direito e democracia

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DIREITO E DEMOCRACIA
Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA
Vol. 2 - Número 1 - 1º semestre de 2001
ISSN 1518-1685
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DIREITO E DEMOCRACIA
Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA
Editor
Plauto Faraco de Azevedo
Editor Associado
César Augusto Baldi
EDITORA DA ULBRA
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Diretor: Valter Kuchenbecker
Capa: Everaldo Manica Ficanha
Projeto Gráfico e Editoração: Isabel Kubaski
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Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA)
Vladimir Passos de Freitas (UFPR)
Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do Brasil – Ciências
Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000.
Semestral
1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil - Ciências Jurídicas.
CDU 34
CDD 340
Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas
Índice
3
Editorial
Artigos
7
O centenário do “Méthode d’interprétation et sources en droit privé
positif” ~ Luiz Luisi
15
O princípio da diversão penal: um viés lusitano ~ Jayme Weingartner Neto
61
Do ensino jurídico: conhecimento e produção criativa do direito ~
Plauto Faraco de Azevedo
73
Argüição de descumprimento de preceito fundamental- alguns aspectos
controversos ~ Ingo Sarlet
97
A teoria da imprevisão e a nova codificação ~ Maria Regina Santini
Martins
117
Juizados Especiais Criminais: uma abordagem sociológica sobre a
informalização da Justiça Penal no Brasil ~ Rodrigo Ghiringhelli de
Azevedo
141
A violência e os meios de comunicação social ~ Altayr Venzon
149
O direito fundamental de acesso à Justiça ~ Rosanne Gay Cunha
161
Direito Urbanístico como mapa das trilhas da Política Habitacional na
Porto Alegre do Século XX ~ Betania Alfonsin
183
Alimentos transgênicos e o Direito ~ Márcia Fernandes Saitovitch
205
Poluição dos mananciais por dejetos suínos ~ Miguel L. Gnigler
213
El carácter político del control de constitucionalidad ~ Paula Viturro
Documento Histórico
2
241
Declaração de princípios sobre a tolerância (UNESCO, 1995).
249
Normas para publicação
Direito e Democracia
Editorial
Salienta Boaventura de Sousa Santos1 a necessidade de repensar o direito,
de forma a criar novas inteligibilidades para a compreensão da relação existente entre o direito e a sociedade. Destacando que o uso das metáforas acaba
por transformá-las em literalidade, pugna por uma nova cartografia jurídica,
buscando novas conotações para os mais diversos setores do direito, de forma
a trabalhar com as noções de escala, projeção e simbolização. Diz, então, que
a escala cria o fenômeno, as projeções estabelecem novas formas de percepção e que, portanto, a própria simbolização permite a visualização de fenômenos e aspectos que não eram perceptíveis à primeira vista.
A miopia da Escola de Exegese, que somente via na lei o direito todo, é
contestada por François Geny, no artigo de Luis Luisi, que analisa o que é
possível resgatar do pensamento do professor francês, passados mais de cem
anos da publicação de sua obra fundamental. Uma visão voltada para o conhecimento crítico e a produção criativa do direito é a preocupação de Plauto
Faraco de Azevedo, evidenciando a lacuna do desconhecimento da História
do Direito e dos dados configuradores do quadro histórico presente e seus
reflexos na aplicação do direito.
O espelho que maximiza o Direito Penal como solução de todos os problemas sociais e políticos e, portanto, distorce realidades e visibiliza apenas alguns fenômenos, é tratado em dois artigos. Enquanto Jayme Weingartner
Neto discorre sobre o princípio da diversão penal, em que se procuram formas
de desjuridicionalização do procedimento penal, Rodrigo Ghiringhelli de
Azevedo aborda o processo de informalização da Justiça Penal, por meio dos
Juizados Especiais Criminais. Nos dois casos, uma moldura mais ampla ampara a análise: no primeiro, a comparação com o Direito português; no segundo,
a ênfase no duplo procedimento legislativo de repressão e humanização. O
espaço do Direito Penal, aliás, tem sido pródigo em simbolismos e objeto de
múltiplas projeções de medos e terrores.
O Direito Urbanístico visto como um “mapa” é, aliás, o motivo para a
apreciação da política habitacional no município de Porto Alegre no século
1
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma cartografia simbólica das representações sociais. Coimbra, Revista Crítica de
Ciências Sociais, 24.
Direito e Democracia
3
XX, desde a invisibilização da população de mais baixa renda até as alterações
no sentido de um reconhecimento do direito à cidade sustentável, tratado
por Betania Alfonsin.
A utilização de um mapa que enfatiza o modo nacional de produção do
direito deixou de considerar, durante muito tempo, problemas que afetam os
seres humanos em escala local e mundial. O cuidado com a regulação jurídica
dos alimentos transgênicos, que extrapola as fronteiras nacionais, é o foco da
contribuição de Márcia Fernandes Saitovich. Em escala local, salientando a
necessidade de licenciamento ambiental para a criação extensiva de suínos,
destaca-se o texto de Miguel Gnigler, tese aprovada em Congresso do Ministério Público, Órgão, aliás, cuja visibilidade social mostra-se compatível com
a altura de suas responsabilidades.
No que toca ao Direito Constitucional, que é o grande mapa configurador
das estruturas jurídicas nacionais, Ingo Sarlet destaca os aspectos mais polêmicos da regulamentação do dispositivo constitucional que versa sobre argüição de descumprimento de preceito fundamental. O acesso à justiça, entendido como direito fundamental, é a preocupação de Rosanne Gay Cunha, ponto sobre o qual as preocupações jurídicas têm colocado pouca luz, apesar da
magnitude do problema. Paula Viturro discorre sobre o caráter político do
controle de constitucionalidade, a partir da polêmica travada entre Carl
Schmitt e Hans Kelsen.
O presente número de “Direito e Democracia” contém também escrito
sobre a teoria geral dos contratos. O contrato, não há dúvida, tem sido o
núcleo destacado do mapa jurídico das sociedades ocidentais, o que é facilmente perceptível na linguagem político-jurídica. Assim, diz-se ser necessário um “novo contrato social”, a sociedade é constantemente chamada
para estabelecer novo pacto entre governantes e governados, e, mais recentemente, investe-se contra as garantias imanentes ao contrato de trabalho.
A revisão da teoria, no Direito Privado, é a contribuição de Maria Regina
Santini Martins.
A ausência de certezas absolutas em muitos campos do conhecimento é
uma das características de nosso tempo, cuja sociedade é tida, por alguns sociólogos, como uma “sociedade de risco”2. O paradoxo desta situação acha-se
em que, por outro lado, é possível repensar os parâmetros sobre o quais se tem
2
BECK, Ulrich. La sociedade de riesgo. Barcelona: Paidós, 1999.
4
Direito e Democracia
trabalhado e desenvolver a criatividade dentro da incerteza, da instabilidade
e da turbulência de escalas, como tem salientado Immanuel Wallerstein3.
O presente número pretende apresentar uma modesta contribuição para o
encaminhamento das soluções dos problemas agudos, pelas quais urge o tempo. Neste sentido, é indispensável refletir sobre os princípios da tolerância,
de que trata o texto histórico deste número, contribuindo ao combate da cegueira da intolerância, em qualquer de seus níveis, buscando um diálogo
intercultural, multirracial e interreligioso, em que o outro seja efetivamente
reconhecido e não apenas visto como um “inferior”, em virtude de crer em
padrões de pensamento ou de conduta distintos daqueles assentes.
Finalmente, Altayr Venzon procura verificar como os meios de comunicação de massa refletem a violência, esta indesejável componente de nosso
tempo.
Plauto Faraco de Azevedo
César Augusto Baldi
3
WALLERSTEIN, Immanuel. Incerteza e criatividade. Canoas, Logos 12 (2): 5-8.
Direito e Democracia
5
6
Direito e Democracia
Artigos
O centenário do Méthode
d’interprétation et sources en droit
privé positif
The Centenary of the Méthode d’interprétation et
sources en droit privé positif
LUÍS LUISI
Professor Titular do Curso de Mestrado em Direito-ULBRA
Professor livre docente e do Curso de Especialização em Direito Penal, da Faculdade de Direito/UFRGS
RESUMO
Passados mais de cem anos da publicação do “Méthode d’interprétation et sources
en Droit Privé Positif”, a crítica ao fetichismo da lei escrita e codificada, bem como a
necessidade de ampliação das fontes do direito, constantes na obra de François Gény,
continuam tão atuais quanto na época de sua publicação, em que ainda predominava o espírito legalista da Escola da Exegese.
Palavras-chave: Metodologia do Direito, História do Direito, François Gény.
ABSTRACT
After over one hundred years of the publication of the “Méthode d’interprétation et
sources en droit privé positif”, the critique to the fetichism of the written and codified
law, as well as the need of enlarging the sources of law, as found in the work of
François Gény, continue as updated as at the time of its publication, when the legalist spirit of the exegesis school still ruled.
Key words: Methodology of Law, History of Law, François Gény.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.7-13
7
1 Faz mais de cem anos- 1899- da publicação do “Méthode d’interpretation
et sources en Droit Privé Positif”, de François Geny. Esta obra daria um novo
enfoque ao problema das fontes do direito e a matéria pertinente à interpretação.
Como acertadamente sustentou Recasens Siches, quando em 1899 apareceu o Méthode dominava na França e na Europa Continental em geral, o
entendimento que as disposições dos Códigos, especialmente a do Código Civil,
continham todas as regras necessárias para resolver qualquer problema jurídico.1
Deve-se ao Mestre de Nancy ter sustentado que a lei não era a única fonte do
direito, e que ao intérprete cabia, também, com a “libre recherche scientifique”,
buscar o direito no âmago da realidade natural e social.
2 Os pensadores iluministas no século XVIII postularam a criação de uma
ordem jurídica de poucas, claras e simples leis, para usarmos a expressão de
Rousseau.2 Também sustentaram os enciclopedistas, enfática e zelosamente,
que só ao Poder Legislativo incumbia elaborar, como também interpretar as
leis. Ao Judiciário caberia tão-somente aplicá-las. A função judicial se restringia tão-somente ao mecanismo de um silogismo: a premissa maior é a lei,
a premissa menor os fatos comprovados, e a sentença, a conclusão.
Consectário deste enfoque foi o famoso Decreto nº 1624, editado na França em agosto de 1790, que previu o Instituto do Referée, segundo o qual
inexiste uma lei que regulasse um caso concreto, ao Juiz cabia pedir à Assembléia a elaboração da lei que pudesse disciplinar essa espécie. Ainda em 1790como expressão desta linha de legalismo extremado- foi criado, pelas leis de
27 de novembro e 1º de dezembro, na França, o Tribunal de Cassação, independente do Poder Judiciário, e ao qual cabia cassar, isto é, anular toda a sentença que contivesse uma violação expressa do texto da lei.
Quando se procurou, todavia, elaborar o Código Civil, em obediência ao
determinado pela Assembléia Francesa em 1790, Cambeceres, ao apresentar
o seu primeiro projeto, em agosto de 1793, à Convenção Nacional, e seu terceiro projeto em junho de 1795 ao Conselho dos Quinhentos, expressamente
reconheceu a absoluta impossibilidade de elaboração de um Código, completo e definido, capaz de prever todos os casos ocorrentes da realidade social.
1
RECASÉNS SICHES, Luís. Panorama del pensamiento jurídico en el siglo XX. México: Porrua, 1963. Tomo 1, p. 27.
2
ROUSSEAU, Jean Jacques. Considerations sur le gouvernement de Pologne. Paris: Garnier, 1960. p.342
8
Direito e Democracia
Outro sentido não têm as palavras de Jean Etienne Marie Portalis em seu
famoso discurso preliminar ao projeto de Código Civil Francês, pronunciado
em agosto de 1801: as necessidades da sociedade são tão várias, a comunicação
entre os homens, tão ativa, seus interesses tão múltiplos e suas relações tão intensas
que resulta impossível para o legislador prever tudo. E mais: Tudo prever é um
objetivo impossível de atingir. Será, pois, um erro pensar que possa existir um corpo
de leis capaz de prever todos os casos possíveis. Face à insuperável existência de
lacunas no ordenamento jurídico, Portalis sustenta a necessidade de o Juiz
muitas vezes recorrer ao costume ou à eqüidade, entendida esta como o retorno à lei natural, em razão do silêncio, das contradições ou obscuridades das leis
positivas.3
Todavia com o advento do Código Napoleão, em 18 de março de 1804, a
rigidez dos princípios iluministas, no concernente ao absoluto primado da lei,
torna-se o princípio básico. Por força do artigo 4º do “Code”, ficando o Juiz
obrigado a julgar o caso concreto, Portalis entende que, havendo carência,
contradição ou obscuridade da lei, pode o Juiz suprir essas deficiências com os
costumes e, principalmente, com a eqüidade, ou seja, o direito natural.
A Escola constituída pelos juristas voltados devotadamente para a análise
do “Code”- a Escola da Exegese- haveria de contrapor-se ao entendimento de
Portalis, e sustentar que o Juiz, face ao imperativo do artigo 4º do “Code”, não
podia socorrer-se de elementos estranhos à lei, mas encontrar no “Code”, por
via da analogia ou da dedução de seus princípios, a norma aplicável à espécie
fática. Consagrava-se, com esse enfoque, não só a primazia da lei, mas também a sua exclusividade como fonte do direito. Inaugura-se, com a Escola da
Exegese, a monocracia da lei. Um longo reinado de um legalismo extremado
e exclusivista.
Nesta perspectiva, a Escola da Exegese introduz, como ressalta Mario
Cattaneo4, o dogma da completezza do ordenamento jurídico, inadmitindo a
existência de qualquer lacuna, e “consagra a possibilidade de resolver qualquer caso com base no direito positivo, achando a norma dentro do
ordenamento.”
Essa idolatria da lei, com exclusão de qualquer outra fonte do direito, dominou a ciência jurídica francesa no século XIX.
3
PORTALIS. Discurso preliminar del proyecto de Codigo Civil Frances. Madrid: Edeval, 1978. p. 35 e 43.
4
CATTANEO, Mario. Iluminismo e Legislazione. Milano: Comunitá. P. 146.
Direito e Democracia
9
Segundo a lição de Antonio Hernandez Gil, as características da Escola da
Exegese são as seguintes: a) o direito positivo é todo o direito, e o direito positivo está constituído pela lei; b) a interpretação objetiva busca a intenção do
legislador, de tal forma que “os códigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete”, que não “tem por missão fazer o direito”: “o direito está feito”; c) o costume nada vale: as insuficiências da lei se sanam com a própria lei, através da
analogia; d) o direito tem um caráter eminentemente estatal - dura lex, sed lex , de tal modo que as leis naturais só valem quando sejam leis escritas, não havendo maior eqüidade que a da lei, e nem mais racionalidade do que na lei.5
Jean Bonnecase, em clássica obra sobre a Escola da Exegese, assinala que a
mesma teve três fases. A primeira, de formação, iniciada com Melville, que
em 1805 publicou “Analyse Raisonnée de la Discussion du Code Civil au
Conseil d’État”, à qual se seguiram os livros de Delvincourt, Proudhon e
Toullier. A segunda, do apogeu, marcada por extensos comentários do “Code”,
e que teve marcada influência na jurisprudência francesa e de outros Países.
São deste período as obras de Duraton, Aubry e Rau, Marcadé e Laurent, dentre tantos outros. A terceira, da decadência, já em fins do século XIX, a que
pertencem Baudry Lacantinerie, Demolombe e Guilhonard.6
No último decênio do século XIX, o “Code” revelava, com evidência, seu
envelhecimento ante a nova realidade sócio-econômica, resultante das revoluções industriais ocorridas no curso do século. Uma série de estudos7 passou a contestar o fetichismo legalista e a pregar a superação do exclusivismo
da lei como fonte do direito, bem como a conveniência de uma revisão a
respeito do que seja a interpretação jurídica.
A crítica definitiva e os novos rumos a serem dados à ciência do Direito
Civil, e do direito em geral, todavia, seria a obra de François Gény, com o seu
“Méthode”. Em perspectiva histórica, este trabalho representa o término da
longa hegemonia da Escola da Exegese na ciência jurídica francesa. É o fim de
uma visão estrita e exclusivamente legalista do direito.
Retorna, com o “Méthode”, uma visão pluralista das fontes, enfoque es-
5
HERNANDEZ GIL. Metodologia del Derecho. Madrid: Revista de Derecho Público. p. 57-58.
6
BONNECASE, Julien. L’école de l’exégèse in Droit Civil apud HERNANDEZ GIL, op. cit. p. 56.
7
GROSSI, Paolo. Ripensare Gény. Quaderni fiorentini, vol. 20, p. 7-8, antológico estudo sobre o Mestre de Nancy, noticia
um “pullalare di insoddisfazioni e di tentative di ricerca da parte di intelligenti homines novi di cui sono efficace
testemonianza per tutto il corso dell’ultimo decennio del secolo parecchie significative tesi dottorali”, mencionando
os nomes de Lambert, Josserand, Langlois e outros.
10
Direito e Democracia
quecido desde o “Discurso” de Portalis. Nega François Gény a monocracia da
lei, alinhando, ao lado desta, como fontes do direito positivo, entre outras, o
costume e a jurisprudência. Acrescenta, contudo, não encontrada a regra nessas fontes, a busca do direito com a libre recherche scientifique. Quando a lei e
as outras fontes do direito positiva falham, a busca da solução se faz através da
livre investigação científica. Livre, porque independente da vontade da autoridade. Científica, porque se embasa nos elementos objetivos passíveis de
conhecimento científico.
Esta livre investigação científica tem por elementos “dados”, ou seja, os
elementos mais ou menos permanentes, que se encontram na realidade ou
nos princípios essenciais à ordem geral do universo. São dados que se devem
buscar nas coisas, pois têm existência objetiva.
Esses dados ou são reais ou são históricos, e, ainda, racionais e ideais. Os
primeiros podem ser tanto as condições físicas e sociais, como o solo, o clima,
a anatomia e a fisiologia do ser humano, a situação política, social e econômica, os sentimentos religiosos, etc. Essas realidades não criam diretamente as
normas, mas delimitam e marcam o seu perfil. Os dados históricos são constituídos através do tempo, tais como costumes, leis pretéritas, e os instrumentos de interpretação e aplicação das mesmas. Esses dados se inserem nos fatos
e oferecem à investigação científica do direito uma de suas bases mais importantes. Os dados racionais são constituídos pelas regras jurídicas que a razão
deduz da natureza humana, e que se apresentam como necessários, imutáveis
e universais. Preceitos que a razão nos mostra como imperiosamente postulados pela natureza do homem. Os dados ideais consistem nas aspirações humanas relativamente à organização jurídica.
Esses dados são a matéria com que trabalha o jurista na livre investigação
do direito. Buscá-las é a missão da ciência do direito.
Ao jurista, no entanto, cabe também uma tarefa técnica, que é a de trabalhar esses dados, em regra muito gerais e indeterminados, tornando-os concretos e precisos. A técnica, portanto, constrói a regra capaz de disciplinar as
múltiplas e variáveis exigências sociais.
A ciência tem por objeto os dados. À técnica cabe explicitar o direito
ínsito nos dados, em normas capazes de atender aos reclamos da vida social.
A ciência trabalha com os dados que se encontram no meio natural e no meio
social. A técnica, a partir desses dados, constrói a norma capaz de regular
concretamente as relações humanas.
Direito e Democracia
11
3. Há, no entanto, um outro aspecto que é necessário enfatizar. Com este
livro, François Gény insurge-se, como já enfatizado, contra a monocracia da
lei que a Escola da Exegese, por quase um século, fizera um axioma indiscutível. E faz vingar uma concepção pluralista das fontes, e abre uma perspectiva
de pesquisa do direito no âmago da natureza das coisas. Dentre as fontes do
direito, todavia, François Gény confere à lei a primazia absoluta. Bem vistas
as coisas, o Mestre de Nancy é, como textualmente afirma Paolo Grossi, um
legalista 8
A rigor, como sustenta José Luiz de Los Mozos9, o professor francês jamais
discutiu ou pôs em dúvida a importância da lei e a primazia desta como fonte
do direito. Embora insurgindo-se contra o fetichisme de la loi écrite et codifiée,
dá à lei e ao legislador um papel importante, posto que, no seu entender,
l’injonction légale est un merveilleux instrument de sécurité des relations juridiques
e uma pièce capitale de l’ordre10
A postura de Gény face à lei é de que a mesma é a fonte primordial e
relevante do direito. Insurge-se, todavia, contra o entendimento de ser fonte
exclusiva da ordem jurídica. Ao monismo legalista contrapõe um fecundo
pluralismo de fontes capaz de expressar toda a riqueza do permanente e do
cambiante da vida do direito. O jurista francês, portanto, não é um
antilegalista, pois reconhece ser a lei indispensável. No entanto, surpreendendo a insuffisance irrémédiable de la loi para disciplinar a complexité infinie et
la mouvance incessante de la vie sociale , preconiza o “alargamento” das fontes,
de modo a fazer do direito um instrumento capaz ante a l’inépuisable richesse et
la prestigieuse variété de la vie sociale11
4 Há, ainda, outro aspecto a salientar. A Escola da Exegese, como de resto
uma longa tradição jurídica, cujas origens de situam na Escola dos Glosadores,
entendeu que a missão do jurista consistia apenas na interpretação da lei vigente. A este cabia procurar e desvendar o sentido da lei, para facilitar sua
aplicação. É, pois, exclusivamente um intermediário entre a lei elaborada e
seus usuários. François Gény atribuiu ao jurista, ainda,uma outra tarefa: através da livre investigação científica, como cientista, lhe compete descobrir
8
GROSSI, op. cit., p. 15.
9
DE LOS MOZOS, José Luiz. Algunas reflexiones a proposito de la teoria de la interpretación en la obra de François Gény.
Quaderni fiorentini, vol. 20, 1991.
10
GÉNY, François. La notion de droit positif à la veille du XXe siècle. Discurso em sessão solene na Universidade de Dijon,
em 8 de novembro de 1900. P. 21
11
Ibidem, p. 17 e 21.
12
Direito e Democracia
nos dados naturais, racionais, históricos e ideais, o direito neles ínsito, e, através da técnica, explicitá-los em normas capazes de atender aos reclamos da
vida social. Não é, pois, um mero exegeta, mas um verdadeiro intérprete, em
contato direto com os fatos.
Neste início de século e de milênio, vivemos um momento de crise, com
certas semelhanças com o fim do século XIX. Estamos ante uma paisagem
sócio-econômica produzida por uma extraordinária e trepidante revolução
tecnológica, e ante novas articulações da organização econômica. E isto tudo
está a exigir a criação de novos institutos jurídicos capazes de disciplinar essas
novidades fáticas.
Esta realidade implica reconhecer que o jurista tenha hoje o perfil delineado por François Gény. Não um mero dogmático, mas cientista voltado para
uma inédita realidade sócio-econômica, visando lhe dar disciplina jurídica
adequada. Não lhe cumpre apenas analisar a lei, mas ajudar a elaborá-la, ou
seja, na lapidar frase de G. Capograssi, a recolher e depurar a vontade social,
transformando-a dallo stato grezzo nel prodotto finito delle legge12
Passados mais de cem anos, o Méthode nada tem de arcaico. A sua mensagem renovadora é de evidente atualidade. E faz com que se possa incluir
François Gény na galeria dos juristas perenes.
12
CAPOGRASSI, G. L’ambiguité nel diritto contemporaneo. In: La crisi del diritto. Ed. Cedam, 1951. p. 14.
Direito e Democracia
13
14
Direito e Democracia
O princípio da diversão e o
Ministério Público: um viés lusitano
The Principle of Diversion and The Public Ministry: A
Portuguese Approach*
JAYME WEINGARTNER NETO
Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul; Mestrando em Direito na Universidade
de Coimbra; Coordenador do Curso de Direito da Ulbra, Campus Cachoeira do
Sul; Professor licenciado na Escola Superior do Ministério Público; Professor-Assistente da disciplina de Direito Penal.
RESUMO
O princípio da diversão tem raiz político-criminal plantada no Estado Democrático
de Direito. Na sua concretização processual penal, o Ministério Público é instância
privilegiada de harmonização de regras processuais e preceitos constitucionais, como
demonstra a experiência portuguesa.
Palavras-chave: Processo Penal, princípio da diversão, Ministério Público, Direito
Comparado.
ABSTRACT
The principle of diversion has a political-criminal origin, rooted in the Democratic
State of Law. In its penal processual concretization, the Public Ministry is the privileged instance of the harmonization of processual rules and constitutional precepts,
as has been demonstrated by the Portuguese experience.
Key words: Penal Process, principle of diversion, Public Ministry, Comparative
Law.
* O presente texto foi apresentado como relatório de Direito Processual Penal no seminário dirigido pelo Pofessor Doutor
José Francisco de Faria Costa, no âmbito do Mestrado na área de Ciências Jurídico-Criminais da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, em junho de 2000.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.15-59 15
1 INTRODUÇÃO E APROXIMAÇÃO CONCEITUAL
O único herói capaz de cortar a cabeça à Medusa é Perseu,
que voa de sandálias aladas, Perseu que não volta os olhos
para o rosto da Górgona mas só para a sua imagem
reflectida no escudo de bronze. (...) Para cortar a cabeça
da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu apoia-se no que
há de mais leve, o vento e as nuvens; e fixa o olhar no que
só poderá revelar-se-lhe numa visão indirecta, numa imagem captada num espelho. (...) A relação entre Perseu e a
Górgona é muito complexa: não acaba com a decapitação
do monstro. Do sangue da Medusa nasce um cavalo alado,
Pégaso; o peso da pedra pode-se converter no seu contrário; com uma patada no Monte Hélicon, Pégaso faz jorrar
a fonte em que bebem as Musas. (...) Quanto à cabeça cortada, Perseu não a abandona mas leva-a consigo, fechada
num saco; quando os inimigos estão prestes a vencê-lo, basta
que ele a mostre, erguendo-a pela cabeleira de serpentes, e
este sangrento despojo torna-se uma arma invencível nas
mãos do herói: uma arma que ele só usa em casos extremos
e só contra quem merecer o castigo de se transformar em
estátua de si próprio. (...) Perseu venceu uma nova batalha, massacrou à espadeirada um monstro marinho, libertou Andrômeda. E agora dispõe-se a fazer o que qualquer
um de nós faria após uma façanha deste gênero: vai lavar
as mãos. Neste caso o seu problema é onde colocar a cabeça da Medusa. E aqui Ovídio tem versos que considero extraordinários para exprimir a delicadeza de alma que é necessária para se poder ser um Perseu, vencedor de monstros: ‘Para que a rija areia não desgaste a cabeça anguímoca,
amolece o terreno com uma camada de folhas, estende sobre esta algas nascidas debaixo das águas e aí depõe a cabeça da Medusa, de cara para baixo’. Parece-me que não se
poderia representar melhor a leveza de que Perseu é o herói, do que com este gesto de refrescante gentileza para com
aquele ser monstruoso e tremendo, mas também de certo
modo frágil e deteriorável. Mas a coisa mais inesperada é o
milagre que se segue: as algas em contacto com a Medusa
transformam-se em corais, e as ninfas para se enfeitarem
16
Direito e Democracia
de corais acorrem aproximando ramos e algas da terrível
cabeça.” 1
Ao analisar-se o princípio da diversão, que surge no seio de uma política
criminal tendencialmente efetivadora do Estado Democrático de Direito, nas
suas concretizações processuais penais – e, de maneira correlata, ao enfatizar-se
o papel catalisador do Ministério Público como instância formal de controle e
agente político -, é possível clarificar diversas interações entre o sistema processual penal e o direito constitucional, numa via de mão dupla: a essencial
politicidade de regras processuais e a densificação jurídica de preceitos constitucionais. Demonstrar tal caminho é a intenção do presente texto.
Numa primeira aproximação, diversão é um conceito reflexivo, que não
prescinde de sua referência a um processo normal/padrão de solução dos litígios penais. Assim, toda tentativa de solucionar um conflito jurídico penal
fora do curso normal da Justiça Penal é, genericamente, um modo desviado, diferente, divertido.2 Avançando, interessam mais precisamente as resoluções obtidas antes da determinação da culpa, o que retira do âmbito deste trabalho
uma série de institutos que, não obstante, comungam de alguns postulados e
finalidades (penas alternativas, probation, sursis etc.).
Expressão sinônima, menos anglo-saxônica, é desjudiciarização, termo
que já indica a grande relevância que assumem, nestes casos, as instâncias
formais de controle pré-judiciais, nomeadamente a polícia e o Ministério Público. No caso, por questão de espaço e opção metodológica, o foco central
recairá na magistratura do Ministério Público. *
Ainda previamente, convém ressaltar que é do cerne do próprio instituto
a participação voluntária do infrator/arguido/suspeito, sendo sua adesão consciente às finalidades elemento fundamental.
1
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milénio (lições americanas). 3ª ed. Lisboa, Teorema, 1998, trad. José C.
Barreiros. pp. 18-20. As referências literárias estribam-se, conscientemente, na busca do resgate de um dos tipos de
racionalidade moderna, talvez o mais esquecido em nosso campo de atuação, a racionalidade estético-expressiva das
artes e da literatura, acanhada diante da racionalidade moral-prática do Direito e esmagada pela cognitivo-instrumental das ciências. Conceitos jurídicos, por vezes, nessa perspectiva, ganham expressão superior. A classificação, a
retrabalhar Weber, encontra-se em SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O social e o político na pósmodernidade. 7ª ed. Porto, Afrontamento, 1999. p. 193.
2
COSTA, José Francisco de Faria. Diversão (desjudiciarização) e mediação: que rumos? Coimbra, 1986 - separata do v. LXI
(1985) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 5.
*
Este o “status” constitucional do Ministério Público em Portugal, cf. infra, item 4.
Direito e Democracia
17
Outro corte aqui impositivo é afastar o texto do desenvolvimento da mediação, cujo conceito essencialmente não diverge da “diversion”, com nota
distintiva, selo específico, isto é, a intervenção de um mediador, terceiro que
entra no conflito buscando harmonizá-lo, reconciliar as partes mercê de estratégias comunicativas que privilegiam os espaços consensuais e cooperativos.3 Papel que é protagonizado por uma série de atores, preferencialmente
não jurídicos e num contexto privado, dependendo das nuances históricovalorativas das diversas comunidades.
Sem desmerecer a possibilidade aberta pela mediação, seu estágio ainda
comporta riscos excessivos, eventualmente mais potenciadora que apaziguadora de conflitos, a par da pressuposição de intervenientes – sensíveis ao consenso – na mesma posição, o que é meramente formal em face do consabido
desequilíbrio na distribuição dos bens, materiais e simbólicos, a reforçar posições sociais de domínio. Ademais, ao revés da arbitragem, na mediação há
que se encontrar solução que seja aceita pelas partes, já que os mediadores não
têm poder para compelir à resolução do conflito. Sem embargo, o terceiro
imparcial tem grande valor nos casos que envolvem “relações permanentes”
– família, vizinhança, colegas de trabalho.4
A Associação Internacional de Direito Penal, no colóquio de Tóquio
(março de 1983), ao versar sobre o tema, limitou a discussão aos desvios do
processo criminal ordinário, antes de uma declaração judicial de culpa, que
termina com o caso sem um julgamento por um tribunal, propiciando ao
suspeito a participação em algumas formas de programas não-penais, cujo
propósito não é punir o transgressor, mas reabilitá-lo ou solver o conflito
subjacente à infração.5
2 TIPOLOGIA DA DIVERSÃO E DISTINÇÕES
Segundo a classificação explanada por Faria Costa6, a diversão, como gênero, comporta algumas espécies, como segue:
3
COSTA, Diversão, op. cit., p. 6.
4
« Actes du Colloque (Dejudiciarisation – Diversion – et Mediation) tenu à Tokyo, Japon 14-16 mars 1983 », Revue
Internationale de Droit Pénal 54 (1983), pp. 894-5.
5
Revue Internationale de Droit Pénal 54 (1983), p. 894.
6
COSTA, Diversão, pp. 21-4.
18
Direito e Democracia
a) Diversão simples – presente quando a solução imediata do conflito
opera-se nas instâncias formais de controle pré-judiciais (polícia
ou Ministério Público), sendo de notar-se que se conjuga mais facilmente com o princípio da oportunidade, embora ocorra, na práxis
da pequena criminalidade, também em sistemas de legalidade
(desjudiciarização na solução de conflitos em face da seletividade/
discricionariedade real, eventualmente encobertas por argumentos
de “insuficiência de provas” etc.). Exemplos o § 153 da StPO (ordenação processual alemã) e o art. 280 do Código de Processo Penal Português (CPP);7
b) Diversão com intervenção – ocorre quando a suspensão do processo é
obtida contra injunções e regras de conduta impostas pelo Ministério Público ao argüído. Há, aqui, intercessão formal do órgão estatal
e conformação da conduta do arguido, sempre por adesão voluntária, emblemáticos o § 153 a da StPO e o art. 281 do CPP;8
c) Diversão por mediação – embora já referida no item 1, merece ainda
relevo a mediação mitigada, que se aperfeiçoa nos crimes privados ou
semipúblicos, sempre que não desencadeado o impulso persecutório
pelo ofendido, podendo-se prescindir de mediador preciso.9
Difere, todavia, a solução divertida (de natureza processual) das vias
substantivas (não obstante partam de axioma idêntico) da descriminalização 10 – quando o legislador subtrai a dignidade penal de uma infração,
desqualifica determinada conduta que deixa de ser crime 11 – e da
7
Adiante desenvolvidos.
8
Idem.
9
A noção é desenvolvida por Faria Costa (Diversão, p. 24), ao notar que “a não apresentação de queixa ou de acusação
particular pode ser o resultado de um conjunto de forças conflituantes que foram mediadas – e aqui indiscutivelmente – pelo portador histórico do bem jurídico ofendido”.
10
DIAS (Jorge de Figueiredo), ANDRADE (Manuel da Costa). Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade
Criminógena. Coimbra, 1992, referem-se a uma descriminalização de fato: não aplicação da lei incriminatória por
força da renúncia da vítima (situação que se qualificou, supra, de mediação mitigada) ou como efeito das cifras
negras (p. 401).
11
ZAFFARONI (Eugenio Raúl), PIERANGELI (José Henrique). Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 2ª ed. rev.
e atual. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1999, conceituam assim a descriminalização: “é a renúncia formal
(jurídica) de agir em um conflito pela via do sistema penal. Isto é o que propõe o Comitê Europeu para a Descriminalização em relação a vários delitos: cheques, furtos em fábricas pelos empregados, furtos em grandes lojas etc.” (p.
357), que pode ser “de fato”, quando o Estado deixa de agir, sem que formalmente tenha perdido competência
(exemplo seria o adultério no Brasil), mas “na maioria dos casos o que se propõe é que o Estado intervenha apenas de
modo não punitivo: sanções administrativas, civis, educação, acordo etc.” (p. 358)
Direito e Democracia
19
despenalização12, em que persiste o ilícito com diminuição, redução da sanção aplicável, ou, mesmo, pela remessa da solução repressiva para outro
ramo jurídico, caso das ordenações sociais.13
No caso da diversão, remanesce a infração intocada na sua dignidade
penal, mas é em nível de processo14, a afastar-se do formalismo regular,
que se busca solução diferente, que prescinde da juridicização. O que não
coincide com a bagatela, instituto de direito material que significa dispensa de pena (ausente requisito preventivo) em caso de culpa e ilicitude
diminutas. É o caso do art. 74 do Código Penal Português; ao revés da
diversão, porém, que solve a questão antes da declaração de culpa, “para
que se faça uso desta medida é, assim, necessária a verificação de um juízo
de culpa”.15
3 INCURSÃO POLÍTICO-CRIMINAL
Indagar-se da origem e razões da profusão de medidas divertidas exige
adentrar na Política-Criminal que, ao ocupar-se da reformas do direito vigente, projeta o direito como deveria ser16, levantando preciosa ponte entre a
12
Segundo Zaffaroni, “é o ato de ‘degradar’ a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no qual entraria toda a possível
aplicação das alternativas às penas privativas de liberdade” (Manual, op. cit., p. 358).
13
Questiona-se, aqui, a mera burla de etiquetas, neste sentido a inclinar-se Faria Costa, taxando a transposição tópica de
“falsa diversão”. Sugestivamente, “a infração deixou o mundo jurídico-penal, mas ainda gravita no universo jurídicopenal” (Diversão, p. 44), embora se reconheçam traços divertidos e fatores positivos, tais como menor estigmatização
e diminuição da sobrecarga dos tribunais. Para um aprofundar da questão do direito de mera ordenação social, na sua
especificidade em relação ao direito penal, vide COSTA, José Francisco de Faria. Les problèmes juridiques e pratiques
posés par la différence entre le droit criminel et le droit administratif-pénal. Coimbra, 1988 - separata do v. LXII (1986) do
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 45 pp.
