Abscesso Hepático e sepse de origem abdominal Jorge Luiz Nobre Rodrigues Milena Santana Girão Evelyne Santana Girão 1. Introdução Os abscessos hepáticos são o tipo mais comum de abcesso visceral, sendo a grande maioria piogênicos (80%), de etiologia polimicrobiana. Abscessos amebianos e fúngicos são menos comuns e ocorrem mais no sudeste da Ásia e na África. No mundo ocidental a incidência do abscesso piogênico hepático é de 0,5-0,8%, sendo encontrado em uma frequência de 20 por 100.000 admissões hospitalares. Coledocolitíase e patologias biliares substituíram a apendicite e a diverticulite como as principais causas de abscessos hepáticos piogênicos. O diagnóstico de abscesso evoluiu muito nas últimas décadas com o avanço na área de imagem (ultra-sonografia, tomografia computadorizada, e ressonância magnética), a melhora nas técnicas microbiológicas e na técnica de drenagem (percutânea ou cirúrgica), determinando uma drástica redução na mortalidade (5 a 30%). No passado, os abscessos eram localizados em ambos os lobos em até 50% dos casos. Hoje, eles são localizados no lobo direito na maioria dos 1,2,3 casos (70 a 75%). 2. Fisiopatologia Apesar de o fígado receber grande aporte sanguíneo tanto da circulação sistêmica quanto da circulação portal, as células de Küpffer alinhadas nos sinusóides hepáticos exercem grande ação clareadora, tornando as infecções relativamente raras. Portanto, fatores predisponentes precisam estar presentes para suplantar este mecanismo natural de defesa. Entre os fatores mais importantes, estão: doença do trato biliar (responsável por 60% dos casos); infecção em território onde a circulação venosa seja tributária do sistema porta, onde êmbolos sépticos seriam carreados até o fígado (24% dos casos); disseminação hematogênica a partir de um foco à distância com bacteremia secundária, principalmente relacionada à endocardite e pielonefrite (15% dos casos); disseminação de um foco contíguo da vesícula biliar, espaço peri-hepático e fístulas intra-abdominais (4% dos casos); de natureza criptogênica ou idiopática (20%). No Brasil e em outros países subdesenvolvidos, casos relacionados a parasitas (Schistosoma mansoni, Toxocara canis e Ascaris lumbricoides) já foram descritos. O lobo direito é acometido mais frequentemente (2:1) que o lobo esquerdo. Envolvimento bilateral ocorre em apenas 5% dos casos, atualmente, o mesmo percentual para lesão solitária no lobo esquerdo. 1,3 3. Manifestações clínicas O quadro clínico pode ser agudo, mas em geral possui duração de mais de duas semanas. Os sinais e sintomas mais freqüentes são: febre, calafrios (90%), anorexia, perda de peso. Metade dos pacientes apresenta dor abdominal no hipocôndrio direito. Outros sintomas como tosse, soluço, dor referida no ombro direito, dor tipo pleurítica podem alertar para o envolvimento pleuropulmonar como complicação do abscesso hepático. As lesões solitárias (única) podem ter um curso mais indolente, que suscitam a investigação de uma febre de origem indeterminada, muitas vezes tendo as lesões malignas como principal hipótese. Ruptura do abscesso não é comum, porém ocorre com mais frequência quando a etiologia é a Klebsiella pneumoniae. No exame físico, os principais sinais, além da febre, são a hepatomegalia dolorosa, sinal de Torres Homem (punho percussão dolorosa no local do abscesso) e esplenomegalia que é menos freqüente, e quando presente deve-se afastar a possibilidade de êmbolos sépticos (endocardite infecciosa). A icterícia pode estar presente em até 25% dos casos e usualmente está relacionada à doença biliar concomitante ou quando ocorrem múltiplos 1,3 abscessos. 