REVISÕES Abordagem da criança com infecção urinária EDUARDO FERNANDES* RESUMO A importância da infecção urinária na criança deve-se não só à sua elevada prevalência, mas também por servir de marcador para anomalias estruturais e funcionais, congénitas ou adquiridas, do tracto urinário, e pelo seu potencial em originar sequelas como a hipertensão arterial e a insuficiência renal crónica. A investigação da criança com infecção urinária implica visitas médicas repetidas, o consumo de múltiplos antibióticos, explorações complementares relativamente invasivas e um custo económico elevado. Daí a importância de que o diagnóstico de infecção urinária na criança seja correctamente efectuado, sendo para tal sempre necessária a realização da cultura de uma amostra de urina correctamente obtida, a fim de evitar os falsos diagnósticos, os tratamentos e investigações desnecessários. O diagnóstico correcto e o tratamento precoce e adequado da infecção urinária na criança vão diminuir de modo significativo o risco de lesão renal permanente e suas sequelas. Palavras Chave: Criança; infecção urinária; urocultura. IENTRODUÇÃO DITORIAIS tracto urinário é, actualmente, o local mais frequente de infecção bacteriana grave na criança. Nesta actual «era da imunização», a infecção urinária (IU) na criança, tornou-se mais frequente do que a bacteriemia oculta, a meningite e pneumonia bacterianas. A prevalência da infecção urinária em crianças dos dois meses aos dois anos que apresentam febre sem foco evidente de infecção, pela história e exame fisíco, é cerca de 5-6%1,2. Estima-se que pelo menos 8% das raparigas e 2% dos rapazes apresentem um episódio de IU durante a infância e que 30 a 50% destes te- O *Assistente hospitalar graduado de Pediatria Médica no Hospital do Barlavento Algarvio nham, pelo menos, uma recorrência3. Como motivo de consulta na criança, a IU é ultrapassada apenas pelas infecções do tracto respiratório superior. E se nestas não é necessário proceder-se a maiores investigações, uma vez que se admite habitualmente como sua causa o contacto com um agente patogénico em casa, no infantário ou na escola, em relação à IU o clínico não pode preocupar-se somente com o tratamento do episódio agudo de infecção. Isto porque uma percentagem significativa de crianças investigadas após uma primeira IU demonstra uma anomalia de tracto urinário, nomeadamente lesões obstrutivas em até 4% dos casos e refluxo vesicoureteral em 8% a 40%4. Por outro lado, e apesar da maior parte das IU na criança apresentar características benignas e um bom prognóstico5,6, há sempre o risco de envolvimento renal (pielonefrite aguda), podendo a IU ser foco de disseminação infecciosa sistémica ou originar cicatrizes renais, principalmente na criança pequena, abaixo dos seis meses, na criança com obstrução do tracto urinário ou refluxo vesicoureteral e ainda quando há atraso no inicio do tratamento ou se verifica uma resposta lenta a este7. A presença de cicatrizes renais está documentada em 5% a 15% das crianças avaliadas após uma primeira infecção urinária febril8,9, podendo a médio e longo prazo levar à hipertensão arterial e/ou insuficiência renal10,11. Daí a atenção que deve merecer sempre a IU na criança e a importância do seu diagnóstico correcto e tratamento precoces, com vista à minimização da lesão renal crónica e suas consequências clínicas Rev Port Clin Geral 2004;20:669-72 669 REVISÕES DIAGNÓSTICO A IU é definida pela presença de bactérias, em número considerado significativo, na urina colhida de modo asséptico, associada a sintomatologia clínica concordante. O diagnóstico de presunção ou suspeita de IU é baseada em sintomas e sinais clínicos e apoiado por alguns dados analíticos, enquanto se aguarda pelo resultado, confirmatório, da urocultura. No Quadro I encontram-se os sintomas e sinais clínicos mais importantes da IU na criança. A IU alta (pielonefrite aguda) acompanha-se habitualmente de «envolvimento sistémico», com febre elevada, dor abdominal/lombar e vómitos. Na criança com menos de dois