14
“Diversificação é a possibilidade legal de que o processo penal seja suspenso em certo momento e a solução ao conflito
alcançada de forma não punitiva. É o que acontece no ‘sistema de prova’ anglo-saxão ou o que está sendo tentado
em alguns países a respeito dos maus-tratos a crianças. No Brasil, a Lei 9.099, de 26.09.1995, retrata esta tendência.
O mesmo ocorre no Peru, com a Lei 26.320, de 02.06.1994 e com o código de processo penal colombiano de 1991”
(ZAFFARONI, obra citada, p. 358). “Em geral, todas essas tendências têm sido criticadas por parte dos criminologistas
contemporâneos sob o fundamento de que são produto da crise fiscal do Estado e tendem a trocar o controle
institucional pelo controle difuso na sociedade, o que levaria a uma ‘extensão’ da prisão a toda a sociedade. Cremos
que estas objeções não se dirigem às tendências em si mesmas, mas às mudanças estruturais que podem ocorrer nas
sociedades centrais, e que em nada afetam o juízo que possam merecer do ponto de vista de nossas sociedade
periféricas” (idem). Discorda-se da inclusão da probation no espectro da diversão, por pressupor determinação de
culpa, como anotado já na introdução. Quanto à lei nº 9.099, do Brasil, vide infra (item 8).
15
GONÇALVES, Maia M. Código Penal Anotado. 13ª ed. Coimbra, Livraria Almedina, 1999. pp. 263-4.
16
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Madrid, Editorial Civitas, 1999. Tomo I, trad. da 2ª ed. Alemã por DiegoManuel Luzón Peña “et alli”. p. 24.
20
Direito e Democracia
dogmática jurídico-penal e a criminologia.17
É dado de percepção geral a crise da sociedade moderna (que para alguns é
já, na falta de termo mais adequado, pós-moderna18), sendo uma de suas facetas
mais visíveis a crise de aplicação da justiça, no bojo de transições
paradigmáticas mais amplas.19
Análises doutrinais, em muito confluentes, iluminam à perfeição tal contexto, no prisma que ora interessa (em que pese a síntese):
3.1. Figueiredo Dias20 descreve a desordem dos modelos de política-criminal identificados por Galtung como azul e vermelho21, o que culmina na
crise da política-criminal.
17
JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. Parte general. 4ª ed. cor. e ampl. Granada, Editorial Comares,
1993. trad. José Luis Manzanares Samaniego. pp. 36-7.
18
Acredita-se que o paradigma da modernidade, cientificista, de leis causais rigorosas, de um determinismo mecanicista,
apresenta já rachaduras irrecuperáveis - a relatividade da simultaneidade (Eistein), a alteração do objeto pelo
observador (física quântica, Heisenberg), a teoria das estruturas dissipativas, a ordem através de flutuações (Prigogine),
e muito mais, a clamar por um paradigma emergente, científico (um conhecimento prudente) e social (uma vida
decente). Um conhecimento que é sempre autoconhecimento e que visa a constituir-se em senso comum: “Tenta,
pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas.” Um senso comum retórico e
metafórico, que “não ensina, persuade”, no qual “A prudência é a insegurança assumida e controlada” (SANTOS,
Um discurso sobre as ciências, 11ª ed. Porto, Afrontamento, 1999, pp. 55-7).
19
O período de transição que atravessamos será “caótico” e “su resultado ultra-incierto”, discurso de Immanuel Wallerstein
(El fin de las certidumbres y los intelectuales comprometidos) ao receber o doutorado “honoris causa” da Universidade
de Puebla, 23/9/99 – http://fbc.binghamton.edu/iwbuap.htm
20
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime. Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, 1993.
21
É notável a eficácia da metáfora visual, quanto mais cromática, numa sociedade dominada pelas imagens, que padece
da pulsão do olhar. De forma impressiva: “as sociedades, tal como os indivíduos, usam espelhos e fazem-no de um
modo mais feminino do que masculino. Ou seja, as sociedades são a imagem que têm de si vistas nos espelhos que
constróem para reproduzir as identificações dominantes num dado momento histórico. São os espelhos que, ao criar
sistemas e práticas de semelhança, correspondência e identidade, asseguram as rotinas que sustentam a vida em
sociedade. Uma sociedade sem espelhos é uma sociedade aterrorizada pelo seu próprio terror.”, a desembocar na
“crise da consciência especular: de um lado, o olhar da sociedade à beira do terror de não ver reflectida nenhuma
imagem que reconheça como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornado
estátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado.” - SANTOS,
Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (Para um novo senso comum. A
ciência, o Direito e a Política na transição paradigmática, v. I). Porto, Afrontamento, 2000. pp. 45-6. Noutro contexto,
mas sugestivamente: “a televisão está a produzir uma mutação, uma metamorfose, que interessa a própria natureza
do Homo sapiens. A televisão não é apenas instrumento de comunicação; é também, ao mesmo tempo, paidea, um
instrumento ‘antropogenético’, um media gerador de um novo anthropos, de um novo tipo de ser humano.” (SARTORI,
Giovanni. Homo videns: televisão e pós-pensamento. Lisboa, Terramar, 2000. trad. Simonetta Neto, p. 28). O autor
postula que a profusão de comunicação visual degrada a capacidade de abstração e, portanto, a própria essência da
espécie humana, como animal simbólico.
Direito e Democracia
21
Na alvorada histórica da luta burguesa contra o feudalismo, situa-se o
modelo clássico e neoclássico22, de corte liberal, impregnado de um humanismo
racional e idealista – modelo azul.
A pena é retribuição (nas linhas kantiana e hegeliana) e prevenção geral
(intimidação), sendo a punição (castigo) função estatal a realizar-se sem lacunas, o que reflete no processo:
a) igualdade formal;
b) princípio da legalidade na persecução penal;
c) judiciarização integral da matéria penal.
Na sequência, a ideologia do tratamento da escola positiva, no bojo da
reação da classe trabalhadora contra a burguesia (modelo vermelho), articulando o Estado Providência ao ideal de reabilitação – o crime como doença
social curável. Finalidade da sanção é a prevenção especial, perseguindo-se a
reinserção social por meio de terapias impostas pelo Estado, com as
consequências processuais:
a) princípio da oportunidade na “persecutio”;
b) individualização das sanções (paradigma epidemiológico);
c) diálogo terapêutico (ao invés da audiência penal clássica).
Claro que, na vida real, prevaleceram sistemas mistos, tendencialmente
neoclássicos no centro e sul da Europa e modernos nos Estados Unidos e Europa do Norte, sem descurar da influência do movimento de defesa social,
moderado por Marc Ancel: Estado de Direito na base de um processo forma22
Contra englobar-se os diversos movimentos sob o manto de uma mesma escola, vide Zaffaroni, (Manual, loc. cit.): “A
expressão ‘escola clássica’ foi uma invenção de Enrico Ferri. Segundo Ferri, há uma escola ‘clássica’ do direito penal,
fundada por Beccaria, integrada por todos os penalistas não positivistas e capitaneada por Carrara. Esta pretensão é
absurda, porque ninguém pode afirmar judiciosamente que seja uma escola, nem sequer uma corrente de pensamento, algo integrado por pensamento revolucionário de cunho francês, idealista alemão, aristotélico-tomista,
iluminista, kantiano etc., sem contar as sínteses pessoais de muitos dos autores que reúne nesta pretensa ‘escola’. (...)
Pode-se afirmar, com absoluta segurança, que a denominação difundiu-se e, ainda hoje, fala-se em ‘escola clássica’
e ‘escola positiva’, e existem pessoas que falam na ocorrência de um ‘armistício’ entre ambas. Não deixa de ser um
recurso bastante cômodo na ânsia de simplificar o problema... Jamais existiu uma ‘escola clássica’, a não ser na invenção
de Ferri, e tão somente ocorreu um enfrentamento entre positivistas e todos aqueles que não compartilhavam seus
pontos de vista.” (p. 299). Preferem, os autores, configurar a divergência entre concepções antropológicas: “Com
efeito: o que houve foi um enfrentamento entre a concepção biológica do homem – sustentada pelo positivismo – e as
distintas concepções filosóficas do homem – sustentadas por seus opositores.” (p. 300), duas concepções antropológicas
que não admitem meio-termo.
22
Direito e Democracia
lizado e garantido por juiz protetor de direito individuais; idéia de culpa/responsabilidade individual e humanização, com substituição da detenção – prisão como “extrema ratio” da política-criminal.
Se, na afirmação de Figueiredo Dias, a expiação retributiva não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, secular e plural, o tratamento forçado viola a dignidade da pessoa humana (o direito à diferença), questionando-se mesmo o monopólio estatal da administração da justiça penal, com reação centralizada. Por outro lado, números (aumento de criminalidade, reincidências) sustentam o ceticismo sobre a eficácia da intervenção penal, e,
paradoxalmente, resgatam a privação da liberdade, pura e dura, como a reação criminal por excelência – just desserts em face do terrorismo e do
narcotráfico, nos países nórdicos e anglo-saxônicos.23
O paradigma emergente (que se aproxima do modelo verde de desenvolvimento24), todavia, aponta para uma não-intervenção moderada25, apoiada
sobre três vetores:
a) descriminalização, cabível o direito penal apenas onde se verifiquem
lesões de bens jurídicos essenciais das condições comunitárias e só
como “extrema ratio” da política social;
b) diversão/desjudiciarização, a fim de se alcançar uma solução de conflitos fora do sistema formal de aplicação da justiça penal (ao me-
23
A ‘crise fiscal’ do Estado do bem-estar é um fenômeno ocorrido na década de 70, cujo efeito é a necessidade de diminuir
gastos públicos. Também ressentiu-se o nível de consumo das populações dos países centrais, eclodindo uma ideologia
de ultradireita, ocasionalmente antidemocrática: “Esta tendência política manifestou-se em uma corrente inorgânica
irracionalista, conhecida como ‘nova direita’, cujos expositores foram divulgados de forma desproporcional a seu
talento filosófico, principalmente na França. Quanto à ideologia penal, traduziu-se em tentativas de restabelecimento
da pena de morte em toda a Europa, e alcança nos Estados Unidos sua manifestação menos incoerente, com o nome
de ‘novo realismo criminológico’, cuja ‘bíblia’ parece ser um livro de Ernest van den Haag.” (ZAFFARONI, Manual,
citado, p. 354). A “tolerância zero”, bandeira da prefeitura de Nova Iorque desde o início dos anos 90 (e que fez
escola), supõe a ineficácia das estratégias brandas ou informais de controle social.
24
Zaffaroni e Pierangelli situam, no quadro de uma política criminal verde, o movimento abolicionista de Hulsman,
destacando que peca porque “não situa claramente o problema na história. Temos afirmado e reiterado que o sistema
penal é somente uma forma do controle social institucionalizado e, como é lógico, o controle social não desaparecerá,
porque não desaparecerá a estrutura de poder dentro da sociedade. Assim, o lógico será que, se o sistema penal cede
muita margem de controle social, este será igualmente exercido com outras formas que nem sempre serão melhores
quanto ao respeito à dignidade humana.” (idem, pp. 356-7).
25
“Intervenção mínima é uma tendência político-criminal contemporânea que postula a redução ao mínimo da solução
punitiva dos conflitos sociais, em atenção ao efeito frequentemente contraproducente da ingerência penal do
Estado. Trata-se de uma tendência que, por um lado, recolhe argumentos abolicionistas e por outro a experiência
negativa quanto às intervenções que agravam os conflitos ao invés de resolvê-los. É uma saudável reação realista
frente à confiança ilimitada no tratamento e na solução punitiva dos conflitos” (ibidem, p. 358).
Direito e Democracia
23
nos antes da determinação da culpabilidade/sanção), com o efeito
positivo de impedir-se o efeito estigmatizante. Não deixa de ser o
correlato adjetivo da descriminalização; 26
c) descentralização/participação comunitária (que não se confunde com
privatização).
3.2. Na lição de Faria Costa27, liminar e oportuna advertência acerca das
peculiaridades históricas nacionais, ao constatar refrações à mediação no inconsciente coletivo português, que cedo viveu a tendência centralizadora que
plasmou uma das primeiras nações modernas.28
Amparou-se, o sistema jurídico geral do modelo azul, na tríade liberdade,
igualdade (formal) e judiciarização, fruto do embate contra o “ancien régime” e
que representou, bem de ver, notáveis avanços. No subsistema de aplicação da
justiça penal, reaparece o tripé assente no homem livre e responsável, na retribuição e na punição repressiva. Certo, também, que se preconiza maior rigor e
dureza em todos os momentos de aplicação da justiça penal, inclusive da pequena criminalidade - o que sugere uma ideológica reação patrimonial burguesa.29
As lutas sociais do século XIX significaram o advento do proletariado como
protagonista sócio-político30, ao mesmo tempo que dominavam correntes
positivistas. O “modelo vermelho” parte, no geral, de idéias reducionistas, de
concreção e oportunidade, a implicar, no subsistema penal: prevenção especial, ressocialização e tratamento.
26
DIAS, Direito Penal Português, op. cit., p. 67.
27
COSTA, Diversão, pp. 9-21.
28
José Hermano Saraiva destaca a precoce centralização do estado português, segundo o padrão a que se chamou
“moderno”; vide SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. 5ª ed. Publicações Europa-América, 1998. pp 130,
154 e 162.
29
No mesmo sentido: “Mesmo um período como o do racionalismo-iluminismo, tão celebrado pelo seu empenho
descriminalizador, não deixou de conhecer o reflexo de um movimento de neocriminalização, alargando significativamente a área global do criminalmente relevante. Tal sucedeu, por exemplo, no domínio das infrações contra o
patrimônio e em homenagem, segundo a interpretação de FOUCAULT, aos interesses das novas classes possidentes
em vias de afirmação.” DIAS/ANDRADE, op. cit., p. 434.
30
A assunção do operariado na cena política (ligada à adoção do sufrágio universal, em substituição ao censitário) teria
também reflexos nos sistemas de governo: a partir do momento em que conquistava cadeiras no parlamento,
agudiza-se a tendência a reforçar o poder executivo, mesmo nos sistemas parlamentaristas. Noutro contexto, mas
com apreciação similar: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Para uma crítica da opinião pública: a propósito das
agressões ideológicas dos mass media reacionários. Universidade de Coimbra, sem data.
24
Direito e Democracia
A atitude é, segundo a sutileza da análise, “conformista” (resta esperar que
a ciência descubra a causa do crime, enquanto a sociedade remete o problema
para o Estado Providência, concentracionista e dirigista na exata medida da
passividade da sociedade). O fluxo é unidirecional, do Estado ao delinqüente,
e a terapia desconsidera um valor fundante da sociedade moderna, o direito à
diferença.
O aumento da criminalidade e sua natureza violenta alimentam o
estreitamento das margens de tolerância, que tem vertentes clássicas e positivas,
mas Faria Costa apresenta duas metas racional-valorativas:
1. evitar o estrangulamento do sistema de aplicação normal, vale dizer, aliviar sua sobrecarga de trabalho, para que os conflitos com
suficiente dignidade penal sejam solucionados por órgãos imparciais e independentes;31
2. manter e intensificar o ideal de reabilitação, reduzindo ao máximo
a estigmatização individual. Não permitir, portanto, que os órgãos
estatais potencializem fenômenos naturais de estigmatização.
Uma das vias privilegiadas para alcançar tais propósitos é, naturalmente, a
diversão. Quanto à via da desconcentração dos aparelhos de aplicação da justiça penal, pressupõe um chamamento ao diálogo de indivíduos e pequenas
comunidades. Aguda, contudo, a premissa levantada em forma de
questionamento: esse projeto tem adesão da sociedade, mormente em grandes metrópoles, nas quais a regra é o anonimato, pouco remanescendo do
vizinho no bairro periférico/dormitório? Qual o espaço de encontro nos aglomerados que só funcionam em movimento?32
31
Houve grande divergência, no Congresso do Cairo, entre practitioners e scholars, prevalecendo a “pureza” dos últimos, no
sentido de que a redução da sobrecarga do sistema não pode ser o objetivo principal da diversão (proposição que,
aliás, já vinha do colóquio de Tóquio, cf. “Compte rendu des travaux de la troisième section (Diversion and
Mediation), Caire, Egypte 1-7 octobre 19843 » Revue Internationale de Droit Pénal 56 (1985), p. 511.
32
“Em Cloé, grande cidade, as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se imaginam mil coisas uma das
outras, os encontros que poderiam verificar-se entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as ferroadas. Mas
ninguém dirige uma saudação a ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois afastam-se, procurando
novos olhares, não param. (...) Assim entre os que por acaso se encontram juntos a abrigar-se da chuva debaixo de um
pórtico, ou se apinham debaixo de um toldo de um bazar, ou param para ouvir a banda no coreto da praça,
consumam-se encontros, seduções, ligações, cópulas, orgias, sem que troquem uma palavra, sem que se toquem com
um dedo, quase sem se olharem. Uma vibração de luxúria move continuamente Cloé, a mais casta das cidades.”
(CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. Lisboa, Teorema, 1999. trad. José Colaço Barreiros, p. 53). O “fazer” é novo
segmento onto-ontropológico que entra em cena, ao lado do “ser” e do “ter”, expressão do movimento constante – de
um perpetuum mobile sem parança – e que encontra seu lugar de eleição na chamada comunicação social , conceito
de COSTA, “Os novos horizontes sobre os meios de comunicação social e a Justiça (ou a vertigem de Hermes)”,
Direito Penal da Comunicação, pp. 121-2. Vide o movimento das cidades, conectadas por rotundas: “As metrópolis
Direito e Democracia
25
3.3. Roxin trabalha a idéia-força de subsidiariedade do direito penal na
proteção dos bens jurídicos, pelo que é a última das medidas protetoras a considerar, só podendo intervir quando falharam os outros meios sociais de solução dos problemas – o sistema penal como “ultima ratio” da política social, o
que também significa que só tutelará alguns bens e não de forma total, mas
contra determinados ataques concretos. Daí a natureza fragmentária do direito penal e o princípio da proporcionalidade, que deriva do princípio do Estado de Direito.33
Tais idéias abrem ampla margem de ação ao legislador, que conserva sua
prerrogativa de estimação: o princípio da subsidiariedade é mais uma diretriz
político-criminal do que um mandato vinculante.34 Aponta, é certo, para
descriminalizações setoriais, para eventuais penas privadas, para a necessária
bipartição entre delitos graves e menos graves, comportando procedimentos
abreviados e suspensão, quanto aos processos, a última categoria.
3.4. Jescheck, na mesma senda, afirma que a política criminal deve atentar para a hierarquia dos valores constitucionais (e os deveres de proteção
correlatos), bem como ao princípio da subsidiariedade.35 Assenta-a em dois mega
princípios: o da culpabilidade (limite e critério de aferição da medida da sanção) e o do estado de direito, que pode ser visto através de um prisma formal
ou material.
Por outro lado, ressalta o tripé operacional da política-criminal: pena,
medida de segurança e vias alternativas, cuja finalidade, por razões de prevenção geral e especial, é não deixar sem reação estatal o delito cometido, mas
tampouco apenar o infrator. Nessa última hipótese destaca a “probation”, o
cada vez mais beneficiam a velocidade e o deslocamento. Numa linguagem simbólica, há mais ruas do que praças.
‘Juntos, individualismo e velocidade, amortecem o corpo moderno; não permitem que se vincule’. Nos automóveis, a cidade
contemporânea procura conforto, segurança, rapidez e solidão.” (PASQUALINI, Alexandre. O Público e o Privado,
“in”: “O Direito Público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel”, Alexandre Pasqualini...
[et al.]; Ingo Wolfgang Sarlet, organizador. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1999. pp. 32-3) - embora alguns
núcleos de democracia participativa, v.g. o orçamento de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul,
Brasil, pareçam questionar a clivagem conceitual de Benjamin Constant: a liberdade dos antigos, amiga da participação na cidade, e a dos modernos, de não serem estorvados (assente na distanciação perante o poder), cf.
CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 94.
33
ROXIN, op. cit., pp. 65-6.
34
Idem, p. 67.
35
JESCHECK, op. cit., p. 233.
26
Direito e Democracia
“sursis” franco-belga, suspensão com medidas ambulatoriais/hospitalares e,
no que interessa mais diretamente ao tema, a renúncia ao exercício da acusação pública para delitos menos graves (suspensão provisória do processo).
A crise do sistema sancionador tradicional (primordialmente o reconhecimento do componente dessocializador da privação de liberdade) não carece de
maior demonstração e as Resoluções da ONU, desde 1980, advertem ser obrigação dos Estados adotarem a prisão como “ultima ratio” e buscarem alternativas
(multa, prestação de serviços comunitários, suspensão condicional).
Este, precisamente, o núcleo da diversão, a possibilitar reação jurídico-penal sem sancionamento formal, ou seja, nos casos de escassa gravidade, o processo penal formal substitui-se por medida comunitária integrativa sem
estigmatização. A experiência alemã concentra-se nos §§ 153 e 153a do respectivo Código de Processo Penal.36
3.5. Noutra vertente, a criminologia de perspectiva interacionista37 realça o caráter criminógeno da reação formal à delinquência, problematização
que assume uma dimensão intrinsicamente política.38
A injunção básica “leave the kids alone wherever possible” desdobra-se
em quatro tópicos de política-criminal de corte interacionista: a descriminalização; a exigência de “due process”; a não intervenção radical (no sentido
de que o “alargamento das margens de tolerância será, muitas vezes, a melhor
forma de superação de conflitos e tensões”39) e a diversão, no escopo de desviar
principalmente os jovens do estigmatizante sistema de justiça criminal, a par
da conveniência de responder a condutas que denotam carências/perturbações, levando a soluções informais e não institucionais.
36
infra, item 7.
37
labeling approach, deslocando-se do crime e/ou do delinqüente para o “estudo do impacto da reação institucional e da
estigmatização sobre a identidade e a carreira do delinqüente” (DIAS/ANDRADE, Criminologia, p. 356). A “nova
criminologia” poderia resumir-se assim: a criminalidade não existe, mas se faz; é criada com a criminalização e excluída
com a descriminalização, cf. HASSEMER (Winfried), MUÑOZ CONDE (Francisco). Introdución a la criminologia y
al derecho penal. Valencia, Tirant lo Blanch, 1989. pp. 56-8. Embora a considerem excessiva, os autores reconhecem
que a perspectiva demonstra que a intervenção do direito penal pode favorecer carreiras criminais (e que afeta com
maior frequência e dureza aos integrantes dos setores socias mais baixos), além de iluminar uma investigação sobre
o princípio da oficialidade da persecução dos delitos, na busca de funções substitutivas (p. 62) – vide, sobre o princípio
citado, infra, item 5.4.
38
Idem, p. 358.
39
Ibidem, p. 360.
Direito e Democracia
27
4 A DESJUDICIARIZAÇÃO E O MINISTÉRIO
PÚBLICO
Não desconhecendo instâncias informais de controle, centra-se o “labeling”
na análise da lei criminal (instância de criminalização primária), na polícia,
no Ministério Público e no tribunal. A opção do texto, como se adiantou,
cuidará apenas do Ministério Público, embora caiba noticiar características
comuns do sistema formal de controle:
a) profissionalização e burocratização;
b) diferença fundamental de papel e atitude entre quem sofre e quem
faz a justiça (o delinquente dotado de reduzida competência de ação);
c) ambigüidade dos objetivos organizacionais (conflito entre lógica de
produção e lógica de justiça);
d) (in)coordenação entre as instâncias.40
Ainda como implicação político-criminal geral, é de se destacar a refração sofrida pela lei penal em face dos “second-codes” das instâncias de
criminalização secundárias – que podem frustrar as reformas legislativas mais
legítimas e audaciosas.41
Inconteste o decisivo papel do Ministério Público como instância formal
de controle, diante da sua função de deduzir a acusação ou de ordenar o arquivamento, a atuar como instância de seleção. Para ilustrar, na Alemanha Federal, no ano de 1970, “dos 3.100.000 processos recebidos da polícia o MP mandou arquivar 72%”.42
Historicamente, a superação do processo penal de estrutura inquisitória
40
DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., pp. 368-70.
41
Na Alemanha Federal, por exemplo, atribui-se à rotina de atuação do Ministério Público o relativo insucesso dos
programas de diversão – isto é, de desvio de casos para fora do sistema de justiça penal -, recentemente introduzidas
no processo penal relativo à pequena criminalidade, cf. DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 391.
42
cf. DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 472. Dados portugueses confirmam tal realidade: entre 1981 e 1993, o
coeficiente de acusação, depurado dos inquéritos pendentes, entrados e findos, oscila de 14,1% a 30,2% - fonte
Estatísticas da Justiça, quadro apresentado por SANTOS (Boaventura de Sousa), MARQUES (Maria Manuel
Leitão), PEDROSO (João). “O que se pune em Portugal”, in Sub Judice: Justiça e Sociedade 11 (1996), p. 88 – artigo
que reproduz algumas das conclusões do relatório da investigação Os Tribunais na Sociedade Portuguesa, da responsabilidade de uma equipe interdisciplinar do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra, dirigida pelo Prof. Boaventura de Sousa Santos.
28
Direito e Democracia
medieval (de matiz canônico-italiana, que se consolidou com os Estados Absolutistas e Policiais autoritários que se seguiram) pelo processo penal reformado, de estrutura acusatória (multividência do Estado liberal), concretizouse, com os ideais iluministas, na Revolução Francesa e na respectiva Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, desaguando no “Code d’instruction
criminelle” de 1808 – e articula-se com a emergência do Ministério Público:
“Com este (Código) o processo de tipo acusatório substitui, de vez, o tipo
inquisitório, através da criação do Ministério Público como órgão oficial de acusação (autonomizado da magistratura judicial) e da vitória dos princípios da
contraditoriedade, publicidade e oralidade do julgamento e da livre convicção probatória. Foi este sistema - podemos dizer de figurino anglo-francês e
que na doutrina ficou conhecido sob nome de processo reformado – que na
primeira metade do séc. XIX obteve prevalência absoluta na generalidade das
legislações européias continentais”.43
Assim, salta aos olhos o relevo pragmático-político do Ministério Público, que é quem, “em última instância, decide se a comunidade deve ou não
dar uma resposta formal a um caso concreto”.44 Não admira, portanto, que
tenha ganho “status” constitucional nas cartas mais recentes.
Sem descurar da pluralidade do estatuto jurídico e sociológico do Ministério Público (podendo-se colocar nos extremos o “prosecutor” americano45 e o
modelo francês, com a figura intermediária do Ministério Público alemão), é
possível e útil uma teoria geral do Ministério Público. Logo desponta, como
nota comum, a discricionariedade real na atuação do Ministério Público, que se
opera tanto em sistemas de discricionariedade formal (a “plea bargaining”
dos Estados Unidos) como em sistemas de legalidade formal (Alemanha) –
inerência da dimensão política da sua função.46
43
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, Universidade de Coimbra, Secção de Textos, p. 43. Movimento
pendular semelhante ocorreu com o processo penal português (op. cit., p. 43, item 64; pp. 54-5, itens 81 a 83).
44
DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 472.
45
O Ministério Público protagonista é a personagem glamourizada, para o bem e para o mal, pela indústria do entretenimento
norte-americana. E, contudo, há raiz histórica: “A história do MP na América é a história da progressiva e irreversível
expansão do seu domínio, acabando por se sobrepor em larga medida ao da polícia e do tribunal ... Há sistemas em que
a atuação do MP é plena e formalmente discricionária, como acontece, de forma paradigmática, no processo americano... O MP americano é provido por via eleitoral, mediante programa sufragado por uma dada comunidade mais ou
menos periférica. Por isso os critérios determinantes de sua atuação relevam fundamentalmente do empenho político na
manutenção do lugar pela reeleição, ou na promoção política” (DIAS/ANDRADE, loc. cit., pp. 474 e 478).
46
As mais modernas teorias jurídicas e metodológicas estão de acordo em que a lei não permite uma subsunção automática, antes deixa ao aplicador grandes margens de liberdade, “incluso en aquellos países en los que impera el mandato
de certeza, como consecuencia del principio de legalidad recogido en los textos constitucionales” (HASSEMER/
MUÑOZ CONDE, op. cit., p. 61).
Direito e Democracia
29
“Por um lado, o MP apresenta o estigma de Jano, condenado a
ser e atuar (simultânea e contraditoriamente) como juiz e como
polícia. Por outro lado, o MP é, por razões óbvias, a instância
formal de controle mais claramente ligada às agências
definidoras da política criminal. O MP é, por isso, a instância
de controle em cuja ação é possível identificar um maior coeficiente político. E também por essa via se ampliam as vias de
conflito no interior do papel do MP: a dimensão política não
pode deixar de colidir com o seu ethos de polícia e de juiz.”.47
Se na origem concebeu-se o Ministério Público como elo de ligação entre
o poder judicial e o poder político, hoje, nos termos constitucionais portugueses, é órgão do Poder Judicial: magistrados com garantias de autonomia e independência (art. 219, 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, CRP),
numa posição de “sujeição à lei” equiparável à dos juízes (CRP, art. 203).48
Sua função, não tendo natureza administrativa, é diferente daquela do juiz:
o Ministério Público “colabora no exercício do poder jurisdicional, sobretudo
através do exercício da ação penal e da iniciativa de defesa da legalidade democrática”. Sua autonomia radica na vinculação a critérios de legalidade e
objetividade e na sujeição exclusiva às normas emanadas da lei do Ministério
Público.49
É de se frisar que a função do Ministério Público baliza-se pelo interesse
público primário, exercida no interesse do Estado-Comunidade e não do Estado-Pessoa (Pizzorusso, apud Canotilho).
Considerando as maiores semelhanças entre os sistemas português (e brasileiro) e germânico, importa aprofundar a experiência teutônica, aliás diretamente ligada à questão da diversão. Preliminarmente, há que se distinguir dois sistemas de persecução penal, o da legalidade e o da oportunidade,
ensejo para exame, mais amplo, das implicações constitucionais do tema
em apreço.
47
DIAS/ANDRADE, Criminologia, ob. cit., p. 482.
48
Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra, Livraria
Almedina, 1999. p. 634.
49
Idem, p. 635.
30
Direito e Democracia
5 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
A íntima conexão entre o Direito Processual Penal e o Direito Constitucional é quase lugar comum, ressaltada pela unanimidade da doutrina contemporânea. Por um lado, o crime é a maior ofensa que o indivíduo pode
desfechar contra os bens da vida protegidos pelo Estado; de outro, a intervenção penal é a mais aguda e gravosa invasão perpetrada pelo Estado na esfera
individual.50
Ademais, é consabido que o direito penal substantivo não atua por si, mas
exige a regulamentação complementar do ramo adjetivo (numa relação mútua de complementariedade funcional).51 Natural, pois, que o exercício do
“jus puniendi”, na fórmula consagrada, fosse uma questão política fundamental, inerente ao exercício do poder e, como tal, juridicizada e racionalizada
pelo Constitucionalismo.
As respostas variarão de acordo com a evolução sócio-cultural de cada
comunidade, com a concepção política de fundo e as respectivas vicissitudes
históricas, tudo a refletir-se na interação das duas ordens jurídicas.52 Nesta
esteira, afirma-se que o direito processual penal é o “sismógrafo”, “espelho da
realidade constitucional”, “sintoma do espírito político-constitucional de um
ordenamento jurídico”, verdadeiro direito constitucional aplicado, na dupla dimensão destacada por Figueiredo Dias:
a) porque seus fundamentos são alicerces constitucionais do Estado;
b) porque cruciais problemas processuais têm concreta regulamentação jurídica na Constituição.53
Por exemplo, “Ampliar ou restringir as garantias do argüido no proces-
50
A sugestiva imagem é de PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Trad. Gérson P. dos Santos, Porto
Alegre, Fabris, 1989, pp. 16-7: “Se de um lado, a ação delituosa constitui, de fato, ao menos como regra, o mais grave
ataque que o indivíduo desfere contra os bens sociais máximos tutelados pela Estado, por outro lado, a sanção
criminal, também por sua natureza, dá corpo à mais aguda e penetrante intervenção do Estado na esfera individual.”
51
DIAS, Direito Processual Penal, op. cit., p. 5, item 5.
52
Significativo, e exemplar, que a definição do processo penal italiano proposta por Ferrajoli (uma série de atividades
realizadas por juízes independentes na forma prevista pela lei e dirigidas a formulação, num debate público entre
acusação e defesa, de um juízo consistente na verificação ou refutação empírica de uma hipótese acusatória e a
conseguinte condenação ou absolvição de um acusado) baseie-se em nove artigos da Constituição Italiana e em
apenas quatro do novo Código Processual. – FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 2ª ed.
Madrid, Editorial Trotta, 1997. trad. de Perfecto Ibáñez “et ali”. p. 732.
53
DIAS, idem, p. 35, item 51.
Direito e Democracia
31
so penal é problema político que muito tem a ver com a concepção de
homem subjacente à estruturação política de qualquer comunidade”. Portanto, o processo penal é o “mais sujeito a sofrer com as alterações constitucionais”.54
Esclarecedoras, e fecundas, as considerações feitas por Faria Costa, a partir
da idéia de que o ordenamento penal e o ordenamento constitucional são
matricialmente duas ordens jurídicas fragmentárias, e, embora a ordem constitucional eleja os valores mais fortes e mais densos (o núcleo duro da
normatividade constitucional), “não determina essa eleição, inapelavelmente,
uma imposição de criminalização para o legislador ordinário”, pois não há
coincidência (ou há curvas de diferença): “o direito penal não tem de ficar
adstrito ou acorrentado, de um modo positivo, à ordem de valores jurídicoconstitucionalmente protegida”.55
Nessa compreensão, “as referências e as implicações são recíprocas e também sucessivamente enriquecedoras”.56 Aceitar a função sistemática e de orientação da constituição não significa abdicar do quadro normativo de algumas categorias dogmáticas do direito ordinário, pois “a procura do exacto e
correcto sentido normativo contido na norma tem de efectuar-se através de
sucessivos afeiçoamentos e ajustamentos entre o direito penal (com a sua
dogmática) e o direito constitucional, também ele apoiado pela sua específica dogmática”.57
54
SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal. 3ª ed. rev. e atual. Lisboa, Editorial Verbo, 1996. v. I, p. 29.
55
COSTA, José Francisco de Faria. O Perigo em Direito Penal. Coimbra, Coimbra Editora, 1992. pp. 188-9. Discorrendo
acerca da concepção kantiana do caráter co-natural que intercede entre o direito penal e a constituição (fundação)
de uma comunidade organizada de homens, e sobre a confirmação antropológica da assertiva (a proibição do incesto,
enquanto tabu, como ponto de viragem da hominização sem retorno, cf. nota 26, pp. 190-1), e passando pela noção
de “minimal state” de Gewirth, desemboca o autor numa linha de pensamento que faz do direito penal elemento
fundante da sociedade política (nota 27, p. 193), até porque o direito penal foi, de um ponto de vista histórico, um prius
face à ordem constitucional, “o que está geneticamente na base, como vimos, da comunidade não é a fundação
constitucional, mas antes a constituição penalmente fundante” (nota 31, p. 220). Noutra vertente, afirma-se que o
Direito Penal, “não sendo de Direito Constitucional proprio sensu, é juridicamente constitucional, ou fundante”
(CUNHA, Paulo Ferreira da. A constituição do crime: a substancial constitucionalidade do direito penal. Coimbra,
Coimbra Editora, 1998. p. 90). Numa linguagem sugestiva, traça o dualismo simbólico: “O Direito Constitucional
apresenta o Estado nas grandes avenidas da pompa e da circunstância do poder triunfante: é narração do conto
doirado de reis e rainhas (ou do mito republicano de presidente sábios, ponderados e rectíssimos), de parlamentares
demofílicos e eloquentes, de grandes declamações de princípios e objectivos nacionais, ao som de hinos que fazem
flutuar bandeiras e comover patriotas até as lágrimas. (...) Em contrapartida, o Direito Penal, direito de morte, direito
de pobreza, direito de desvio social, direito de peso e de pecado, mostra-nos o lado negro da sociedade e do Estado:
as mãos sujas e as mãos manchadas.” (pp. 92-4).
56
COSTA, O perigo, ob. cit., nota 28, p. 194.