4. Bacteriologia A etiologia polimicrobiana, com participação de aeróbios e anaeróbios é o mais usual. Os agentes mais comuns são gram-negativos entéricos, Streptococcus milleri e Bacteroides spp. As enterobactérias são mais prevalentes quando a infecção é de origem biliar, sendo mais freqüente a Escherichia coli, seguida pela Klebsiella spp. O papel dos anaeróbios vem crescendo com o desenvolvimento de melhores técnicas de cultivo desses patógenos, com índices de isolamentos superiores a 45% dos casos, em geral associados com outras bactérias (infecções mistas). Dentre os anaeróbios destacam-se os Bacteroides sp. Fusobacterium sp e estreptococos microaerófilos. O Staphylococcus aureus é mais freqüente quando a disseminação é hematogênica como nas endocardites. Alem disso, é o agente mais comum em pacientes jovens e nas lesões oriundas de traumatismo hepático. Diferente de outras etiologias bacterianas, a K. pneumoniae é usualmente de origem primária e criptogênica. Nas últimas três décadas essa bactéria tem sido a principal causa de abscesso piogênico hepático, principalmente 1,3 em países asiáticos. Entre os fungos, a Candida albicans é o destaque, ocorrendo principalmente em pacientes com exposição prolongada a antimicrobianos, com doença hematológica maligna, em transplantados de órgão sólido e em pacientes com imunodeficiências. A origem provável desses casos é a colonização intestinal com candidemia portal secundária. Outros microorganismos mais raros são Actinomyces sp, Eikenella corrodens, Yersinia enterocolitica, Salmonella typhi, Brucella melitensis, 1,2,3 Mycobacterium sp e Listeria monocytogenes. 5. Diagnóstico Os achados laboratoriais e de imagem são fundamentais para elucidação diagnóstica. O hemograma costuma mostrar anemia e leucocitose com neutrofilia em 1/3 dos casos. Observa-se elevação de fosfatase alcalina (90% dos casos), elevação de aminotransferases e de bilirrubinas (50% dos casos) e hipoalbuminemia (33% dos casos). A hemocultura é positiva em aproximadamente 50% dos pacientes, sendo a cultura do material do abscesso a meta principal para o diagnóstico microbiológico e orientação do esquema ATM. A radiografia de tórax pode mostrar atelectasias basais, elevação hemi-diafragmática à direita e derrame pleural homolateral em até 50% dos casos. A radiografia do abdômen pode demonstrar ar na projeção hepática, correlacionando-se com o gás na cavidade do abscesso. A ultra-sonografia e a tomografia computadorizada com contraste são os melhores métodos de imagem para o estudo do abscesso hepático, servindo para guiar as punções aspirativas ou drenagens percutâneas. A ultra-sonografia tem sensibilidade de 80 a 90%, o aspecto é de uma massa hipoecóica ou hiperecóica com bordas irregulares e, algumas vezes, com septações e debris no interior (Figura 1). O achado de lesão hipoecóica com calcificação central tem sido relacionado etiologicamente com Brucella melitensis. O ultra-som abdominal é o método mais utilizado por ser o mais acessível, mais barato e de boa sensibilidade. Evidentemente, por depender do observador, tem sensibilidade variável. É o método mais utilizado no seguimento dos pacientes. Vale ressaltar que mesmo após a drenagem do abscesso, em alguns casos, a cavidade pode demorar até 4-6 meses para normalizar na ultra-sonografia. Figura 1 – Abscesso hepático – lesão heterogênea A tomografia computadorizada tem sensibilidade alta (95 a 100%), as lesões aparecem como áreas bem demarcadas, hipodensas, com um realce periférico quando administrado contraste. Para lesões inferiores a um cm, é o exame de melhor sensibilidade. Gás no interior da cavidade é visto em torno de 20% dos casos. A ressonância magnética pode ser útil em lesões complexas, uma vez que caracteriza melhor a presença de debris, podendo acrescentar informações adicionais em alguns casos. As cintilografias com gálio, tecnécio e índio têm sido utilizadas com sensibilidade de 50-80%, 80% e 90%, respectivamente. De forma geral, os estudos de medicina nuclear não oferecem benefícios em relação aos métodos radiográficos. Há relato de alterações (defeito frio) na cintilografia com leucócitos marcados com Índio-111, na ausência de alterações ultra-sonográficas e tomográficas, que evidenciassem o 1 abscesso, em alguns poucos casos. 