Uma jornada até Plutão - Revista Pesquisa Fapesp

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ciência astronomia y
Uma jornada
até Plutão
Bem-sucedida na tarefa de observar o planeta
anão, a sonda New Horizons precisou resistir
a ameaças de cancelamento da missão
Salvador Nogueira
A
conclusão bem-sucedida da primeira missão a Plutão foi amplamente
noticiada, mas quase nada se disse do trabalho que deu chegar até
lá – tanto os desafios tecnológicos
quanto os políticos. A sonda New Horizons foi
um dos projetos mais arrojados – e ameaçados
– já levados a cabo pela Nasa, a agência espacial
norte-americana. A espiadela no planeta (ou ex-planeta, conforme decisão da União Astronômica
Internacional) sobre o qual se sabia muito pouco
já revelou traços de uma geografia e uma composição surpreendentes e promete muito mais para
os próximos tempos. Os resultados devem deixar
cientistas do mundo todo bastante ocupados por
pelo menos uma década.
O desafio técnico, por si só, já foi extraordinário. Partindo da Terra, a sonda precisava ser
conduzida pelo espaço de forma a atravessar um
retângulo imaginário de 150 por 100 quilômetros
(km) localizado a quase 5 bilhões de km daqui.
Numa comparação ilustrativa apresentada por
44 z agosto DE 2015
Glen Fountain, gerente de projeto da New Horizons, era como dar uma tacada de golfe em Nova York e acertar o buraco em Los Angeles – na
primeira tentativa.
E o que aconteceria se a sonda não passasse por
essa área imaginária, em sua aproximação final a
Plutão? Basicamente, ela apontaria os instrumentos para o espaço vazio, uma vez que seus objetos
de estudo não estariam nos locais previstos. Toda
a programação de observações tinha de ser automatizada e armazenada nos computadores da
sonda dias antes da aproximação máxima, sem
margem para correções de última hora.
Em certo sentido, a New Horizons reproduziu
o sucesso obtido pelas sondas Voyager 1 e 2, que
nos anos 1970 e 1980 visitaram os quatro maiores
planetas do Sistema Solar – Júpiter, Saturno, Urano
e Netuno –, antes de deixar para sempre o Sistema
Solar. Ocorre que o nível de precisão requerido para uma missão a Plutão é maior. Não só ele estava
mais distante que qualquer dos alvos visitados pela
Voyager como se move mais devagar, o que torna
NASA/JHUAPL/SwRI
mais difícil determinar com precisão a órbita em
torno do Sol e, com isso, sua posição a cada momento. O sistema plutoniano era tão desconhecido que, quando a sonda começou a ser preparada,
em 2001, só a maior de suas luas, Caronte, era conhecida. Em 2005, por ocasião de observações de
reconhecimento feitas com o Telescópio Espacial
Hubble, os astrônomos encontraram mais duas:
Nix e Hidra. E somente em 2011 e 2012, quase na
reta de chegada da New Horizons, as duas últimas
conhecidas – Cérbero e Estige – foram achadas.
É bem possível que as imagens da New Horizons
revelem mais objetos nas redondezas. “Acredito
que, com as imagens que ainda serão enviadas, há
grandes chances de se descobrir novos satélites”,
diz a especialista em dinâmica orbital Silvia Giuliatti Winter, da Universidade Estadual Paulista
(Unesp) em Guaratinguetá.
Modelos computacionais elaborados por
ela ajudaram a equipe da New Horizons a
planejar a travessia mais segura da região durante o sobrevoo, conforme a sonda se apro-
ximou a apenas 12,5 mil km da superfície do
planeta anão (ver Pesquisa FAPESP nº 210).
Durante os anos que antecederam o lançamento, contudo, a maior ameaça à missão foi bem mais
prosaica: cortes no orçamento da agência feitos
pelo governo norte-americano. Em 2000, a Nasa
decidiu cancelar o projeto então em andamento,
chamado Pluto Kuiper Express, conduzido pelo
Laboratório de Propulsão a Jato (JPL). Mas os
congressistas americanos, que historicamente
se mobilizam em favor de expedições de ciência
planetária, restituíram a missão, e a Nasa lançou um anúncio de oportunidade solicitando
ideias com custo mais baixo. Daí nasceu a New
Horizons, operada pelo Laboratório de Física
Aplicada (APL) da Universidade Johns Hopkins,
nos Estados Unidos. Foi a chance de Alan Stern,
cientista-chefe da missão, pôr em prática planos
que ele já elaborava desde 1989.
