Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática Sociedade Brasileira de História da Matemática Geometria e Aritmetização da Grécia Antiga à Matemática Moderna; contribuições desta história para a Educação Matemática atual Geometry and Aritmetization from Ancient Greece to Modern Mathematics; contributions from this history to mathematics education today Humberto de Assis Clímaco1 Resumo Este trabalho apresenta o desenvolvimento da geometria e da álgebra, bem como da relação entre elas, da Antiguidade até o início do século XIX, quando muitos dos conceitos do cálculo diferencial e integral adquiriram a forma que lhes é dada na maioria dos livros de cálculo da atualidade. É feita uma reflexão sobre como devem ser abordadas noções como abstração e rigor na atualidade. Palavras-chave: História. Geometria. Aritmetização. Rigor. Abstract This paper presents the development of geometry and algebra, and the relation between them, from Antiquity to the early nineteenth century, when many of the concepts of differential and integral calculus took the form given to them in most books of calculus today. It reflects on how they should be dealt with notions such as abstraction and rigor today. Keywords: History. Geometry. Arithmetization. Rigor. Introdução: Geometria e números na concepção de ciência grega A relação entre aritmética e geometria na Grécia Antiga está profundamente marcada pelo que Boutroux (1992), identificou com o ideal científico do pensador grego: ideal de harmonia, beleza e simetria. O pensador grego não procurava construir teorias que estabelecessem uma fidelidade aos fatos, e foi em decorrência desta concepção que os gregos 1 Professor do Instituto de Matemática e Estatística, e aluno de doutorado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected] Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 2 excluíram da matemática as chamadas curvas mecânicas e os cálculos 2, bem como o saber técnico da ciência. É claro que a matemática que os gregos herdaram do Egito – relacionada, sobretudo, à medição da terra e ao cálculo de dinheiro, dentre outras aplicações práticas – continuou sendo desenvolvida paralelamente àquilo que os filósofos consideravam científico. Então, se de um lado os filósofos não estudaram os cálculos por acreditarem que estes não eram dignos de serem aceitos na matemática por terem relação com a prática, por outro lado os calculistas práticos também não estudaram os cálculos de um ponto de vista teórico, mas apenas o desenvolveram visando maior agilidade, praticidade e aperfeiçoamento técnico. Foi assim que na Grécia Antiga não se desenvolveu teoricamente um estudo sobre o cálculo, o que determinou que, enquanto a geometria e os métodos demonstrativos se muito mais do que nas civilizações egípcia e mesopotâmica (em que não havia a noção de demonstração, mas apenas um conjunto de ordens que determinavam algoritmos para a realização de operações para a resolução de problemas), a descrição dos números ainda era feita, antes do século IV, por meio de uma repetição muito grande de símbolos, e depois do século IV por meio de uma simbologia que dificultava muito a realização de operações (cf. IFRAH, 1989); os próprios pitagóricos representavam números com pontos e pedras, juntando-os de forma que representassem alguma figura geométrica (cf. MATTÉI, 2000 e REALLE, 2005), e as simples propriedades das operações elementares (soma e multiplicação) não foram enunciadas na Grécia Antiga. Com relação à geometria, os gregos admitiram como científicas apenas as curvas construtíveis com régua sem escala e compasso, bem como sua extensão para as cônicas, criadas com a revolução destas figuras e sua posterior interseção com o plano. As demais curvas foram consideradas mecânicas e não foram admitidas na Matemática. Assim, o ideal científico do pensador grego, bem como a ausência de necessidades econômicas e sociais que exigissem previsão, medida e quantificação, levaram a que a matemática grega tivesse como modelo e fundamento a geometria, em detrimento do cálculo com números (ver STRUIK, 1987; CARAÇA, 2000). Com relação às ciências empíricas, os gregos – bem como as tradições predominantes na Idade Média – consideraram impura a utilização de instrumentos mecânicos (as lentes, por exemplo, das quais se tratará a seguir) para novas descobertas, e também como objeto de estudo. Além disso, estava completamente excluída dos interesses dos pensadores gregos a 2 Ao utilizar o termo „cálculo‟ no contexto da Grécia Antiga, não se está fazendo referência ao Cálculo Diferencial e Integral, mas àquilo que hoje chamamos de contar e realizar operações. Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 3 noção de experimentação e observação de experiência controlada. Mesmo o pré-socrático, que „observava‟ a natureza, não o fazia no sentido moderno que atribuímos ao termo „observação‟. Melhor seria dizer que ele contemplava a natureza e, ao contemplá-la, buscava revelar qual seria a arkhé do universo, qual seria o princípio que o regeria, o elemento único e permanente por trás de toda a diversidade aparente das coisas. Mesmo a noção pitagórica de que “tudo é número” (cf. IFRAH, 1989) tem menos em comum com a concepção moderna de medir, prever e controlar do que pode parecer à primeira vista, na medida em que a noção pitagórica se enquadrava totalmente na busca por mostrar como os fatos se adequavam a uma harmonia preestabelecida da beleza dos números, e não na busca por adequar a teoria matemática aos fatos empíricos ou à experimentação controlada, que caracterizariam a ciência moderna. Há, sobre esta questão, três aspectos da matemática pitagórica que precisam ser esclarecidos, para evitar possíveis (e comuns) confusões: o primeiro é que eles de fato realizaram estudos sobre a música e sobre os astros que descreviam o funcionamento de aspectos da natureza; o segundo, é que seu método de busca era o do ideal da perfeição, e portanto sua escala musical não foi feita para ser prática, mas os sons empíricos foram encaixados dentro de seu ideal de harmonia, de encontrar os sons equivalentes a uma corda, depois à metade da corda, depois aos quartos, etc.; o mesmo se pode dizer com relação à sua aritmética dos astros: não buscavam „descrever de forma acurada‟ o movimento dos astros, mas conciliar a descrição e o movimento com as formas mais belas, harmoniosas e simétricas da geometria. A numeração dos gregos não se destinava “a efetuar operações aritméticas, mas a fazer abreviações para anotar e reter os números” (IFRAH, 1989, p. 185). Os pitagóricos chegaram a representar os números por pontinhos dispostos em forma geométrica, o que fazia atribuir ao número um „caráter‟ muito mais concreto do que aquele que lhe seria dado na álgebra moderna (cf. MATTÉI, 2000). Por fim, e talvez o mais importante, é que o número tinha para os pitagóricos, e Platão retomará este aspecto (ver REALE, 2005), um caráter metafísico. Não pretendia explicar o universo por meio dos números usando uma álgebra universal utilizável em qualquer área do conhecimento, como Descartes (1596-1650), mas acreditava que a origem e o princípio das coisas eram o número em si, por sua vez criado por uma fusão do ilimitado com o limitante (cf. REALLE, 2005, MATTÉI, 2000): ou seja, era a arkhé dos pitagóricos. Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 4 A relação entre números e objetos geométricos na revolução científica Uma parte importante da ciência grega seria desconhecida do Ocidente durante a maior parte da Idade Média (ver RUBENSTEIN, 2005). Os árabes continuariam, durante a Idade Média, a desenvolver os cálculos práticos herdados dos gregos, que por sua vez eram continuidade da ciência egípcia, e lhe dariam nova feição – sob influência também dos métodos dos matemáticos hindus – buscando resumir e simplificar sua realização: é com os árabes que, por exemplo, se inicia a prática de fazer termos de uma igualdade mudarem de sinal quando são transferidos para o lado oposto (ao que está) da igualdade, ou seja, a noção de anular termos de mesmo valor mas sinais opostos (cf. BOUTROUX, 1992, p. 81). Uma das características fundamentais do conhecimento criado com a revolução científica foi a tentativa de romper com a separação entre o cálculo e a geometria, bem como com a rígida distinção entre os saberes considerados práticos e os teóricos, entre o instrumental e o racional3. Não que a matemática tenha deixado de ser teórica, mas ela passou a incorporar e estudar teoricamente aquilo que os gregos consideraram meramente utilitário e, portanto, impuro e indigno de ser estudado e de pertencer à matemática. Para isso, foi necessário realizar uma verdadeira ruptura com os escrúpulos dos gregos, que os levavam a rejeitar da ciência o que derivasse da prática (em detrimento da busca por um ideal de beleza e de simetria). Sem essa incorporação à ciência teórica dos instrumentos e dos cálculos práticos (que não deve ser confundida com a errônea afirmação de que a ciência moderna foi construída por engenheiros e técnicos superiores (cf. REALLE, 2005), não teria sido possível que Galileu (1564-1642) estudasse o funcionamento das lentes e ampliasse suas potencialidades muito além do que os trabalhadores que usavam lentes (cujo trabalho era considerado inferior, como algo de quem trata de doentes, idosos e crianças). Não teria sido possível que os cientistas do século XVI e sobretudo os do século XVII, desenvolvessem algumas das mais importantes características da ciência e da matemática criadas a partir de então: a observação controlada, a experimentação, a álgebra e a frutífera tentativa de unificar o estudo dos números com a geometria. 