57
COSTA, idem, p. 199.
32
Direito e Democracia
Num esboço de cartografia constitucional58, vão destacados, por conseguinte, os princípios gerais de processo penal mais diretamente ligados à diversão (e ao Ministério Público).
5.1 O princípio da intervenção mínima ou da necessidade
Se o princípio da legalidade – no tríplice postulado: reserva legal, anterioridade da lei definidora de crime e pena; determinação taxativa, evitando-se
tipos demasiado abertos e vagos; e irretroatividade59 - impunha limites ao
arbítrio judicial, era necessário avançar mais e prevenir-se contra eventuais
abusos do legislador.
Na formulação iluminista, “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e
evidentemente necessárias” (art. 8º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão, 1789).60 Modernamente, tem-se destacado que o
princípio em tela é imanente ao Estado de Direito, articulando-se com a
própria dignidade da pessoa humana, constitucional, pois, mesmo que não
literalmente esculpido nas constituições (casos da Alemanha e da Itália,
por exemplo).
58
A proposta, de uma cartografia simbólica das representações sociais (no caso, o Direito), é de SANTOS, Boaventura de
Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (Para um novo senso comum. A ciência, o
Direito e a Política na transição paradigmática, v. I). Porto, Afrontamento, 2000. Os mapas são distorções reguladas
da realidade, distorções organizadas (segundo escalas, projeções e simbolizações) para instituir a orientação. Devem
ser fáceis de usar, do que resulta permanente tensão entre representação e orientação (representação a mais pode
impedir a orientação) – pp. 183-90. O Direito Constitucional é talvez o ramo do direito estatal (que convive, no
pluralismo jurídico, com direitos locais e globais) de menor escala num grau de média escala (entre o local e o global):
“a legalidade de pequena escala é pobre em detalhes e reduz os comportamentos e as atitudes a tipos gerais e
abstractos de ação. Mas, por outro lado, determina com rigor a relatividade das posições (os ângulos entre as pessoas
e entre as pessoas e as coisas), fornece direcções e atalhos, e é sensível às distinções (e às complexas relações) entre
parte e todo, passado e presente, funcional e disfuncional. Em suma, esta forma de legalidade cria um padrão de
regulação baseado na orientação e adequado a identificar movimentos” (p. 195).
59
vide LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre, Fabris, 1991. pp. 13-24. Princípio que, no contexto de
legalidade da administração, articulado com o da segurança jurídica e o da proteção da confiança, é considerado um
subprincípio concretizador do Estado de Direito, cf. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit. pp. 252-3.
60
De forma desenvolvida, LUISI, obra citada, pp. 25-30. Tratava-se da positivação do que fora anunciado, vez primeira em
1764, pelo gênio de Beccaria, logo no ponto II dos “Delitti”: Toda a pena que não deriva da absoluta necessidade – diz
o grande Montesquieu – é tirânica (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1998. trad. José de Faria Costa. p. 64. Como observa o Professor Marinucci, da Universidade de Milão, ao prefaciar a
obra citada (p. 39), mais tarde von Liszt repetiria que só a pena necessária é justa, máxima reconduzível, em termos
político-criminais, a idéia de que a pena criminal deve ser a extrema ratio. No dizer de Faria Costa, tradutor e
comentador do clássico (p. 20): “É assim propugnado um uso parco, cauto e racionalmente fundamentado do direito
penal. Aquela utilização que seja, na verdade, a expressão clara e inequívoca de ultima et extrema ratio.”
Direito e Democracia
33
Deriva, daí, o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal, que só
deve entrar em cena como remédio último, concepção que se choca com a
excessiva extensão da legislação penal, o fenômeno da “overcriminalization”
(aliás criticado desde o início do século XIX), a afrontar, muitas vezes, o
brocardo milenar “minima non cura praetor”. Contra a hipertrofia penal, a
nomomania, a inflação legislativa, a nomorréia penal, têm protestado, desde
sempre, significativa parcela do pensamento jurídico-criminal, a germinar e
recomendar um esforço de deflação penal.
Sob ponto de vista português, “O artigo 18, 2º da Constituição da República Portuguesa, por seu lado, deve porventura reputar-se o preceito político-criminalmente mais relevante de todo o texto constitucional: vinculando a uma estreita analogia material entre a ordem axiológica constitucional e
a ordem legal dos bens jurídico-penais, e subordinando toda a intervenção
penal a um estrito princípio de necessidade, ele obriga, por um lado, a toda a
descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização
dispensável...”.61
Recorde-se que a diversão é a face adjetiva da descriminalização e tem-se
um princípio constitucional que postula viabilizar-se toda diversão possível.
5.2 O princípio da culpa ou “nulla poena sine culpa”
Significa, consabido, que a cominação de reação criminal só pode ter por
base um juízo de censura ao agente – não pode haver pena sem culpa
(reprovabilidade),62 cuja medida mensura a própria dosimetria penal.
Seu fundamento axiológico repousa no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal, plasmado nos artigos 1º, 13-1º e 25-1º, todos da Constituição
da República Portuguesa.63
61
DIAS, Direito Penal Português, ob. cit., p. 84. Vide, também, COSTA, O perigo, p. 208 (em especial nota 11). Num prisma
mais lato, enunciado como princípio da proibição de excesso – da proporcionalidade em sentido amplo, vide
CANOTILHO, Direito Constitucional, loc. cit., pp. 261-7, com referência à intrigante questão da “proibição por
defeito”, no sentido de imposições constitucionais de criminalização a fim de proteger-se direitos fundamentais. Cf.,
ainda, supra, nota 53.
62
O contrário, subsistir culpa sem pena, é possível, vide art. 74 do Código Penal Português.
63
cf. DIAS, Direito Penal Português, loc. cit., pp. 73 e 84. Como esfera constitutiva da república, princípio material antrópico
do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo seu próprio projeto de vida, vide CANOTILHO,
Direito Constitucional, ob. cit., pp. 221-2.
34
Direito e Democracia
Neste sentido, como acuradamente destacado, estrutura-se o princípio em
apreço como tendencial obstáculo a medidas interventivas que, à partida,
prescindam de um juízo de censurabilidade, a tensionar-se com reações informais ou divertidas.64
5.3 O princípio da reserva estatal da administração da
justiça penal
A culpa, vale dizer, o juízo de censura penal, deve ser declarada por um
órgão judicial e, assim, “nulla poena sine judicio”. O princípio vincula-se historicamente a vitória da monarquia na luta dos poderes medievais travada no
sistema feudal, concentrando o rei funções “soberanas” antes repartidas por
diversos setores sociais (nobreza, igreja).
A superação da poliarquia medieval, na expressão de Hegel, deu-se particularmente cedo em Portugal, sendo tradição lusitana – o rei a afastar qualquer veleidade de “compositio” entre os particulares.65
O princípio em exame insere-se no marco das garantias processuais, que
possibilitam a existência de uma proteção jurídico-judiciária individual sem
lacunas, um dos pilares do Estado de Direito.66 Trata-se, por outro lado, de
aplicação, específica, do princípio do monopólio estatal da função jurisdicional,
em conexão com os dois itens seguintes, atinentes à iniciativa processual.
5.4 Princípio da oficialidade
A quem compete desencadear a investigação de uma infração? E quem
decide submetê-la ou não a julgamento? A disjuntiva é simples: ao próprio
Estado (ente público) ou ao indivíduo concretamente ofendido (particular).
Em linha geral, admite-se que a promoção processual é tarefa estatal, que
64
COSTA, Diversão, op. cit., p. 37.
65
Trata-se do modelo de superação de litígios através da soberania, que se estratificou na alvorada do Estado moderno,
assim formulado por Bodin em 1576 – o soberano, sem qualquer contraste interno, como terceiro isento, acima das
partes (que se dilaceravam em disputas religiosas, como na emblemática noite de São Bartolomeu), decide o litígio
e submete as facções, impondo, coativamente, sua sentença – KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del Estado.
Fundamentos históricos da la legitimidad del Estado Constitucional Democrático. Trad. Eugenio Bulygin. Buenos Aires,
Ediciones Depalma, 1980. pp. 53-61.
66
cf. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 268.
Direito e Democracia
35
deve ser realizada oficialmente, independente da vontade dos particulares,
noção que evolui com a própria formação histórica do Estado Moderno – já
que, nas sociedades primitivas, os conflitos eram resolvidos pela força ou pelo
consenso e a reparação do crime dava-se por autotutela, depois evoluindo-se
para a arbitragem e, por fim, para o modelo de soberania interna, com o
consequente monopólio estatal na administração da justiça.67
Assim, diante do interesse público na reação criminal, não se pode deixar
ao arbítrio dos particulares sua aplicação efetiva, noção moderna (diferente da
ação popular romana e da acusação privada do antigo direito germânico) consagrada em princípio no artigo 219 da Constituição da República Portuguesa,
que reserva ao Ministério Público o exercício da ação penal. É, portanto, uma
entidade oficial que tem legitimidade para promover o processo penal (art. 48 do
Código de Processo Penal) ou arquivar o inquérito (art. 276 do CPP).
Todavia, há limites e exceções ao princípio, respectivamente pela coexistência sistêmica de crimes semipúblicos, que condicionam a atuação ministerial a uma queixa do ofendido, e particulares em sentido estrito, nos quais o
ofendido constitui assistente e deduz acusação particular (CPP, arts. 49 e 50).
Justificam-se, como se sabe, por um interesse social menos agudo em reagir
automaticamente a ofensas que não atingem o interesse público de modo proeminente e pelo “strepitus fori” de certos casos (crimes sexuais, furtos familiares), que faz prevalecer o interesse particular em evitar a escandalizaçãopublicização.
“Na verdade, não é estranha à existência de crimes particulares em sentido amplo o atual mandamento político-criminal
de descriminalização aqui alcançado, não por via legal mas
sim por via real. Por outro lado, está ainda presente uma outra linha de força do atual programa político-criminal – a diversão – nesta matéria conseguida através de uma mediação
ainda que mitigada.”.68
67
Tangente ao direito criminal do período de formação do Estado Português (situado por Marcello Caetano entre os anos
de 1140 e 1248), natural que tenham coexistido “a justiça pública, aplicada pelo rei, pelos juízes, pelos senhores, pelos
concelhos – e a justiça privada exercida pelos ofendidos – vítima, parentes, vizinhos ou grupo protector”, embora a
relevante distinção entre vingança (o ofendido retribui por sua própria autoridade o mal sofrido por outro mal) e
justiça privada: o ofendido dirige-se às autoridades públicas e apresenta queixa contra o ofensor, provando sua
responsabilidade; verificada a culpa, “só então fica pela colectividade autorizado o queixoso a fazer justiça por suas
mãos” CAETANO, Marcello. História do Direito Português. V. 1, Fontes – Direito Público (1140-1495). Lisboa/São
Paulo, Editorial Verbo, 1981. pp. 249 e 248, respectivamente.
68
DIAS, Direito Processual Penal, ob. cit., p. 91. Vide, também, COSTA, supra, nota 9.
36
Direito e Democracia
5.5 Princípio da legalidade da ação penal
Sempre em grandes traços, o órgão oficial de acusação, no caso o Ministério Público, está obrigado a promover o processo penal, seja abrindo inquérito
ou deduzindo a acusação (artigo 262-2º combinado com os artigos 263, I e
283, I, todos do CPP) e, se não cumprir seu dever, sujeita-se ao crime do art.
414 do Código Penal Português (CP).
A conduta oficial, nesta senda, vincula-se estritamente à lei (subsumindose às hipóteses normativas), descabendo considerações de oportunidade (questões políticas, custos financeiros, eficácia social etc.) a obviar a persecução
penal, o que importaria em espaço discricionário, pendente de juízo de valor
do órgão acusatório.
Este é o princípio que, na dicção constitucional (art. 219 da CRP), orienta
o exercício da ação penal – o que já revela, por si, que não é sagrado de forma
absoluta. Conectado ao princípio da igualdade (art. 13 da CRP), imuniza o
sistema persecutório de influências externas e reforça a confiança (segurança
jurídica) na objetividade da administração da justiça.
De vetor inverso, o juízo da oportunidade confia no prudente juízo do Ministério Público, que decidirá da conveniência ou não de promover o processo, de acordo com apreciação casuística de sua utilidade. Considerações pragmáticas, que se amparam, é certo, em boa teoria, têm consagrado certos institutos de oportunidade, mitigando um princípio inflexível de legalidade.
“É como limitações do princípio da legalidade no sentido
da oportunidade que, numa primeira aproximação, devem
ser entendidos os artigos 280º - arquivamento em caso de dispensa ou isenção de pena – e 281º - suspensão provisória do
processo -, uma vez que, verificados os pressupostos que
condicionam a sua aplicação, eles assumem a veste de verdadeiras alternativas ao despacho de acusação. (...) o que significa também que o conflito juridico-penal é solucionado fora
do sistema formal de aplicação da justiça penal...” 69
Tal tendência político-criminal é expressamente assumida pelo Código
de Processo Penal Português, partindo aliás da “importância decisiva da dis-
69
DIAS, idem, p.97.
Direito e Democracia
37
tinção entre a criminalidade grave e a pequena criminalidade” e da necessidade de “diferente teor de reação social e formal”, a introduzir “termos de
oportunidade, diversão, informalidade, consenso, celeridade”, merecendo especial destaque a “possibilidade de suspensão provisória do processo com
injunções e regras de conduta” (Exposição de Motivos, item 6, letra “a”).
6 A DIVERSÃO A IRRITAR A ESTRITA LEGALIDADE
O percurso do atrito argumentativo entre a regra processual (introduzida
em 1987 pelo CPP) e a redação constitucional original do princípio da legalidade é revelador das complexas tensões e influências entre normas constitucionais e a legislação ordinária, culminando num ajuste semântico do texto
constitucional operado pela alteração introduzida no item 1 do artigo 219
pela quarta revisão constitucional de 1997.
A redação anterior era a seguinte (então artigo 221): Ao Ministério Público
compete representar o Estado, exercer a ação penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar.
Perguntava-se, diante da economia vocabular, se a Constituição impunha
ou não a subordinação do Ministério Público ao princípio da legalidade, questão de mais alto relevo e considerada pelo Tribunal Constitucional quando
da fiscalização preventiva do Código de Processo Penal de 1987.
Houve pronunciamento no sentido afirmativo, derivando a legalidade do
princípio da igualdade e, portanto, a acoimar de inconstitucionalidade institutos divertidos consagradores do princípio da oportunidade.
Situando o problema, Germano Marques da Silva, ainda em 1996, esclarecia que a formulação constitucional “nada estatui quanto aos princípios”,
vedado à lei ordinária, apenas, atribuir a outro órgão do Estado o exercício da
ação penal, mas não assim dispor sobre seus pressupostos e requisitos.
Por outro lado, o princípio da igualdade proíbe o arbítrio, que é diferente
da discricionariedade exercida de acordo com a finalidade de realização da
justiça: “Ora, para melhor realização da justiça no caso concreto, a lei pode
atribuir aos órgãos a quem cabe a aplicação da lei o poder de escolher, dentro
de várias medidas legalmente admissíveis, a que lhe parece mais adequada. A
realização da justiça penal no caso não passa necessariamente pela submissão
38
Direito e Democracia
a julgamento de todos quantos sejam indiciados pela prática de um crime;
não o impõe a Constituição e as mais modernas correntes doutrinárias aceitam que a tutela dos bens jurídicos penalmente protegidos e a ressocialização
dos delinquentes pode ser alcançada, em certos casos, por outros meios que
não as penas criminais.”.70
Outra linha de raciocínio, conservando íntegro o princípio da legalidade,
também concluiria pela constitucionalidade do instituto processual, pois a
omissão da acusação permitida ao Ministério Público, sob pressupostos determinados em lei e em função de um programa político-criminal, traduz “a adoção de uma nova e mais rica concepção de legalidade”, aberta à solução de
diversão.71
In verbis, “um princípio da legalidade que deixa de ser comandado por uma
idéia de igualdade formal típica dos Estados liberais para passar a ser norteado
pelas intenções político-criminais básicas do sistema penal. Intenções
radicadas na idéia de que a intervenção do sistema formal de controle deve
estritamente limitar-se pelas máximas da mais lata diversão e da menor intervenção socialmente suportáveis...”. 72
Lógico que cresce, neste contexto, diga-se ainda que de passagem, a questão
fundamental do controle e fiscalização da instituição Ministério Público.73
O fato é que, fruto da experiência cotidiana e do amadurecimento doutrinário, o texto constitucional foi enriquecido, dispondo agora: Ao Ministério
Público compete ...participar na execução da política criminal definida pelos órgãos
de soberania, exercer a ação penal orientada pela princípio da legalidade e defender
a legalidade democrática (artigo 219-1 da CRP).
Cumpre-se, parece, a assertiva de Germano Marques da Silva: “Ora, não
obstante a Constituição dispor de um vasto conjunto de garantias, frequentemente as enumera de forma sintética, deixando à lei ordinária a sua
especificação em pormenor e, por isso que o direito processual seja também
criador de direito, e não meramente regulamentar, mesmo no plano dos valores fundamentais.” 74
70
SILVA, Curso de Processo Penal, ob. cit., v. I, p.70.
71
DIAS, Direito Processual Penal, loc. cit. p. 97.
72
DIAS, idem, pp.97-8.
73
DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 479.
74
SILVA, Curso de Processo Penal, ob. cit., v. I, p. 87.
Direito e Democracia
39
No que nos interessa mais de perto, “A quarta revisão da constituição
(LC 1/97) acrescentou uma outra competência de relevante significado
político e jurídico-constitucional: a da participação do Ministério Público
na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania (art.
219, 1).”, o que, embora corolário lógico de suas competências constitucionais, “não deixa de criar algumas zonas de incerteza nas relações entre o
executivo e o judiciário”. 75
Ao Ministério Público, então, dotado seja de uma oportunidade regrada,
seja de um juízo de legalidade enriquecido, acresce a “titularidade e a direção
do inquérito, bem como a competência exclusiva para a promoção processual: daí que lhe seja atribuído, não o estatuto de parte, mas o de uma autêntica
magistratura, sujeito ao estrito dever de objetividade” (CPP, Exposição de
Motivos, III), pelo que lhe compete colaborar com o tribunal na descoberta
da verdade (artigo 53 do CPP).76
Neste diapasão, o Acórdão nº 5/94, de 27-10, do Superior Tribunal de
Justiça, jurisprudência obrigatória: Em face das disposições conjugadas dos artigos 48º a 52º e 401º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a
origem, natureza e estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do
Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição
anteriormente assumida no processo.
Por outro lado, se tal posição processual era também derivada, na jurisprudência anterior a 1997, de um princípio da legalidade, remanesce incólume
quer na ampliação conceitual do princípio da legalidade, quer pela incidência do critério, ao qual deve obediência, “de estrita objetividade, em todos os
casos, portanto também naqueles em que se admite o funcionamento do princípio da oportunidade”. 77
75
CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., pp. 635 e 636.
76
O novo Código de Processo Penal Italiano, em vigor desde 1989, rompendo com uma tradição plurisecular, adotou o sistema
acusatório (não expressamente previsto pela Constituição). Também consagra o dever do Ministério Público de levar a
cabo não só as investigações necessárias para o exercício da ação penal (art. 326), mas também para a “comprovação de
fatos e circunstâncias favoráveis à pessoa investigada (art. 358), cf. FERRAJOLI, op. cit., pp. 734-6.
77
GONÇALVES, Maia M. Código de Processo Penal Anotado. 10ª ed. rev. e atual. Coimbra, Livraria Almedina, 1999. p. 177.
40
Direito e Democracia
7 PERSPECTIVAS PORTUGUESAS
Segundo a mais abalizada doutrina, o legislador português, pelo menos
desde o marco da Revolução dos Cravos (1974), tem mantido uma visão integrada e coerente com as hodiernas tendências político-criminais, primeiro
no plano substancial (o Código Penal Português é de 1982, reformado em
1995), e, a seguir, na esfera adjetiva (o Código de Processo Penal é de 1987).
No que tange ao diploma processual, ancorou-se confessadamente num
sistema de coordenadas, cujo eixo horizontal distingue a criminalidade grave
da pequena criminalidade, ao passo que o eixo vertical traça a fronteira entre
os espaços de consenso e os espaços de conflito.78
Vislumbrando a pequena criminalidade longitudinal e o espaço de consenso latitudinal, pontuam os dois institutos que passam a ser examinados,
manifestações de diversão simples, no caso do art. 280 do CPP, e com intervenção (hipótese do art. 281 do CPP). E o protagonista de tal navegação, embora
não sujeito isolado, é o Ministério Público.79
A inspiração, clara, foi buscar-se no modelo germânico, cujo Ministério
Público é regido pelo princípio da legalidade, já que a “Alemanha sempre
recusou qualquer solução geral assente na discricionariedade do MP”.80
A par das soluções substantivas (descriminalização, contra-ordenações etc.)
sobressaem reformas no plano processual, visando a atingir maior flexibilidade na perseguição criminal, pelo que se introduziu a figura do arquivamento
puro e simples, por ausência de interesse público na persecução (§ 153 StPO),
e a do arquivamento contra injunções e regras de conduta, em face do
existente,embora diminuto, interesse público (§ 153a StPO), “um claro
afloramento da idéia de diversão”.81
78
Consoante SANTOS, Boaventura “et ali”, O que se pune em Portugal, loc. cit., apenas 40% (em média) dos crimes
acusados se comprovam em tribunal pela condenação dos arguidos (o que pode contribuir para gerar sentimento de
ineficácia do sistema), em parte em função das sucessivas anistias, “para além da importância da desistência de
queixa nos crimes particulares e semi-públicos” (mediação mitigada). Como é a ordenação das condenações (e não
das arguições) que fornece a imagem sancionatória do sistema, “Em Portugal pune-se principalmente as ofensas à
propriedade e às regras de trânsito e os comportamentos relacionados com o tráfico de droga” (p. 107).
“Os processos sumaríssimos não têm qualquer significados nas estatísticas judiciais. Este processo, que pretendia, de modo
muito célere, dar resposta a ‘pequenos crimes’ através do consenso do ofendido, do arguido, do MP e do Juiz, não
resultou por duas ordens de razões: a primeira, por um constrangimento legal de apenas poder ser aplicado a um
inexpressivo número de crimes cujo limite máximo de pena em abstracto não é superior a 6 meses; a segunda, a
relutância dos magistrados do MP em usar este processo, que também se estende para a ‘suspensão provisória do
processo’.” (SANTOS, Boaventura “et ali”, O que se pune em Portugal, ob. cit., p. 90).
80
DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 492.
79
81
idem, p. 494.
Direito e Democracia
41
Em que pese a notícia de objeções teóricas e de uma recepção inicial pouco
simpática pelo próprio Ministério Público, o instituto afirmou-se como “meio
por excelência de luta processual contra o perigo de esmagamento do sistema
da justiça penal pela pequena criminalidade”82, observação confirmada por
Jescheck ao relatar números de 1983: dos 188 mil processos suspensos, 135 mil
foram sancionados pelo Ministério Público83, ressaltando que o instituto ganhou grande importância prática – sem prejuízo de eventual esvaziamento, ao
tornar-se pena de multa encoberta aplicada em procedimento sumário (em 1981,
97% das obrigações impostas pelo Ministério Público foram pecuniárias84).
Vejamos, de volta a Portugal, articuladamente:
7.1 Arquivamento em caso de dispensa de pena
Desponta, desde logo, o arquivamento puro e simples do processo quando se
tratar de crime com previsão, na lei penal, de dispensa de pena.
Procedendo a um apuro técnico, o Decreto-lei nº 317/95 suprimiu as referências à isenção de pena, que se devia à simetria com a redação original do
art. 75 do Código Penal, também revisto em idêntico sentido pelo Decretolei nº 48/95. 85
Segundo o art. 74 do Código Penal, pode o tribunal declarar o réu culpado
mas não aplicar qualquer pena se:
a) o crime for punido com prisão até seis meses ou multa até 120 dias;
b) a ilicitude do fato e a culpa do agente forem diminutas;
c) não houver razões de prevenção que militem em contrário.
Presentes tais requisitos cumulativos, num atalho de nítido desvio processual e
grande economia, pode o Ministério Público decidir-se pelo arquivamento do
82
ibidem.
83
JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, ob. cit., pp. 70-1.
84
idem, p. 685.
85
São, com efeito, institutos distintos, destinando-se a dispensa de pena a resolver casos de bagatela, “em que se verificaram todos os pressupostos de punibilidade mas em que não se justificaria a aplicação de qualquer sanção penal, já que
tanto não seria exigido pelo fim das penas” (GONÇALVES, Maia M. Código Penal Anotado. 13ª ed. Coimbra, Livraria
Almedina, 1999. p.263), enquanto a isenção de pena exclui a sanção por inexistência de razões de punibilidade, v.g.,
a desistência voluntária da tentativa, pelo que não dão azo sequer a processo criminal (p. 264).
42
Direito e Democracia
processo, com a concordância do juiz da instrução (art. 280-1, CPP). Trata-se de
um arejamento de conteúdo de oportunidade, movendo-se o Ministério Público,
todavia, “dentro de critérios estritos de objectividade e de imparcialidade”.86 Como
no § 153 da StPO, verifica-se uma pequena mas firme ruptura com o axioma da
legalidade estrita, muito embora a oportunidade esteja mais no critério de ponderação da inexistência ou não de interesse público na persecução.87
É uma discricionariedade regrada ou vinculada, mesmo que o conceito indeterminado permita âmbito relativamente largo de opção político-criminal,
passando pelo crivo homologatório do juiz de instrução, “não sendo necessária
qualquer intervenção do arguido, uma vez que não chega a haver acusação”.88
No caso da acusação já ter sido deduzida, o arquivamento compete ao juiz,
com a anuência do Ministério Público e do arguido (art. 280-2, CPP). A não
concorrência de qualquer dos assentimentos necessários fará com que o processo prossiga.
O disposto no art. 280-3 do CPP deve ser interpretado (não sindicabilidade
da decisão de arquivamento), tendo plena incidência no que tange ao arguido,
porque lhe é medida favorável, “não havendo portanto legitimidade ou interesse de agir de qualquer desses sujeitos processuais”. Será sempre, noutro viés,
“impugnável pelo assistente, com o fundamento de que não se verificaram os
pressupostos”. Já a decisão do juiz “pro societate” (não aceitando o arquivamento ou decidindo pelo prosseguimento), é suscetível de impugnação mediante recurso, o que é perfeitamente lógico e admissível, em face do caráter
regrado e objetivado do juízo discricionário.89
Em sentido contrário (com a ressalva de impugnação com fundamento
em violação de lei), Germano Marques da Silva90, que também condiciona o
GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, loc. cit. p. 529.
COSTA, Diversão, loc. cit., p. 58.
88
GONÇALVES, idem, ibidem.
89
cf. GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, op. cit., p. 530.
90
SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal. Lisboa, Verbo, 1994. v. III, p. 104. “Só que por esses fundamentos só o
assistente poderá ter legitimidade para impugnar a decisão de arquivamento, uma vez que relativamente ao argüido, não
tendo sido formulado qualquer juízo de imputação, caímos na regra geral. O argüido não pode nunca impugnar qualquer
decisão de arquivamento do MP nem pode recorrer da decisão do juiz, por falta de interesse de agir (art. 401º, nº 2). O
assistente pode impugnar o despacho de arquivamento com fundamento na ilegalidade da decisão e pode fazê-lo por duas
vias: recurso e instrução. Se o MP decidir o arquivamento e faltar a concordância do juiz, o meio processual para o assistente
impugnar o despacho é o requerimento de instrução; o arquivamento é ilegal e o assistente formulará acusação,
consubstanciado no seu requerimento instrutório, submetendo a decisão do MP e a sua acusação a comprovação do juiz de
instrução. Se, porém, tiver havido a concordância do juiz, o meio para a impugnação pelo assistente deverá ser o recurso,
porquanto o juiz de instrução já se pronunciou ao concordar com a decisão do MP.” (SILVA, idem, p. 120).
86
87
Direito e Democracia
43
arquivamento divertido a indícios da prática de um crime e da responsabilidade do arguido, pois, do contrário, “a decisão do MP há de ser tomada no
âmbito do art. 277 e não do art. 280”.
Imperativo, por outro lado, já que o arguido não se pode opor ao arquivamento, considerá-lo “como presumido inocente relativamente aos fatos pelos quais correu o inquérito apurado”.91
Quanto ao controle da atuação do Ministério Público, é duplo: pela intervenção hierárquica, nos termos do art. 278 do CPP e pela sindicância judicial,
que “não traduz um ato de fiscalização da legalidade do procedimento do MP,
mas uma verdadeira decisão sobre a legalidade e adequação do arquivamento”.92
7.2 Suspensão provisória do processo
À configuração do instituto, já no “caput” do art. 281-1 do CPP, acresceu a
expressão com a concordância do juiz da instrução, uma vez que o Tribunal Constitucional considerou eivada de inconstitucionalidade a disposição original
do projeto (que previa a suspensão pelo Ministério Público sem a intervenção
de um juiz), ao violar os artigos 32, nº 4 e 206, ambos da CRP. Ademais, o
primeiro limite para a pena de prisão era de três anos, aprofundando-se a
incursão divertida pela Lei nº 59/98, que majorou o teto para cinco anos, a
aumentar, portanto, o campo de aplicabilidade da medida.93
A suspensão provisória do processo assenta na solução consensual, a possibilitar a proteção de bens jurídicos penalmente tutelados - com reação estatal – e a ressocialização do agente, que agiu com culpa diminuta, sendo “possível atingir por meios mais benignos do que a pena criminal os fins que presidiram à incriminação, em abstrato, dos fatos”.94
Em casos a priori não considerados graves, em face da medida da pena abstratamente cominada (até cinco anos), cabe ao Ministério Público, findo o
inquérito, decidir pela suspensão, todavia mediante a imposição ao arguido
das injunções e regras de conduta previstas nas alíneas “a” até “i” do nº 2 do
91
SILVA, Curso, op. cit., v. III, p. 104.
92
SILVA, idem, p. 105.
93
cf. GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, ob. cit., p. 531.
94
SILVA, Curso, loc. cit, v. III, p. 110.
44
Direito e Democracia
artigo 281, desde que, cumulativamente, estejam presentes os requisitos
elencados nas alíneas “a” a “e” do nº 1 do artigo em tela:
a) concordância do arguido e do assistente (além daquela do juiz, prevista já no “caput”) – alarga-se a margem exigível de consenso;
b) ausência de antecedentes criminais;
c) não ser o caso de medida de segurança de internamento;
d) caráter diminuto da culpa;
e) previsão de que o cumprimento das medidas seja resposta suficiente
às exigências concretas de prevenção.
“Quid juris” se não houver o ato judicial homologatório? “Caso se não
verifique a concordância, tudo se passará como se não tivesse havido a decisão do MP de suspender o processo, devendo portanto este seguir seus trâmites normais”.95
O juízo de oportunidade do Ministério Público será versado em despacho
fundamentado (artigo 97-2 e 4 do CPP) e, como é condicionado, no dizer de
Conde-Pumpido Ferreiro, “não existe uma autêntica antítese entre legalidade e oportunidade, enquanto esta vem regulada por aquela e se estabelece o
controle judicial para evitar que o seu uso possa afastar-se dos limites estabelecidos por lei”.96
A jurisprudência vai mais longe, entendendo que a intervenção do juiz
deve abarcar as própria medidas impostas pelo Ministério Público, apondolhes anuência.97 Ademais, os acórdãos têm entendido que o despacho judicial
que indefere a proposta de suspensão formulada pelo Ministério Público não
é passível de recurso, na dicção legal do nº 5 do artigo 281 do CPP.
Similarmente ao ponderado em relação ao item 3º do artigo 280 do estatuto processual, nesta altura há as dissonâncias já apontadas de Maia Gonçal95
GONÇALVES, idem, p. 532.
96
apud SILVA, Curso, v. III, p. 110, nota 3.
97
Não, porém, modificá-las: “Suspensão provisória do processo – Poderes do Juiz de Instrução (Acórdão de 8 de abril de
1997). Sumário: I – O Juiz de Instrução não pode substituir-se ao Ministério Público no sentido de, por sua iniciativa,
decretar a suspensão provisória do processo, ou impor injunções e regras que não tenham sido propostas por aquela
Magistratura. II – A intervenção do Juiz de Instrução visa apenas verificar se estão reunidos os pressupostos da
suspensão provisória do processo.” (Colectânea de Jurisprudência, ano XXII, 1997, tomo II. Coimbra, Palácio da
Justiça. p. 274 (Relação de Évora).
Direito e Democracia
45
ves98 e, afigurando-se-lhe insindicável apenas o juízo de oportunidade do
Ministério Público (acusar ou suspender), de Germano Marques da Silva, que
aceita a impugnação em caso de ilegalidade (decisão não escorada nos requisitos e pressupostos do item 1º do artigo 281).
Quanto às injunções e regras de conduta, não podem, por óbvio, ofender a
dignidade pessoal do arguido, nos exatos termos do item 3º do artigo em exame.
Reitere-se “que o arguido, mesmo sofrendo e cumprindo as injunções e
regras de conduta, há-de continuar a ser considerado como presumido inocente.”.99
A suspensão do processo pode durar até dois anos, não correndo a prescrição no decurso deste prazo (artigo 282-1º e 2º, CPP). Trata-se de caso de
suspensão do prazo - vide artigo 120-3º do Código Penal.
Cumpridas as medidas, o Ministério Público arquiva o processo, que não
pode ser reaberto (artigo 282-3º, 1ª parte, CPP): “Agora não há qualquer intervenção do juiz; a decisão é exclusivamente do MP. O assistente pode, por isso,
discordando da decisão do MP, nomeadamente por entender que não se verificaram os pressupostos indicados no art. 282º, nº 3, impugnar aquela decisão de
arquivamento, nos termos gerais, isto é, através do requerimento de abertura de
instrução. O arguido não pode impugnar a decisão de arquivamento.”.100
Acaso descumpridas as injunções e regras de conduta, o processo prossegue (art. 282-3º, 2ª parte), o que deve ser lido “cum grano salis”: “o não cumprimento de qualquer injunção ou regra de conduta não poderá, por si e automaticamente, desencadear o prosseguimento do processo. A disposição do
período final do nº 3 tem que ser objecto de uma interpretação ponderada,
harmônica com os princípios perfilhados pelo CP, nomeadamente sobre a culpa, o que terá como resultado uma interpretação restritiva. É, desde logo,
exigível que a falta, para que possa desencadear o prosseguimento do processo, seja imputável ao arguido pelo menos a título de culpa. Também se nos
afigura que faltas mínimas, de desvalor ético-jurídico de reduzido significado,
terão como consequência mais adequada v. g. uma solene advertência do que,
desde logo, o prosseguimento do processo.”.101
98
GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, op. cit., p. 533.
99
SILVA, Curso de Processo Penal, v. III cit., p. 112.
100
SILVA, idem, p. 122.
101
GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, ob. cit., pp. 533-4.
46
Direito e Democracia
7.3 Outras hipóteses
Longe de pretender esgotar a multifacetada rede de elementos divertidos
que se espalha no sistema processual-penal português, afigura-se producente
destacar alguns pontos, recolhidos da legislação esparsa, apenas para melhor
contextualizar o princípio.
No âmbito da legislação atinente a tráfico e consumo de estupefacientes e
substâncias psicotrópicas, o Decreto-lei nº 15/93, além de prever medidas de
feição terapêutica, via remessa para mediação por serviços de saúde (art. 43,
sujeição voluntária de consumidor habitual a tratamento), que se aplicam
mesmo para crimes mais graves – afastando, em regra, a prisão preventiva do
arguido que tenha em curso um programa de tratamento de toxicodependência
(art. 55, 1-4) -, é possível haver dispensa de pena (e, portanto, arquivamento
divertido), no caso de consumidor ocasional (art. 40), a par de expressa previsão de suspensão provisória do processo para crimes com pena não superior a
três anos, verificados os pressupostos subjetivos das alíneas “d” e “e” do art.
281 do CPP.
Mantém-se a estrutura básica do instituto: iniciativa do Ministério Público, com a concordância do juiz e a anuência do arguido, impondo-se-lhe,
também, em caso de toxicodependência, para além das medidas referidas no
nº 2 do art. 281 do CPP, tratamento ou internamento. Contudo, “em termos
globais, os casos de suspensão representam apenas cerca de 0,3% dos inquéritos findos durante o mesmo período”.102
No que tange ao regime jurídico do cheque sem provisão de fundos, houve
recente aposta legislativa na mediação mitigada, prevendo o art. 11 A do
Decreto-lei nº 316/97 a queixa como condição de procedibilidade do respectivo procedimento criminal, independente do valor do cheque – a retomar,
aliás, uma tradição emergente de um decreto já de 1927, a ilustrar as idas e
vindas da política-criminal e sua inescapável dimensão histórica.