Ainda que a etiqueta de preço tenha ficado
mais barata que a antiga Pluto Kuiper Express,
foram gastos respeitáveis US$ 720 milhões. E
Primeira
imagem da
atmosfera
plutoniana,
obtida sete
horas depois da
aproximação
máxima: mais
nebulosa e mais
alta do que
o previsto
pESQUISA FAPESP 234 z 45
1
Retrato oficial:
área em forma
de coração
ganhou o nome
de Tombaugh
Regio
mesmo depois da oficialização da missão, em
2001, ela passou por apuros. Em 2002, a Casa
Branca (então ocupada por George W. Bush) tentou mais uma vez cancelar a missão. O Congresso,
novamente, não deixou. Os resultados científicos,
e por que não dizer midiáticos, observados a partir de julho de 2014 foram fruto direto daquelas
intervenções providenciais dos parlamentares
americanos.
produzir um objeto daqueles por ali, há 4,5
bilhões de anos. A questão ainda é controversa.
Controvérsias e surpresas é que não faltaram já
nas primeiras imagens colhidas durante a aproximação final. Elas revelaram um cenário geológico
bastante inesperado. Cadeias de montanhas de
gelo de água e terrenos geologicamente jovens,
com menos de 100 milhões de anos, contrastam
com regiões mais escuras e cheias de crateras,
representando terrenos intocados por bilhões de
anos. Tudo indica que ainda há processos movidos por calor interno em Plutão, algo difícil de
explicar pelos atuais modelos geofísicos. O que
se vê na superfície desse pequeno mundo com
2.372 km de diâmetro, que deveria estar geologicamente morto, pode até sinalizar a existência
de um oceano de água líquida sob as profundezas de sua enorme crosta de gelo. “Parece que o
Sistema Solar resolveu guardar o melhor para o
final”, brincou Alan Stern em uma das muitas entrevistas coletivas concedidas para apresentar os
primeiros resultados científicos da New Horizons.
Quanto à superfície, ela parece conter gelos de
diversas substâncias – água no caso das montanhas, mas sobretudo metano e outros compostos
orgânicos, nitrogênio e monóxido de carbono.
Aparentemente, este último é um componente
importante da área mais brilhante e lisa de Plutão, batizada pela equipe da sonda de Tombaugh
Regio, em homenagem ao descobridor do planeta
anão, o astrônomo americano Clyde Tombaugh.
A TERCEIRA ZONA
A exploração de Plutão marca a primeira visita de uma espaçonave a um território até então
inexplorado do Sistema Solar. Nas regiões mais
internas ficam os planetas rochosos, dos quais a
Terra é o maior representante. Indo mais longe,
há os planetas gigantes gasosos, dos quais Júpiter é o maior. E, cruzando a órbita de Netuno,
temos um agregado com centenas de milhares
de objetos, o chamado cinturão de Kuiper, do
qual Plutão é o maior representante.
“A passagem da sonda é um marco no conhecimento da chamada Terceira Zona do Sistema
Solar”, diz Silvia. “Acredito que os dados enviados
pela sonda New Horizons nos trarão surpresas
de Plutão e do próprio cinturão de Kuiper. Provavelmente teremos de rever e adequar os modelos
dinâmicos de formação e evolução dos objetos
do Sistema Solar.”
Num trabalho recente, publicado no início de 2015, a pesquisadora da Unesp e seus
colegas sugeriram que Plutão poderia ter se
formado numa região mais interna do Sistema
Solar e só depois teria migrado para o cinturão
de Kuiper, sem que isso acarretasse a perda
de seus satélites. Há razões para desconfiar
que o planeta anão não seja mesmo nativo do
cinturão de Kuiper, pois faltaria massa para
46 z agosto DE 2015
2
fotos NASA/JHUAPL/SwRI 2 e 3 arquivos observatório lowell
Clyde Tombaugh
no observatório
Lowell (esq.), onde
em 1930 descobriu
o planeta batizado
por sugestão
de Venetia Burney,
11 anos, transmitida
por telegrama
do astrônomo
H. H. Turner
Os pesquisadores também encontraram algu- “O Alice consegue medir a atmosfera até uns 170
mas surpresas na atmosfera de Plutão. Alguns dos km de altitude, e com ocultações conseguimos
modelos atmosféricos sugerem que o ar plutonia- ir o resto do caminho, até próximo à superfície.”