6.Tratamento O tratamento consiste na terapia antimicrobiana (ATM) e drenagem do abscesso, podendo ser por punção aspirativa com agulha, drenagem percutânea guiada por ultrasom ou TC, drenagem cirúrgica e em casos selecionados, deve-se indicar a ressecção cirúrgica. O uso do ATM sem a drenagem do abscesso não deve ser a opção, devido à baixa efetividade, recorrência, exceto para pacientes muito críticos sem condições para uma abordagem cirúrgica ou nos casos de múltiplos pequenos abscessos não abordáveis por técnicas percutâneas. Nessas situações, pode-se aguardar uma condição clínica mais favorável para intervenção e organização das múltiplas lesões para abordagem posterior. Do contrário, muitos meses de terapia e exames de imagem seqüenciais serão necessários para uma adequada monitorização do tratamento. Estudos mostram que abscessos com diâmetro superior a três cm devem ser 4 rotineiramente drenados. O tratamento ATM deve ser instituído empiricamente, após a coleta das hemoculturas, direcionado para a cobertura da maioria dos patógenos potencialmente envolvidos. Regimes contendo (amoxacilina-clavulanato, beta-lactâmico com ampicilina-sulbactam, inibidor de betalactamase piperacilina-tazobactam) e cefalosporinas de primeira, segunda ou terceira gerações associadas a metronidazol ou clindamicina são os esquemas preferenciais. Atualmente com aumento da resistência a ampicilina e fluoquinolonas pelas enterobactérias os esquemas preferenciais são cefalosporinas de terceira geração com metronidazol ou a piperacilina –tazobactam como droga única. Opções mais reservadas são os carbapenêmicos (meropenem, imipenem e ertapenem) especialmente para cepas de enterobactérias produtoras de ESBL (beta-lactamase de espectro extendido). Recentemente casos de abscesso hepático causado por P. aeruginosa multirresistente foram descritos. Fatores de risco para essa etiologia incluem patologias hepatobiliares e procedimentos invasivos intraabdominais. Nesses casos, o uso de polimixina associada com outros antibióticos e por um curso de 28 dias foi recomendado. Quando há suspeita de infecção fúngica, Anfotericina B deve ser iniciada, ficando o fluconazol como uma opção. O resultado da cultura e do antibiograma deve orientar, posteriormente, a escolha do tratamento. Um curso de duas a três semanas de antimicrobianos endovenosos, ou até apresentar curso clínico favorável, seguido por duas a seis semanas de antibióticos por via oral. Nos casos de abscessos múltiplos ou de natureza fúngica exige-se o curso mais prolongado (10 a 12 semanas). Critérios clínicos e de imagem são os parâmetros para nortear o tempo de tratamento. Deve-se lembrar de que a restauração da cavidade do abscesso pode demorar até 6 semanas a 6 meses quando acompanhada pelo ultra5,6 som. A drenagem cirúrgica era a base do tratamento até meados da década de 60, e ainda continua sendo indicada se o paciente apresentar sinais de peritonismo, se houver uma patologia cirúrgica abdominal concomitante (ex: abscesso diverticular, apendicular), se falha nas tentativas de aspiração e/ou drenagem percutânea ou na presença de abscessos complicados (multiloculados e de parede espessa). A drenagem cirúrgica por laparoscopia tem sido preconizada, como uma alternativa, em substituição à drenagem cirúrgica aberta, por ser menos invasiva. Contudo, os pacientes precisam ser bem selecionados. A drenagem percutânea pode ser realizada com agulha ou com a colocação de cateter que deverá ser mantido até que a drenagem diária seja mínima. A drenagem percutânea e a cirúrgica associada à ATM de largo espectro são igualmente eficazes no tratamento do abscesso hepático piogênico. Entretanto, vários trabalhos demonstram que a drenagem percutânea apresenta menor morbidade e menor custo, portanto, devendo ser a terapêutica inicial, exceto nas situações já citadas. Os fatores de risco para falha da drenagem percutânea do abscesso são leões maiores que 7,3 cm, presença de gás no interior do abscesso e distância do abscesso até a cápsula hepática 5,6 inferior a 0,25 cm. 7. Abscesso piogênico x amebiano Na avaliação de um paciente com abscesso hepático é importante definir se o abscesso é de origem piogênica ou amebiano, que responde muito bem ao tratamento com derivados imidazólicos, sendo a drenagem reservada para casos específicos (grandes abscessos, ruptura na cavidade). Alguns trabalhos sugerem que os pacientes com abscesso piogênico são mais idosos (acima de 50 anos), se apresentam mais freqüentemente como lesões múltiplas (embora possa ser único), ocorre mais usualmente em indivíduos diabéticos e a sorologia para ameba tende a ser inferior a 1:256. Entretanto, não podemos esquecer que infecção secundária pode ocorrer em abscesso amebiano, principalmente por anaeróbio, num percentual que varia de 5 a 5,6 15%. 