102
ROCHA, João Luís de Moraes Rocha. “Suspensão provisória do processo e consumo de estupefacientes”, in Revista
Portugues de Ciências Criminais 9 (1999). p.111. De acordo com os dados estatísticos, o consumo de estupefacientes é
o crime, logo após o de furto, a fundamentar o maior número de suspensões provisórias – oscila entre 75% e 97% o
arquivamento dos processos suspensos, a indicar sucesso (p. 112); adiante, o autor refere-se à estranheza causada pela
parca utilização do instituto, pois “o mero bom senso aconselharia a aplicação sistemática de uma medida de
comprovado êxito”, e procura explicar as razões, que vão da “relativa novidade com a ‘natural’ resistência à novidade”, passam pela deficiente informação dos profissionais envolvidos quanto ao específico domínio da adição, até às
distorções emergentes do próprio sistema judicial (redigir a acusação remete para o âmbito do juiz de julgamento um
caso complexo, sem a retenção que a suspensão implicaria, o que é gratificante para o magistrado preocupado em
apresentar estatísticas a serviços de inspeção), pp. 115-6.
Direito e Democracia
47
De fato, trata-se de reação ao que se chamou, à semelhança do que ocorre
na justiça cível, colonização da justiça penal pelo crime de emissão de cheques
sem provisão (versão “criminalizada” da cobrança das dívidas civis e comerciais: 31,3% dos crimes processados pela sistema judicial português, no ano de
1993, eram de emissão de cheques sem provisão).103
8 INICIATIVAS BRASILEIRAS *
No Brasil, concretizando o mandamento constitucional que ecoava desde
1988 (art. 98, inciso I, da Constituição Federal), a recente Lei nº 9.099/95
regulamentou a persecução penal das infrações penais de menor potencial ofensivo (na feliz expressão da Carta Magna), assim consideradas aquelas cuja pena
máxima não ultrapassa um ano e a que não estejam previstos procedimentos
especiais.
O diploma todo é marcado pela ideia-força do consenso, da diversão, da
oportunidade regrada, da mediação (mitigada e direta). Tornou as lesões leves e as culposas crimes de ação penal condicionada à representação; terminou com os inquéritos policiais, substituídos por boletins circunstanciados;
estabeleceu momento prefacial de composição, na audiência preliminar, entre “autor do fato” e ofendido, incentivada pelo Ministério Público e coordenada pelo juiz; não havendo reincidência, possibilita a transação entre o Ministério Público e o autor do fato que, assumindo o cumprimento de pena não
privativa de liberdade (em geral prestação de serviço comunitário, multa ou
doação, como restrição de direito atípica), tem extinta sua punibilidade sem
sequer sujeitar-se a processo e permanecendo sem registros (salvo arquivo interno, aos efeitos de não ser concedido o mesmo benefício em interregnos
menores do que cinco anos) – a medida, para aperfeiçoar-se, deve ser homologada pelo juiz.
103
*
Cf. SANTOS, Boaventura “et ali”, O que se pune em Portugal, p. 91, “em resultado do aumento das transações
econômicas e da preferências por este tipo de ‘pagamentos-garantias’ de dívida” (p. 93). Aliás, depois de um
“endurecimento” do regime punitivo (pelos DL nº 400/82, de 27/9, e DL nº 14/84, de 11/1), “em 28/3/1992 entrou
em vigor o DL nº 454/91, de 28/12, que pretendeu restringir a criminalização do uso do cheque aos que
efectivamente foram emitidos causando prejuízo, descriminalizando de forma clara os cheques de mera garantia”
(idem, p. 94).
Manteve-se o tópico, obviamente perfunctório, vez que o escopo era ilustrar, aos colegas portugueses e de outras nacionalidades, o “sistema” divertido brasileiro. Não houve preocupação, portanto, de atualização bibliográfica, inalteradas
as referências de então, lançadas em 1999 diante do material disponível no estrangeiro.
48
Direito e Democracia
Além do que, a referida legislação introduziu a suspensão do processo para
outra categoria de crimes, aqueles cuja pena mínima não ultrapassa um ano.
Pressupõe, a proposta a cargo do Ministério Público, acusação formulada, aceitação pelo arguido e homologação pelo juiz (que deixa de receber a denúncia
escrita), incluindo sempre a reparação do dano ou satisfação à vítima, a par de
outras condições, a serem cumpridas no prazo de dois a quatro anos. Findo o
termo sem revogação, extingue-se a punibilidade.104
Recente estudo sociológico da implantação dos Juizados Especiais Criminais em Porto Alegre fornece dados e instigante quadro analítico105 *, a indicar desencontros entre o discurso de justificação da diversão e a prática judiciária. Por exemplo, embora previstos conciliadores escolhidos fora da administração da justiça penal, como tal disposição não foi implementada, os juízes
que atuam nos Juizados são os mesmo que atuam nas Varas Criminais, “valendo-se mais de uma relação de poder hierárquica e intimidatória sobre as partes para encaminhar uma solução para o caso do que de uma proximidade
advinda de vínculos sociais comunitários”.
Em realidade, a inovação retirou da “autoridade policial a prerrogativa
que tinha de selecionar os casos considerados mais ‘relevantes’, que resultava
no arquivamento da grande maioria dos pequenos delitos”. A nova demanda,
agora alocada para o Judiciário, “passou a representar quase 90% do movimento processual penal global”. Donde conclui-se que, no caso brasileiro, “a
informalização da justiça penal na verdade não ampliou o controle social formal do Estado sobre novas condutas, uma vez que esse controle era exercido
pelas delegacias de polícias”, mas permitiu uma “espécie de recriminalização,
substituindo o delegado pelo juiz no exercício da função de mediação”, que
significou, sem paradoxo, aspectos emancipatórios: ao substituir-se a mediação policial, informal e arbitrária (amiúde combinada com mecanismos de
intimidação das partes), pela judicial, que “tende a ampliar o espaço para a
104
De uma literatura que se vai tornando farta, sugere-se, para quem deseja aprofundar o estudo da experiência brasileira:
GOMES,
Luiz
Flávio.
Suspensão
condicional
do
processo
penal.
2ª
ed..
rev. e ampl. São Palo, Revista dos Tribunais, 1997; MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados especiais criminais. São Paulo,
Atlas, 1997; JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos juizados especiais criminais anotada. 3ª ed. São Paulo, Saraiva,1996; GRINOVER, Ada Peligrini. FILHO, Antônio Magalhães Gomes. e FERNANDES, Antônio Scarance.
Juizados especiais criminais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996.
105
AZEVEDO, Rodrigo G. de., “A Informalização da Justiça Penal e a Lei 9.099/95 – Entre a Rotinização do controle penal
e a ampliação do acesso à justiça”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 30, Ed. Revista dos Tribunais, abril-maio
de 2000, no prelo.
*
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Informalização da Justiça e Controle Social: estudo sociológico da implantação dos
juizados especiais criminais em Porto Alegre. São Paulo: IBCCRIM, 2000.
Direito e Democracia
49
explicitação do conflito e a adoção de uma solução de consenso entre as partes, reduzindo a impunidade”.106
Desde 1990, é justo que se destaque, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/90), também imperativo constitucional, vive-se experiência verdadeiramente divertida no que tange à
delinquência juvenil. Ao adolescente infrator, sob determinados pressupostos, ao invés de desencadear o processo, pode o Ministério Público aplicar
remissão, espécie de perdão eventualmente cumulado com medidas sócioeducativas e de proteção, que devem ser homologadas pelo juiz e oscilam da
simples advertência, prestação de serviço comunitário, submissão a tratamento
de desintoxicação, obrigação de matrícula e frequência a estabelecimento
oficial de ensino fundamental etc.
9 A HARMONIZAÇÃO DA DIVERSÃO
O que se espera, a final, de um processo penal no quadro de um Estado
de Direito Democrático e Social? Segundo a exposição de motivos do CPP,
“o processo penal tem por fim a realização da justiça no caso, por meios
processualmente admissíveis e por forma a assegurar a paz jurídica dos cidadãos”.
Busca-se, portanto, um modelo processual preordenado à concordância prática das teleologias antinômicas, na busca da maximização alcançável e admissível
e com as respectivas implicações: realização da justiça, tutela de bens jurídicos, estabilização das normas, paz jurídica dos cidadãos – e de forma eficiente
(suficiente a prevenção?).
A doutrina comunga, em grandes linhas, de tal concepção: impõe-se “uma
visão harmônica que combine e concilie as três missões básicas do processo:
jurídica, enquanto instrumento para a realização do direito objetivo; política,
como garantia do arguido; social, enquanto contribui para a pacífica convivência social”.107
106
No sentido de que as “formalidades criam barreiras, mas também proporcionam um espaço no qual é possível proteger
os setores socialmente desfavorecidos, enquanto os procedimentos informais são mais facilmente manipuláveis”
(AZEVEDO, A informalização, op. cit.).
107
SILVA, Curso, v. I cit., p. 48.
50
Direito e Democracia
Assim também destacadas por Figueiredo Dias as seguintes finalidades
primárias:108
1) a realização da justiça e a descoberta da verdade material;
2) a proteção dos direitos fundamentais das pessoas;
3) o restabelecimento da paz jurídica comunitária.
Se, no mais das vezes, tais fins têm caráter antinômico e antitético, a penosa e delicada tarefa é operar a concordância prática das finalidades em conflito, numa optimização de mútua compreensão, tendo como alicerce intocável
a dignidade da pessoa humana (princípio axiológico) – art. 2º da CRP.109
Do próprio princípio do Estado de Direito, deduz-se a exigência de um
procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito110, que se concretiza em garantias gerais de procedimento e processo (exemplo, processo equitativo, art. 20-4º, CRP) e outros específicos de processo penal (e.g., “no bis in idem”, art. 29-5º, CRP).
A já citada quarta revisão constitucional, em linha de tensões, inovou ao
prever um direito a procedimentos céleres e prioritários (art. 20-4º, CRP).111
Há que se compreender, na melhor perspectiva, a Constituição como um
sistema aberto de regras e princípios. Ambos participam do gênero normas jurídicas, com distinções qualitativas:112
1) os princípios impõem optimização, variando sua concretização conforme o condicionalismo fático-jurídico – as regras prescrevem exigências que se cumprem ou não;
2) a convivência dos princípios é conflitual – das regras é antinômica (os
princípios coexistem, as regras excluem-se;
3) os princípios permitem o balanceamento de valores e interesses, consoante peso e ponderação de outros princípios – as regras, ao revés,
obedecem à lógica do tudo ou nada.113
108
DIAS, Direito Processual Penal, loc. cit., pp. 20-6.
109
o princípio antrópico referido por Canotilho, cf. nota 63, supra.
110
CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 268
111
cf. CANOTILHO, idem, p. 472.
112
CANOTILHO, Direito Constitucional, lo. Cit., p. 1.088 1.087, respectivamente.
113
Idem, p. 1.177.
Direito e Democracia
51
É de se reter que os conflitos entre princípios podem ser objeto de
harmonização e é assim, adiante-se, que se compreende a interação do princípio da diversão, protagonizado pelo Ministério Público, com os outros princípios constitucionais referidos.114
Tal concepção permite ao sistema respirar (pela “textura aberta” dos princípios), legitimar-se (os princípios consagram valores, dignidade, justiça, com
capacidade deontológica de justificação), enraizar-se (referências sociológicas aos programas e pessoas) e caminhar (através da dinâmica processual e
procedimental adequados, densificando e realizando na prática as mensagens
normativas constitucionais).
Permite “que a Constituição possa ser realizada de forma gradativa, segundo circunstâncias factuais e legais”.115
A harmonização, ínsita à convivência principiológica, significa que um
princípio não tem validade absoluta, no sentido de que possa se impor com o
sacrifício total de outro. Ao revés, como princípio de interpretação, o princípio da concordância prática (da harmonização) parte da ideia de igual “valor
dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede,
como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma
harmonização ou concordância prática entre estes bens.”.116
114
Afasta-se, de plano, em sede de diversão, a ocorrência de limites imanentes, vale dizer, que os princípios constitucionais
referidos no item pudessem exluir em termos absolutos certas formas ou modos de exercício divertidos – para uma
configuração doutrinária acurada dos limites imanentes, vide ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra, Almedina, 1998. pp. 215-9.
115
Ibidem, pp. 1.089 e 1.109, respectivamente.
116
CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., p. 1.150. Na lição de Vieira de Andrade, “haverá colisão ou conflito
sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição
concreta. A esfera de proteção de um certo direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera
de outro direito ou de colidir com uma norma ou princípio constitucional.” (p. 220); a solução “não pode ser resolvida
com o recurso à idéia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais. Não se pode sempre (ou talvez nunca)
estabelecer uma hierarquia entre os bens para sacrificar os menos importantes.”, pois “não é lícito sacrificar pura e
simplesmente um deles ao outro.” (p. 221). A solução é de procurar “no quadro da unidade da Constituição, isto é,
tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes. Esse princípio da concordância prática (...) é apenas
um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação de todos os valores constitucionais
aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição (essa, sim) seja preservada na maior medida
do possível.” (p. 222). Tal princípio executa-se “através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos
do conflito”, exige-se que “o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda
dos outros.” (p. 223). “É, nessa medida, uma actividade simultaneamente de interpretação e de restrição – de
interpretação restritiva – mas que parece dever, tal como a concretização dos limites imanentes, integrar-se na
competência interpretativa do juiz e, em geral, dos aplicadores da Constituição.” (p. 224) – ANDRADE, J. C. Vieira
de, Os direitos fundamentais, op. cit.
52
Direito e Democracia
Adiante 117 , os dois exemplos fornecidos foram retirados de casos
paradigmáticos da jurisprudência alemã e, muito significativamente, envolvem diretamente problematizações processuais penais: o direito à informação (emissão de um documentário, por canal de televisão, sobre um crime
grave há anos ocorrido) contra o direito à ressocialização individual (o condenado, já em liberdade e trabalhando, argumentou que seria reestigmatizado)
– prevaleceu, no caso concreto (caso Lebach), o direito à ressocialização118; e
o direito à vida, o dever de proteção de bens constitucionais e o direito das
vítimas, tendo prevalecido o adiamento de um julgamento de crime grave,
em prol do direito à vida (risco de enfarte na iminente audiência pública) e
em detrimento, circunstancial, do direito/dever do Estado de prossecução
penal, a par do direito das vítimas a uma decisão judicial justa e eventual
reparação.
As concretizações processuais do princípio da diversão têm demonstrado
bem a possibilidade de soluções de compromisso entre os variados princípios
constitucionais em linha de tensão, assim como entre as finalidades
legitimadoras do próprio processo penal.
É o que se vê da enunciação das considerações e recomendações do já
mencionado Colóquio Internacional de Tóquio, destacando-se: a superação
dos conflitos (que deita raízes na busca de paz social), a ressocialização (que
deriva do próprio princípio da dignidade humana), a satisfação à vítima (reforçando a paz social), o evitar-se a manutenção de arquivos criminais
estigmatizantes, assim como reduzir a sobrecarga do sistema de administração
da justiça penal. Na prática:
a) é essencial a cooperação e o assentimento do sujeito divertido, que
deve ter a opção de submeter-se, preferindo, ao sistema formal –
recomendações nº 3 e nº 11;
b) desnecessário que o sujeito reconheça a culpa – recomendação nº 5;
117
CANOTILHO, idem, pp. 1.161-2.
118
Vide, a respeito do Lebach-Urteil, de 15 de janeiro de 1958, ANDRADE, Manuel da Costa. Liberdade de imprensa e
inviolabilidade pessoal: uma perspectiva criminal. Coimbra, 1996. pp. 47-9. Sobre o princípio da socialidade ou da
solidariedade (um dos princípios diretores de política-criminal de emanação jurídico-constitucional) é apresentado
por Figueiredo Dias como “vertente social” do Estado de Direito – imanente, portanto, à cláusula do Estado de
Direito social: ao Estado que faz uso do seu ius puniendi incumbe, em compensação, um dever de ajuda e de solidariedade para com o condenado, proporcionando-lhe “o máximo de condições para prevenir a reincidência e prosseguir a
vida no futuro sem cometer crimes” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Português. As consequências jurídicas do
crime. Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, 1993. p. 74).
Direito e Democracia
53
c) a mesma pessoa não pode atuar como mediadora e
subsequentemente, em caso de insucesso, como árbitro do mesmo
conflito – recomendação nº 10;119
d) os arquivos devem operar apenas internamente, isto é, registros para
evitar nova aplicação inadequada do instituto, sem qualquer notícia externa – recomendação nº 15.120
Por outro lado, as resoluções do XIII Congresso Internacional de Direito
Penal, realizado no Cairo (Terceira Seção, Diversão e Mediação), referem as
virtudes vitimológicas do instituto (justificação nº 5); as medidas restritivas
de liberdade, embora a anuência do sujeito, devem passar pelo crivo judicial.
Releva o item 6º da justificação, no que tange à redução da sobrecarga dos
tribunais, tendo prevalecido o ponto de vista dos “scholars”, no sentido de
que tal finalidade não deve constituir-se no principal objetivo das medidas
divertidas, mas sim como efeito secundário.
Ainda, a legalidade, como princípio de prossecução penal, pode conciliarse com os institutos divertidos, visto que o Ministério Público não fica inativo, mas desencadeia passos necessários para a efetivação das medidas adequadas (preâmbulo, item 4), reconhecidamente uma abordagem formalista que
não responde à pergunta acerca dos critérios sopesados pelo Ministério Público para desencadear ou não um processo formal ou uma medida divertida.121
CONCLUSÃO
O que se vê, pois, são teias complexas, que procuram não deixar de fora
nenhum dos principais fios axiológicos e normativos atinentes ao princípio
da diversão e que, entretecidos, sustentam, numa tensão dialética, as experiências concretas, cuja aferição do sucesso em atingir os objetivos é tarefa que
nunca acaba.
Por fim, há que se destacar, numa busca de síntese plástica, que o princípio
da diversão assenta e viabiliza, numa palavra, na tolerância, um valor muito
119
O sistema dos juizados brasileiros, neste particular, carece de aperfeiçoamento, pois, na ausência dos conciliadores leigos,
é comum o juiz, que não logrou êxito na conciliação, instruir e julgar o feito (cf. supra, item 8).
120
Revue Internationale de Droit Pénal 54 (1983), pp. 908-15.
121
Revue Internationale de Droit Pénal 56 (1985), pp. 513-20.
54
Direito e Democracia
caro e necessários aos nossos dias – que se não confunde com permissividade
mas muito menos com fanatismos e fundamentalismos.122
Faz parte desta caminhada da humanidade reconhecer que o direito penal
e seu sistema processual são inadequados para monitorar o modo de ser das
pessoas, seus deuses e diabos são questões de foro íntimo (cada um sabe a dor
e a delícia de ser o que é, na composição de Caetano Veloso).
Em nosso campo, há que potenciar o modelo verde de política-criminal,
diversificar as alternativas da diversão 123 , “contrabalançar o ímpeto
criminalizante do legislador moderno e evitar a estigmatização dos sujeitos”124,
aproveitando-nos das tendências descentralizadoras das organizações sociais
de nossos dias, que são facilitadoras, por óbvio, da diversão. Claro que numa
perspectiva realista, reconhecendo que as zonas preferenciais para aplicação
de tais medidas estão na pequena e média criminalidade.
Insere-se, tal discurso, num plano de ambiência cultural mais amplo, cuja
ética vem sendo delineada por muitos, por exemplo Umberto Eco nos seus
“Cinco Escritos Morais” (a importância da tolerância, numa realidade de migrações, época em que urge aprender a conviver com a diferença), e cuja estética (como proposta literária não excludente) foi consagrada por Ítalo
Calvino.125 Apropriando-nos, então, de sua racionalidade estético-expressiva, desejaríamos (e acreditamos que gradativos incrementos do princípio da
122
“Em 1721, com uma ingenuidade fingida que não escondia a acidez do sarcasmo, Charles-Louis de Secondat perguntou-nos: ‘Persas? Mas, como é possível ser-se persa?’ Vai já para trezentos anos que o barão de Montesquieu escreveu
as suas famosas Lettres Persanes (...) continuamos a não entender como foi possível a alguém ter sido ‘persa’ e, ainda
por cima, como se já não fosse desproporcionada tal extravagância, persistir em sê-lo hoje, quando o espectáculo que
o mundo oferece nos pretende convencer de que só é desejável e proveitoso ser-se aquilo que, em termos muito gerais
e artificiosamente conciliadores, é costume designar por ‘ocidental’ (...) Ser ‘persa’ é ser o estranho, é ser o diferente,
é, numa palavra, ser outro. A simples existência do ‘persa’ tem bastado para incomodar, confundir, desorganizar,
perturbar a mecânica das instituições (...) A mesma névoa que impede ver pode ser também a janela aberta para o
mundo do outro, o mundo do índio, o mundo do ‘persa’... Olhemos em silêncio, aprendamos a ouvir, talvez depois,
finalmente, sejamos capazes de compreender.” SARAMAGO, José. Chiapas, nome de dor e de esperança, Visão, 09 de
junho de 1998, in: Folhas Políticas. 1976-1998. Lisboa, Caminho, 1999. pp. 209-14.
123
Uma das tendências do atual Direito Penal, que parece estável e dificilmente reversível para HASSEMER/MUÑOZ
CONDE, op. cit, p. 170, passa pelas diferenciações no conjunto do sistema, aumentado os instrumentos jurídicopenais, em todos os setores de controle, tanto na criação das normas, como na sanção e no processo. Dizem o mesmo
em relação à “desformalización de sus instrumentos” (p. 173).
124
COSTA, Diversão, op. cit., p. 66.
125
CALVINO, Ítalo, Seis propostas, op. cit. Trata-se das “Norton Lectures” promovidas desde 1926 pela Universidade de
Harvard (um ciclo de seis conferências no decorrer de um ano letivo - Calvino fora o primeiro convidado italiano,
para o ano 1985-1986, de uma plêiade que contou com Eliot, Stravinsky, Borges). Tendo falecido antes da partida
para a América, o título ficou em inglês (six memos for the next millennium), e a sexta lição (“Consistency”) não chegou
a ser escrita.
Direito e Democracia
55
diversão são agentes catalisadores desta utopia), um sistema processual penal
transpassado de leveza e multiplicidade, que não abre mão da visibilidade e que
terá consistência na medida da sua rapidez e nos limites da exatidão possível.
Um espaço para a utopia.126
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126
“A exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que
existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e porque
merece a pena lutar.”; espaço pautado pelo princípio da transição paradigmática, que quer: “ampliar o conhecimento
dos paradigmas em presença e promover a competição entre eles de modo a expandir as alternativas de prática social
e pessoal e de lutar por elas.”, no qual o Estado tem uma dimensão providencial em “promover a pluralidade e a
permeabilidade das identidades pelo incentivo à confrontação entre os dois paradigmas... Não se trata de obter a
transparência total nas relações sociais, mas antes de lutar sem limites contra a opacidade que as despolitiza e
desingulariza (...) Daí que na transição paradigmática se tolere a imperfectibilidade das palavras e dos cálculos se ela
se traduzir numa maior razoabilidade e equidade das acções e das consequências” (SANTOS, Pela mão de Alice. O
social e o político na pós-modernidade. 7ª ed. Porto, Afrontamento, 1999. pp. 277, 281, 293 e 297-8, respectivamente).
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl/PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro: parte geral. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1999
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Do Ensino Jurídico: conhecimento e
produção criativa do direito1
On Juridical Teaching: Knowledge and Creative
Production of Law
PLAUTO FARACO DE AZEVEDO
Doutor em Direito pela Universidade Católica de Louvain Ex-Professor dos Cursos
de Graduação e Pós- Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGS
Professor Titular do Curso de Pós-Graduação-Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA
RESUMO
O artigo tem por objetivo pensar o ensino jurídico atual, aferindo-lhe algumas deficiências e buscando uma correção de rumos, de modo a bem compreender a técnica
jurídica, colocando-a a serviço do direito, em sua acepção ampla. Dentre outros
aspectos, mostra a lacuna do desconhecimento da História do Direito e dos dados
configuradores do quadro histórico presente e suas conseqüências na formação jurídica e na aplicação judicial do direito.
Palavras-chave: Ensino Jurídico, dogmática jurídica, metodologia do direito, aplicação judicial do direito.
ABSTRACT
The paper aims at thinking the present state of juridical teaching, spotting some
deficiencies and looking for some corrections in order to understand the juridical
technique, placing it to the service of law in its widest meaning. Among other
1
Texto-base da Palestra pronunciada no “V Seminário – O Ensino Jurídico no limiar do Século XXI”, promovido pela
Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, de 25 a 27 de outubro de 2000, em Florianópolis.
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CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.61-72 61
aspects, it points out to the general ignorance of the History of Law and of the facts
that have molded the present historical frame and its consequences for juridical education and judicial application of law.
Key words: Juridical teaching, juridical dogmatism, methodology of law, judicial
application of law.
Pensar validamente o ensino jurídico importa em visualizá-lo no contexto
histórico em que se situa, explicitando e pondo em questão a concepção que
o orienta. Isto nem sempre é fácil, visto que a idéia prévia sobre que se funda,
costuma ser subtraída do plano reflexivo por ser tacitamente aceita pelo jurista. Assim sendo, seu questionamento aparece-lhe como desnecessário. Em
conseqüência, o modelo por que se pauta, perpetua-se, freqüentemente em
desconcerto com as necessidades e problemas sociais relevantes. É assim que
a concepção em que assenta o ensino jurídico, no Brasil, acha-se em
descompasso com a moldura social à que deveria servir, fixando-se, acriticamente, no modelo exegético francês e dogmático alemão, ambos fundados no
positivismo jurídico.
O positivismo, como é sabido, atém-se ao aspecto fenomênico do direito,
isto é, ao direito positivo estatal, ignorando, por imposição epistemológica, as
forças e interesses sociais à sua origem, abstraindo os valores em que se fundam e que buscam realizar as leis, e menosprezando seus efeitos sociais. Tal
epistemologia determina a restrição gnosiológica marcante em Hans Kelsen,
segundo a qual se há de conhecer o direito que é. É, este, o direito elaborado
segundo critérios formais fundados na norma fundamental suposta, o que constitui a condição de sua validade. A Ciência Jurídica daí resultante é tão lógica
quanto indiferente à realidade. Nega a sua contaminação ideológica, enquanto
seu caráter formal admite todas as ideologias, identificando a validade do direito com a sua efetividade, vale dizer, com sua capacidade de impor-se coercitivamente. Nesta concepção, não há lugar para a aferição da validade intrínseca do direito, visto que qualquer conteúdo pode ser direito. Segue-se
que a legalidade é identificada com a legitimidade do direito, resultando impossível cogitar-se da justiça, tida como noção ideológica, que não é negada,
mas considerada passível de indagação metajurídica.2
2
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito (Reine Rechtslehre). Trad. por João Baptista Machado 2.ed. Coimbra: Arménio
Amado, 1979. p. 17-8, 277-8, 290-1, passim.
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A respeitabilidade do pensamento de Kelsen e de sua contribuição ao raciocínio jurídico, mediante a hierarquização das normas legais e o reconhecimento (pouco referido) que faz do poder criativo dos juízes3, e sua contribuição relevante à teoria constitucional, não deixam dúvidas. Não pode ser deixada de lado, tampouco, sua “influência para a criação e fixação das competências para uma Corte Constitucional”4.
Não é menos verdade, no entanto, que Kelsen, preocupado com a pureza
de sua teoria, tenha sacrificado, já nas primeiras páginas de sua obra, as
vinculações necessárias, - que reconhece, mas deixa propositadamente de
considerar -, do direito com a Política, a Moral, a Sociologia ou a Psicologia,
tendo desembocado em um formalismo lógico-jurídico, que teve conseqüências deletérias na América Latina, onde auxiliou no reconhecimento das
quarteladas e dos golpes de Estado.
Verdade é que o positivismo, ainda de certa forma imperante, sempre
contribui para estreitar horizontes, impedindo a visão conjunta e
interdependente das funções conservadora e transformadora da ordem jurídica. Disto se têm valido os conservadores para frear a evolução do direito,
aferrados que se encontram na manutenção de seus privilégios, esquecidos
de que, sem a justiça social, que passa necessariamente pelo adequado
equacionamento da justiça distributiva, a ordem jurídica mantém-se pela
coerção, sem que possa atingir o convencimento, de que deriva sua natural
aceitação e aperfeiçoamento.
Como, a propósito, assinala José Eduardo Faria “muitas das lutas políticas
e dos impasses constitucionais neste continente não passam de esforços e tentativas quase sempre frustradas para tornar real o que as constituições de seus
respectivos países asseguram formalmente ser direito dos cidadãos, mas que se
tornaram, na realidade, privilégios de alguns setores sociais”.5
Não é possível suprimir da Ciência do Direito a inarredável instância crítica, sem a qual não há progresso jurídico possível. Sem ela, mutila-se a
ontologia do direito, contribuindo para separá-lo da sociedade e transformálo em reino encantado da taxinomia, das distinções e subdistinções cerebrinas,
do formalismo, que tanto se esmera no jogo conceitual que, ideologicamente,
3
Ibid., p. 464-71.
4
Dallari, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 82.
5
Faria, José Eduardo. Justiça e conflito (Os juízes em face dos movimentos sociais) São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
p. 107.
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se substitui à realidade. Daí resvala-se facilmente ao conceptualismo, que é,
“sem dúvida, um pecado inveterado do método jurídico”.6
O ensino jurídico tem que buscar uma concepção totalizadora do direito,
em que se encontrem suas diversas dimensões - dogmáticas, filosóficas, sociológicas e históricas.7 Não é possível reduzir o direito à técnica jurídica, apesar
da necessidade do conhecimento minudente desta. A técnica é instrumental
e não pode se exaurir girando sobre seu próprio eixo, devendo servir à finalidade social de realização do convívio interpessoal tão harmônico quanto possível. O direito e seu ensino, se voltados ao interesse social e situados no contexto histórico presente, não podem deixar de atentar aos agravos perpetrados contra a ordem constitucional brasileira, em nome da ideologia neoliberal.
Advém esta dos países centrais, e é imposta aos países da periferia capitalista,
em nome de uma modernidade que, insofismavelmente, constitui uma volta
ao século XIX, conduzindo à destruição da ordem jurídica, ao desprezo pelo
direito, preocupada tão-só com o ganho a qualquer custo, no menor tempo
possível, ainda que em detrimento do meio ambiente.
Não pode o ensino jurídico deixar de observar que, devido à exclusão social progressiva, o Direito Civil cada vez mais se afasta das necessidades populares, enquanto o Direito Penal cada vez mais se transforma no direito dos pobres, sobre os quais descarrega sua fúria repressiva.8
Em obra relevante, relativa aos crimes contra o sistema financeiro nacional, cujos escândalos tanta indignação vã têm provocado, Ela Wiecko de
Castilho analisou 682 (seiscentos e oitenta e dois) casos, ocorridos no Brasil,
relativos a condutas enquadradas na Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, “submetidos à Polícia, ao Ministério Público e ao Judiciário, pelo Banco Central,
no exercício de sua função fiscalizadora”. Suas conclusões, bem fundadas, são
impressionantes. A primeira delas é que o controle penal nos crimes contra o
6
“It is a kind of abuse or misdirection of logic in the construction of artificial rules or categories which are plausible in the
abstract but have little correspondence with the concrete. It was this kind of Begriffsjurisprudenz - a barren and not
very difficult intellectual exercise, by no means confined to the law - which Ihering repudiated and satirized”.
Allen, Carleton Kemp. Law in the making. 7.ed. Oxford: Clarendon Press, 1964. p. 43. É deste mundo conceitual,
apartado da vida, que trata o Ihering da segunda fase, aludindo ao “céu dos conceitos jurídicos”, cujo ingresso é
garantido a todo aquele que for capaz “de construir um instituto jurídico, prescindindo, de modo absoluto, de seu
valor prático, baseando-se exclusivamente nas fontes e no conceito”, o que Savigny, depois de alguma dificuldade,
atingira em seu escrito sobre a posse. Von Jhering, Rudolf. “En el cielo de los conceptos jurídicos”. In: Bromas y veras
en la jurisprudencia (Scherz und Ernst in der Jurisprudenz). Trad. por Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ed. Juridicas
Europa-America,1974, p. 289, passim.
7
Díaz, Elías. Sociologia y filosofia del derecho. Madrid: Taurus, 1976, p. 54
8
Novoa Monreal, Eduardo. El derecho como obstáculo al cambio social. 3.ed. Mexico: Siglo Veintiuno, 1979, p. 25.
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sistema financeiro nacional não é democrático, pois, se o fora, deveria valer
para todas as classes sociais. Isto deriva, em parte, da ausência “de uma estratégia única de atuação para repressão à criminalidade contra o sistema financeiro”, para o que, de resto, não há estatísticas oficiais, tudo apontando “para
a pouca importância conferida pelas instâncias formais às condutas prejudiciais ao sistema financeiro, ainda que subsumíveis na Lei 7.492”. Tal situação
conduz à imunidade penal. “A resistência do Poder Legislativo brasileiro à
criminalização primária, ou seja, à produção de normas que definam tais condutas, como crime, está relacionada com a existência dos detentores de poder
econômico que sustentam o poder político e, entre eles, significativamente,
os agentes financeiros, em especial os bancos privados”. Igual resistência, de
mesma motivação, acha-se no poder executivo.9
É grande a responsabilidade do Banco Central, nesta matéria, pois é sua,
fundamentalmente, a decisão de “quais são os fatos que geram prejuízo ao
sistema financeiro e que pessoas deverão se submeter à repressão penal”, o
que é feito segundo “parâmetros pouco transparentes e dificilmente
questionáveis em face do sigilo bancário”. Ademais, o enfoque dado à investigação pela Polícia Federal e pelo Ministério Público “é, fora raríssimas ocasiões, limitado a casos individuais, sem análise e investigação do contexto em
que são praticadas”. O Poder Judiciário, por seu turno, dependendo dos dados
do Banco Central e da investigação policial, opera com morosidade a instrução processual. Na data final de coleta de dados pela autora “em apenas 2,19%
dos casos houve julgamento após instrução, e os casos, em que houve condenação, equivalem 0,88%”. Como se vê, as conclusões são alarmantes e evidenciam “o modelo estruturalmente seletivo do sistema penal brasileiro, em
que se observa a relação funcional com a profunda desigualdade sócio-econômica do país e a exclusão da repressão penal de determinadas classes ou,
nestas, de grupos de pessoas.”10
No que toca ao Direito Civil, observa-se que os excluídos não casam, não
têm propriedade, nem recebem herança. Quanto à autonomia da vontade,
tão celebrada pelo liberalismo, no máximo a sofrem, sob a forma de contratos
de adesão, felizmente, agora, com limitação de eficácia de suas mais leoninas
cláusulas, em decorrência da vigência do Código do Consumidor.
9
Castilho, Ela Wiecko V. de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492, de 16 de junho de
1986). Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1998, p. 285-7.
10
Ibid., 287-90.
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65
A observação realista da realidade brasileira evidencia a pluralidade de
ordenamentos jurídicos. Em pontos do território nacional não abrangidos pela
ordem jurídica estatal, há outros direitos, criados à sua margem, podendo serlhe antagônicos, como já demonstrou, há mais de duas décadas, Boaventura
de Souza Santos, estudando as normas legais vigentes na favela de Jacarezinho,
no Rio de Janeiro. 11 A favela atesta “a não abrangência das classes
desfavorecidas pelas instituições de direito, na medida em que a marginalização
sócio-econômica também produz a marginalização jurídica”, o que mostra que
precisa o ensino jurídico fazer “uma reflexão multidisciplinar capaz de desvendar as relações sociais subjacentes às relações jurídicas”...12 Cabe ao ensino
jurídico indagar o porquê desta limitação do direito estatal, a partir da
constatação do desajuste da ordem jurídica oficial à situação e às vivências
das pessoas que vivem sob estes outros pólos de irradiação do direito.