anos que apresenta uma síndrome febril sem causa aparente, há que pensar sempre em IU. Alguns parâmetros laboratoriais podem ser úteis no que diz respeito à localização da infecção. Assim, uma leucocitose com neutrofilia, uma PCR positiva, uma VS elevada e uma baixa osmolaridade urinária, apontam para uma localização alta < 2 anos > 2 anos 670 QUADRO II QUADRO III INTERPRETAÇÃO DA ANÁLISE SUMÁRIA DA URINA UROCULTURA POSITIVA Piúria Bacteriúria Piúria + Bacteriúria Nitritos Esterase leucocitária Nitritos + Esterase leucococitária Sensibilidade Especificidade 73% 81% 81% 83% 99% 70% 53% 98% 83% 78% 93% 72% da infecção urinária (pielonefrite). A análise sumária da urina é útil, como coadjuvante, no diagnóstico de IU, sendo de valorizar a presença de: • piúria (≥ 10 leucócitos/mm3, em amostra de urina fresca)12; • bacteriúria (≥ 1 bacilo gram – /10 campos na objectiva de imersão, em amostra de urina fresca)13; • reacções de nitritos e de esterase leucocitária positivos (fita diagnóstica). A presença de qualquer um destes parâmetros é sugestiva, mas não diagnóstica de IU (Quadro II). A confirmação do diagnóstico é feita apenas por urocultura, com quantificação do número de colónias e TSA, realizada numa amostra de urina corQUADRO I rectamente obtida14 (Quadro III). Daí a SINAIS E SINTOMAS DE INFECÇÃO URINÁRIA maior importância dada à obtenção de Importantes Inespecificos uma mostra de urina Irritabilidade/apatia Febre elevada sem foco válida na criança com Vómitos Envolvimento do estado geral suspeita de IU. Alteração do “hábito miccional” Diarreia Se isso é relativaMá evolução ponderal Choro durante a micção mente fácil na crianUrina turva e com “mau cheiro” ça maior, através da Febre elevada Vómitos colheita do jacto méDor abdominal difusa Frequência, urgência, disúria dio de urina, após Enurese limpeza adequada da Dor lombar área periuretral, já na Urina turva e com “mau cheiro” criança mais peque- Rev Port Clin Geral 2004;20:669-72 Contagem Probabilidade Modo de de colónias de infecção colheita (puras) (%) Punção vesical ≥1 > 99% Cateterismo uretral ≥ 5 x 104 95% Jacto médio ≥ 105 90-95% na, sem controle esfincteriano, a colheita de urina é mais complicada. É habitualmente recomendado, nestas crianças, a colheita de urina por métodos invasivos (punção vesical e cateterismo uretral)14. A colheita de urina por saco colector, de grande valor quando negativa por permitir afastar o diagnóstico de IU (sensibilidade de 100%), apresenta, no entanto, uma elevada taxa de resultados falso-positivos (85%), não devendo ser utilizada em situações que exijam um início imediato de antibioterapia14. ACTUAÇÃO /TRATAMENTO EDITORIAIS O tratamento da IU deve ser iniciado o mais precocemente possível e sempre após colheita de urina para urocultura. O seu objectivo é controlar e aliviar sintomas, evitar o aparecimento de cicatrizes e erradicar o agente do tracto urinário15. O tratamento é inicialmente instituído de forma empírica e logo que possível ajustado de acordo ao TSA. O antibiótico a escolher deverá ser aquele que actue sobre as estirpes mais frequentemente infectantes do tracto urinário (Quadro IV) e que com uma posologia cómoda e menos efeitos acessórios assegure uma boa concentração na urina e no sangue, e não origine facilmente o aparecimento de estirpes resistentes. REVISÕES QUADRO IV ETIOLOGIA DA INFECÇÃO URINÁRIA Gram negativos (95%) • Escherichia coli • Klebsiella pneumoniae • Proteus mirabilis Gram positivos (5%) • Enterococci • Staphylococci As Secções de Nefrologia e Infecciologia da Sociedade Portuguesa de Pediatria propõem os esquemas terapêuticos referidos no Quadro V. De um modo geral, se a criança se apresenta com quadro séptico, desidratada, com intolerância da via oral e ainda nas situações sugestivas de pielonefrite abaixo dos seis meses, ou com antecedentes de patologia nefro-urológica, a colheita da urina, para cultura, deve ser feita rapidamente, por cateterismo uretral ou por punção vesical (na criança pequena) ou por jacto médio (na criança maior) e a