8.Prognóstico A mortalidade dos abscessos hepáticos ainda permanece elevada em algumas séries, chegando a 30 a 40%. Os fatores de mau prognóstico são: hemoglobina menor que 11 g/dl, níveis de bilirrubina maior que 1,5 mg/dl, leucócitos maior que 15.000/mm 3, albumina menor que 2,5 g/dl, tempo de tromboplastina parcial elevado, doença maligna, sepse ou choque séptico. A presença de icterícia tem sido valorizada como marcador de complicação. Pode ocorrer recorrência do abscesso entre 6 a 15% dos casos, sendo mais comum nos abscessos por doenças na árvore biliar. É interessante assinalar que a recorrência pode ocorrer também em decorrência da curta duração doATM, na presença de fistulas ou quando se trata de uma neoplasia abscedada . Sepse de origem abdominal 1. Conceito As Infecções intra-abdominais (IIA) incluem uma variedade de condições patológicas desde uma apendicite não complicada a uma peritonite fecal. Elas surgem principalmente através de uma inflamação ou ruptura do trato gastrointestinal. Menos comumente surgem de infecções ginecológicas ou do trato urinário. São classificadas em complicadas e não complicadas. As não complicadas envolvem um órgão e não disseminam para o peritônio. Nas complicadas, o processo inflamatório atinge o 7 peritônio, causando uma peritonite localizada (flegmão) ou difusa. 2. Epidemiologia A sepse de origem abdominal apresenta morbidade e mortalidade bastante variáveis. Nos casos de sepse grave ou choque séptico, a mortalidade é aproximadamente 25-35%, podendo atingir mais de 70%. O sítio mais comum das IIA em pacientes não hospitalizados é o apêndice, seguido do cólon e depois estômago. Nos pacientes hospitalizados, a principal causa é a ruptura de anastomoses entéricas. Deiscência complica 5-10% das anastomoses intra-abdominais e é associada com aumento da mortalidade. Vários fatores de risco contribuem para a deiscência da anastomose: status do paciente, técnicas cirúrgicas e manejo pós-operatório. Nas IIA relacionadas a assistência a saúde, o sítio mais comum é o cólon, seguido do estômago, pâncreas, intestino delgado e apêndice. Peritonite de origem pancreática tem uma 8,9 mortalidade muito alta, comparada com a de outros órgãos. 3.Patogenia As IIA complicadas usualmente decorrem de quebra da barreira da mucosa do trato digestivo permitindo que a flora intestinal seja inoculada na cavidade abdominal. Há um sinergismo entre bactérias aeróbicas que reduzem o conteúdo de oxigênio e facilitam o crescimento de bactérias anaeróbicas, associada a presença de substâncias propícias para este como fezes, urina e bile. 4. Etiologia As IIA geralmente são polimicrobianas. O perfil microbiológico depende do sítio do TGI acometido (intestino delgado ou grosso). É essencial a coleta do material infectado para análise microbiológica principalmente nos pacientes com abscessos ou infecções complicadas em uso prévio de ATM ou fatores de risco para germes multirresistentes. A flora colônica é muito comum nas IIA, devido a elevada frequência de doenças deste sítio, como apendicite,e diverticulite. As bactérias predominantes são coliformes (E.coli, Klebsiella spp, Proteus spp, Enterobacter spp), streptococci, enterococci e anaeróbios. O B. fragilis é um anaeróbio altamente invasivo. Perfuração do trato gastrointestinal alto (ex úlcera duodenal perfurada) resulta em infeccção microbiologicamente distinta devido a flora do TGI ser diferente. Os germes que predominam são as bactérias aeróbias e anaeróbias gram – positivas ou Candida spp. Nos pacientes em uso de ATM prévios ou internados são mais comuns patógenos hospitalares como Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumannii. O enterococco é comum em infecções relacionado a assistência a saúde, principalmente pós-operatórias. Candida spp é comum em infecções hospitalares, em pacientes em uso prévio de ATM, imunodeprimidos ou infecções recorrentes. Infelizmente poucos patógenos são isolados, pela não coleta do material e a dificuldade dos laboratórios isolarem tais patógenos. 