Quanto ao Direito Constitucional, observa-se nefando ataque à Constituição, que, a continuar a situação em que vivemos, se não houver decidida
reação, a começar pelo ensino jurídico, poderá vir a denominar-se “regimento interno do governo”. Hoje há uma ditadura do Executivo, compreendendo
o poder de legislar e de emendar a Constituição, “tudo sob as vistas complacentes do Judiciário”. As medidas provisórias, derivadas do artigo 77 da Constituição italiana, hoje se tornaram permanentes. Segundo a Constituição, deverse-iam restringir aos casos de relevância e urgência, sendo de trinta dias seu
prazo de vigência sem aprovação do Congresso. Todavia, o STF “entendeu
que relevância e urgência são ‘questão política’ insuscetível de apreciação pelo
Judiciário, e passou a admitir que MPs não apreciadas pelo Congresso fossem
reeditadas, com o mesmo ou diferente teor, indefinidamente”.13
O império do neoliberalismo tenta, com a colaboração solerte da grande
imprensa, eliminar a legislação resultante do intervencionismo social.
Wieacker, em 1967, escrevia que “o pathos da sociedade de hoje, comprovado,
em geral, por uma análise mais detida das tendências dominantes da legislação e da aplicação do direito é o da solidariedade...”14 Hoje, tenta-se, de todos
os modos, subverter esta tendência, com o Executivo tão solícito aos impera11
Versão revista e reduzida de sua tese foi, posteriormente, publicada nos Estados Unidos, sob o título “The Law of the
Oppressed: The Construction and Reproduction of Legality in Passargada”. Law and Society Review, Denver, Colorado,
12(1) :5-126, autumn, 1977.
12
Faria, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Fabris, 1987, p. 39-53.
13
Comparato, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, São Paulo, 14-05-1998. Caderno 1, p. 3.
14
Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. Trad. de A. M. Botelho Hespanha. 2.ed. rev. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1980, p. 718.
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tivos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial quanto indiferente aos malefícios sociais que ocasionam. O Legislativo, à sua vez, quando
os assuntos não são objeto de medidas provisórias, mostra-se singularmente
obediente ao Executivo.
Resta o Poder Judiciário, cuja atuação é enquadrada pejorativamente pela
imprensa, que o acusa de ser, dentre os poderes, o pior, notadamente por sua
morosidade, a que se agregam, acusatoriamente, casos isolados de
desonestidade flagrante, que se busca converter em regra. Muito da morosidade atribuída ao Judiciário se deve aos Códigos de Processo Civil e Penal,
consagradores de uma profusão de recursos e de formalidades que, sobre retardarem a prestação jurisdicional, terminam por dar guarida ao devedor contumaz e ao fraudador do patrimônio público. A situação é tanto pior quanto
maior for o interesse em questão ou o ilícito penal cometido. Com o processo
transformado de meio em fim em si mesmo, desvanece-se o direito material.
Neste contexto, em que se cultua a ciência pela ciência, o processo perturba
seriamente a atividade jurisdicional, sem que disto se tenha conta. O ensino
jurídico precisa atentar e criticar essa situação, em conformidade com declarações recentes de várias autoridades juridiscionais, inclusive, dos Ministros
Presidentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
Por outro lado, o Executivo, através do Ministro da Justiça, vem à imprensa declarar “a necessidade de acabar com a indústria das liminares”. O que
não se diz é que, se a concessão de liminares em Mandados de Segurança
aumentou em número, o trabalho dos juízes também aumentou e, “por motivos mais do que óbvios, os governantes, cujos atos tiveram seus efeitos sustados por aquelas liminares, ficaram contrariados com estas decisões judiciais e,
demonstrando despreparo para a democracia e o respeito ao direito, atribuíram a multiplicação de liminares a uma suposta ‘indústria de liminares’.” Em
verdade, como salienta Dalmo Dallari, “se alguém quiser argumentar com a
idéia de uma indústria de liminares, é preciso lembrar que não existe indústria sem matéria prima” e esta se constitui dos “atos inconstitucionais e ilegais
do Poder Executivo. Basta que este respeite a Constituição e as Leis para que
aquela indústria desapareça”.15
No que toca à interpretação e à aplicação do direito, o ensino jurídico tem
que acompanhar a evolução da Hermenêutica Jurídica, na certeza de que esta
há de ser material e não meramente formal, evitando o logicismo estéril, que
15
Dallari, Dalmo de Abreu, op. cit., p. 62-3.
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opera como cortina de fumaça, em que se esfumam os interesses sub judice.
Trata-se, ao contrário, de desvelá-los, para que seja possível decidir de modo
razoável, fazendo opções, de modo a conciliar a manutenção e a transformação da ordem jurídica, o egoísmo e a solidariedade humana. Há que se trabalhar pela dignidade do direito, que é também a dignidade do homem. Trata-se
de transformar a norma abstrata - Law in the books - em norma vivida - Law in
action -, parafraseando os realistas norte-americanos, mas com atenção à realidade brasileira, repensando as leis, revalorizando-as em face dos fatos, de
modo a contribuir à transformação da ordem jurídica em consonância com as
necessidades sociais, isto é, com a vida real dos homens concretos. Tudo isto
não se realiza sem que se abandone o modelo dogmático positivista, que circunscreve o trabalho do jurista a puros juízos de constatação em face do direito positivo. Esta cisão no discurso jurídico tem levado à perda do assento histórico do direito e ao seu conseqüente descrédito. Uma verdadeira
epistemologia jurídica não pode compadecer-se com a visão atomizada do
direito. Sem absolutizar ou discriminar nenhuma de suas abordagens e respeitando a índole de cada uma, deve admití-las como complementares. Esse o
caminho para que o ensino do direito, deixando de reproduzir um modelo
falido, se torne convincente e possa conduzir a uma prática jurídica profícua,
socialmente aceitável e compreensível.16
O ensino jurídico apresenta uma carência fundamental - o desconhecimento da História, de modo geral, e da História do Direito, de modo particular. É ela que ensina que Bartolo, ilustre renovador dos estudos jurídicos na
Idade Média e o mais famoso dentre os pós-glosadores, “em presença de um
caso a resolver, convidava seus alunos a encontrar, em primeiro lugar, a solução justa, e só, após, procurar as fontes para motivá-la”.17 É também com ela
que se aprende que a pluralidade de ordenamentos jurídicos não é tão surpreendente quanto poderia parecer, visto que já era constatável em Roma, no
século III AC. É que, em 242 AC, foi criada uma magistratura especial - o
praetur peregrinus - para resolver as relações jurídicas, sempre que nelas intervinha um ou mais estrangeiros, vale dizer, estabelecidas entre um cidadão romano e um estrangeiro ou entre estrangeiros. Não sendo elas cobertas pelo jus
16
Azevedo, Plauto Faraco de. Justiça distributiva e aplicação do direito. Porto Alegre: Fabris, 1983, p. 109-116; __ Crítica
à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1989, p. 25-7,36-7; __ Aplicação do direito e contexto social.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, passim; passim; __ Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999, passim; __ Método e hermenêutica material no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999, passim.
17
Du Pasquier, Claude. Introduction à la théorie générale et à la philosophie du droit. 4.éd. Neuchatel-Paris: Delachaux &
Niestlé, 1967, p. 194.
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civile, regiam-se, no início, pelo princípio da boa-fé que não figurava entre as
fontes do direito romano. Assim, foi criado, pouco a pouco, o jus gentium,
como parte do direito romano positivo considerado a razão escrita, “o direito
comum a todos os homens”. Deste modo, o jus civile, que se caracterizava pelo
formalismo, foi modificado por força das circunstâncias, tornando-se mais
dútil pelo contato com idéias estrangeiras. Em conseqüência, o jus gentium foi
corroendo o jus civile, até extinguí-lo completamente.18
Processo semelhante ocorreu no sistema da Common Law, na Inglaterra,
em que praticamente não houve influência do direito romano. Sendo os writs
muito restritos, freqüentemente a sua ausência conduzia à denegação de justiça. Para evitá-la, as partes recorriam ao Chanceler, pedindo-lhe que conhecesse e julgasse seu caso, por motivos de eqüidade. Sendo isto feito, caso a
caso, o Chanceler foi, paulatinamente, estabelecendo novos writs, daí decorrendo um novo ramo do direito e uma nova jurisdição na Common Law - a
Equity Law.19 É também a História que permite compreender as origens, a
diversidade e os pontos comuns entre a família de direitos romano-germânica
e a da Common Law.
Os exemplos passados poderiam ser multiplicados, embora o que mais
interesse, hoje, é conhecer as linhas fundamentais do contexto histórico presente, as influências que lhe são subjacentes, as forças históricas atuantes e as
idéias e as ideologias, por que, eventualmente, se orientem. É fundamental
perceber-se que há uma mudança, que pode vir a ser radical, no desenho político-jurídico do mundo. O poder não mais está concentrado na autoridade
política - governos, presidentes e primeiros ministros. “Hoje, o verdadeiro
poder é outro, é financeiro e econômico. Cada vez mais os governos estão se
tornando meros comissários, cumprindo as ordens de seus superiores. Ao invés de governo pelo povo e para o povo, estamos nos confrontando com algo
que poderíamos chamar de fachada democrática...” A corrupção tomou conta da vida política, perdendo esta seu sentido representativo.20 Este é o panorama aberto pelo neoliberalismo, que, além da miserabilidade que semeia,
retira do poder político a representatividade, tornando os cidadãos “nada mais
do que instrumentos dóceis nas mãos de poderes distantes”.21 É este o contex-
18
Sohm, Rodolfo. Instituciones de derecho privado romano. Historia y sistema. Trad. por Wenceslao Roces. México: Ed.
Nacional, 1975, p. 43-5.
19
David, René & Jauffret-Spinosi, Camille. Les grands systèmes de droit contemporains. 10.éd. Paris: Dalloz, 1992, p. 16-8.
20
Saramago, José. Uma democracia sem poder (depoimento a Carlos Fuentes). Zero Hora, Porto Alegre, 2000.
21
Ibid.,
Direito e Democracia
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to neoliberal, que é, na verdade uma “revolução conservadora de um tipo
novo, que se diz feita em nome do progresso, da razão, da ciência (econômica,
no caso), para justificar a restauração, tentando, deste modo, qualificar de
arcaísmo o pensamento e a ação progressistas”.22 Tudo o que lhe falta de razão
e tudo o que tem ocasionado de desordem, de desassossego e de agravamento
das más condições de partição da renda nacional e internacional, lhe sobra
em poder mediático a repetir sua cínica cantilena.
Dado saliente de nosso tempo é a degradação irresponsável do ambiente,
tendo como contraparte uma ciência manejada por indivíduos que se julgam
onipotentes, crendo que lhes é possível tanto desfazer quanto refazer a natureza. Essa ciência é “uma simples virtuosidade técnica especializada e, talvez,
um saber de tipo enciclopédico”, enquanto “a verdadeira ciência é um saber
consciente de suas modalidades e de seus limites”.23
Não é dado ao jurista ou ao professor de direito esquecer os dados fundamentais do presente, sob pena de contribuir à perplexidade em que se acha
mergulhado, conduzindo à formação daquilo que o saudoso e eminente mestre Roberto Lyra Filho denominava “mão de obra sem cabeça”, pedida pela
estrutura assente.24 É preciso buscar a visão global, visto que não há uma crise
particular do ensino jurídico. A crise é social. A crise não pode ser compreendida sem a visão global. E a visão global não pode ser atingida sem o ponto de
vista histórico. É, segundo ele, que cumpre interrogar, sempre, tudo o que “se
passa”. A História é “ ‘o fio condutor’, sem o qual nenhum acontecimento
tem ‘sentido’ ou ‘razão de ser’...” 25
E a visão global, de que o direito é parte fundamental, não pode ser atingida
autenticamente, se a concepção, que se tem do direito, é falsa. Refletindo sobre
a metodologia jurídica, em obra publicada em 1913, François Gény, eminente
mestre, fazia observações de uma precisão ímpar, que, não obstante, não foram
convenientemente assimiladas. Convém, pois, repeti-las, ao menos em parte.
Discernia, este jurista, uma tendência metodológica, que lhe parecia
insofismável: “De formal e passivo, que foi ou tendia ser o método jurídico,
22
Bourdieu, Pierre. “Le mythe de la “mondialisation” et l’Etat social européen”. In: Contre-feux. Paris: Raisons d’Agir,
1998, p. 40.
23
Jaspers, Karl. La situation spirituelle de notre époque. Trad. de l’allemand par Jean Ladrière et Walter Biemel. Postface de
Xavier Tilliete. 4.éd. Paris: Desclée de Brower; Louvain: E. Nauwelaerts, 1966, p. 161.
24
Lyra Filho, Roberto. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília: Ed. Obreira, 1981, p. 17.
25
Chagas, Wilson. “Temas do nosso tempo”. In: Conhecimento do Brasil (e outros ensaios). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1972, p. 56.
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tornara-se crítico e ativo, de tal sorte que aquilo que primitivamente não era
senão pouco mais que uma interpretação das fontes, tende a se transformar em
interpretação do direito”. Era preciso “buscar, atrás do invólucro formal do texto legal, a realidade de que este não era senão o símbolo”... Discernia nessa
renovação jurídica, que, infelizmente, não se deu como esperava, a necessidade
“de alargar o horizonte dos juristas até a procura de uma justiça superior que
permaneça humana por seu contato com as realidades do meio social, ao qual
precisa adaptar-se, justiça essa que paira muito acima dos modos de sua expressão contingente”. Resultava impossível “rejeitar a priori todo modo de expressão do direito positivo que não consistisse em uma fórmula legal”. Considerava
“ilegítimo, e de todo modo absolutamente vão, pretender, tão-só por meio da
lógica, fecundar os princípios contidos na lei escrita, de modo a adaptá-la a
qualquer custo à solução de todos conflitos jurídicos”.26
Este mesmo autor, em obra publicada há mais de um século (1899), opunha-se ao que denominava crítica vulgar, que restringia o campo de investigações aberto àqueles “que pretendem merecer plenamente o nome de juristas”. Contrariamente a ela, apontava “que se havia observado que, ao lado do
Direito Positivo, estreitamente compreendido, havia a História, a Filosofia
do Direito, a Economia Política, o Direito Internacional, a Legislação no sentido amplo, ou, resumidamente, todo o conjunto das Ciências Políticas, Econômicas e Sociais”.27
Mais não é necessário para ver-se que o mestre francês não professava o
positivismo jurídico, embora não fosse, seguramente, um revolucionário28, mas
um desbravador, apontando para o direito positivo situado no mundo social,
de que é um elemento integrante.29
Em suma, para conceber-se o direito de modo convincente e para elaborar-se a Ciência do Direito de modo verossímil, tem-se que ter em mente que
ela desenvolve “métodos de um pensamento ‘orientado a valores’, que permitem complementar valorações previamente dadas...” sendo tais “valorações
suceptíveis de confirmação e passíveis de uma crítica racional”, sem que seus
26
Gény, François. Science et technique en droit privé positif. Paris: Recueil Sirey, 1913. v. 1, p. 25-8.
27
Gény, François. Méthodes d’interprétation et sources en droit privé positif. Préf. de Raymond Saleilles. 2.éd. rev. et mise
au courant Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1954. t. 1, p. 1-2. A primeira edição desta obra
data de 1899, e a segunda, revista e atualizada, data de 1919, tendo sido reimpressa em 1954.
28
Du Pasquier, Claude, op. cit., p. 191, n. 205.
29
Gény, François, Science et technique en droit privé positif, p. 41, nota 70.
Direito e Democracia
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resultados possam “alcançar o mesmo grau de segurança e precisão de uma
dedução matemática ou de uma medição empreendida de modo rigorosamente
exacto”.30
As presentes considerações, críticas por certo, têm em mira o aperfeiçoamento do ensino jurídico, sem que, no entanto, se perca de vista o caminho
de avanços alcançados, durante as duas ou três últimas décadas. O positivismo
já não é aquele bloco monolítico a paralisar a reflexão jurídica, imobilizandoa no “céu dos conceitos jurídicos”, a que aludia o Ihering da segunda fase.
Neste processo, cumpre destacar a atividade pioneira da Universidade de Brasília, em que se destacou o pensamento fecundo e inspirador de Roberto Lyra
Filho. O inolvidável mestre assinalou a necessidade de superação dialética do
direito, como processo dentro do processo histórico, de que é ingrediente fundamental. Seguiram-lhe os passos muitos professores e juristas, comprometidos com a justiça social, ainda que trilhando perspectivas teoréticas diversas.
Dentre estes, cabe destacar José Geraldo de Souza Júnior, por sua atividade
como professor, por sua produção teórica e por sua ação permanente, animando e coordenando a discussão do ensino jurídico, no Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil. Seu trabalho tem sido decisivo para achegar o ensino jurídico e o direito, à rua, buscando ouvir os que não têm tido
voz, identificando e traduzindo a mensagem dos novos atores sociais a configurar um novo tecido político à espera de sua tradução jurídica. 31
30
Larenz, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. por José Lamego da 6.ed. alemã reformulada. 3.ed.portuguesa
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 3.
31
Neste sentido, deve-se destacar a relevância incontestável das “Conclusões do IV Seminário- O Ensino Jurídico no limiar
do Século XXI”, realizado em Vitória-ES, de 3 a 5 de maio de 2000. OAB- Ensino Jurídico; Balanço de uma
experiência. Brasília: Ordem dos Advogados do Brasil-Conselho Federal, 2000, p. 235-241
72
Direito e Democracia
Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental - alguns
aspectos controversos1
The Questioning of Unenforcement of Fundamental
Precepts - Some Controversial Aspects
INGO WOLFGANG SARLET
Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Juiz de Direito no
RS. Professor de Direito Constitucional na Escola Superior da Magistratura
(AJURIS) e na Faculdade de Direito da PUC/RS, onde também leciona no
Mestrado em Direito.
RESUMO
O artigo analisa as inovações no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, a
partir do advento das Leis nº 9.868 e 9.882, de 1999, inclusive na prática jurisprudencial.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade, argüição de descumprimento de
preceito fundamental, Constitucionalismo moderno.
ABSTRACT
The article analyzes the innovations in the Brazilian control system of constitution-
1
Parte das considerações tecidas neste ensaio tiveram como ponto de partida texto-base elaborado pelo autor ao ensejo de
parecer lavrado para o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS), por comissão presidida pelo Prof.
Eduardo Kroeff Machado Carrion, atual Diretor e Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de
Direito da UFRGS, comissão esta integrada também pelo Professor Marcus Vinícius Martins Antunes, da Faculdade
de Direito da PUC/RS. O presente texto foi originalmente publicado na coletânea versando sobre a Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental coordenada pelos eminentes Professores André Ramos Tavares e Walter
Claudius Rothenburg, Editora Atlas, 2001.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.73-95 73
ality, after the advent of the Laws n. 9868 and 9882, from 1999, including the
practice of jurisprudence.
Key words: Control of constitutionality, law enforcement, modern constitutionalism.
1) Considerações preliminares:
As Leis nº 9868 e 9882, respectivamente de 11.11.99 e 03.12.99, introduziram uma série expressiva de inovações no sistema de controle de
constitucionalidade adotado pela Constituição Federal de 1988, bem como
na prática jurisprudencial nesta seara. Em síntese, cuida-se de documentos
legislativos dispondo, respectivamente, sobre o processo e julgamento da ação
direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade
perante o Supremo Tribunal Federal (Lei nº 9.868/99), bem como versando
sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito
fundamental (Lei nº 9.882/99), diploma este que veio a regulamentar o art.
102, parágrafo 1º, da Constituição Federal de 1988, transcorridos já mais de
11 anos de sua entrada em vigor.2
Especialmente no que diz à argüição de descumprimento de preceito fundamental, verifica-se, de plano, que a recente regulamentação pelo legislador
ordinário pouco contribuiu para a clarificação dos contornos do instituto, inclusive quanto ao seu objeto e finalidade, a respeito dos quais nunca houve
consenso e, a depender do que se vislumbra em termos de produção doutrinária,
dificilmente se logrará obter uma certa uniformidade, ao menos não antes de
que se venha a sedimentar alguma orientação por parte do Supremo Tribunal
2
A ausência de regulamentação legal não impediu a propositura de diversas argüições de descumprimento, que, todavia,
esbarraram no entendimento prevalente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o art. 102,
parágrafo 1º, da nossa Constituição tinha o caráter de norma não auto-aplicável e que não se poderia sequer conhecer
de argüição de descumprimento sem a devida regulamentação das hipóteses de cabimento e do procedimento por parte
do legislador ordinário. Neste sentido, Alexandre de Moraes, Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais, São
Paulo: Ed. Atlas, 2000, p. 262, colaciona decisão relatada pelo Ministro Sydney Sanches, no Agravo Regimental em
Petição nº 1.140-7, DJU de 31.05.96, sinalando que “para argüição de descumprimento de preceito fundamental dela
decorrente, perante o STF, exige lei formal, não autorizando, à sua falta, a aplicação da analogia, dos costumes e dos
princípios gerais de direito.” Não obstante se cuide de instrumentos diversos e diversa também seja a dicção do respectivo
preceito constitucional, convém relembrar que no caso do Mandado de Injunção o Supremo Tribunal Federal, apesar
de ter esvaziado virtualmente - salvo alguns casos excepcionais e em que pese a louvável divergência e resistência de
alguns integrantes da Corte - a natureza e função do instituto, equiparando-o à ação declaratória de inconstitucionalidade
por omissão, acabou considerando que a norma contida no art. 5º, inciso LXXI, da Constituição de 1988, é de eficácia
plena, dispensada regulamentação legal do procedimento para sua propositura.
74
Direito e Democracia
Federal. Assim, não é à toa que já houve até mesmo quem chegasse a considerar
a argüição de descumprimento como sendo algo “misterioso e exotérico”,3
adjetivações que, a despeito da recente regulamentação legislativa, parecem
continuar sendo atuais. Aliás, cumpre destacar, neste contexto, que até o presente momento, sequer tendo a nova legislação completado o primeiro ano de
vigência, as poucas decisões proferidas pelo nosso Pretório Excelso em matéria
de argüição de descumprimento, limitaram-se, em geral, a não conhecer da demanda, por falta de algum dos pressupostos processuais e/ou condições da ação,
sem que tenha, ainda, ocorrido o julgamento de mérito. Em verdade, já no
concernente a estes aspectos não são poucas as dúvidas e angústias decorrentes
do texto regulamentador, bastando aqui a referência ao requisito da inexistência
de qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, que, a depender de uma
interpretação mais ou menos restritiva, poderá facilmente levar ao virtual esvaziamento do instituto ou contribuir decisivamente para tornar ainda maior o já
insuportável acúmulo de demandas tramitando no Supremo Tribunal Federal.4
Para além disso, como bem lembrado por Clèmerson Clève e Cibele Dias, a
parametricidade da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória
de constitucionalidade é distinta da argüição de descumprimento, já que no
caso das duas primeiras o parâmetro da fiscalização é a Constituição de 1988
como um todo, ao passo que na última o referencial elegido pelo próprio Constituinte - e neste ponto não clarificado pelo legislador ordinário - são apenas os
preceitos fundamentais da nossa atual Carta Magna,5 sem que se vá aqui adentrar
3
Neste sentido, a afirmação de Ronaldo Poletti, Controle de Constitucionalidade das Leis, 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
1998, p. 214, questionando inclusive a possibilidade de lei ordinária definir quais os preceitos constitucionais que
podem ser considerados fundamentais.
4
Especificamente sobre o requisito da inexistência de outro meio mais eficaz, v. a contribuição relevante de Gilmar Ferreira
Mendes, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: demonstração de inexistência de outro meio mais eficaz,
publicado na revista jurídica virtual Jus Navegandi (www.jus.com.br) (originalmente publicado na Revista Jurídica
Virtual do Palácio do Planalto, edição de junho de 2000). Também Lenio Luiz Streck, Os meios de acesso do cidadão
à jurisdição constitucional, a argüição de descumprimento de preceito fundamental e a crise de eficácia da Constituição
(texto a ser publicado na Revista da AJURIS), p. 13, propõe uma leitura mais flexível a respeito deste requisito
imposto pela lei, traçando paralelo com o recurso constitucional alemão (a conhecida Verfassungsbeschwerde), sugerindo uma interpretação conforme à Constituição, no sentido de que, em determinadas circunstâncias, não se torne
exigível o esgotamento das vias judiciárias, admitindo-se a argüição de descumprimento, em princípio, nas hipóteses
nas quais não caiba ação direta de inconstitucionalidade. O autor também critica, com sua habitual lucidez e
proficiência, o fato de ter sido vetada pelo Chefe do Poder Executivo a possibilidade - originalmente prevista no art.
2º, inciso II, da Lei nº 9.882/99 - de que todo e qualquer cidadão poderia, diretamente e sem intermediários, propor
argüição de descumprimento perante o Supremo Tribunal Federal, destacando que a argüição de descumprimento
deveria ser, em verdade, uma ação de cidadania, de caráter individual, notadamente servindo como instrumento
direto e efetivo de defesa dos direitos fundamentais (ob. cit., p. 17-18).
5
Cf. Clèmerson Merlin Clève e Cibel Fernandes Dias, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental,in: Evandro de
Castro Bastos e Odilon Borges Júnior (Coord), Novos Rumos da Autonomia Municipal, Rio de Janeiro: Max Limonad,
2000, p. 76.
Direito e Democracia
75
a discussão em torno de quais são efetivamente os preceitos que merecem o
qualificativo de fundamentais para efeito de, em caso de violação pelo poder
público, ensejarem a propositura da argüição de descumprimento, destacandose serem já relativamente diversificados as posições até agora sustentadas na
doutrina.6 Inquestionável é, na esteira do exposto e segundo também a nós parece, recolhendo aqui a precisa lição de Celso Bastos, que entre a argüição de
descumprimento de preceito fundamental e as demais ações de controle abstrato e concentrado, existe uma espécie de “zona comum em tese”,7 sem que com
isto se possa concordar com a posição segundo a qual a lei (e, portanto também
a Constituição) implicitamente admite que toda norma constitucional seja “preceito fundamental” e, por conseguinte, possa servir de parâmetro para argüições de descumprimento.8
De todas as inovações introduzidas - e as referidas até o presente momento
constituem apenas pálida amostra do universo a ser explorado - optamos, contudo, por destacar, para efeitos deste breve ensaio, pela sua crucial relevância
para o controle de constitucionalidade e para toda a ordem jurídica pátria,
pelo menos três aspectos, em parte comuns aos dois diplomas legislativos:
1) A possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, ao declarar a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista
razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, por
maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela
declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (art.
27 da Lei nº 9.868/99 e art. 11 da Lei nº 9.882/99).
2) A introdução do efeito vinculante e eficácia contra todos nos casos
de declaração de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade,
6
Sem que aqui se vá apontar e avaliar os entendimentos já existentes, parece-nos que devam prevalecer as posições que
tenham como elemento comum o fato de levarem a sério o termo “fundamental”, salvaguardando, neste ponto, o
espírito e a essência da Constituição, de tal sorte que preceitos fundamentais poderão ser considerados todas as
normas constitucionais (ainda que não expressamente positivadas) enunciando princípios e direitos fundamentais,
evidentemente não restritos aos Títulos I e II da nossa Carta Magna.
7
Cf. Celso Ribeiro Bastos e Alexis Galiás de Souza Vargas, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, in:
Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, nº 30 (2000), São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 75.
8
Neste sentido - embora de forma manifestamente contrária e crítica - a referência de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O
sistema constitucional brasileiro e as recentes inovações no controle de constitucionalidade (Leis nº 9.868, de 10 de novembro e
nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999), in: Revista de Direito Administrativo nº 220 (2000), p. 14, apontando para a
possibilidade de uma tal interpretação, que, à evidência, extrapola os limites da razoabilidade e acabaria, além de frustrar
o sentido do instituto, equiparar - ao menos no que diz com a parametricidade - de modo equivocado a argüição de
descumprimento às demais ações do controle abstrato e concentrado de normas no direito brasileiro.
76
Direito e Democracia
inclusive nas hipóteses de interpretação conforme a Constituição e
declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto,
efeitos estes que alcançam os demais órgãos do Poder Judiciário e a
Administração Pública Federal, Estadual e Municipal (art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99 e art. 10, parágrafo 3º, da Lei nº
9.882/99). Registre-se, contudo, que no concernente à Lei que disciplinou o processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental (Lei nº 9.882/99), o efeito vinculante e a eficácia contra
todos - em que pese reconhecidos nas hipóteses de declaração de
inconstitucionalidade ou de constitucionalidade - não abrangem a
interpretação conforme e a declaração parcial sem redução de texto, ao menos não expressamente contempladas neste diploma.9 Da
mesma forma, no que diz com a a argüição de descumprimento, o
efeito vinculante não foi expressamente limitado aos órgãos do Poder Executivo e Judiciário, havendo como cogitar-se, ao menos em
tese, de eventual extensão aos órgãos legislativos, já que o art. 10,
parágrafo 3º, do citado diploma legal, refere genericamente o poder
público, muito embora tal entendimento tenha sido recentemente
rechaçado em importante ensaio sobre o tema.10
9
Neste contexto, convém sinalar - não obstante sem maior desenvolvimento - que a ausência de previsão expressa no texto
legal não autoriza, pelo menos em princípio e salvo melhor juízo, a conclusão de que em sede de argüição de
descumprimento de preceito fundamental não se poderá lançar mão da interpretação conforme ou da declaração
parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, já que ambas as técnicas decisórias já vinham sendo praticadas (além de reconhecidas pela melhor doutrina) pelo Supremo Tribunal Federal mesmo antes da edição da Lei nº
9.868/99, onde vieram a obter referência expressa. De qualquer modo, a questão encontra-se - como tantas outras
decorrentes de ambos os diplomas legislativos - aberta ao debate, especialmente no que diz com eventual efeito
vinculante agregado às decisões que, no âmbito de um processo de argüição de descumprimento de preceito
fundamental, venham porventura a se utilizar de tais modalidades decisórias, que, reitere-se, já restaram virtualmente incorporadas ao sistema pátrio de controle de constitucionalidade. A respeito da interpretação conforme e da
declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto no âmbito do sistema de controle de
constitucionalidade brasileiro, v. – entre nós e paradigmaticamente – as relevantes contribuições de Gilmar Ferreira
Mendes, Jurisdição Constitucional – O Controle Abstrato de Normas no Brasil e na Alemanha, São Paulo: Ed. Saraiva,
1996, especialmente p. 265 e ss., assim como Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade
no Direito Brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 262 e ss.
10
Com efeito, esta a posição de Clèmerson Merlin Cléve e Cibele Fernandes Dias. Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental, in: Evandro de Castro Bastos e Odilon Borges Júnior (Coord). Novos Rumos da Autonomia Municipal,
Rio de Janeiro: Max Limonad, 2000, p. 78, invocando essencialmente o argumento de que a vinculação do Poder
Legislativo (para além da exclusão expressa do Legislador quando da introdução da ação declaratória de
constitucionalidade), acabaria por constituir ofensa ao princípio da separação dos poderes. Apesar das relevantes
razões esgrimidas pelos autores referidos, tal entendimento não se encontra de todo imune à controvérsia, já que a
vinculação do próprio legislador às decisões da Corte Constitucional (e nesta quadra o nosso Supremo Tribunal
Federal, em que pese sua gama variada de competências, efetivamente está a atuar como “guardião da Constituição”), é admitida em diversas ordens constitucionais, tal como ocorre - apenas em caráter exemplificativo - na
Alemanha e em Portugal. Neste sentido, entre outros – a respeito do direito lusitano – v. a contribuição de Joaquim
José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1999, p. 946.
Direito e Democracia
77
3) A possibilidade, expressamente prevista em ambos os diplomas legais, da concessão de liminar em sede de provimento cautelar (tanto em ação declaratória de constitucionalidade quanto na argüição
de descumprimento), consistente na determinação de que os Juízes
e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até o seu
julgamento definitivo (art. 21 da Lei nº 9.868/99 e art. 5º parágrafo
3º, da Lei nº 9.882/99), destacando-se, todavia, que no concernente
à argüição de descumprimento - além da possibilidade de concessão
da liminar pelo Ministro Relator (embora, de acordo com o art. 5º,
parágrafo 1º, da Lei nº 9.882/99, ad referendum do Tribunal Pleno)
o objeto do provimento cautelar é mais amplo, já que, para além da
suspensão do andamento de processos judiciais, foi prevista até
mesmo a possibilidade de suspensão dos efeitos de decisões judiciais
ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria
objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental,
salvo se decorrentes da coisa julgada, o que, para muitos (inclusive
já antes da entrada em vigor de ambas as leis) tem sido considerado
como significando, em verdade, a reintrodução da avocatória ou,
pelo menos, do incidente de inconstitucionalidade no ordenamento
pátrio, aspectos que - apesar de seu inequívoco relevo e questionada legitimidade constitucional - aqui não iremos desenvolver.11
Já no que diz com a Alemanha, registra-se divergência a respeito deste ponto. Assim, de acordo com a lição de Klaus
Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, 3ª ed., München: C.H. Beck, 1994, p. 275, enquanto o 1º Senado da Corte
Federal Constitucional entende que o legislador não se encontra impedido de editar lei de igual teor àquela
declarada inconstitucional, o 2º Senado admite, por força da eficácia vinculante, uma proibição de reedição de
normas por parte do legislador infraconstitucional.
11
Sobre a possibilidade de a argüição de descumprimento de preceito fundamental, tal como formatada pelo legislador
ordinário, contemplar também o incidente de inconstitucionalidade (embora não criticando este aspecto), v., dentre
outros, Gilmar Ferreira Mendes, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (§ 1º do art. 102 da Constituição
Federal), publicado na revista virtual Jus Navigandi (www.jus.com.br) (texto originalmente publicado na Revista
Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, edição de dezembro de 1999). Posicionando-se de forma veementemente
contrária e vislumbrando feições de avocatória na possibilidade de suspensão dos processos judiciais, cumpre destacar
o voto em separado - lançado em 12.11.97 - da lavra do eminente Deputado Jarbas Lima, quando da apreciação, na
Comissão de Constituição e Justiça, do Projeto de Lei nº 2.960/97, que veio a resultar, posteriormente, na Lei nº 9.868/
99. Já naquela oportunidade, o ilustre Deputado averbou que “Na verdade, a previsão contida no art. 21 do projeto
- que de cautelar nada possui - pretende instituir, às avessas, o chamado incidente de constitucionalidade per saltum
na via do controle difuso, ou seja, a famigerada “avocatória” que a Assembléia Nacional Constituinte de 1988
rejeitou sem hesitações, nunca é demais repetir. Neste sentido, não se pode esquecer que o controle concreto difuso
da inconstitucionalidade já faz parte da tradição jurídica brasileira, sendo exercitado diariamente por todos os
lidadores do direito e concretizando, de forma paulatina, as disposições constitucionais. É mais do que previsível que
essa construção diária leva à existência de posições diversas, mas é induvidoso que a juriprudência constitucional
assim erguida é fruto de um pluralismo democrático judiciário inafastável quanto à efetivação do Estado
78
Direito e Democracia
Desde logo e antes de avançarmos, importa justificar a circunstância
de que,apesar de estarmos, em princípio, versando apenas sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental, acabamos por referir
também vários pontos relativos às ações declaratórias de
inconstitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade) e de
constitucionalidade. Com efeito, para além dos elementos comuns já ventilados (ainda que parcialmente) e tantos outros que poderiam vir a ser
referidos, não há como proceder a um exame completamente isolado da
argüição de descumprimento, também pelo fato de se cuidar, em verdade,
de uma nova modalidade de controle abstrato e concentrado de
constitucionalidade, muito embora na sua origem - isto é, como pressuposto para sua propositura - encontremos um ato determinado (que poderá não ser necessariamente de cunho normativo) violador de algum preceito fundamental da Constituição.
Com efeito, quando se considera o rol dos legitimados ativos (que são os
mesmos da ação direta de inconstitucionalidade), a natureza do pronunciamento final (que, de acordo com o que deflui da lei regulamentadora, pelo
menos poderá constituir também em uma declaração em tese da
inconstitucionalidade ou constitucionalidade de ato normativo) e, acima
de tudo, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante atribuído às decisões,
verifica- se que nos encontramos - não obstante a argüição de
descumprimento, tal como oportunamente averba Lenio Streck, esteja a
abranger “a ambivalência própria do sistema misto de controle de
constitucionalidade vigorante no Brasil”12 - em verdade muito mais próximos do controle concentrado do que do controle difuso e incidental, constituindo-se, portanto, a exemplo das demais ações do controle abstrato,
tendencialmente um instrumento (processo objetivo) de defesa da ordem
constitucional.13 Aliás, é justamente pelo seu impacto sobre esta tradicional modalidade de controle, incorporada ao nosso sistema jurídico desde a
primeira Constituição da República, que não são poucos os que já vinham
sustentando a inconstitucionalidade não apenas do efeito vinculante, mas
Democrático de Direito no âmbito do pacto federativo da nação.Todavia, o art. 21 do Projeto cria autoritária
subversão dessa perspectiva histórica, desprezando-a, além de ignorar a estruturação do sistema judiciário brasileiro
ao instituir uma espécie de avocação da matéria constitucional ao S.T.F.”. Também Lenio Luiz Streck, Os meios de
acesso do cidadão à jurisdição constitucional...., ob. cit., p. 20, aponta para o fato de que o art. 5º, parágrafo 3º, da Lei
nº 9.882/99, “reinsere em nosso ordenamento o instituto da avocatória”.