terapêutica antibiótica deve ser iniciada rapidamente e por via parentérica15,16, sendo necessário recorrer à hospitalização. Se a criança apresenta um bom estado clínico, pode proceder-se à colheita de urina, por jacto médio (criança maior) ou através de saco colector colocado na região perineal (criança pequena), após lavagem adequada da zona com sabão e água, e colher uma amostra de urina para análise sumária de urina e para urocultura. A análise sumária da urina não substitui a urocultura, mas vai permitir seleccionar as crianças que deverão iniciar tratamento antibiótico de imediato, enquanto se aguarda o resultado da urocultura. Se a análise sumária da urina for normal, a criança pode ser vigiada, sem necessidade de realização de urocultura17. Se for sugestiva de IU, deve proceder-se, idealmente, à colheita de urina por cateterismo uretral ou punção vesical (na criança pequena). Em todos os casos a terapêutica empírica deve ser ajustada de acordo com o TSA da urocultura obtida e a duração do tratamento ser em média de 10 dias. Sugere-se, habitualmente, nova urocultura ao segundo ou terceiro dia de terapêutica e cinco dias após a interrupção desta. A esterilização da urina e o desaparecimento dos sintomas 48 a 72 horas após o inicio do tratamento indicam boa resposta ao antibiótico utilizado. Não se observando essa melhoria na evolução, as seguintes possibilidades deverão ser consideradas, após realização de outra urocultura: • resistência bacteriana ao antibiótico utilizado – Substituir o antibiótico, se possível, segundo a orientação do antibiograma; • concentração inadequada da droga no local da infecção, por dose insuficiente ou por menor filtração glomerular; • presença de obstrução (levando a estase urinária e consequente manutenção do processo infeccioso) – Realização imediata de exploração ecográfica do trato urinário e correcção da alteração. Após o tratamento da IU a criança deve iniciar quimioprofilaxia18 (habitualmente com trimetoprim ou nitrofurantoína) e ser orientada para uma consulta de especialidade, a fim de ser feita a investigação morfológica e funcional do tracto urinário. O seguimento destas crianças exige, além da investigação imagiológica, a realização periódica de uroculturas, para rastreio de recorrências que ocorrem em 30-50% dos casos19, principalmente nos seis primeiros meses após o tratamento inicial, e que podem ser assintomáticas em até metade dos casos. QUADRO V TRATAMENTO DA INFECÇÃO URINÁRIA < 1 mês 1-3 meses > 3 meses Ampicilina EV + Gentamicina EV/Ceftriaxona EV Cefuroxima EV + Gentamicina EV Cefuroxima EV ( + Gentamicina, se presentes factores de risco) Internamento Cefuroxima axetil VO IU alta Cefixime VO Ambulatório Ceftibuteno VO Cefadroxil VO IU baixa Cefaclor VO Cefradina VO EV – endovenoso, VO – via oral REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS EDITORIAIS 1. 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Thus the diagnosis must be adequately made, through the culture of a properly taken urine sample, as a means to avoid false positive diagnoses and unnecessary investigations and treatments. The correct diagnosis and early treatment reduce the risk of permanent renal lesion and its consequences. Key Words: Children; urinary tract Infection; urine culture. 672 Rev Port Clin Geral 2004;20:669-72 17. Berg UB. Long-term follow-up of renal morphology and function in children with recurrent pyelonephritis. J Urol 1992; 148:1715--20. 18. Birmingham Reflux Study Group. Prospective trial of operative versus nonoperative treatment of severe vesicoureteric reflux in children: five years observation. BMJ 1987; 295:237-41. 19. Panaretto K, Craig J, Knight J, Howman--Giles R, Sureshkumar P, Roy L. Risk factors for recurrent urinary tract infection in preschool children. J Paediatr Child Health 1999; 35:454-9. Endereço para correspondência: Serviço de Pediatria do Hospital do Barlavento Algarvio Sítio do Poço Seco 8500-338 Portimão [email protected] Recebido em 23/01/04 Aceite revisto para publicação em 08/07/04