5. Manifestações clínicas O quadro clínico é muito variável, dependendo da patologia abdominal desencadeante. Os sintomas decorrem da irritação da cavidade abdominal pelo líquido que a invade, independentemente da quantidade deste, assim como pelo aumento da pressão nas alças intestinais. É fundamental uma boa anamnese e um exame físico completo para melhor orientação no diagnóstico.. A dor inicialmente pode ser pobremente localizada e depois progredir para mais intensa e localizada com sinais de irritação peritoneal. Ao exame físico, o abdômen tenso sugere a presença de peritonite. Entretanto, o quadro clínico sozinho, não é às vezes tão exuberante em paciente mais graves, com comorbidades, podendo apresentar somente sinais de alteração do nível de consciência, hipotensão ou oligúria. Sinais indiretos de infecção, como acidose inexplicada, nova disfunção orgânica, inabilidade de tolerar dieta enteral, deve ser considerada como IIA, especialmente se o paciente foi submetido a uma cirurgia abdominal recente. Estes são sinais de alerta que o paciente pode estar evoluindo para 10,11 sepse grave. 6. Diagnóstico O diagnóstico de sepse intra-abdominal é principalmente clínico e este deve ser precoce para minimizar as complicações. Pacientes com sinais clássicos de peritonite difusa, cuja intervenção cirúrgica é necessária, não são necessários exames de imagem adicionais. O Raio X simples de abdômen em ortostase deve ser um exame inicial, que possibilita a identificação de pneumoperitônio (mais comum à direita), resultado de uma perfuração visceral. O Raio X simples tem uma baixa sensibilidade e especificidade para detectar perfurações de intestino e apêndice. Portanto, a TC de abdômen e pelve com contraste deve ser o exame de escolha na avaliação das patologias abdominais. A TC de abdômen além da melhor acurácia diagnóstica, pode guiar uma drenagem percutânea. Para pacientes instáveis, que necessitam de UTI, o Ultrassom de abdômen é o melhor método de imagem recomendado. Uma meta-nálise em 2006 demonstrou que a TC de abdômen tem uma sensibilidade e resolução melhor que US de abdome em adultos e crianças com apendicite aguda. Quando a TC ou US de abdômen não são possíveis, o 11 lavado peritoneal diagnóstico pode ser útil no diagnóstico de IIA complicadas. 7. Tratamento Os princípios básicos do tratamento das IIA complicadas se baseiam na ressuscitação volêmica dos pacientes com síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS), no controle do foco infeccioso, com remoção dos tecidos infectados e/ou necrosados e na administração precoce de ATM. A intervenção cirúrgica e/ou drenagem percutânea são fundamentais no manejo das IIA, com algumas exceções, tais como a peritonite bacteriana espontânea. Essas abordagens, além de terapêuticas, também possibilitam a coleta de material para exames microbiológicos, com a realização de bacterioscopia e culturas, possibilitando a identificação do agente etiológico da infecção. A coleta de culturas é particularmente importante nos pacientes com uso prévio de ATM ou submetidos a procedimentos cirúrgicos, devido ao maior risco de desenvolverem infecção por com microrganismos. Os pacientes com peritonite difusa devem ser submetidos à cirurgia de urgência, o mais precoce possível, mesmo queasmedidas de ressuscitação volêmica tenham que ser continuadas durante o procedimento. Sempre que for viável, a drenagem de abscessos por via percutânea deve ser preferida. Em pacientes selecionados, clinicamente estáveis, e com foco infeccioso bem delimitado (ex.fleimão peri-apendiculars ou peri-colônico), pode-se optar pela terapia antimicrobiana isolada, sem drenagem do foco, desde que esse pacientes tenham um 10 acompanhamento clínico rigoroso. Terapia antimicrobiana empírica O esquema ATM inicial para a maioria das IIA é empírico. Pacientes com sepse devem receber ATM o mais precoce possível, idealmente na primeira hora do atendimento, logo após a coleta de hemoculturas, seguindo as diretrizes internacionais 12 do manejo da sepse. Nesse caso, são recomendados ATM de amplo espectro, com atividade contra enterobactérias, anaeróbios e enterococos. A escolha do ATM depende de vários fatores, dentre eles: a localização anatômica do foco infeccioso, a origem da infecção (se comunitária ou associada à assistência à saúde), a presença de fatores de risco para infecção por bactérias