12
Cf. Lenio Luiz Streck, Os meios de acesso do cidadão à jurisdição constitucional..., ob. cit., p. 15.
13
Cf. , dentre outros, Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstrata..., ob. cit., p. 143.
Direito e Democracia
79
da própria ação declaratória de constitucionalidade14, aspecto que por ora em que pese a sua relevância - deixaremos de adentrar.
Assim, delimitando o objeto do presente estudo, optamos por priorizar algumas questões vinculadas mais diretamente aos três pontos ora destacados,
direta – mas não exclusivamente - ligados ao problema dos efeitos das decisões proferidas em sede de argüição de descumprimento (e nas demais ações
de controle abstrato), cientes de que - até mesmo em face da ainda relativamente escassa produção doutrinária e virtualmente inexistente jurisprudência - pouco mais faremos do que arriscar algumas indagações e questionamentos. Estes, por sua vez, centrar-se-ão na já de há muito instalada discussão em
torno da legitimidade constitucional das novas leis, notadamente pelo prisma de eventual inconstitucionalidade formal, de modo especial naquilo em
que dispuseram sobre os efeitos das decisões proferidas nos procedimentos
recentemente regulamentados. Além disso, tentaremos situar o problema no
âmbito da legitimidade da Jurisdição Constitucional e da posição que o nosso
Supremo Tribunal Federal tem ocupado - ou deveria assumir - neste contexto, ainda mais quando se está a enrobustecer de maneira tão significativa as
suas funções e os poderes dos quais se encontra investido para cumprir o seu
papel de guardião da ordem constitucional.
2) A discussão em torno da legitimidade constitucional da introdução
do efeito vinculante e da manipulação dos efeitos no âmbito do controle
de constitucionalidade por lei ordinária
Desde logo, sob o prisma da assim denominada constitucionalidade formal
(tomada aqui num sentido mais amplo), parece-nos que existem pelo menos
alguns elementos que permitem controverter a respeito da circunstância de ter
sido o efeito vinculante, assim como a manipulação da extensão dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade e constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, introduzido por lei ordinária e não por emenda constitucional,
tanto é que tramitam no Supremo Tribunal Federal duas ações diretas propostas
14
A respeito deste ponto, de modo especial sobre a discussão em torno da inconstitucionalidade do efeito vinculante, v.,
sem prejuízo da farta e valiosa literatura já produzida sobre o tema, a indispensável contribuição de Lenio Luiz Streck,
Súmulas no Direito Brasileiro – Eficácia, Poder e Função – A ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 2ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 135 e ss. (pugnando pela inconstitucionalidade da ação declaratória
de constitucionalidade) e p. 233 e ss. (explorando, com riqueza argumentativa, a tese da ilegitimidade constitucional
do efeito vinculante, seja em sede de súmulas vinculantes, seja no âmbito do controle de constitucionalidade).
80
Direito e Democracia
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, requerendo a declaração de inconstitucionalidade dos diplomas legislativos ora analisados15. Assim, sem que aqui se pretenda enunciar uma posição fechada e nem mesmo
explorar todas as possíveis facetas e argumentos a respeito deste ponto, vale
registrar alguns aspectos a serem considerados neste contexto.
Em primeiro lugar - embora não necessariamente em ordem de importância - verifica-se que o efeito vinculante em sede de controle abstrato, apesar
de sustentado por importantes segmentos da doutrina pátria e alguns dos próprios integrantes do Supremo Tribunal Federal, acabou por ser introduzido
apenas em 1993, com a criação - por emenda constitucional - da ação
declaratória de constitucionalidade, quando - se efetivamente pudesse ter sido
previsto em lei - tal já poderia ter ocorrido muito antes. Além disso, mesmo
que tal tivesse sido sugerido16, não chegou o Supremo Tribunal Federal a entender possível a extensão do efeito vinculante às decisões proferidas em sede
de ação direta de inconstitucionalidade, mesmo que de há muito (já sob a
égide da Constituição de 1967/69) tenha prevalecido o entendimento de que
a ação direta de inconstitucionalidade constitui demanda de natureza dúplice,
de tal sorte que, em caso de improcedência, resulta uma declaração de
constitucionalidade do ato originalmente impugnado.17
Para além disso, não se pode desconsiderar por completo o fato de que,
paralelamente à edição das duas leis ora analisadas, esteja tramitando no Congresso Federal, no âmbito da Reforma do Judiciário, proposta de emenda constitucional que, entre outros aspectos, dispõe sobre a criação do efeito vinculante
15
Cuida-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2231-8 (Relator Ministro Néri da Silveira), questionando a
inconstitucionalidade total da lei nº 9.882/99, e da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2258-0 (Relator Ministro Sepúlveda Pertence), sindicando a constitucionalidade do artigo 11, parágrafo 1º, e dos artigos 21 e 27, todos da
Lei nº 9.868/99. Ambas as ações diretas encontram-se aguardando decisão a respeito do pedido de liminar.
16
Neste sentido, cumpre registrar a posição do eminente Ministro Sepúlveda Pertence (Reclamação nº 621-RS, publicada
no DJU de 04.07.1996), no sentido de que haveria como outorgar efeito vinculante também às decisões proferidas
em ações diretas de inconstitucionalidade (ADIN), nas hipóteses nas quais for cabível a propositura de ação
declaratória de constitucionalidade, propugnando uma interpretação sistemática da Constituição em virtude das
inovações (especificamente a introdução da ação declaratória de constitucionalidade e do efeito vinculante atribuído às decisões ) trazidas pela Emenda Constitucional nº 3 DE 1993.
17
Cf., dentre tantos e de forma paradigmática, Gilmar Ferreira Mendes, Direitos Fundamentais e Controle de
Constitucionalidade, São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 254 e ss., noticiando que tal prática encontra sua origem
na admissão, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da possibilidade de o Procurador-Geral da República,
quando ainda era o titular exclusivo da ADIN, manifestar-se pela improcedência da demanda, sustentando a
constitucionalidade do ato normativo inicialmente impugnado por inconstitucional. A natureza dúplice tanto da
ação direta de inconstitucionalidade, quanto da ação declaratória de constitucionalidade veio a ser expressamente
chancelada pela Lei nº 9.868/99 (art. 24).
Direito e Democracia
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para as decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Tal circunstância, se evidentemente não pode servir como argumento decisivo, pelo
menos, sugere uma certa insegurança no que diz com a legitimidade da introdução, via lei ordinária, do efeito vinculante e da restrição dos efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade ou constitucionalidade, no nosso
ordenamento jurídico. Afinal de contas, por quê utilizar o procedimento agravado da reforma constitucional para obter algo que a maioria simples, mediante processo legislativo substancialmente mais facilitado, já decidiu?
De outra parte, constata-se, a partir de experiências oriundas do Direito
Comparado, que o efeito vinculante e a flexibilização dos efeitos da declaração proferida pela Corte Constitucional - notadamente quanto à sua amplitude e conseqüências - ou encontra-se expressamente prevista na Constituição, ou foi regulamentada em Lei, neste caso, todavia, por expressa delegação
da Constituição, isto é, autorizada direta e inequivocamente pelo Poder Constituinte Originário, não sendo o caso de se desprezar a tese de que se cuida de
questões de cunho materialmente constitucional. Não se poderá olvidar, pela
sua estreita relação com o tema, que o dogma da nulidade do ato
inconstitucional (e, portanto, o efeito da declaração de inconstitucionalidade),
como bem recorda Gilmar Ferreira Mendes, de há muito adquiriu, também
entre nós, hierarquia constitucional, posição esta consagrada pelo Supremo
Tribunal Federal,18 o que apenas reforça o espectro de argumentos em favor de
uma ilegitimidade constitucional de ambos os diplomas, especialmente naquilo em que estão a alterar - direta e substancialmente - este verdadeiro postulado do nosso direito constitucional.19
Neste sentido, apenas para citarmos alguns exemplos extraídos do Direito
Comparado, retratando a prática de algumas ordens constitucionais que vêm
exercendo significativa influência sobre a nossa própria experiência jurídicoconstitucional, verifica-se que a Lei Fundamental da Alemanha (art. 94, nº
2), dispõe que uma Lei Federal versará sobre a organização do Tribunal Constitucional, assim como sobre o procedimento e a força vinculante de suas
decisões. A Constituição da Itália, em seu art. 136, dispõe expressamente sobre o início dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, ao passo que o
art. 137 remete os aspectos relativos à constituição e funcionamento da Corte Constitucional à legislação ordinária. A Constituição Portuguesa, por sua
18
Cf. Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional, ob. cit., p. 255.
19
Com as presentes ponderações não se está, todavia, a rechaçar necessárias relativizações no âmbito dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade, mas apenas controvertendo a respeito do modo (embora também discutindo a
amplitude) pelo qual modificações tão relevantes no sistema foram regulamentadas pelo direito positivo.
82
Direito e Democracia
vez, no art. 281, nºs 1 e 3, prevê expressamente que as decisões proferidas em
sede de controle abstrato (decisão declaratória de inconstitucionalidade ou
de ilegalidade), possuem força obrigatória geral. Já no art. 282, nºs 1 a 4, a
Constituição Portuguesa dispõe expressamente sobre a respeito da fixação do
alcance dos efeitos das decisões. Também a Constituição Espanhola (art.
164), faz referência expressa e direta ao efeito vinculante das decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional.
Poder-se-á argumentar – sustentando ponto de vista contrário – que, pelo
menos no que diz com a arguição de descumprimento de preceito fundamental, a Constituição de 1988, em seu art. 102, parágrafo 1º, autorizou expressamente o legislador ordinário a regulamentar a norma constitucional, autorização esta que teria o condão de abranger até mesmo os aspectos relacionados
aos efeitos da decisão, razão pela qual desde logo não se poderia sequer cogitar
da tese aqui ventilada.
Não obstante tal exegese possa, numa leitura mais apressada, ser plenamente convincente, não nos parece que seja necessariamente a mais legítima, especialmente em se procedendo à uma interpretação teleológica e sistemática. Com efeito, já sob um prisma lógico-formal, não se afigura como
incensurável o entendimento de que, em sede de controle abstrato e em se
adotando o raciocínio até agora sustentado, seja indispensável uma previsão
expressa do efeito vinculante e da restrição dos efeitos da declaração proferida pelo Supremo Tribunal Federal, ou, pelo menos, sua introdução por meio
de emenda constitucional, ao passo que tal providência, no âmbito da arguição
de descumprimento de preceito fundamental, estaria dispensada, cometida
tal regulamentação integralmente ao legislador. Na medida em que no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental igualmente se
encontra prevista a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade e
constitucionalidade, inclusive em conexão com decisões proferidas em sede
de ação direta de inconstitucionalidade e/ou ação declaratória de
constitucionalidade, não haveria como aceitar tal assimetria de tratamento.
Com efeito, como já esperamos ter demonstrado, a argüição de descumprimento
integra o cada vez mais complexo sistema de controle de constitucionalidade
brasileiro e, tendo em conta os diversos pontos de contato com as demais
ações de controle abstrato, não pode se pura e simplesmente analisada de
forma isolada.
Assim, pela natureza e importância do tema, envolvendo a ampliação dos
poderes do Supremo Tribunal Federal em relação aos demais órgãos judicantes
e administração pública, a regulação por lei ordinária haveria - pelo menos
Direito e Democracia
83
assim nos parece lícito argumentar - de se restringir a aspectos ligados a questões de ordem organizacional e procedimental (onde, de resto, houve importantes e positivas novidades introduzidas por ambas as leis ora questionadas)20,
sendo esta, salvo melhor juízo, uma alternativa plausível para se interpretar a
remissão à lei prevista no art. 102, parágrafo 1º, da nossa Carta Magna.
É justamente pela relevância da matéria e pelas suas conseqüências para a
ordem jurídico-constitucional pátria - por mais que se possa sempre objetar
inexistir algo como uma espécie de reserva material para a emenda constitucional (no sentido de que inexistem assuntos sobre os quais apenas o poder
constituinte reformador possa dispor) - que se afigura pelo menos como plausível o entendimento de que estamos a tratar - notadamente no que diz com o
poder cautelar atribuído ao Supremo Tribunal Federal, o efeito vinculante,
bem como a possibilidade de restringir os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade - de matéria tipicamente constitucional e que no mínimo não se revela conveniente sua regulação por mera lei ordinária, inclusive se considerada a questão pelo prisma da legitimação democrática. Com
efeito, não parece razoável que se atribua à maioria simples e transitória do
Congresso Nacional a decisão sobre questões de tal sorte relevantes.
Apenas para ilustrar melhor a questão e desenvolver um pouco mais o
ponto, tomemos por referência as alterações ora focalizadas, atinentes aos efeitos das decisões. Nesta quadra, convém lembrar que ao atribuir às decisões do
Supremo Tribunal Federal efeito vinculante (pelo menos em se considerando
amplitude deste efeito) o legislador ordinário acabou por interferir direta e
significativamente no âmbito do controle difuso e incidental de
constitucionalidade, certamente um dos esteios da ordem jurídico-constitucional pátria desde a primeira Constituição da República. Com efeito, se tal
modalidade de controle não restou suprimida - como alguns chegaram a cogitar de modo certamente exagerado - não há como negar, todavia, que a obra
do Poder Constituinte ao longo de toda a nossa história republicana acabou
por ser substancialmente fragilizada e esvaziada, antes pela introdução da ação
declaratória de constitucionalidade e agora, de modo significativamente mais
incisivo, pela atuação do legislador ordinário. Quando então se considera a
20
Dentre outros aspectos, assume relevo a incensurável possibilidade - comum a ambos os diplomas legislativos
(designadamente art. 20, parágrafo 1º, da Lei nº 9.868/99, e art. 6º, parágrafo 1º, da Lei nº 9.882/99) de, em caso de
necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato, se produzir prova pericial e realizar audiência
pública para oitiva de pessoas com experiência e autoridade na matéria discutida no processo de controle abstrato,
tese que de há muito já vinha sendo, entre nós, pioneiramente sustentada por Gilmar Ferreira Mendes, Direitos
Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, ob. cit., pp. 422-23.
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Direito e Democracia
possibilidade - prevista justamente na lei que dispõe sobre a argüição de
descumprimento de preceito fundamental - de um Ministro do Supremo Tribunal Federal (mesmo que ad referendum do pleno)21 suspender liminarmente
todos os processos judiciais e/ou efeitos de decisões judiciais, ou mesmo determinar a suspensão de qualquer outra medida que tenha relação com a matéria ventilada na argüição, não há como negar que o problema se revela ainda
mais delicado.
O mesmo se pode afirmar - talvez ainda com maior convicção - relativamente à possibilidade de o Supremo Tribunal Federal (ainda que por maioria
qualificada) restringir os efeitos da declaração de constitucionalidade, decisão esta que, por sua vez, igualmente possui efeito vinculante. Com isto não se
está a questionar a necessária relativização do dogma da nulidade absoluta
(com efeitos retroativos) da norma inconstitucional, que o próprio Supremo
Tribunal Federal, não obstante ainda de modo relativamente tímido, vinha
excepcionando, admitindo, em alguns de seus julgados, efeitos meramente
prospectivos, deixando assim de nulificar os atos praticados com base na lei
declarada inconstitucional, por razões de segurança jurídica.22 A lei ordinária,
todavia, foi bem mais ousada e, para além da possível outorga de efeitos ex
nunc (de resto amplamente reconhecida no direito constitucional europeu e
já admitida até mesmo em alguns julgados da Suprema Corte norte-americana23), ambos os diplomas legislativos, tal como já frisado, autorizam o Supremo Tribunal Federal uma margem de arbítrio sem precedentes e virtualmente
sem paralelos no direito constitucional pátrio e comparado, já que o Tribunal
poderá até mesmo decidir que a declaração de inconstitucionalidade venha a
gerar efeitos a partir de outro momento, sem contudo estabelecer qualquer
tipo de limite, bem como dispor de ampla liberdade no âmbito da manipulação dos efeitos das suas decisões (art. 11 da Lei nº 9.882/99 e art. 27 da Lei nº
9.868/99).
Neste contexto, cumpre destacar, ainda, que as dúvidas geradas pela formulação adotada pelo legislador, em ambos os diplomas ora parcialmente apreciados, tornam extremamente penosa a tarefa de um pronunciamento sobre
a legitimidade constitucional (inclusive pelo prisma substancial) das inova21
Cf. dispõe o art. 5º, parágrafo 1º, da Lei nº 9.882\99.
22
A respeito deste ponto, v. especialmente Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstrata..., ob. cit., especialmente p. 251
e ss., bem como Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional..., ob. cit., p. 249 e ss.
23
A respeito da evolução ocorrida no âmbito da Suprema Corte Norte-Americana, v. a contribuição de Eduardo García de
Enterría, Justicia Constitucional,la doctrina prospectiva em la declaración de ineficácia de las leyes inconstitucionales, in:
Revista de Direito Público, vol. 92 (1989), p. 6.
Direito e Democracia
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ções no que diz com a restrição dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade e seu diferimento no tempo. Em primeiro lugar, a dicção genérica adotada não permite sequer que se saiba, com precisão, quais os
efeitos e quais as espécies de restrições dos quais está a se tratar, já que poderse-á imaginar até mesmo uma restrição da própria intensidade ou âmbito de
abrangência da eficácia vinculante e da coisa julgada erga omnes. Qualquer
referência ao tema em termos de análise crítica, ressente-se, de tal sorte, de
flagrante caráter especulativo e, portanto, fatalmente resta, já antecipadamente, ao menos parcialmente prejudicada, o que, por outro lado, não afasta
a possibilidade de uma análise crítica, até mesmo para evidenciar esta faceta
do problema. Para além disso, uma apreciação mais minuciosa encontra-se na
dependência do exame da diversificada prática do Supremo Tribunal Federal
nesta seara e da referência às experiências no âmbito do Direito Comparado,
que aqui não temos condições de recolher.
Mesmo assim - a despeito da indeterminação da fórmula adotada pelo legislador - é possível detectar, com alguma margem de certeza, uma série de
pontos controversos, apontando especialmente para alguns graves riscos que
podem decorrer da aplicação da nova legislação. Com efeito, postergar no
tempo, para além das alternativas ex tunc e ex nunc (ainda mais sendo esta
última de cunho excepcional), os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade, isto é, a nulidade do ato, constitui fator de grande insegurança jurídica e institucional, por si só potencial ameaça ao princípio do
Estado de Direito, além dos graves riscos até mesmo de ofensas aos direitos e
garantias fundamentais dos cidadãos. Pelo menos, tal prerrogativa, exercida
sem a devida moderação, poderá colocar em cheque o princípio da separação
de poderes consagrado pela nossa Carta Magna, por mais que se possa (e deva)
relativizar e contextualizar o seu sentido e alcance.
Com relação a este ponto, poder-se-á sempre argumentar a existência de
experiências no Direito Comparado abalizando este diferimento previsto nos
dispositivos legais ora comentados, tal como ocorre, v.g., na Alemanha e na
Áustria, cuja Constituição (art. 140), prevê como regra geral a eficácia ex nunc
e viabiliza ao Tribunal Constitucional a postergação por até um ano, período no
qual o ato declarado inconstitucional permanece em vigor e gerando efeitos.
Na Alemanha, por sua vez, a existência de diversas decisões do Tribunal Federal Constitucional declarando a incompatibilidade da norma com a Constituição, sem pronunciar a sua nulidade e autorizando, por determinado período de
tempo, a sua aplicação até a substituição ou correção por outra norma editada
pelo legislador, tem sido admitida como indispensável em determinadas situa-
86
Direito e Democracia
ções, mas sempre a título excepcional.24 Em Portugal, não obstante a existência
de diversas decisões do Tribunal Constitucional dispondo sobre a extensão dos
efeitos da declaração de inconstitucionalidade, tal prática - especialmente a
mera declaração de incompatibilidade sem pronúncia de nulidade, as decisões
apelativas, a dissociação entre a declaração de inconstitucionalidade e a sua
publicação e a assim chamada declaração de inconstitucionalidade com efeito
aditivo ou substitutivo (como é o caso das assim denominadas sentenças
manipulativas da Corte Constitucional Italiana) - tem encontrado alguma resistência.25 Aliás, até mesmo na Alemanha registra-se um incremento do rol
daqueles criticam a ampliação das hipóteses de vinculação, especialmente em
se cuidando de relativização dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.26
Na tentativa de ilustrar a problemática, verifica-se que, argumentando
apenas com a fórmula “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” (e por que não por razões de “Estado” ou, melhor ainda, de “Governo”?) poderá o Supremo Tribunal Federal - e o exemplo aqui vai citado em
caráter meramente especulativo - decidir até mesmo que um determinado
tributo ou outra medida restritiva de direitos e garantias fundamentais (não
olvidando aqui que as limitações constitucionais ao poder de tributar - ao
menos parte delas - já foram consideradas pelo próprio Supremo direitos e
garantias fundamentais do cidadão-contribuinte e “cláusulas pétreas”27), mesmo sendo manifestamente inconstitucional, poderá continuar sendo aplicada, cobrada ou executada por meses e, quem sabe, até mesmo por anos após
ter sido declarada inconstitucional. Em assim sendo, o contribuinte - apesar
de ver reconhecido o seu direito a não pagar determinado tributo ou contribuição ofensiva aos princípios constitucionais - e como tal já declarado pelo
Supremo Tribunal Federal - poderá ser compelido pelo poder público (e pior,
haverá de se resignar com isto, já que - em virtude do efeito vinculante e a
24
Cf., dentre tantos, Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, ob. cit., p. 220 e ss.
25
Neste sentido, v. Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., ob. cit., especialmente p. 952, referindo que “o
Tribunal Constitucional tem aproveitado (de forma excessiva) esta possibilidade expressamente conferida pela
Constituição restringindo os efeitos normais da inconstitucionalidade”. Assim também parece sustentar Jorge Miranda,
Manual de Direito Constitucional, vol. II, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 390.
26
Cf. novamente Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, ob. cit., especialmente p. 259 e ss.
27
Cf. a paradigmática e sem dúvida louvável decisão que declarou a inconstitucionalidade (parcial) da emenda constitucional nº 3-93, aqui especificamente no que diz com a criação do então denominado IPMF (Imposto provisório sobre
Movimentação Financeira), proferida na ADIN nº 939-7 e relatada pelo Ministro Sidney Sanches. Nesta demanda,
para além de outros aspectos relevantes (como o próprio fato de se declarar a inconstitucionalidade de emenda
constitucional), reconheceu-se expressamente que o princípio da anterioridade, consagrado no art. 150, inc. III,
alínea b, da Constituição de 1988, constitui, por força do art. 5º, § 2º, da Carta Magna, direito e garantia fundamental
do cidadão-contribuinte, decisão que também contemplou as imunidades previstas no inciso VI, alíneas a, b, c e d do
mesmo dispositivo constitucional.
Direito e Democracia
87
depender de sua amplitude e rigor - também não adiantará recorrer às instâncias judiciais inferiores) a continuar pagando pelo prazo que vier a ser fixado
pelo Tribunal?!.
Por outro lado, não há como desconsiderar que tanto a declaração de
constitucionalidade com efeito vinculante, quanto a vinculação de decisões de
cunho manifestamente interpretativo, tal como oportunamente adverte Gomes Canotilho, acabam por conferir caráter normativo às decisões da jurisdição
constitucional, transformando-o numa espécie de legislador positivo, de tal sorte
que se vislumbra potencial ofensa aos princípios do Estado de Direito e da separação dos poderes,28 ambos agasalhados pela nossa atual Carta Magna. Neste
mesmo sentido, assume relevo a posição sustentada no direito pátrio por Lenio
Luiz Streck, que, além de sublinhar e aprofundar a tese da ofensa ao princípio
da separação dos poderes, destaca - recolhendo neste ponto lição de Cármen
Lúcia Antunes Rocha – que, com a introdução do efeito vinculante, o Supremo
Tribunal Federal acaba por exercer funções de poder constituinte reformador, já
que a sua interpretação da Constituição e das leis se converte em norma com
força constitucional.29 Com efeito, vale lembrar, ainda neste contexto, a experiência de Portugal, onde a sentença de rejeição no âmbito do controle abstrato
da constitucionalidade limita-se a não declarar a inconstitucionalidade, não
resultando - como admitido entre nós – na declaração de constitucionalidade,
além de não compartilhar do efeito vinculante.30 Nesta quadra, reportamo-nos
novamente ao magistério de Gomes Canotilho, para quem tal possibilidade
equivaleria à recepção do instituto do stare decisis no ordenamento jurídico português, o que, por sua vez (pelo menos assim o sugere o ilustre publicista) apenas
poderia ocorrer pela via da revisão constitucional. 31
A partir do exposto, mesmo em se considerando os poucos exemplos e
argumentos colacionados,32 acreditamos ter demonstrado, especialmente em
28
Cf. Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., ob. cit., p. 939 e ss.
29
Cf. Lênio Luiz Streck, Súmulas no Direito Brasileiro..., ob. cit., p. 268-9.
30
Cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, ob. cit., pp. 383-4. Assim também – bem como sobre os efeitos das
decisões do Tribunal Constitucional em geral – o entendimento de José Manuel M. Cardoso da Costa,A Jurisdição
Constitucional em Portugal, 2ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1992, p. 61-62.
31
Cf. Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., ob. cit., p. 956 e ss.
32
Sugerindo uma inconstitucionalidade da Lei nº 9.882/99, situa-se o questionamento - já referido - de Ronaldo Poletti,
Controle da Constitucionalidade das Leis, ob. cit., p. 214, ao indagar a respeito da viabilidade de se definir, por lei
ordinária, quais os preceitos fundamentais aptos a desafiar argüição de descumprimento no caso de sua violação. Da
mesma forma - mas por outro fundamento - cabe destacar aqui a tese sustentada em recente e importante estudo da
lavra de Alexandre de Moraes, Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais, ob. cit., pp. 267-68, argumentando, em síntese, que a Lei nº 9.882/99 distanciou-se do texto constitucional e ampliou irregularmente as
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Direito e Democracia
face da relevância constitucional dos aspectos ventilados, que a tese da
inconstitucionalidade por inidoneidade do meio escolhido (lei ordinária) pode
eventualmente não ser a melhor nem vir a prevalecer quando de uma
manfestação do Supremo Tribunal Federal a respeito, mas seguramente merece ser levada a sério, ao menos reclamando uma reflexão mais aprofundada,
do que aqui - até mesmo em virtude da limitação física do presente texto –
tivemos oportunidade de empreender.
3 - A necessária conexão das reformas no âmbito do controle de
constitucionalidade com o problema da legitimidade da jurisdição constitucional exercida no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal
Por mais que se tenha como correta a conhecida afirmação do Juiz Hughes,
da Suprema Corte Norte-Americana, no sentido de que a Constituição é o
que os Juízes dizem que ela é (The constitution is what the judges say it is), ela
certamente não poderá justificar que se outorgue à Jurisdição Constitucional
(ainda mais por lei ordinária) poderes de tal sorte amplos e discricionários, a
ponto de colocar seriamente em risco a própria noção de que também os órgãos judiciais, quando atuantes na condição de intérpretes e garantes da Constituição, continuam sendo órgãos constituídos e não constituintes33. Neste
contexto, a livre manipulação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade, especialmente quando somada ao efeito vinculante
das decisões, certamente poderá - ainda mais em se considerando as características do sistema pátrio, desestabilizar o já frágil equilíbrio entre os órgãos de
poder estatais (além de agravar ainda mais a crise institucional já instalada
entre nós), gerando uma superinstância controladora (e, por sua vez, isenta
de maiores amarras) não necessariamente desejável para o Estado democráti-
competências do Supremo Tribunal Federal, ao considerar como descumprimento de preceito fundamental qualquer controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os
anteriores à Constituição, sustentando que tal apenas poderia ter ocorrido por emenda constitucional. Para além
disso, ainda de acordo com o mesmo autor (ob. cit., pp. 268) - que aqui chega a referir também o problema das
decisões e seus efeitos - o legislador ordinário acabou equiparando - no que diz com a legitimidade ativa e os efeitos
das decisões - a ação direta de inconstitucionalidade e a argüição de descumprimento, o que igualmente demonstra
a tentativa inconstitucional de ampliar a competência do Supremo Tribunal Federal.
33
Neste passo, segundo bem coloca Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, p. 291, cumpre levar a sério a pergunta
de como pode a Corte Constitucional (o que, à evidência e no contexto peculiar da ordem constitucional pátria
também se aplica ao Supremo Tribunal Federal) assegurar o âmbito de atuação dos demais órgãos constitucionais e
simultaneamente assegurar e controlar seu próprio poder controlador, já que igualmente vinculado pela Constituição, ainda que lhe incumba a tarefa de decidir sobre o sentido e alcance das normas constitucionais e, portanto,
controlar a constitucionalidade dos atos dos demais órgãos estatais.
Direito e Democracia
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co de Direito planejado (embora longe de estar implementado) pela nossa
Constituição vigente.
Desde logo - e é precisamente este o outro ponto que ora pretendemos destacar - não há como deixar de reconhecer a íntima vinculação do problema dos
efeitos das decisões em sede de controle de constitucionalidade com a sempre
atual e controversa discussão em torno da legitimidade do exercício da jurisdição constitucional e dos limites de sua atuação.34 Ainda que já de há muito precisamente a partir da experiência constitucional norte-americana e de modo
especial após a segunda guerra mundial - não se tenha mais – salvo exceções questionado seriamente a possibilidade de um controle jurisdicional dos atos
dos demais órgãos estatais, com isto não resta afastada a necessidade de se refletir continuamente sobre a natureza e os limites deste controle, inclusive no que
diz com aspectos vinculados ao próprio órgão (ou órgãos) controladores.
Um dos problemas que se põe entre nós é justamente o de poder contar
com a devida dose de self restraint (auto-limitação) por parte do Supremo
Tribunal Federal ao relativizar os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade, inclusive no que tange ao seu diferimento no tempo,
atividade que, ao menos segundo a legislação recentemente introduzida em
nosso ordenamento, praticamente não está sujeita a qualquer limite.35 Assim,
reportando-nos ao exemplo referido (cobrança de tributo já declarado
inconstitucional), que apenas constitui pálida amostra dos riscos que se
descortinam, não se torna difícil imaginar que o legítimo interesse social invocado para fundamentar determinada decisão, poderia facilmente ser deslocado por razões arbitrárias de Estado e toda sorte de pressões, tudo com o
objetivo de alcançar por caminhos de legitimidade por si só já duvidosa (ao
menos em se considerando os argumentos em prol da inconstitucionalidade
das inovações ora examinadas) objetivos por vezes manifestamente ilegítimos, por mais bem intencionada que possa ser a decisão.
34
Sobre o tema da legitimidade democrática da Jurisdição Constitucional vale conferir, entre nós, a contribuição de André
Ramos Tavares, Tribunal e Jurisdição Constitucional, São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, especialmente p. 71 e ss. No
âmbito do direito comparado, recomenda-se, em língua portuguesa, a obra coletiva contendo as contribuições
produzidas por ocasião de evento comemorativo dos dez anos de instalação e funcionamento do Tribunal Constitucional de Portugal, intitulada Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Coimbra: Coimbra Editora, 1995,
253 p.
35
Cumpre registrar que a problemática da legitimação da jurisdição constitucional vai aqui analisada basicamente pelo
prisma de uma legitimação político-democrática, encontrando-se, além disso, restrita ao problema da legitimação do
Supremo Tribunal Federal na condição de órgão máximo desta Jurisdição Constitucional e tendo em conta a
amplitude de suas funções e poderes nesta seara, já que também se poderá sempre discutir até mesmo a legitimidade
dos demais órgãos jurisdicionais, ao exercerem o controle de constitucionalidade de modo difuso e incidental, isto
sem falar nas outras dimensões que revela o problema da legitimação das decisões e atos do Poder Judiciário.
90
Direito e Democracia
Os riscos de um desmesurado arbítrio (ao menos em se considerando a
dicção dos dispostivos legais citados) crescem quando se soma um outro argumento, este ligado (ainda que não exclusivamente) ao problema da legitimidade político-democrática do nosso Supremo Tribunal Federal para exercer
tal parcela de poder sobre os demais poderes e cidadãos do nosso país. Cuidase, aliás, de tema recorrente e que deveria, especialmente entre nós, ser discutido de forma mais contundente e transparente. Uma Jurisdição Constitucional operante e efetiva não prescinde de uma base de legitimação que lhe confere a devida autoridade e o devido respeito por suas decisões. Sem que se
coloque aqui em questão a reconhecida idoneidade pessoal e capacidade dos
integrantes da nossa Corte Suprema - já que não é este, à evidência, o ponto
em foco - não nos parece que a atual forma de composição da Corte e de
recrutamento de seus integrantes seja compatível com a amplitude e gravidade das prerrogativas que se lhe estão a atribuir paulatinamente. Se antes do
advento da Constituição de 1988 ainda se podia falar de uma manifesta preponderância do controle difuso e incidental de constitucionalidade (muito
embora já presentes elementos importantes do controle abstrato e concentrado), atualmente, notadamente a contar da introdução da ação declaratória
de constitucionalidade e da argüição de descumprimento de preceito fundamental, especialmente em face da sua recente regulamentação legislativa (ainda mais se esta efetivamente vier a prevalecer), já dominam os componentes
de um controle abstrato e concentrado, amplamente reconhecido no cenário
europeu e cada vez mais objeto de recepção pelas demais ordens constitucionais, em especial no leste europeu e na Ásia. Com efeito, alterado substancialmente o perfil do sistema de controle de constitucionalidade das leis, assume cada vez mais relevância, também entre nós (e já mesmo antes da vigência da atual Constituição) a discussão a respeito da criação de um Tribunal
Constitucional com feições pelo menos próximas às que caracterizam - ainda
que com importantes notas distintivas - de modo geral as Cortes Constitucionais européias, ainda que se venha a manter a designação atual do nosso mais
alto Pretório.
Em verdade - e a experiência da expressiva maioria dos países da Europa
assim o demonstra - quanto maior a legitimação democrática da Corte Constitucional, maior também o respeito pela autoridade de suas decisões por parte dos demais órgãos estatais. Muito embora a legitimidade das decisões judiciais (também em sede de controle de constitucionalidade) não possa - nem
deva - ser restringida a um problema de composição e recrutamento dos Juízes
que integram a Corte Constitucional por meio de mecanismos democráticos,
sob um prisma meramente organizacional e procedimental, não há como
Direito e Democracia
91
desconsiderar que tal aspecto constitui ingrediente importante e, por vezes,
decisivo.
O atual procedimento de indicação dos Ministros pelo Presidente da República, mediante aprovação pelo Senado Federal, apesar de inspirado diretamente no modelo norte-americano (e talvez por isso mesmo), entre nós não
tem - de há muito - revelado resultados satisfatórios, a começar pela forma de
apreciação das indicações no âmbito do Senado, que - convém lembrar - é
órgão que representa em primeira linha os interesses do Estado na Federação.36 A excessiva concentração de poder nas mãos do Executivo, especialmente quando se cuida da composição de um órgão com poderes de fiscalizar
até mesmo os atos do Legislador, evidentemente não harmoniza com as exigências do regime democrático, por mais que se possa sempre (e com razão
quanto a este aspecto) objetar que os Ministros do Supremo Tribunal Federal
não podem, uma vez guindados ao cargo, terem sua nomeação tornada sem
efeito pelo Presidente da República, além de compartilharem da garantia da
vitaliciedade, comum aos demais integrantes do Poder Judiciário no Brasil.37
Em verdade, eventual abertura a ingerências sobre a independência dos integrantes da Suprema Corte (assim, como de resto, pode ocorrer com os demais
integrantes do Poder Judiciário, mesmo concursados) depende bem mais da
postura individual do Magistrado (no sentido de levar a sério suas funções e
sua independência bem como das garantias jurídico-constitucionais indispensáveis ao exercício da função jurisdicional) do que de outros fatores, tanto
é que a nomeação pelo Presidente nunca impediu o Supremo Tribunal Federal - e o registro deve ser feito - de tomar decisões corajosas contra atos do
Poder Executivo, ainda que em alguns casos - como, de resto, não apenas entre nós - se possa controverter a respeito.