O brasileiro espera que a incrível fonte de dano poderia ser um fenômeno apenas temporário,
que se congela e colapsa quando se aproxima do dos que será a New Horizons servirá para deafélio (ponto mais distante do Sol), voltando a se cifrar o estado atual da atmosfera de Plutão. A
vaporizar no periélio (ponto mais próximo do partir daí, com novas ocultações estelares, será
Sol). Verificar essa hipótese foi um dos argumen- possível investigar como ela evolui com o passar
tos que salvaram a missão do cancelamento em do tempo, para então verificar processos como
2002. Agora, 25 anos depois do último periélio, o hipotético colapso temporário da atmosfera.
é um bom momento para
Caronte, a maior das
analisar a atmosfera e tesluas, também se revelou
tar os modelos. Com os daespecialmente intrigante.
dos colhidos, ainda não foi
A superfície não é tão repossível determinar se isso
novada quanto a de Plutão,
Tudo indica que
realmente ocorre. Mas já
mas ainda assim é mais joainda há
sabemos que ela é um pouvem do que o esperado, e
co mais fria e menos espesuma região escura no poprocessos movidos
sa do que se imaginava.
lo é um mistério completo
Um dos cientistas brapara os cientistas.
por calor interno
sileiros mais interessados
nesses resultados em parem Plutão
O FUTURO
ticular é Felipe Braga-RiO nível de empolgação
bas, da Universidade Tecdos cientistas com os danológica Federal do Parados produzidos pela sonná (UTFPR), em Curitiba.
da lembra o de uma torciEle estuda fenômenos coda em final de campeonanhecidos como ocultações estelares – momentos to. Literalmente. “Na semana do sobrevoo, após a
em que objetos do cinturão de Kuiper, como Plu- última conferência da Nasa, eu e o pessoal da equitão, passam à frente de uma estrela mais distante, pe de que faço parte fomos com todos os memcom relação ao campo de visada aqui na Terra. bros do time da New Horizons assistir a um jogo
Ao observar o padrão de obscurecimento da es- de beisebol do Nationals, em Washington”, conta
trela conforme ela se esconde primeiro atrás da André Amarante, pesquisador do grupo da Unesp
atmosfera, depois atrás da superfície de Plutão, é de Guaratinguetá e que no momento faz uma parte
possível inferir propriedades atmosféricas como do doutorado na Universidade de Maryland, em
pressão ou temperatura.
Laurel (mesma cidade que sedia o APL).
“Os dados das ocultações estelares complemen“O jogo teve de ser paralisado algumas vezes
tam aqueles obtidos pelo instrumento Alice da por falta de energia, e enquanto isso o Alan Stern
New Horizons, de ultravioleta”, diz Braga-Ribas. começou a mostrar para as pessoas imagens de
Plutão, diretamente do seu celular. Foi demais!
Agora sabemos onde chega o sinal da New Horizons”, brinca Amarante.
O interesse específico de Amarante é encontrar objetos em regiões estáveis ao redor das luas
conhecidas. “Nas simulações computacionais
que fizemos, descobrimos que existe uma possibilidade real de que em algumas dessas regiões
estáveis possa existir uma população de objetos
denominados troianos, que compartilham a mesma órbita de uma dada lua”, diz. “Por isso estamos
bastante ansiosos pelos dados da New Horizons.”
A ansiedade ainda deve durar por um bom tempo. Transmitindo dos confins do Sistema Solar,
a taxa de envio de dados é inferior à das antigas
conexões de internet discada. Até baixar completamente os 5 gigabytes produzidos durante
a passagem por Plutão, será preciso esperar 16
meses. A julgar pelo que chegou até agora, vai
valer a pena. n
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