multirresistentes, o perfil local de resistência antimicrobiana e a presença de fatores de risco para complicações. Várias condições clínicas foram associadas a desfechos desfavoráveis em pacientes com IIA, tais como: idade avançada (>70 anos), retardo na abordagem terapêutica (> 24h), incapacidade de controle do foco ou desbridamento incompleto, presença de comorbidades, 13 hipoalbuminemia e desnutrição. Infecções comunitárias leve a moderadas, sem fatores de risco para complicações Pacientes com IIA comuntárias, sem gravidade e sem os fatores de risco para complicações citados acima, não necessitam de ATM com cobertura para germes resistentes. Da mesma forma também não está indicado ATM com ação específica contra enterococos, visto que vários estudos demonstraram desfechos clínicos semelhantes quando comparados esquemas terapêuticos com e sem cobertura para esse agente, nessa população específica. O uso de ATM com atividade contra anaeróbios está indicado nas infecções no intestino delgado distal, apêndice e cólon e nas perfurações do trato digestivo proximal, na presença de obstrução ou íleo adinâmico. Ampicilina-sulbactam não é mais recomendada para uso empírico nas IIA, segundo o Consenso da Sociedade Americana de Doenças Infecciosas de 2010, devido 10 às altas taxas de resistência da E. coli da comunidade a esse agente. No entanto não dispomos, até o momento, de dados epidemiológicos locais ou diretrizes nacionais que embasem essa conduta. Esquemas com ATM orais (ex. Fluoroquinolona + metronidazol) são alternativas para pacientes com IIA leve a moderada, sem fator de risco e sem quadro de sepse (tabela 1). Infecções comunitárias de alto risco Pacientes com IIA graves adquiridas na comunidade ou em pacientes de alto risco para complicação necessitam de cobertura antimicrobiana mais ampla. Recomenda-se ATM com espectro contra P.aeruginosa e Enterobacteriaceae produtoras de beta lactamase de espectro extendido (ESBL), além da cobertura contra enterococos e anaeróbios (tabela 1). A cobertura para S. aureus meticilino-resistente (MRSA) geralmente não é necessária, mesmo naqueles indivíduos sabidamente colonizados por tais agentes. As taxas de resistência das enterobactérias aos ATM é elevada em vários continentes, especialmente na América Latina e no Brasil, com prevalência crescente de enterobactérias resistentes a quinolonas e produtoras de ESBL em infecções na comunidade. Devido a sua boa penetração tecidual e amplo espectro de ação, a tigeciclina é uma boa alternativa para tratamento das infecções peritoneais. No entanto, em pacientes com sepse e choque séptico, o uso tigecilcina foi associada a maior mortalidade, sendo contra-indicada como monoterapia em infecções grave, devido à 14 dificuldade em alcançar níveis séricos adequados. Tabela 1. Esquemas de antibioticoterapia empírica para infecções intra-abdominais comunitárias _______________________________________________________________ Paciente de Baixo-risco Paciente de Alto-risco _____________________________________________________________________________ Esquema com 1 antibióticos Ertapenem, 1 g, EV, 1x/ dia Imipenem 500mg, EV, 6/6h Pip-tazob, 4,5 g, EV, 8/8 h Meropenem 1-2g, EV, 8/8h Moxifloxacina,400mg,EV,1x/d Pip-tazob,4,5g,EV,6/6h Esquemas com 2 antibióticos Ceftriaxona 2g, EV, 1x/dia OU Cefepime 2g,EV, 8/8h OU Cefuroxima 1,5 , EV,8/8h OU Ceftazidima ,2g,EV, 8/8h OU Cefotaxima 1-2g, EV, 6/6h OU Cipro 400mg,EV,12/12 OU Ciprofloxacina 400mg,EV,12/12h OU Levofloxacina,750 mg,EV, 1x/d Levofloxacina 750mg, EV,1x/d OU + + Metronidazol 500 mg, EV , 8/8h Metronidazol 500 mg, EV , 8/8h ______________________________________________________________ Infecções associadas à assistência a saúde Nesse grupo de pacientes a probabilidade de infecção por germes multirresistentes é alta. Além da cobertura contra enterococos e anaeróbios, os esquemas empíricos devem incluir ATM com espectro para bacilos Gram-negativos resistentes, tais como P. aeruginosa e Enterobacteriaceae produtoras de ESBL (tabela 3). Esquemas contendo cefalosporinas não têm atividade contra enterococos, dessa forma, ampicilina ou vancomicina devem ser adicionadas para a cobertura de enterococos até que os resultados da cultura estejam