O que nos parece relevante, neste contexto, é que o apego à experiência
norte-americana, notadamente pelas já destacadas modificações sofridas no
36
Aliás, é de se questionar até que ponto o modelo norte-americano (que, de resto, nunca foi integralmente implementado
entre nós, inclusive pela ausência do stare decisis) efetivamente alguma vez chegou a ser a melhor solução, ponto que
aqui evidentemente não iremos desenvolver.
37
Basta, apenas para ilustrar este ponto, referir os amplos poderes do Executivo no âmbito normativo, designadamente no
que diz com a iniciativa legislativa e edição das medidas provisórias (ainda que venham a prevalecer as modificações
em curso). São justamente tais atos normativos que mais têm sido objeto de controvérsia judicial a respeito de sua
constitucionalidade, sendo apreciadas por um Tribunal composto praticamente por indicação exclusiva do Presidente da República, habitualmente homologada sem maior questionamento pelo Senado Federal. Somando-se a este
quadro o efeito vinculante das decisões proferidas em controle abstrato e a manipulação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade, verifica-se, salvo melhor juízo, não serem poucos os inconvenientes que decorrem da solução
hoje ainda adotada entre nós.
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âmbito do nosso sistema de controle de constitucionalidade, não mais se revela – cumpre reiterar tal aspecto - a solução mais adequada. Na busca de
uma nova alternativa, haverá de se atentar, por sua vez, para a necessidade de
conciliar o sistema presidencialista de governo com o princípio federativo e
democrático, objetivando uma fórmula constitucionalmente adequada. Já por
estas razões, cremos que algum caminho intermediário entre a sistemática
atual e a solução européia típica (especialmente quando atrelada ao modelo
austríaco-germânico de controle de constitucionalidade), intimamente ligada ao sistema parlamentarista, haverá de ser encontrado, pena de restar agravada a já suficientemente aguda crise de credibilidade e confiança nas nossas
instituições.38
Também aqui são inúmeras as possibilidades (além de diversas as sugestões já formuladas39) já que - consoante já assinalado - nem mesmo no
âmbito europeu, em que pese a existência de alguns elementos comuns, se
registra uniformidade nesta seara, divergindo não apenas as competências
e procedimentos, mas também a forma de recrutamento, o número de integrantes, a permanência no cargo, entre outros aspectos. Assim, em caráter meramente exemplificativo e especulativo, reiteramos nesta quadra
sugestão - não necesssariamente original - já formulada quando integrávamos a comissão de estudos constitucionais da Presidência da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS). De acordo com a nossa
proposta, haveria de se transformar o Supremo Tribunal Federal em autêntica Corte Constitucional, revendo-se as suas competências e expurgando-se todas aquelas não diretamente relacionadas às suas funções como
guardião da nossa ordem constitucional, consoante, aliás, já havia anunciado o Constituinte de 1988. No que diz com a composição, impõe-se
(mesmo mantida a atual fórmula) o aumento do número de Magistrados,
evidentemente incompatível não apenas com as dimensões do nosso País,
mas também - e de modo especial - com a magnitude das questões e o
38
Não se pretende, portanto, a importação direta, acrítica e sem ajustes de qualquer modelo estrangeiro, por melhor que
possa parecer, mas sim, a necessária adaptação e aperfeiçoamento do sistema pátrio, aproveitando-se o que efetivamente harmoniza com as exigências e peculiaridade de nosso ordem constitucional, caracterizada por um modelo
complexo de controle de constitucionalidade, embora tendencialmente(ou mesmo preponderantemente) influenciado pelo paradigma europeu, mas também marcada por uma excessiva e indesejada concentração de poderes no
Executivo.
39
Desde a época da Constituinte tanto a forma de recrutamento dos integrantes do Supremo Tribunal Federal, quanto a
discussão em torno da criação de uma Corte Constitucional, assim como da sua composição e atribuições, acabou
gerando uma série de propostas, formuladas no âmbito do processo legislativo, mas especialmente sugeridas pela
doutrina, boa parte das quais (senão a maioria) sugerindo a criação de um Tribunal Constitucional nos moldes
europeus, não sendo o nosso intento elencar e avaliar aqui tais projetos.
Direito e Democracia
93
número de processos. O aumento do número de Juízes, por outro lado,
além de viabilizar uma agilização no exame dos feitos e maior racionalização e divisão do trabalho, assume relevância no que diz com a legitimidade democrática das relevantes decisões proferidas pelo pleno do Tribunal.
Não é à toa que mesmo em países como Portugal (com bem menos de 10%
da nossa população) o número de integrantes do Tribunal Constitucional
é maior, o mesmo ocorrendo - em caráter exemplificativo - com a Alemanha, Espanha e Itália.
Para além disso, agora já no âmbito do processo de recrutamento, deveria ser priorizado o princípio democrático, a começar pela possibilidade
da elaboração de listas (no caso, poder-se-á cogitar de listas sêxtuplas)
por parte do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, do Ministério
Público Federal e Estadual e dos órgãos do Poder Judiciário Estadual e Federal, submetidas, então, à apreciação do Presidente de República que escolheria três dos seis nomes indicados, assegurando-se assim a participação direta e relevante do Poder Executivo no processo, em homenagem
ao sistema presidencialista que já se incorporou à tradição constitucional
pátria. Por derradeiro, a lista tríplice elaborada pelo Chefe do Poder Executivo deveria ser submetida ao Congresso Nacional, que, em votação
conjunta e mediante maioria qualificada (sugere-se 2/3 ou, pelo menos,
3/5) elegeria um dos indicados, assegurando-se, portanto, além da preservação do princípio federativo, uma efetiva legitimação democrática seguramente indispensável para uma autêntica e operante Corte Constitucional, evitando, por sua vez, o risco de uma dependência direta da vontade
de um determinado partido político.
De outra parte, importa consignar a conveniência - de resto já referida em
diversas sugestões a respeito do tema - de que os Magistrados exerçam suas
funções com absoluta independência funcional e por prazo determinado (que,
à evidência, não poderia coincidir com os mandatos parlamentares), que, no
nossos sentir e tomando por referência a expressiva experiência européia, não
deveria ser inferior a oito nem superior a doze anos (como é o caso da Alemanha), vedada a recondução. Como bem destacou o ilustre Professor Inocêncio
Mártires Coelho em recente palestra proferida no dia 27 de outubro de 2000,
por ocasião do III Congresso Brasiliense de Direito Constitucional, a imperiosa necessidade de uma renovação periódica dos quadros da Corte Constitucional (ainda que se mantenha a atual denominação) encontra-se
umbilicalmente vinculada à própria e inevitável mudança que se processa na
realidade sócio-econômica, política e cultural e jurídico-normativa, mas tam-
94
Direito e Democracia
bém decorre da exigência de se preservar a indispensável abertura do processo de interpretação jurídico-constitucional.40
Assim, cientes de que a proposta ora formulada reclama uma maior reflexão e fundamentação e convictos de que incumbe ao poder de reforma constitucional, mediante amplo debate político e com o procedimento formalmente agravado previsto na nossa Carta Magna, bem como respeitando a nossa
identidade constitucional (à qual também pertence o sistema difuso e
incidental de controle de constitucionalidade) a última palavra sobre a matéria, pretendeu-se acima de tudo enfatizar a necessidade de se repensar, com
prudência e seriedade, o problema da Jurisdição Constitucional e da sua indispensável legitimação político-democrática no Brasil, revelando-se
incontornável o exame dos aspectos vinculados à própria composição e recrutamento, em especial do órgão que detém o poder-dever de proferir - mesmo no âmbito de uma desejável sociedade aberta dos intérpretes da Constituição da qual nos fala Häberle41- por assim dizer, “a última palavra” em matéria de controle de constitucionalidade e interpretação constitucional.42 Da
mesma forma, esperamos ter demonstrado suficientemente a íntima vinculação
entre o problema da legitimação democrática da Jurisdição Constitucional e
as importantes e controversas alterações que vem sendo paulatinamente incorporadas ao ordenamento jurídico-constitucional pátrio.
40
Sobre este ponto v. a importante contribuição de Inocêncio Mártires Coelho, Interpretação Constitucional, Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, especialmente p. 35 e ss.
41
Cf. Peter Häberle, Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a
interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1997, p. 15 (“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este
contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma...Como não são apenas os intérpretes
jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detém eles o monopólio da interpretação da Constituição.”).
42
Cf. a precisa e preciosa lição de Juarez Freitas, Tendências Atuais e Perspectivas da Hermenêutica Constitucional, in: Revista
da AJURIS, vol. 76 (1999), p. 397 e ss., apontando, para além da necessidade de se manter efetivo o controle difuso
de constitucionalidade (também no nosso sentir indispensável para a abertura e democratização da interpretação
constitucional) , para o relevante fato (por vêzes esquecido entre nós) de que é ao Poder Judiciário a quem incumbe
a missão de falar por último em matéria de controle de constitucionalidade, inexistindo, em princípio, ao menos em
um sistema democrático, ato exclusivamente político e - o que é mais relevante - absolutamente insindicável.
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Direito e Democracia
A teoria da imprevisão
e a nova codificação
The Theory of Imprevision and the New Codification
MARIA REGINA SANTINI MARTINS
Professora de Direito Civil (Obrigações) da ULBRA/Canoas, Mestranda em
Direito.
RESUMO
O presente estudo refere-se à possibilidade de revisão dos contratos, com base no
desequilíbrio econômico superveniente a sua formação, que ocasione excessiva
onerosidade a uma das partes contratantes, com o correspondente enriquecimento
da outra. A análise contempla uma evolução histórica da cláusula rebus sic
stantibus como causa excepcional autorizadora da atenuação da força obrigatória
das convenções.
Palavras-chave: Direito Civil, teoria da imprevisão, teoria geral dos contratos.
ABSTRACT
The present study refers to the possibility of revising contracts on the basis of
the economic unbalance supervining to its formation, which results in excessive
costs to one of the contracting parties, with the corresponding enrichment of the
other. The analysis contemplates a historical evolution of the clause rebus sic
transibus as an exceptional authorizing cause for the softening of the mandatory force of conventions.
Key words: Civil right, theory of imprevision, general theory of contracts.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.97-116 97
INTRODUÇÃO
Propomo-nos tecer alguns comentários sobre a exceção ao princípio da
Obrigatoriedade das Convenções, a conhecida Teoria da Imprevisão, fundada na vetusta cláusula rebus sic stantibus, que vem sendo largamente utilizada
no direito contratual, no sentido de manter o equilíbrio de condições econômicas entre os contratantes.
Como é sabido, toda a codificação acerca dos contratos assenta-se em princípios basilares que lhes dá sustentação. Esses princípios são: a autonomia da
vontade, que confere ampla liberdade aos sujeitos que firmam uma obrigação,
desde a concepção mental do ajuste até o estabelecimento das cláusulas que
deverão garantir-lhe a execução; a obrigatoriedade das convenções (derivação da cláusula pacta sunt servanda), que eleva o acordo livremente firmado à
condição de lei entre partes, tornando-o fonte formal do ordenamento jurídico; a boa-fé, produzida pela confiança e sinceridade entre os contratantes, e o
consensualismo, que dispensa o formalismo como condição à validade e eficácia dos negócios jurídicos.
Assim, propomo-nos a analisar a exceção ao princípio da obrigatoriedade
das convenções, a conhecida causa imprevisível que modifica consideravelmente a condição econômica dos sujeitos contratantes, ou de um deles, de
modo a dificultar ou impedir por completo o cumprimento da obrigação.
Abordaremos o assunto, considerando os pressupostos que sustentam e admitem sua aplicabilidade; sua evolução história e sua recepção pelo direito atual, especialmente pela doutrina e jurisprudência brasileira, que têm sido extremamente sensíveis à aceitação dessa teoria.
A instabilidade econômica e a insegurança dos indivíduos nas relações de
trabalho têm contribuído muito para o acatamento da Teoria da Imprevisão,
que poderá autorizar o juiz a modificar a obrigação para viabilizar o seu cumprimento ou autorizar a sua resolução, desobrigando completamente o devedor, quando inexigível a satisfação da obrigação, face à alteração das condições econômicas, no momento da execução, em relação às condições que
motivaram a celebração do ajuste.
98
Direito e Democracia
1 A CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS
Ao contrário do que muito comumente se afirma, de que a referida cláusula teve seu surgimento no Direito Contratual, foram os canonistas, que estudavam o Direito da Igreja, que a definiram ao tratar da proscrição de injustiças morais, no século XII. Suas raízes encontram-se no Direito Europeu Medieval, que, através da fórmula divulgada por Bártolo e seus seguidores, estabelecia que a alteração das circunstâncias de determinado fato, importariam,
necessariamente na alteração de seus efeitos. Como existe muita incerteza
acerca de sua correta evolução histórica, deixaremos de analisar aqui o aspecto de sua criação, bem como seu processo de evolução e integração ao Direito
contratual. Analisaremos, apenas, questões absolutamente relevantes para a
identificação do instituto, bem como seus principais aspectos.
Cumpre ressaltar que a cláusula teve seu apogeu no período imediatamente posterior à Primeira Grande Guerra, com a finalidade de permitir que o
Princípio da Obrigatoriedade das Convenções perdesse sua força cogente,
diante de circunstâncias que alteravam substancialmente a condições dos
sujeitos de determinado negócio jurídico.
Contudo, a origem da cláusula antecede em muito esse fato, que apenas
lhe permitiu uma espécie de “renascimento”.
As questões da eficácia da alteração das circunstâncias, tratadas no direito
comum europeu sob o título de “cláusula rebus sic stantibus”, foram igualmente tratadas na França sob a expressão “doutrina da imprevisão”. Também em
Portugal a expressão “imprevisão” foi utilizada antes do Código de 1966, para
traduzir a alteração das circunstâncias de determinado negócio 1.
Contudo, de maneira inexplicável, a cláusula “rebus” não foi contemplada
pelo Código Napoleônico, o que demonstra uma recusa efetiva de eficácia à
alteração das circunstâncias.
Entretanto, os juízes alemães utilizavam a cláusula para justificar decisões
nas quais autorizavam a alteração no cumprimento das obrigações, com fundamento nas profundas convulsões atravessadas pela Alemanha nos últimos
cem anos.
A jurisprudência francesa, nesses períodos de guerras, manteve a resistên-
1
ROCHA, Antonio Manuel da; CORDEIRO, Menezes. Da Boa-Fé no Direito Civil. Almedina, 1997, p.955.
Direito e Democracia
99
cia às modificações, com dois pontos específicos importantes: o rígido
conceitualismo exegético e a imputação da relevância das circunstâncias a
uma eqüidade perigosa. A doutrina, salvo raríssimas exceções, acompanhava
a postura da jurisprudência. Como a rigidez sistemática não abrigava justificativas, algumas saídas começaram a ser aceitas, através da Legislação e da “teoria da imprevisão”, na jurisprudência administrativa. Posteriormente, a dinâmica foi incorporada pelo direito contratual 2.
Uma vez incorporada ao direito moderno, verifica-se que o estudo da “Teoria da Imprevisão” mostra-se bastante necessário, especificamente na área
contratual, dadas as profundas alterações que as modificações econômicas
acarretam nos acordos firmados entre os indivíduos.
A recepção da antiga cláusula rebus, com nova roupagem, aconteceu no
BGB (C.C.Alemão), que, consagrando a idéia de impossibilidade, definiu-a
como causa extintiva, se superveniente; ou como fundamento da nulidade do
contrato, se inicial ou preexistente à contratação 3. A jurisprudência tomou
alguns rumos novos, de modo a estabelecer uma espécie de sistematização das
decisões proferidas, em três grupos, a saber:
• no primeiro grupo, atentam-se às modificações das situações fáticas,
retirando-se de suas próprias modificações, eficácia jurídica. Dessa
maneira, as decisões teriam como fundamento a impossibilidade
econômica ou a inexigibilidade da prestação;
• no segundo grupo, far-se-ia uma aplicação direta da boa-fé, de modo
a justificar que a exigência da obrigação, diante das situações (modificações) ocorridas seria contrária à boa-fé. Também, nesse caso,
estaríamos próximos da teoria da inexigibilidade;
• no terceiro grupo, estaria presente a exceção da ruína do devedor,
caso não se admitisse a inexecução da obrigação, diante das modificações ocorridas. Assim, justificada estaria a modificação da obrigação, face às modificações fáticas ocorridas, para evitar a ruína inevitável do devedor;
2
ROCHA, ob. cit. p.960 a 962.
3
ROCHA, ob cit. p.1001.
100
Direito e Democracia
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CLÁUSULA REBUS SIC
STANTIBUS
A cláusula rebus sic stantibus, como função humanizadora do princípio da
obrigatoriedade das convenções, foi teorizada por inúmeros doutrinadores e
pesquisadores do Direito. Contudo, teve seu renascimento na França, em 1918,
com a promulgação da Lei Failliot, que estabeleceu a possibilidade de resolução dos contratos comerciais firmados antes de 1914, quando, em razão do
estado de guerra, a execução da obrigação de qualquer das partes se tornasse
impossível ou lhe causasse prejuízos, em razão das modificações das condições
econômicas determinantes da formação dos contratos em relação ao tempo
em sua execução. Assim, iniciou-se na França a hoje conhecidíssima Teoria
da Imprevisão, como conseqüência do processo evolutivo iniciado pela cláusula rebus sic stantibus, cuja justificação histórica passou pelas teorias da pressuposição, da superveniência e da base do negócio jurídico, dentre outras tantas que não tiveram tanta importância.
2.1 Teoria da Pressuposição
Foi o pandectista Bernardo Windscheid que formulou a teoria supra, em
meados do século passado, sustentando que:
“quem manifesta sua vontade sob uma certa pressuposição
quer, à semelhança de quem emite uma declaração de vontade
condicionada, que o efeito jurídico pretendido só venha a existir se ocorrer um certo estado de relações, mas não vai ao ponto de fazer depender dele a sua existência.” 4
De acordo com seu criador , em todos os negócios de execução diferida ou
continuada, existe, de parte daquele que assume a obrigação, a pressuposição
tácita de que as condições gerais de valor, da moeda, de mercado, enfim, situações que determinaram a formação do contrato, permaneçam relativamente
constantes até o momento da satisfação integral da obrigação. Portanto, em
todo negócio jurídico, de caráter patrimonial e execução sucessiva existiria,
de modo latente uma cláusula rebus sic stantibus.
4
apud.BESSONE, Darcy. Do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 138.
Direito e Democracia
101
Para J. R. Vieira Netto a conseqüência da pressuposição seria uma conditio
ou exceptio de resolução do contrato por circunstância imprevista: a contradição entre o suposto pelo contratante e a realidade subseqüente. 5
Arnoldo Medeiros da Fonseca afirma que a pressuposição agiria nos contratos como uma espécie de autolimitação da vontade, dando vida a uma
conditio e a uma exceptio. E poderia referir-se tanto a circunstâncias futuras,
como presentes ou passadas, assim como a fatos positivos ou negativos. 6
Windscheid, em sua obra “Diritto delle Pandette” , primeiro volume, expõe
que “a pressuposição se ajunta à condição e ao termo como terceiro elemento”, significando uma espécie de “condição não desenvolvida”. Seria, em última análise, uma limitação da vontade que não chegou a ser tornar condição. 7
Apesar de todos os fundamentos que a justificaram, sérias críticas foram
destinadas a esta teoria. Talvez a mais veemente seja a que atribui efeito subjetivo à possibilidade de resolução, pois a eficácia de um contrato bilateral
poderia ser destruída por uma só das partes, aquela cuja expectativa viesse a
se frustrar. A pressuposição tácita representaria verdadeiro atentado à estabilidade das operações jurídicas concluídas, uma vez que se o pressuposto não
consta expressamente no contrato, não pode ser considerado condição bilateral de execução ou resolução.
O nosso Código Civil, em seu artigo 90, aproxima-se bastante da teoria da
pressuposição:
“Só vicia o ato a falsa causa, quando expressa como razão
determinante ou sob forma de condição”’.
De acordo com o nosso legislador, a falsa causa seria o falso motivo, que
não deixa de ter esse caráter quando comunicado à parte contrária como razão determinante, a menos que seja transformado em condição através de
acordo bilateral.
5
O Risco e a Imprevisão. Curitiba: Juruá Editora, 1989, p.130.
6
Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. Forense, 1958, p. 154.
7
OLIVEIRA, Anísio José de. A Teoria da Imprevisão nos Contratos. 2. ed. São Paulo: Livraria e Editora da Universidade
de Direito Ltda, 1991, p. 114.
102
Direito e Democracia
2.2 Teoria da Superveniência
Foi Giuseppee Osti, na Itália 8, o criador da teoria da superveniência, seguindo de perto a teoria da pressuposição.
Fundava-se a respectiva teoria na existência de um fato ulterior ao contrato firmado, capaz de impedir a verificação do resultado concreto esperado
pelo promitente.
Nos contratos firmados em dado momento, estabelecendo promessa para
ser futuramente cumprida, o promitente faz uma espécie de representação
mental de seus efeitos, evidenciando-se uma “determinação de vontade”, destinada a traduzir-se em ação quando do cumprimento do avençado. Qualquer
circunstância que viesse a modificar essa possibilidade de execução da vontade prevista, constituiria causa justificativa para a alteração dos seus efeitos.
Dessa forma, o resultado pretendido necessitaria ser modificado, sob pena de
tornar-se impossível ou muito dificultoso ao obrigado.
Esta teoria assemelhava-se bastante à da pressuposição, nos seus efeitos,
mas a causa autorizadora da resolução ou modificação do acordo poderia ser
qualquer uma, desde que superveniente e não prevista pelo obrigado quando
da concretização do ajuste.
2.3 Teoria da Base do Negócio
Coube a Paul Oertmann, na monografia Geschäftsgrundeage desenvolver
a teoria em estudo, que, até o presente momento, é a que melhor representa a
evolução da cláusula rebus sic stantibus.
Oertmann explica que a base do negócio “consiste na representação mental de uma das partes no momento da conclusão do negócio jurídico, conhecida na sua integridade e não repelida pela outra parte, ou a comum representação das diversas partes sobre a existência ou aparição de certas circunstâncias, em que se baseiam a vontade negocial”. 9
J. M. Othon Sidon distingue a teoria da base da teoria da pressuposição,
afirmando que a teoria de Windscheid é parte de uma declaração isolada, não
8
La Cosi della cláusola “’rebus sic stantibus”. In: Novissímo Digesto Italiano, 1959.
9
ROCHA, ob. cit. p.1033.
Direito e Democracia
103
do negócio bilateral, ao passo que a teoria de Oertmann refere-se ao negócio
como um todo. 10
A base do negócio objetivo desaparece quando se destrói a relação de equivalência das prestações, a tal ponto que o contrato não pode mais ser considerado um acordo bilateral. Vejamos: todo contrato bilateral pressupõe equilíbrio entre prestação e contraprestação, representado subjetivamente pela
determinação dos contratantes. Esse equilíbrio é o próprio sentido do acordo
bilateral. Assim, a base do negócio é representada pela equivalência entre a
prestação e a contraprestação, a manutenção do preço convencionado, a
imutabilidade de todo o contexto determinante da contratação.
Karl Larenz modificou em parte a referida teoria, escrevendo:
“essa base do negócio não pode ser tomada senão num sentido
restrito: as representações sobre a existência e permanência de
certas circunstâncias fundamentais, as quais, sem haver chegado a integrar o contrato, têm sido feitas base do negócio por
ambos os contratantes, ou por um só, sabendo-o o outro, sem
repelí-lo.” 11
De acordo com Oertmann, citado por Antonio Manuel da Rocha, a modificação objetiva da base do negócio não o torna caduco ipso iure, mas o
contraente em cujo favor se deu o desequilíbrio, tem o direito de manter o
negócio, se o quiser; o devedor da prestação diminuída não pode romper unilateralmente o contrato nem impor aumento de preço ao credor. O devedor
pode propor a manutenção do acordo com uma contraprestação aumentada,
para que o credor possa optar entre esta e a liquidação judicial; em caso de
não haver acordo voluntário, decidirá o juiz. Para melhor esclarecer o que seja
a base do negócio, Oertmann lança mão do seguinte exemplo:
“Na seqüência da sua saída de uma sociedade comercial, o R.
compromete-se a transmitir ao A. um determinado prédio,
então pertença da sociedade, mas que lhe haveria de ser atribuído. O preço foi fixado na altura. A desvalorização poste-
10
SIDON, J. M. Othon. A Revisão Judicial dos Contratos e outras figuras jurídicas. Forense, 1978.
11
LARENZ, Karl. Base del negócio jurídico y cumplimiento de los contratos. Madrid: Editorial Revista de Derecho
Privado, 1958, p.14.
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rior veio multiplicar o valor de mercado do prédio; o R. recusa-se a aliená-lo pelo preço inicialmente acordado....Teria havido, por força da alteração ocorrida, uma não manutenção
da equivalência da prestação e contraprestação, tal como teria
sido visualizada pelas partes na conclusão.” 12
Esta teoria, em sua concepção inicial foi bastante criticada, por ser muito
ampla e pouco objetiva. Entretanto, com algumas modificações vem sendo
bastante utilizada atualmente na Alemanha, em Portugal e no Brasil, pois,
depois da Segunda Grande Guerra, de todas as teorias que procuraram servir
de fundamento à cláusula “rebus sic stantibus” é a menos imperfeita.
O professor Ruy Rosado Aguiar Junior, em sua obra “Extinção dos Contratos por incumprimento do devedor” citando Ennecerus, em manifestação do
“Tratado de Derecho Civil” afirma que, para que um fato seja reconhecido
como base do negócio, é preciso:
“1) que a outra parte tenha podido conhecer a importância
básica da circunstância para a conclusão do contrato;
2) que fosse unicamente a certeza a respeito da existência, subsistência ou posterior chegada da circunstância em questão, o
que motivara a parte, que lhe atribui valor, a prescindir de pedir à outra parte seu reconhecimento como condição:
3) finalmente, que em caso de que a inseguridade da circunstância se tivesse tomado a sério, a outra parte contratante houvesse acedido a essa pretensão, tendo em conta a finalidade do
contrato, ou houvesse tido que aceder, procedendo de boafé.” 13
Larenz estabelece distinção entre a base objetiva e a subjetiva do negócio.
Base subjetiva seria a representação mental de ambos os contratantes, determinando a vontade na conclusão do negócio. Base objetiva é o conjunto de
circunstâncias e o contexto das coisas, cuja existência e subsistência é objetivamente necessária para que o contrato, segundo a intenção de ambos os
12
13
ROCHA, ob. cit. p.1045.
AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos Contratos por incumprimento do devedor”. p.146-150.
Direito e Democracia
105
contratantes, possa subsistir como regulação dotada de sentido. A base objetiva desaparece quando há destruição da relação de equivalência ou frustração da finalidade do contrato, podendo a parte prejudicada pedir a modificação ou a resolução da obrigação. 14
Pontes de Miranda critica as teses fundamentadas na teoria da base do
negócio, não aceita a aplicação do princípio da boa-fé, rejeita a teoria da
imprevisão e conclui que:
“tudo se reduz à questão da interpretação dos negócios jurídicos. Quando o uso está perceptível na conformação da coisa,
ou nas indicações de seu destino objetivo, a proposição “para o
uso tal” não precisa ser formulada, mas existe.” 15
Antunes Varela restringe a incidência da doutrina da base negocial a duas
situações, a saber:
• quando as circunstâncias levam a crer que o outro contratante teria
aceito a resolução do negócio, por aquele motivo, se proposta a cláusula na celebração;
• se o princípio da boa-fé impuser a resolução, após malogrado o motivo essencial que levou a parte a firmar o contrato. 16
2.3.1 A teoria da base do negócio jurídico no direito
brasileiro
O sistema contratual no século XIX, época em que ocorreram grandes
modificações no Direito Civil, tinha como expressão máxima o princípio da
autonomia da vontade. Colaborava para a efetivação desse princípio o fato de
que as relações econômicas eram estáveis, sem haver sequer a mais remota
previsão das grandes crises que ocorreram na primeira metade do nosso século. Por essa razão, os Códigos não inseriram conceitos limitadores dessa autonomia, a exemplo da cláusula “rebus sic stantibus”. Contudo, ainda no século
passado, alguns juristas perceberam que a estrutura contratual pressupõe, para
14
LARENZ, Base del Negocio jurídico, p. 226.
15
Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro. Vol. XXII, p.221 e seguintes.
16
VARELA, Antunes, Direito das Obrigações, Vol. II, p.103.
106
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a manutenção de sua função de troca de obrigações, uma estreita relação com
a realidade econômica. Essa vinculação fazia-se representar sob condições
suspensivas ou resolutivas ou sob a teoria da impossibilidade posterior.
A dificuldade do cumprimento da obrigação em razão das modificações
econômicas, configurava hipóteses de utilização da cláusula rebus sic stantibus,
como uma maneira de atenuar a obrigatoriedade dos acordos, representado
pelo princípio pacta sunt servanda.
Entretanto, foi em meados de nosso século que a questão da base do negócio jurídico surgiu para justificar a alteração ou resolução dos contratos, quando ocorresse a modificação da realidade subjacente ao vínculo, quando de sua
execução.
O risco a que estão sujeitos os contratantes nas obrigações de execução
continuada ou diferida, equipara as modificações circunstanciais a uma espécie de impossibilidade. Como sustentou Karl Larenz:
“o conceito objetivo da base do negócio jurídico se vincula com
a finalidade real do contrato e procura responder à questão de
saber se a integração geral dos contratantes pode ainda efetivar-se, em face das modificações econômicas sobrevindas. Por
isso, ela se vincula com a teoria da impossibilidade.” 17
A impossibilidade posterior à formação do vínculo, quando baseada exclusivamente na modificação das condições econômicas, recebeu a denominação de “onerosidade excessiva”. Quando absoluta, resolve o negócio jurídico, de acordo com o artigo 865 do nosso CCB 18. Entretanto, nesse caso, é
prevista apenas a impossibilidade relativa ao objeto da prestação, inexistindo
previsão para os casos de mudança das condições individuais subjetivas.
Em nosso ordenamento jurídico, a teoria da base do negócio decorre da
aplicação dos princípios da eqüidade e da boa-fé, em que seria ilógico exigirse um sacrifício demasiado de uma das partes, quando a alteração da base do
negócio tivesse causa absolutamente alheia à atuação dos contratantes. Por-
17
LARENZ, ob. cit.
18
Art. 865. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente
a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes. Se a perda resultar de culpa do devedor,
responderá este pelo equivalente, mais as perdas e danos.
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107
tanto, considerando-se o conceito de base objetiva, levamos em conta a situação de ambos os contratantes em relação ao contexto em que o contrato fora
firmado e aquele em que deva ser concluído. Um dos setores mais férteis de
aplicação da base objetiva do negócio jurídico é o da alteração das prestações
em virtude da inflação, ou das modificações contratuais ocasionadas pela intervenção do Estado na economia, de modo a atingir e modificar as regras do
acordo firmado.
Cabe à jurisprudência o papel de adaptar o principio da cláusula pacta sunt
servanda à realidade concreta, seja através da autorização de resolução do acordo ou de sua substancial modificação. Nessa tarefa, o magistrado precisa combinar as determinações do contrato com a lei, de modo a não fazer da exceção
a regra, causando insegurança jurídica. Contudo, não temos dúvida em afirmar que o nosso sistema jurídico contratual adota atualmente a teoria da base
objetiva do negócio jurídico, pois a relação jurídica apresenta aspectos objetivos e subjetivos resultantes da tensão entre o contrato e a realidade econômica. Esta tensão, no entender do saudoso Professor Clóvis do Couto e Silva,
constitui a “base objetiva” do contrato 19.
3 A CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS NO
DIREITO CONTEMPORÂNEO
O estudo da Cláusula Rebus sic Stantibus, na atualidade, sob a denominação de Teoria da Imprevisão, apesar de bastante freqüente, não esgota, absolutamente, as situações fáticas que a cada momento estão a exigir sua aplicação. A cada nova decisão, a cada motivação de uso, surge inovação nunca
antes identificada. Contudo, em todas as situações, possui a finalidade única
de amenizar a rigidez do princípio representado pela pacta sunt servanda, que
estabelece a obrigatoriedade dos ajustes firmados, pois de acordo com o
ordenamento jurídico vigente, estes passam a constituir lei entre as partes.
A Teoria da Imprevisão procura, de certa forma, humanizar o princípio da
obrigatoriedade das convenções, permitindo sua permanência e estabilidade
no ordenamento, através de um mecanismo de adequação ao fato concreto.
19
COUTO e SILVA, Clóvis. A teoria da base do negócio jurídico no Direito Brasileiro. In: FRADERA, Vera Maria Jacob de
( org). O Direito Privado Brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Advogado. 1997, p. 96.
108
Direito e Democracia
O eminente professor Darcy Bessone afirma que a cláusula rebus sic stantibus
estaria ínsita em todos os contratos, especialmente naqueles em que as obrigações se apresentassem de forma sucessiva e dependentes do futuro. O cumprimento dessas obrigações ficaria condicionado à permanência do mesmo
estado de fato do momento da formação do vínculo. A alteração desse estado
de coisas, se absolutamente imprevisível ao tempo da celebração do ajuste e
não provocado pelo devedor, poderia provocar sua exoneração. 20
De acordo com outros autores, a mudança ou alteração considerável nas
circunstâncias existentes ao tempo da celebração do acordo, poderá ocasionar o seu reajustamento, uma vez que a cláusula rebus sic stantibus estaria tacitamente subentendida em todas as obrigações que envolvessem prestações
futuras. Ainda de acordo com Planiol et Ripert:...“Rebus sic stantibus” é a
cláusula que faz presumir que as partes, de comum acordo, subordinavam a execução do contrato à duração do estado de coisas existentes no dia de sua formação”. 21
Considerando que a maioria dos acordos não são executados de imediato,
ocasionando obrigações que devem ser cumpridas no futuro, presume-se que
as mesmas condições presentes na formação do vínculo deverão existir até o
momento de sua conclusão (satisfação). Assim, todos os contratos de execução diferida ou sucessiva entendem-se subordinados ao mesmo estado de fato
vigente à época de sua celebração.
O Professor Caio Mário da Silva Pereira afirma que para se possa atingir o
contrato em decorrência da Teoria da Imprevisão são necessários os seguintes
requisitos:
• existência de um contrato vigente, de execução diferida ou sucessiva;
• alteração fundamental das condições econômicas objetivas no momento da execução, em confronto com as condições objetivas da
celebração do ajuste;
• onerosidade excessiva para um dos contratantes e benefício exagerado para outro;
• imprevisibilidade da modificação econômica no momento da formação do vínculo. 22
20
Citado por Anísio José de Oliveira na obra “A Teoria da Imprevisão nos contratos”. LEUD, 1991, p.32-33.
21
“Traité Elémentaire de Droit Civil”. § 167, Paris, 1950.
22
Inst. de Direito Civil, Vol. III. § 216.
Direito e Democracia
109
A essas condições, Francisco Campos ainda acrescenta:
• não basta qualquer mudança, mesmo que imprevista. Necessário que
a mudança ocorrida determine tal agravamento da prestação, que
se prevista, teria levado os contratantes a não concluírem o ajuste;
• necessário, por derradeiro, que o acontecimento que torne a execução onerosa ou impossível, seja absolutamente estranho à vontade
do devedor. 23
Dessa forma, a aceitar-se a aplicação da Teoria da Imprevisão na ocorrência de circunstâncias modificadoras, poderíamos concluir que a cláusula “pacta
sunt servanda” não se aplica mais ao sistema contratual do mundo moderno.
Aceita-se, assim, a intervenção estatal, através da prestação jurisdicional,
modificando as condições pactuadas para adequar a rigidez do acordo firmado às condições fáticas do momento de sua execução. Essa conclusão é decorrente do próprio Princípio da Eqüidade, que atribui ao magistrado, na sua
função de realizar o direito, o dever de fazer justiça no caso concreto. Nessa
tarefa, assim como ele poderá se afastar da Lei injusta, também poderá afastarse dos acordos firmados, quando verificar que a concretude da obrigação não
condiz mais com a situação de fato do momento da execução.