3 Aristóteles, autor de grande influência sobre a escolástica, dividia os saberes entre teoréticos, práticos e poiéticos. Nos primeiros, encontravam-se a Física, a Matemática e e Metafísica; dentre os práticos, a política e a ética; dentre os poiéticos, os conhecimentos referentes à produção. A incorporação à ciência de instrumentos não é, portanto, resultante da reunião entre os saberes práticos e teoréticos de Aristóteles, mas sim da ruptura da separação rígida entre conhecimento poiético e conhecimento teorético. Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 5 É assim que o cientista moderno realiza a ruptura com a noção grega predominante até o século XV – e mesmo parte do XVI – de que as artes mecânicas eram “baixas” e “vis”, dignas de servos ou escravos, indignas do homem livre. O cientista do século XVII frequentemente trabalhava fora, ou até mesmo contra, as velhas instituições do saber (as universidades), muitas delas presas à escolástica e a seus métodos, herdeiras das concepções gregas. Sobretudo com a revelação copernicana de que a Terra girava em torno do Sol, mudou a imagem do universo, as ideias sobre a ciência, sobre o trabalho científico e sobre as instituições científicas, as relações entre ciência e sociedade e entre saber científico e fé religiosa. Não é que o cientista se opusesse por princípio à fé cristã ou ao poder da Igreja Católica: assim como, ainda no século XV, Colombo apresentou seus planos de como chegar à Índia a um comitê eclesiástico; no século XVII a Igreja procurava melhorar os calendários, bem como as rotas dos navegantes; o próprio Galileu, antes de sua condenação, chegou a ser premiado pela Igreja devido à sua descoberta de instrumentos científicos (cf. Realle, 2005, p. 196), o que ocasionaria uma verdadeira revolução científica, embora ainda houvesse quem não aceitasse seu uso como uma forma legítima de se obter conhecimento. No entanto, a Igreja não podia aceitar que Galileu apresentasse a matemática como uma fonte de verdades mais legítima do que as Escrituras, nem mesmo em assuntos que nos dias atuais seriam considerados estritamente científicos. Cassirer (1997) chega a afirmar que o próprio heliocentrismo não era tão insuportável para a Igreja, quanto o era a existência de uma fonte de verdades que dispensava a autoridade da igreja e das Escrituras, que aparecia como mais limpa, menos sujeita a arbitrariedades e mais facilmente comunicável. Galileu, Descartes, Fermat (1601-1665) e Cavallieri (1598-1647), conhecedores da obra dos gregos, retomaram muitos dos problemas não resolvidos, incorporando gradualmente as novas ferramentas e abandonando progressivamente o ideal científico grego. Fermat introduziu a linguagem algébrica, Descartes as coordenadas e o plano para localizar os pontos e curvas, e Cavallieri (e também Torriceli) „redescobriram‟ os métodos infinitesimais dandolhes não apenas uma conotação heurística como lhes dera Arquimedes, mas também uma formalização do método (MANCOSU, 1996, p. 35). Assim, se inicia a aritmetização da geometria e a introdução de métodos infinitesimais, dois elementos fundamentais que marcariam o desenvolvimento da matemática no século XVII (MANCOSU, 1996, p. 34). Com a incorporação do cálculo à matemática, os números ganham direito de serem estudados como ciência. Sobretudo com Descartes, se desenvolvem as propriedades das operações, se cria uma notação que permite economia de pensamento, agilidade e precisão, garantindo assim uma ampla generalização e uma busca por aplicações da matemática a uma quantidade crescente de áreas. Descartes aplicou a crítica filosófica aos fundamentos da matemática, mas acreditou muito cedo ter encontrado os fundamentos, e deixou o que Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 6 considerou “operações braçais” para outros. Embora Descartes procurasse reduzir tudo ao “mais simples”, seu simples era apoiado em complexa álgebra geométrica (cf. RUSNOCK, 1997), e portanto deixou diversas questões relativas a fundamentos sem