e vigiados pelas
melhores empresas de água do mundo. As cianobactérias “florescem”,
como diz Salete, usando o termo técnico, em muitos tipos de reservatórios. Mas merecem particular atenção nos açudes pouco renovados
e muito propícios à vida do interior do Nordeste setentrional. “A água
do São Francisco, que é muito boa, ajudará a melhorar o abastecimento da região. Para mim, ela é uma bênção”, diz Salete, que nasceu em
Vertentes, no agreste pernambucano.
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