disponíveis. Em pacientes sabidamente colonizados por Entercococcus spp resistentes à vancomicina (VRE), antibióticos específicos (ex. linezolida ou daptomicina) devem ser adicionados. Da mesma forma, pacientes colonizados com MRSA ou de alto risco para tal devem receber esquema empírico contendo vancomicina, idealmente. Se o paciente for colonizado por bacilos Gram-negativos panrresistentes, deve ser adicionado ao esquema um aminoglicosídeo, polimixina, ou a combinação de um novo beta-lactâmico com inibidor de beta-lactamase (ex.ceftazidima-avibactam). Tabela 3. Esquemas de antibioticoterapia empírica para infecções intra-abdominais associadas à assistência a saúde _______________________________________________________________ Esquemas com um antibiótico Dose Imipenem-Cilastatina 500 mg, EV, 6/6 h Meropenem 1-2g, EV, 8/8h Piperacilina-tazobactam 4,5g , EV, 6/6h Esquemas com dois antibióticos Cefepime OU 2g , EV, 8/8h Ceftazidima OU 2 g , EV,8/8h + Metronidazol 500 mg, EV, 8/8h + Ampicilina OU 2g, EV, 6/6h Vancomicina 15-20 mg/kg, EV, 8-12 h _______________________________________________________________ Terapia antifúngica Terapia antifúngica é recomendada para pacientes com infecções comunitárias graves ou associadas a assistência a saúde, se houver crescimento de Candida spp em material intra-abdominal. O fluconazol é a droga de escolha caso Candida albicans for isolada. Uma equinocandina (caspofungina, micafungina ou anidulafungina) está indicada para espécies de Candida spp resistentes a fluconazol e para pacientes 10 críticos, enquanto se aguarda identificação da levedura e o seu perfil de sensibilidade. Terapia antimicrobiana específica A escolha do ATM específico se baseia no resultado das culturas e testes de sensibilidade antimicrobiana. A maioria dos esquemas de ATM recomendados tem eficácia semelhante. Uma meta-análise que incluiu 40 estudos randomizados, controlados, que avaliou 16 esquemas ATM diferentes no tratamento de peritonite 15 secundária em adultos evidenciou sucesso clínico equivalente entre os ATM. Recomenda-se o ajuste do esquema após o resultado das culturas para ATM de espectro mais estreito (descalonamento) com menor impacto na seleção de cepas resistentes. Cobertura contra anaeróbios muitas vezes é continuada, mesmo na ausência de anaeróbios em culturas, principalmente se as mesmas foram obtidas após o início do ATM com ação contra anaeróbios. A duração do tratamento A duração do tratamento ATM depende do controle efetivo do foco infeccioso abdominal. Quando a fonte de infeccção foi adequadamente abordada, com remoção do material contaminado, o tempo de ATM geralmente se limita a quatro a cinco dias. A eficácia do curso curto de ATM foi recentemente demonstrada no estudo STOP-I (Study to Optimize Peritoneal Infection Therapy), onde 518 pacientes com IIA complicada e controle adequado do foco infeccioso foram randomizados para receber ou um curso fixo de ATM de 4 ± 1 dias (grupo experimental) ou ATM até dois dias após resolução da febre, leucocitose e íleo, com um máximo de 10 dias de ATM (grupo controle). A duração média de ATM foi de quatro dias no grupo experimental contra oito dias no grupo controle. As taxas de infecção de sítio cirúrgico, recorrência da infecção intra-abdominal ou morte foram semelhantes em ambos os grupos (21,8% no grupo experimental contra 16 22,3% no grupo de controle). Entretanto existem várias situações onde um curso longo de ATM é recomendado. Em pacientes nos quais o controle do foco infeccioso não for adequado, o tempo ideal de ATM é incerto, e as decisões devem ser individualizadas caso a caso. Pacientes com apendicite não complicada, que não se submetem à cirurgia imediata, recomenda-se um curso de ATM de 10 dias, a partir de vários estudos que 18 sugerem a segurança desta abordagem em pacientes selecionados. Pacientes onde o controle da fonte infecciosa não pode ser alcançada, o uso de ATM por tempo prolongado não parece trazer benefício. O prognóstico de pacientes com IIA complicadas com sepse depende do diagnóstico precoce, ressuscitação volêmica adequada, início imediato dos ATM e, sobretudo, do controle cirúrgico do foco infeccioso. 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