desenvolvimento. No entanto, sua afirmação de que a 'multiplicação' de dois segmentos de reta resultava num segmento de reta (e não numa área, como se acreditava antes) já significou uma revolução suficiente para que os matemáticos posteriores pudessem prosseguir no caminho da aritmetização (não sem contradições, como será mostrado por ocasião das críticas aos fundamentos do início do século XIX). Mas, se por um lado Descartes revolucionou a matemática e também a filosofia – ao buscar a certeza do conhecimento no sujeito cognoscente transformando a filosofia na busca da certeza do saber, deixando de ser a busca das essências –, por outro seu racionalismo propunha uma razão que tudo abarcava e explicava, princípios que abarcariam todos os fatos. E quanto mais Descartes se aproximava dos fatos, mais se enredava em complicados princípios metafísicos (Cassirer, 1997), não conseguindo, neste aspecto, acompanhar as tendências mais importantes da nova ciência, que caminhavam exatamente no sentido, que Newton daria expressão consciente mais tarde (no ano 1687, a publicação do Principia Mathematica Philosophiae Naturalis marcaria o auge da Revolução Científica), de valorização dos fatos e da experiência controlada, recusa a qualquer teoria que fosse construída em oposição aos ou ignorando os fatos, decomposição de fenômenos complexos em fenômenos mais simples; recomposição do fenômeno complexo; e da matemática como instrumento ou linguagem que permitia, a partir dos fatos, construir leis. Mas, uma compreensão mais profunda da diferenciação e da integração, bem como um método geral para aplicação destes conceitos, derivado da compreensão de que um processo é inverso do outro, somente pôde ser descoberto por homens que dominaram o método geométrico dos gregos e de Cavalieri, assim como os métodos algébricos de Descartes e Wallis. Esses homens só poderiam ter aparecido depois de 1660, e na realidade surgiram com as figuras de Newton e Leibniz (STRUIK, 1987, p. 177) A matemática de Newton e Leibniz seria marcada pela exploração, aplicação e ampla generalização dos método ligados aos infinitesimais, e a consciência da inversabilidade entre derivadas e integrais facilitou a exploração do importante instrumento para medir, prever e matematizar – como era o objetivo de Descartes – que eram as equações diferenciais, bem como para compreender e traduzir – ou descrever – analiticamente as relações geométricas entre derivadas e integrais. No entanto, e embora tenham feito amplo uso das séries infinitas e mostrado como elas facilitavam os processos de integração e de derivação, além de Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 7 permitirem um tratamento algébrico de funções não algébricas, ainda estavam a mais de um século do tratamento rigoroso das séries infinitas, e sua linguagem matemática ainda é surpreendentemente geométrica (ver NEWTON, 2.002). Trataremos brevemente no próximo item o debate em torno da coerência do uso dos infinitésimos. A Matemática teria se esgotado? Os matemáticos do século XVIII, como Euler (1707-1783) e Lagrange (1736-1813), foram progressivamente abandonando a linguagem geométrica – Lagrange, por exemplo, se orgulhava de não usar em seu Mechanique Analytique nenhuma figura geométrica (cf. BOYER, 1974) – ainda presente nos escritos de Newton, bem como a vinculação cartesiana do número ao segmento de reta. Com eles, a matemática se tornaria cada vez mais o estudo das séries, das funções e das equações diferenciais. Além disso, eles tratariam de provar, cada vez mais analiticamente, os principais resultados clássicos da matemática, da mecânica e da física celeste, inclusive reescrevendo aqueles encontrados por Newton. Os objetos de maior preocupação destes matemáticos eram a criação e o desenvolvimento da matemática, e não sua fundamentação. O que não significa que não se tenha tratado do rigor e nem se criticado a fragilidade da base sobre a qual se assentava o enorme edifício matemático do século XVIII. Se por um lado é inquestionável a grandiosidade dos avanços da matemática deste século, por outro, os questionamentos de Berkeley às noções de infinito e infinitésimo continuavam sem resposta satisfatória, e o caráter contraditório das explicações que os matemáticos tentavam dar para estas noções foi colocado em evidência pelas críticas do bispo, e também pela manipulação sem cuidado de séries infinitas, que levou Euler a generalizar resultados particulares a ponto de afirmar como verdadeira a igualdade 1 1 x x 2 ... x n ... para valores quaisquer, como x 1 , 1 x x 1 , x 2 etc (cf. RUSNOCK, 1997, p. 73). Assim, no final do século XVIII, estes conceitos (infinito, infinitésimo, continuidade), ou eram explicados em termos metafísicos, ou em termos de explicações geométricas, ou que envolviam as noções de espaço e de tempo (BOYER, 1949 p. 287). Assim, como os fundamentos dos principais conceitos usados na linguagem analítica – que o século XVIII pretendeu que substituísse a linguagem geométrica – continuavam sem uma aritmetização clara, importantes resultados, como o Teorema do Valor Intermediário, continuavam sendo „provados‟ com a ajuda da geometria Os matemáticos do século XVIII provaram e descobriram tanto, que não apenas o biólogo Diderot – pretendendo limitar os poderes da matemática como modelo de Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 8 fundamentação das ciências, sobretudo da biologia – como também Lagrange, que percebeu que os principais resultados clássicos da geometria e da física tinham sido revelados pelos matemáticos, chegaram a prever que a matemática estava esgotada (cf. Cassirer, 1997). Aritmetização, rigor e didática Bertrand Russell (1981) afirma que há duas direções distintas em que se realiza o estudo da matemática: uma é a mais comum, que ele chama de construtiva; a outra é a menos familiar, que avança, pela análise, para a abstração e a simplicidade lógica sempre maiores; indaga-se que mais ideias e princípios gerais podem ser encontrados, em função dos quais o que fora o ponto de partida possa ser definido ou deduzido (RUSSEL, 1981, p. 11), e caracteriza esta segunda direção como “o que caracteriza a Filosofia Matemática, em contraste com a Matemática comum” (RUSSEL, 1981, p. 11). A filosofia, que no século XVII tinha sido estreitamente ligada à matemática e que contribuiu para o estudo crítico dos seus fundamentos, vivia no início do século XIX um contexto “dominado pelo idealismo de Fichte e Hegel e, de maneira crescente, pelas interpretações psicológicas das doutrinas kantianas (Herbart, Benecke)” (LAPOINTE, 2003, p. 6), o que não contribuiu para a resolução dos problemas de fundamentos pelos quais passava a matemática da época. Se tomarmos como parâmetro a distinção feita por Russell, a preocupação dos matemáticos do século XIX foi bastante filosófica, pois foi por meio da análise dos fundamentos do que já era conhecido, e não pela busca de novas aplicações ou descobertas, que surgiu um outro olhar, uma nova abordagem, que transformariam o modo de encarar a matemática. A análise matemática passou a ter, neste período, o objetivo de elaborar uma estrutura dedutiva e conceitual de seus objetos. Assim, a análise filosófica passou a ser uma busca por fundamentos últimos, e essa é a razão pela qual Bolzano – um dos poucos que, no início do século XIX, tinha conhecimento matemático e filosófico suficiente para compreender as contradições e necessidades de sua época, além de preocupações educacionais – se sentiu impulsionado a desenvolver teorias de conjuntos, dos inteiros e dos números (entre outros) para fundamentar proposições da teoria das funções reais (cf. RUSNOCK, 1997, e BOLZANO, 1980, 1991). Mas a busca de fundamentos empreendida por Bolzano não tinha pretensões unicamente lógicas. Bolzano era padre e professor. No século XIX, as necessidades de comunicação aumentaram, havia cada vez mais matemáticos profissionais, professores em universidades, e crescia rapidamente o número de Escolas Politécnicas, que em geral copiavam o modelo da École Polytechnique de Paris, criada em 1794, durante a Revolução Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 9 Francesa. Nestas escolas eram formados engenheiros e artilheiros de guerra e os desenvolvimentos teórico e prático da matemática caminhavam juntos. Também foi nelas que ocorreram as primeiras experiências de matemática avançada ensinada em larga escala. E foi justamente este ensino em larga escala o fator decisivo para a necessidade de uma linguagem menos pessoal, intuitiva e subjetiva; com as necessidades colocadas por esta forma de ensino não mais era suficiente uma linguagem que bastasse ao matemático para sua própria descoberta (e que já dava sinais de esgotamento mesmo para descobertas). Foi assim que se fez necessário criar mecanismos que buscassem generalidade e objetividade, e esse esforço resultou na criação da matemática pura tal qual a conhecemos hoje, por homens como Bolzano, Gauss, Cauchy e outros. A necessidade de comunicação e didática coincidiu com a necessidade de fundamentação surgida com a crise nos fundamentos da matemática, que – como vimos – passava exatamente pela falta de cuidado e de definições rigorosas dos principais conceitos que fundamentavam as grandes descobertas dos dois séculos anteriores: aqueles ligados ao infinito, ao infinitésimo e à continuidade, e que tinham sua expressão, sobretudo, nas dificuldades dos matemáticos em manipular processos infinitos. A definição de ciência de Bolzano, bem como seu ideal de fornecer à matemática provas “puramente analíticas”, mostram em que grau Bolzano compreendeu as necessidades de sua época. Por exemplo, Bolzano definiu ciência (Wissenschaft) como “o conjunto de verdades de certo tipo que tem a qualidade de merecer ter apresentada num livro particular sua parte já conhecida e importante”, e de livro didático de uma ciência como “aquele livro... escrito por alguém com o propósito determinado de representar todas as verdades de uma ciência numa maneira para serem entendidas o mais facilmente possível” (WL § 1); e Doutrina ou Ensino da Ciência (Wissenschaftslehre) como “aquela ciência que nos ensina como apresentar alguma ciência num livro didático” (WL § 1). O paradoxo que envolve Bolzano e a Educação Matemática consiste em que a linguagem formal da matemática foi criada com o objetivo de facilitar o ensino e a comunicação de conceitos e, portanto, para evitar os erros oriundos da possibilidade de que cada um possa ver os conceitos de acordo com seu próprio arbítrio, mas passou a ser vista como obstáculo para o ensino, na medida em que a formalidade da linguagem matemática é apresentada com frequência como a responsável pelas dificuldades de ensino ou pelo desinteresse, por parte dos estudantes, pela matemática. Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 10 É verdade que os proponentes da Reforma da Matemática Moderna levaram aos extremos e transformaram em pedantismo antididático sua insistência na linguagem formal, bem como no abandono da geometria. No entanto, sua busca por levar a matemática da atualidade para as escolas, seu repúdio por um ensino caracterizado por eles como semelhante ao dos livros de Euclides ou da matemática que se ensinava há 200 anos atrás (cf. WAGNER, 2007), bem como sua busca pela interdisciplinaridade da Educação Matemática, não podem deixar de ser valorizados. E a abstração e a generalidade eram exatamente aquilo a que se referiam ao tratar da matemática „atual‟. Generalidade que só foi possível alcançar por meio de uma linguagem aritmética, por sua vez só possível de se realizar devido ao programa de abandonar a fundamentação em particularidades, representadas pela geometria. E, como foi visto, a fundamentação na geometria correspondia ao ideal matemático dos gregos, mas arrastou sua influência a ponto de dificultar a aritmetização até inícios do século XIX. Se a Educação Matemática atual não quiser repetir os erros do passado e reviver dilemas superados, é necessário compreender as raízes da evolução histórica da Matemática Pura e procurar tratar a história recente da Educação Matemática com maior profundidade. Se o “Fora Euclides” da Reforma da Matemática Moderna e a busca por ensinar já na infância as estruturas matemáticas mais gerais mostraram-se um exagero com graves consequências nas escolas, o “Fora o rigor”, bem como a ênfase no particular – característicos de algumas publicações recentes – pode ter consequências ainda mais prejudiciais, sobretudo se se deixar enquadrar no contexto das políticas educacionais que pretendem reduzir a escola (sobretudo a pública) a mera reprodutora do contexto cotidiano. Compreender a história dos conceitos matemáticos, bem como as ideias e problemas relacionados a eles - nas palavras de Otte (1993), adquirir metacognição matemática – pode contribuir mais para o professor do que buscar milagrosas construções e desconstruções por meio de slogans que se pretendem radicais, mas que enfatizam apenas um dos aspectos da matemática. Referências bibliográficas BOLZANO, B. Las paradojas del infinito. México: Servicios Editoriales de la Facultade de Ciencias/UNAM, 1991. BOLZANO, B.. Rein analytischer Beweis des Lehrsatzes, dass zwischen zwei Werten, die ein entgegengesetztes Resultat gewaehren, wenigstens eine reelle Wurzel der Gleichung liege. Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática 11 Tradução inglesa por S. Russ, Historia Mathematica,, Historia Mathematica, n. 7, p. 156-185, 1980. BOUTROUX, Pierre. L’idéal scientifique des mathématiciens dans l'antiquité et dans les temps modernesSceaux : Jacques Babay, 1992. BOYER, Carl. B. 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