4 O ACOLHIMENTO DA CLÁUSULA REBUS SIC
STANTIBUS NO DIREITO BRASILEIRO
Embora não tenha havido recepção formal expressa da Teoria da Imprevisão
pelo nosso Código Civil, devemos considerar que o nosso ordenamento jurídico, ao recepcionar os princípios contratuais da autonomia da vontade, da
boa-fé e da obrigatoriedade das convenções, também recepcionou a cláusula
rebus sic stantibus, a permitir que se modificasse ou resolvesse o acordo livremente pactuado, quando as circunstâncias objetivas que determinaram as
manifestações de vontade sofressem substancial alteração, não prevista ou
passível de previsão e, principalmente, não motivada pela conduta ou atuação dos contratantes. Assim, aqueles que negam a existência da cláusula não
conseguem explicar a atuação da jurisprudência, quando reconhece e autoriza a modificação ou resolução do acordo, em decorrência da superveniência
23
Direito Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, p. 9.
110
Direito e Democracia
de acontecimentos que alteram a situação econômica dos contratantes, de
modo a tornar inexigível o cumprimento da obrigação.
Umas das primeiras decisões jurisprudenciais de acatamento da velha cláusula foi proferida pelo então Juiz Nelson Hungria, em 1930, baseando seu
arrazoado nos princípios gerais do direito e na eqüidade, e fundamentando
sua decisão na interpretação da vontade declarada e na boa fé contratual,
face ao silêncio do nosso estatuto civil com referência à cláusula. Vale a pena
a transcrição de sua corajosa manifestação:
“É certo que quem assume uma obrigação a ser cumprida em
tempo futuro sujeita-se à alta de valores, que podem variar em
seu proveito ou prejuízo; mas, no caso de uma profunda e
inopinada mutação, subversiva do equilíbrio econômico das
partes, a razão jurídica não pode ater-se ao rigor literal do contrato, e o juiz deve pronunciar a rescisão deste. A aplicação da
cláusula rebus sic stantibus tem sido mesmo admitida como
um corolário da teoria do erro contratual. 24
O nosso CCB, no seu art. 1092 25, quando acolhe a possibilidade de exoneração de uma das partes do cumprimento da obrigação, nos casos em que, com
o implemento do contrato, ficasse lesada pela alteração do patrimônio da outra,
admite, ainda que de maneira indireta, que o juiz autorize o cancelamento da
prestação que lhe compete, até que a contraprestação a que tem direito aconteça.
Segundo Caio Mário, esta situação, denominada pela doutrina de cláusula
resolutiva tácita, presente em todos os contratos bilaterais, nada mais é do
que a aplicação da velha cláusula rebus sic stantibus em sentido estrito 26.
Apesar de a Teoria da Imprevisão não se encontrar regulada expressamen-
24
OLIVEIRA, Anísio José de. A Teoria da Imprevisão nos Contratos. Pg. 72.
25
Art. 1092. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contraentes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o
implemento da do outro. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em
seu patrimônio, capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a parte, a quem
incumbe fazer prestação em primeiro lugar, recusar-se a esta, até que a outra satisfaça a que lhe compete ou dê
garantia bastante de satisfazê-la.
Parágrafo único. A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos.
26
Instituições de Direito Civil. Vol. III. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
Direito e Democracia
111
te no vigente Código Civil Brasileiro, o anteprojeto do Código das Obrigações, procurou acolhê-la, em seu artigo 322 . Vejamos:
“Quando por força de acontecimentos excepcionais e imprevistos ao tempo da conclusão do ato, opõe-se ao exato cumprimento desta dificuldade extrema com prejuízo exorbitante para uma das partes, pode o juiz, a requerimento do interessado, e considerando com equanimidade a situação dos
contraentes, modificar o cumprimento da obrigação, prorrogando-lhe o termo, ou reduzindo-lhe a importância.” 27
5 A RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR
ONEROSIDADE EXCESSIVA
O Código Civil Italiano regula a resolução contratual por excessiva
onerosidade, nos casos de acordos de execução continuada, periódica, ou
diferida, desde que a prestação de uma das partes tenha se tornado excessivamente onerosa ou impossível, em decorrência de acontecimentos posteriores
a sua celebração, de natureza imprevisível ou extraordinária.
O projeto do novo Código Civil Brasileiro 28 acolheu a resolução por
onerosidade excessiva, incluindo nos seus requisitos, além do cárater extraordinário dos acontecimentos imprevisíveis e do excessivo encargo para
uma das partes, a extrema vantagem para o outro contratante, limitando
dessa forma o seu âmbito de abrangência. Se um dos sujeitos não estiver
em situação de excessiva vantagem em relação ao outro, a resolução só
poderá ocorrer por outra justificativa. Contudo, a resolução por excessiva
onerosidade traz a vantagem de poder ser utilizada por qualquer um dos
contratantes, seja pelo credor ou pelo devedor, desde que circunstâncias
supervenientes perturbem a conclusão do contrato, acarretando ônus exagerado e injustificável para qualquer das partes. Assim, a desvalorização
da moeda, embora seja um fato provável em uma economia instável como
a nossa, poderá apresentar grau tão elevado de imprevisibilidade que justifique a resolução ou modificação da obrigação para permitir a satisfação
do ajuste.
27
OLIVEIRA, ob. cit. p. 74.
28
REALE, Miguel. Visão Geral do Projeto de Código Civil. SP: Revista dos Tribunais, V. 752, Junho/1998.
112
Direito e Democracia
A onerosidade poderá atingir a obrigação parcialmente cumprida ou impedir absolutamente o seu cumprimento. Entretanto, se o devedor já estiver
em mora quando sobrevier a circunstância extraordinária, não lhe caberá a
invocação. Aplica-se, neste caso, o efeito do artigo 957 do CCB. 29
Devemos enfrentar a questão formulada por Mirabelli, que consiste em
saber se o contratante atingido pela superveniência de um agravo insustentável pode cessar a prestação em curso ou abster-se da prestação ainda não executada. São três as posições possíveis:
• o devedor não pode deixar de efetuar a prestação sob pena de se
tornar inadimplente;
• pode deixar de prestar, depois de avisar expressamente o credor de
sua dificuldade ou depois de promover a demanda de resolução;
• pode quedar-se inerte, alegando a onerosidade excessiva como defesa, na ação de adimplemento ou na de resolução proposta pelo
credor. 30
A onerosidade excessiva em nosso ordenamento representa uma espécie
de “inexigibilidade de conduta”. Por isso, recomendável que diante de situação dessa natureza, o devedor tome a iniciativa de propor a ação de revisão
judicial do contrato ou resolução, de acordo com o grau de limitação que o
contexto lhe impõe.
6 A ATUAÇÃO JURISPRUDENCIAL NA RESOLUÇÃO
DO CONTRATO EM DECORRÊNCIA DE CAUSA
SUPERVENIENTE
No momento em que estamos adentrando o terceiro milênio, impõe-se a
necessidade de uma nova codificação, de modo a adequar o rigorismo formal
de nosso ordenamento vigente às situações de fato concretas. Entretanto,
29
Art. 957. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso
fortuito, ou força maior, se estes ocorrem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria,
ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. (Art. 1058).
30
Giuseppe Mirabelli. Eccessiva onerosità e inadempimiento. Rivista del Diritto Commerciale. Milano. Ano LI, 1953, p.84.
Direito e Democracia
113
embora a nova codificação seja uma necessidade, sabe-se que não será suficiente para contemplar todas as situações que precisam de solução concreta.
Assim, o papel do juiz, a quem cabe realizar a prestação da justiça no caso
concreto, torna-se cada vez mais importante. Nesse sentido, a utilização das
fontes formais de direito sempre terá lugar, mesmo quando da entrada em
vigor de nova codificação.
A Teoria da Imprevisão, instituto secular presente nos ordenamentos nacional e estrangeiros, embora em muitos deles não existente no sistema codificado, continua a orientar os juízes e os doutrinadores nas relações econômicas e obrigacionais. Não importa a denominação ou a teoria que justifique sua
utilização, a autorização para resolução contratual ou revisão do conteúdo do
ajuste continua sendo instituto moderno e adequado ao Direito das Obrigações. A possibilidade de modificação ou inexecução do contrato firmado em
dado contexto econômico, para ser executado de maneira sucessiva ou diferida
em momento futuro, sempre será reconhecida pela jurisprudência, nas situações em que sobrevierem condições adversas e extraordinárias, absolutamente imprevisíveis e independentes da conduta dos contratantes, que possam
agravar sobremaneira a condição do devedor ou tornar impossível o cumprimento do avençado, consistindo a inexecução contratual na única conduta
possível e aceitável do obrigado. Assim, a jurisprudência tem autorizado, ora
a resolução do contrato, ora a sua revisão, seja em decorrência da modificação
de suas bases objetivas, seja por ocasião da superveniência de circunstância
que tornem a obrigação inexigível, seja ainda pelo reconhecimento de excessiva onerosidade a qualquer dos contratantes. Entretanto, embora sob diversas denominações ou diferentes justificativas, estará sendo reconhecida a permanência da velha cláusula rebus sic stantibus, sob as vestes que lhe deu o
sistema francês, ao recepcioná-la sob o nome de Teoria da Imprevisão, como
causa excepcional autorizadora da atenuação do princípio da obrigatoriedade
das convenções.
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116
Direito e Democracia
Juizados Especiais Criminais: Uma
abordagem sociológica sobre a
informalização da Justiça Penal no
Brasil
Special Criminal Courtrooms: A Sociological
approach on informalization of Penal Justice in
Brazil
RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO
Advogado, Mestre e Doutorando em Sociologia/UFRGS, Professor das disciplinas
de Sociologia Geral e Jurídica e Criminologia na UFRGS, PUCRS e ULBRA/RS.
RESUMO
Através do estudo de caso da implantação dos Juizados Especiais Criminais na cidade de Porto Alegre, confrontando as previsões legais com a realidade empírica de
um novo modelo de justiça penal, busca-se compreender o sentido e os limites da
informalização da prestação estatal de justiça penal no Brasil, desde a promulgação
da Lei 9.099/95. Retirando das mãos da polícia o exercício da seletividade, e dando
à vítima a possibilidade de participação no processo, o sistema penal informalizado
abre novas perspectivas, substituindo a punição pela mediação, e a violência pelo
diálogo, mas esbarra na dinâmica burocratizante e autoritária dos mecanismos de
vigilância e controle social institucionalizados.
Palavras-chave: Controle Penal, Administração da Justiça Penal, Informalização,
Juizados Especiais Criminais, Conflitualidade Social e Mediação.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.117-140117
ABSTRACT
Through the case study of the implantation of special criminal courtrooms in Porto
Alegre, confronting the legal provisions with the empirical reality of a new model of
penal justice, we try to understand the meaning and the limits of the informalism in
Brazilian penal system, since the promulgation of law n. 9.099/95. Removing the
exercise of selectivity from the hands of the police, and giving the victim the possibility
of participating in the process, the informalized penal system opens new perspectives,
substituting punishment for mediation, and violence for dialogue, but has to face the
burocracy dynamics and authoritative mechanisms of institutionalized social control.
Key words: Penal Control, Administration of Penal Justice, informalization, special criminal court rooms, social conflict and mediation.
1. INTRODUÇÃO
Os modernos Estados constitucionais podem ser visualizados como um
conjunto de órgãos instituídos para a criação, aplicação e cumprimento das
leis. Com a despersonalização do poder do Estado, este passa a fundar sua legitimidade não mais no carisma ou na tradição, mas em uma racionalidade legal, isto é, na crença na legalidade de ordenações regularmente estatuídas e
nos direitos de mando dos chamados por essas ordenações a exercerem a autoridade (Weber, 1996 , p. 172). Nesse tipo de Estado, a legitimidade deriva
de terem as normas sido produzidas de modo formalmente válido, e da pretensão de que sejam respeitadas por todos aqueles situados dentro do âmbito
de poder daquele Estado.
Entre as principais características deste tipo de Estado, está o controle centralizado dos meios de coerção. O Estado moderno se apresenta, assim, como
um complexo institucional artificialmente planejado e deliberadamente
erigido, que tem como característica estrutural mais destacada o monopólio
da violência legítima, garantido pelo que Weber chama de um quadro coativo
(Weber, 1996, p.28). O controle centralizado dos meios de coerção é fortalecido pela legitimidade que lhe confere a racionalidade jurídica, tornando a
coerção mais tecnicamente sofisticada e exercida por um setor especializado
do Estado. Esta característica constitui-se em um marco do que Elias denomina processo civilizador, com a adoção de formas mais racionais e previsíveis
de instauração de processos e de punição pela prática de atos legal e previamente previstos como crimes.
118
Direito e Democracia
Correspondendo, como paradigma teórico, aos modernos estados liberais,
a doutrina do direito como conjunto orgânico e universalmente válido de
normas institucionalmente reconhecidas é progressivamente minada, na época
contemporânea, por tentativas de adequar a regulamentação legal e a sua
implementação pelas instâncias judiciais a um contexto onde emergem discursos normativos rivais e se exige do Estado a execução de funções
crescentemente político-administrativas.
A concentração de poder nas mãos do Estado, a complexificação da sociedade e a regulamentação legal de setores cada vez mais amplos da vida social, culmina, nas sociedades urbano-industriais do final do século XX, com a
crise de legitimidade de uma ordem baseada em um discurso jurídico esvaziado, paralela e simultaneamente à crise fiscal do Estado-Providência. Começam a aparecer as fissuras neste aparato que ainda sustenta sua legitimidade
em uma legalidade abstrata, constituída de acordo com normas gerais e apropriadamente promulgadas. Isso ocorre porque algumas premissas da
racionalidade legal começam a ser minadas ou desgastadas (a divisão de poderes, a supremacia e generalidade da lei, etc.), frente a concentração de expectativas no pólo do Poder Executivo, e dos recursos limitados de que dispõe
para garantir a estabilidade social e a acumulação de capital.
Além disso, na medida em que se desgasta a crença na naturalidade das
hierarquias de poder ou de distribuição de riqueza existentes, a atividade governamental (inclusive a judicial) passa a depender cada vez mais de suas
conseqüências em termos da satisfação de interesses fracionários, e a linha
divisória entre Estado e sociedade civil começa a se tornar cada vez mais difusa,
aumentando a influência e a pressão sobre as políticas governamentais e as
decisões judiciais por parte das forças sociais (desde as camadas subprivilegiadas
até as grandes empresas multinacionais), que se rebelam contra a estrita observância de normas processuais e legais.
A renovação das fontes de legitimidade do Estado é, então, buscada na sua
capacidade em promover o desenvolvimento industrial e o crescimento econômico, vistos como padrão necessário e suficiente para o desempenho de
cada Estado, e na garantia da efetividade dos mecanismos formais de controle
social para a manutenção da ordem, justificando com isso deslocamentos na
linha Estado/Sociedade Civil (Poggi, 1981, p.140). A busca de prosperidade
interna, como um fim em si mesmo, e a manutenção da ordem pública, tornam-se as principais justificações para a existência do Estado, e a sua fonte de
legitimidade, sobrepondo-se à mera racionalidade jurídico-legal.
Direito e Democracia
119
No âmbito do sistema formal de controle social, ou seja, o sistema penal,
as reformas institucionais que daí decorrem são apresentadas como tentativas
de dar conta do aumento das taxas de criminalidade violenta, do crescimento
geométrico da criminalidade organizada e do sentimento de insegurança que
se verifica nos grandes aglomerados urbanos. A pressão da opinião pública,
amplificada pelos meios de comunicação de massa, aponta no sentido de uma
ampliação do âmbito de incidência do controle penal, tendo como paradigma
preferencial a chamada política de “tolerância zero”, adotada pela prefeitura
de Nova Iorque no início dos anos 90, e defendida por diferentes setores do
espectro político. O pressuposto dessa política de segurança pública é a perda
de eficácia das estratégias brandas ou informais de controle social1.
O problema é que as mudanças sociais ocorridas durante o século XX foram gradualmente enfraquecendo os mecanismos de controle comunitário
sobre os comportamentos, exacerbando determinados focos de conflitualidade
antes abafados por hierarquias tradicionais de poder. Com o debilitamento
dos controles sociais informais, o crescente sentimento social de desordem
ampliou a demanda para que o Estado restaure a ordem mesmo em domínios
como a vizinhança e os conflitos de família. Para assegurar a consistência das
expectativas normativas existentes na sociedade, o sistema penal passa a ter
de responder a uma demanda crescente por resolução de conflitos privados.
Em sociedades com alto grau de complexidade, no entanto, se expressam
muito mais expectativas normativas do que podem ser efetivamente
institucionalizadas. Para assegurar a consistência das expectativas normativas
criadas pelo direito, o mecanismo eleito é a pena ou sanção, principalmente
pelo seu papel simbólico, e não por sua real incidência sobre os autores de
delitos. Enquanto em um período anterior (anos 60/70) a explosão de
litigiosidade deu-se sobretudo no domínio da justiça civil, no período atual
(anos 80/90) o maior protagonismo é assumido pela justiça penal, que além
de dar conta da “velha” criminalidade individual, passa a ter que responder a
uma nova demanda, já que desde a proteção ao meio ambiente até as regras de
trânsito são ancoradas no poder de punir do Estado. Isto somado à demanda
social crescente pelo fim da impunidade dos crimes de corrupção (“colarinho
branco”), e ao aumento da criminalidade urbana violenta, coloca os tribunais
no centro de um complexo problema de controle social.
Frente à crise fiscal do Estado e ao aumento da demanda por controle pe-
1
Sobre “Tolerância Zero”, vide WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.
120
Direito e Democracia
nal, as novas estratégias de controle vão incorporar a contribuição dos estudos sociológicos e antropológicos que tiveram por objeto o sistema jurídico.
Paralelamente aos mecanismos convencionais de administração da justiça,
surgem novos mecanismos de resolução de conflitos, através de instituições
mais ágeis, relativa ou totalmente desprofissionalizadas, menos onerosas, de
modo a maximizar o acesso aos serviços, diminuir a morosidade judicial e
equacionar os conflitos através da mediação.
Na esfera penal, estas reformas operam através dos movimentos de
despenalização e de informalização, na busca de alternativas de controle mais
eficazes e menos dispendiosas do que as oferecidas pelo sistema penal tradicional. Quer se fundamentem em razões de legitimidade, quer privilegiem uma
perspectiva de eficácia, as reformas no sentido da informalização adotam características diversas: no âmbito do direito material, pode ser adotada a forma
direta de descriminalização, pela revogação da norma incriminatória, ou serem incorporados princípios gerais de aplicação da pena, excluindo de sua
incidência os chamados delitos de bagatela. No âmbito do direito processual,
as mudanças têm visado o alargamento do princípio da oportunidade da ação
penal, conferindo ao acusado uma gama de alternativas (transação, suspensão condicional do processo) nos chamados delitos de menor potencial ofensivo, e incorporando a participação da vítima para o encaminhamento da
questão.
No âmbito processual, as alternativas de informalização apontam para a
redução da competência do sistema penal tradicional para o controle de condutas que permanecem sendo consideradas como socialmente indesejáveis.
São as chamadas soluções conciliatórias, que visam promover a interação facea-face entre vítima e acusado, como forma de superar o conflito que está na
origem do delito. As soluções de conciliação constituem uma das manifestações mais expressivas do movimento de “deslegalização” ou “informalização”
da justiça.
Nas heterogêneas comunidades urbanas contemporâneas, os programas de
mediação e informalização da justiça penal obtêm rápida adesão graças à insatisfação com as sanções penais tradicionais para a solução de disputas e conflitos interpessoais, e apelam para as estruturas existentes da comunidade, embora
muitas vezes não passem de um apêndice do sistema legal formal. De qualquer
forma, correspondem à busca de alternativas de controle mais eficazes e menos
onerosas do que as oferecidas pelo sistema penal tradicional, que permitam um
tratamento individualizado, particularista, de cada caso concreto, ao invés da
orientação pela generalidade e universalidade das normas jurídicas.
Direito e Democracia
121
Pesquisas sobre os modelos de informalização adotados em diversos estados norte-americanos identificaram uma importante diferenciação, embora
determinadas características fossem recorrentes. Em alguns casos, a ênfase é
colocada na mediação como processo terapêutico e a pressão da comunidade
é o meio para alcançar soluções voluntariamente acordadas entre as partes,
no interior das cortes tradicionais. Em outros casos, se colocam como uma
alternativa ao sistema formal, como as chamadas “community courts”, que têm
jurisdição exclusiva sobre certas ofensas. A corte comunitária tem funções
conciliatórias e adjudicatórias, e os mediadores são eleitos pela comunidade
onde residem e recebem um treinamento formal mínimo. Esse modelo se
aproxima da chamada democracia participativa, com o envolvimento maior
da comunidade em questões antes restritas e resolvidas pelo aparato estatal.
Em que pese a existência de modelos diferenciados, os elementos
conceituais que configuram um tipo ideal de informalização da justiça nos
Estados contemporâneos são os seguintes: uma estrutura menos burocrática e
relativamente mais próxima do meio social em que atua; aposta na capacidade dos disputantes promover sua própria defesa, com uma diminuição da ênfase no uso de profissionais e da linguagem legal formal; preferência por normas substantivas e procedimentais mais flexíveis, particularistas, ad hoc; mediação e conciliação entre as partes mais do que adjudicação de culpa; participação de não juristas como mediadores; preocupação com uma grande variedade de assuntos e evidências, rompendo com a máxima de que “o que não
está no processo não está no mundo”; facilitação do acesso aos serviços judiciais para pessoas com recursos limitados para assegurar auxílio legal profissional; um ambiente mais humano e cuidadoso, com uma justiça resolutiva
rápida, e ênfase em uma maior imparcialidade, durabilidade e mútua concordância no resultado; geração de um senso de comunidade e estabelecimento
de um controle local através da resolução judicial de conflitos; maior relevância em sanções não coercitivas para obter acatamento.
2. A LEI 9.0999/95 E A INFORMALIZAÇÃO DA
JUSTIÇA PENAL NO BRASIL
No Brasil, a incorporação dessas inovações no sistema judicial teve impulso a partir dos anos 80, em especial após a promulgação da Constituição de
88. Uma série de novos mecanismos para a solução de litígios foram criados,
com vistas à agilização dos trâmites processuais, entre os quais tem um signi-
122
Direito e Democracia
ficado relevante os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, voltados para as
chamadas pequenas causas e para os delitos de menor potencial ofensivo, previstos no ordenamento constitucional e regulamentados pela Lei Federal nº
9.099, de setembro de 1995.
A implantação dos Juizados Especiais Criminais (JEC) integra uma lógica
de informalização, entendida não como a renúncia do Estado ao controle de
condutas e no alargamento das margens de tolerância, mas como a procura de
alternativas de controle mais eficazes e menos onerosas (Dias e Andrade,
1992, p. 403). Para os Juizados Especiais Criminais vão confluir determinados
tipos de delitos (com pena máxima em abstrato até um ano), e de acusados
(não reincidentes). Com a sua implantação, se espera que as antigas varas
criminais possam atuar com maior prioridade sobre os chamados crimes de
maior potencial ofensivo.
Promulgada a Lei 9.099/95 em setembro de 1995, o rito processual nela
previsto passou a ser imediatamente aplicado, pelas Varas Criminais comuns,
para os delitos de menor potencial ofensivo, especialmente a suspensão condicional do processo e as novas alternativas de conciliação entre vítima e
autor do fato e de transação entre Ministério Público e autor do fato.
Porto Alegre foi uma das primeiras comarcas de grande porte do país a
criar os Juizados Especiais Criminais, que passaram a ter competência exclusiva para o processamento dos delitos previstos na lei 9.099/95, com a edição
da Lei Estadual nº 10.675, em 2 de janeiro de 1996, que criou o Sistema dos
Juizados Especiais Cíveis e Criminais no Estado do Rio Grande do Sul.
Pelo pioneirismo de sua implantação, os Juizados Especiais Criminais de
Porto Alegre constituem-se em um importante laboratório para a verificação
da aplicabilidade dos dispositivos da Lei 9.099/95, das mudanças no movimento processual efetivamente ocorridas, assim como das dificuldades estruturais existentes na máquina burocrática do Poder Judiciário para uma prestação de justiça mais ágil e voltada para a defesa dos interesses e a resolução
dos dilemas da clientela do sistema penal (vítimas e acusados).
A Lei 9.099/95 deu aos Juizados Especiais Criminais a competência para a
conciliação e o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo,
que compreendem as contravenções penais (Decreto-Lei nº 3.688, de
03.10.1941) e os crimes a que a lei penal comine pena máxima não superior a
um ano de detenção ou reclusão, excetuados os delitos para os quais está previsto procedimento especial.
Direito e Democracia
123
Até a edição da Lei 9.099/95, as contravenções penais e os delitos punidos
com pena de detenção eram processados pelo rito processual previsto no Capítulo V, Título II, do Livro II (art. 531 a 540) do Código de Processo Penal,
denominado Processo Sumário. Pouca diferença havia entre este tipo de procedimento e o Processo Ordinário, aplicado aos delitos apenados com reclusão. A lei previa apenas a redução de alguns prazos e o abreviamento de determinados momentos processuais, mas a estrutura do processo era basicamente
a mesma: inquérito policial, denúncia do Ministério Público, interrogatório
do réu, defesa prévia, audiência de instrução, debates orais, julgamento. Não
havia a possibilidade de reparação civil dos danos sofridos pela vítima no próprio processo penal, ficando relegada ao papel de mera informante da justiça
penal. Nem tinha o réu qualquer interesse em reconhecer o fato que lhe era
imputado, com a negociação em torno da pena.
De acordo com o que estabelece a legislação no art. 62 da Lei 9.099/95, o
processo perante os Juizados Especiais Criminais deve ser orientado pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade,
objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima
e a aplicação de pena não privativa de liberdade. Dispensando a realização do
inquérito policial, a Lei 9.099/95 determina que a autoridade policial, ao tomar conhecimento do fato delituoso, deve imediatamente lavrar um termo
circunstanciado do ocorrido e encaminhá-lo ao Juizado, se possível com o
autor do fato e a vítima, providenciando a requisição dos exames periciais
necessários para a comprovação da materialidade do fato (art. 69).
Não sendo possível o comparecimento imediato de qualquer dos envolvidos ao Juizado, a Secretaria do Juizado deverá providenciar a intimação da
vítima e do autor do fato, por correspondência com aviso de recebimento,
para que compareçam à audiência preliminar (art. 71).
Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público,
o autor do fato e a vítima, acompanhados de advogado, o juiz esclarecerá sobre a possibilidade de composição dos danos, assim como sobre as conseqüências da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de
liberdade ao autor do fato (art. 72).
Nos crimes de ação penal privada e de ação penal pública condicionada à
representação, o acordo para composição dos danos extingue a punibilidade.
Não obtido o acordo, o juiz dá imediatamente à vítima a oportunidade de
exercer o direito de oferecer queixa-crime ou representação verbal (art. 75).
124
Direito e Democracia
Havendo queixa-crime ou representação ou sendo o crime de ação penal
pública incondicionada, o Ministério Público poderá propor ao autor do fato
a transação penal, com a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou
multa, a não ser no caso do acusado ser reincidente, ou no caso de “não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os
motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida” (art.
76). Não aceita a proposta, o representante do Ministério Público oferecerá
ao juiz, de imediato, denúncia oral, e o processo seguirá o rito sumaríssimo,
previsto na Lei 9.099/95.
Oferecida a denúncia, poderá ainda o representante do Ministério Público propor a suspensão do processo por dois a quatro anos, desde que o agora
denunciado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por
outro crime. A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o denunciado
for processado por outro crime ou descumprir qualquer outra condição imposta. Expirado o prazo sem revogação, o juiz declarará extinta a punibilidade.
Caso não seja possível a suspensão do processo, o juiz deverá intimar as
partes para a audiência de instrução e julgamento, que se inicia com a resposta oral da defesa à acusação formulada na denúncia ou queixa-crime. Aceita a
argumentação da defesa, o juiz não recebe a denúncia ou queixa e encerra o
processo. Recebida a denúncia ou queixa, são ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e de defesa, o acusado é interrogado e realizam-se os debates
orais entre defesa e acusação. Em seguida o juiz profere a sentença final condenatória ou absolutória.
Os recursos previstos pela Lei 9.099/95 são a apelação (em caso de sentença condenatória ou absolutória ou da decisão de rejeição da denúncia ou queixa) e os embargos de declaração (em caso de obscuridade, contradição, omissão ou dúvida na sentença), e são encaminhados a uma Turma Recursal composta de três juízes em exercício no primeiro grau de jurisdição.
2. A IMPLANTAÇÃO DOS JUIZADOS ESPECIAIS
CRIMINAIS EM PORTO ALEGRE
Para dar conta da análise do período de implantação dos Juizados Especiais Criminais na Comarca de Porto Alegre, a partir de uma perspectiva sociológica, foi adotado o método do estudo de caso, reunindo dados a partir de
Direito e Democracia
125
diferentes técnicas de pesquisa, para abarcar o conjunto de questões que precisavam ser enfrentadas.
Como se sabe, as instâncias judiciais singularizam-se, entre as demais instâncias de controle social, por serem as mais opacas e resistentes à “devassa”
da investigação sociológica. Tal situação é compreensível, uma vez que, de
todas as instituições, são os tribunais judiciais aqueles cuja legitimidade depende em maior medida da integridade de uma imagem decantada e
hipostasiada em séculos de teorização política e jurídica (Dias e Andrade,
1991, p. 527/528).
A análise de um objeto com este grau de complexidade compreende uma
série de passos fundamentais na investigação: a construção do objeto científico; a relação entre o investigador e o investigado; o questionamento dos métodos e técnicas de investigação; a perspectiva da descontinuidade do pensamento sociológico no momento da elaboração interpretativa. É a perspectiva
da complexidade, “mediante a qual o conhecimento é definido como um processo
multidimensional, marcado pela diversidade, pela multiplicidade e pela
multidimensionalidade” (Tavares dos Santos, 1995, p. 74). O reconhecimento
dos limites de toda técnica e da própria relação entre sujeito-investigador e
sujeito-investigado leva a um necessário pluralismo teórico-metodológico.
Em um primeiro momento, buscou-se obter os dados estatísticos disponíveis para o período pesquisado. Coletados e tabulados pela Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, com o auxílio da
PROCERGS, os dados obtidos dizem respeito ao movimento processual penal na comarca de Porto Alegre, no período imediatamente anterior (1994 e
1995) e posterior (1996 e 1997) à implantação dos Juizados. Também estavam disponíveis as decisões terminativas adotadas nos Juizados Especiais Criminais de Porto Alegre, cuja fonte eram os mapas de movimento processual
fornecidos mensalmente pelas secretarias dos Juizados à Corregedoria Geral
de Justiça. Por fim, obteve-se também o gráfico comparativo de morosidade
judicial entre os Juizados e as Varas Criminais, para os processos concluídos
no primeiro semestre de 1998.
A partir do levantamento de dados estatísticos acima citados, e levando
em consideração a carência de dados quanto a uma série de elementos essenciais para a compreensão de como a lei vem sendo aplicada na prática (tipos
de delito, dados sobre as partes, tipos de conflito, etc.), partiu-se para a etapa
de observação sistemática de audiências nesses Juizados, nos meses de junho a
outubro de 1998.
126
Direito e Democracia
Quando da realização das observações, já havia entrado em vigor o novo
Código Nacional de Trânsito, retirando dos Juizados Especiais Criminais a
competência para julgar a maioria dos delitos de trânsito. Embora no primeiro semestre ainda estivessem em funcionamento os três Juizados especializados neste tipo de delito, extintos em agosto de 98, optamos por restringir a
observação aos JEC comuns, que passaram a julgar também os poucos delitos
de trânsito que mantiveram a pena máxima até um ano (ex.: direção sem
habilitação), para que a análise pudesse contemplar essa nova situação.
Ingressando nas salas de audiência como qualquer estagiário de direito,
realizamos o trabalho de observação sistemática de um total de sessenta audiências, sendo 28 delas nos Fóruns Regionais e 32 no Fórum Central. A verificação do que efetivamente ocorre no momento de interação face a face entre
os operadores jurídicos do sistema e a sua clientela permitiu verificar a existência de uma série de padrões de judicialização de conflitos nos Juizados Especiais Criminais. Foi constatada a existência de alguns tipos de delito amplamente predominantes, vinculados a determinadas formas de conflitualidade
social. Em relação às partes envolvidas, foi possível verificar como se distribuem vítimas e autores do fato a partir da variável de gênero. Também foi possível identificar como tem sido alcançada a conciliação ou a transação penal,
ou seja, qual o conteúdo concreto deste tipo de solução nos casos observados,
bem como as diversas situações em que o juiz é colocado diante de limitações
estruturais para o exato cumprimento do que dispõe a legislação (ausência de
defensor para as partes, ausência do Ministério Público, etc.).
Depois de tabulados os dados estatísticos e da observação das audiências
nos JEC/POA, partimos para as entrevistas com juízes que atuavam ou haviam atuado nos Juizados Especiais Criminais, já que a observação das audiências indicava que, entre os operadores jurídicos, cabia aos juízes um papel preponderante para a dinâmica de funcionamento dos novos Juizados, e a
maior ou menor eficácia dos instrumentos processuais previstos pela Lei 9.099/
95. Foram entrevistados seis juízes criminais com passagem pelos Juizados,
contemplando a diversidade de experiências, fruto do maior ou menor tempo
de atuação nos Juizados, bem como pela atuação em diferentes Fóruns Regionais. Entre os entrevistados, encontramos juízes que atuavam nos Juizados
Criminais desde sua implantação, em 96, e outros que estavam substituindo o
titular havia apenas um mês. Também encontramos profissionais que já haviam atuado em outros Juizados, como os de trânsito, e agora tinham sido
realocados para um Juizado comum, e juízes que vinham de experiências em
Juizados Especiais no interior do Estado. Quanto à diversidade territorial, as
Direito e Democracia
127
entrevistas contemplaram juízes com passagem por dois Juizados do Fórum
Central, pelos Juizados Regionais do Sarandi, Alto Petrópolis e Partenon.
Com a implantação dos Juizados Especais, havia a expectativa de uma significativa redução do movimento processual nas Varas Criminais Comuns, que
poderiam concentrar a atenção nos delitos mais graves. A análise do movimento processual verificado na Comarca de Porto Alegre nos dois anos anteriores e
posteriores à implantação dos Juizados não confirma essa expectativa.
Tomando por base os dados fornecidos pelos mapas de andamento processual da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul referentes à Comarca de Porto Alegre para o período considerado, o que
se verifica é que, enquanto nos anos de 94 e 95 foram distribuídos para as
Varas Criminais Comuns em torno de 6.000 processos por ano, em 96 o número de processos distribuídos salta para 54.687, baixando para 37.608 processos no ano de 1997.
Movimento Processual Criminal em POA
1994 a 1997
60000
50000
40000
Distribuídos
30000
Julgados
20000
10000
0
1994
1995
1996
1997
Fonte: Corregedoria Geral de Justiça do TJ/RS.
Apesar da significativa redução percentual, o volume de processos distribuídos nas antigas Varas Criminais se mantém praticamente inalterado. Como
essas Varas foram reduzidas a partir da criação dos Juizados de 18 para 14, há
de fato um aumento do número de processos para as Varas Criminais Comuns. A conclusão é que, ao invés de assumir uma parcela dos processos criminais das Varas Comuns, os Juizados Especiais Criminais passaram a dar conta
de um tipo de delituosidade que não chegava até as Varas Judiciais, sendo
resolvido através de processos informais de “mediação” nas Delegacias de
Polícia, ou pelo puro e simples “engavetamento”. Com a entrada em vigor da
128
Direito e Democracia
Lei 9.099/95, as ocorrências policiais deste tipo de crime, que se encontravam
nas Delegacias, aguardando a realização de inquérito policial, e que normalmente resultavam em arquivamento pela própria Polícia Civil, foram remetidas para os Juizados Especiais.
Quanto ao tempo médio de tramitação dos processos criminais, constatase que o rito processual adotado pelos Juizados Especiais é efetivamente mais
rápido do que nas Varas Criminais. Os dados disponíveis quanto à morosidade judicial dizem respeito ao tempo médio de tramitação dos processos criminais encerrados no primeiro semestre do ano de 1998 em Porto Alegre. Enquanto nas Varas Criminais o tempo médio de tramitação foi de 520 dias, nos
Juizados Especiais Criminais a média foi de 130 dias de tramitação.
Tempo Médio de Tramitação dos Processos C
encerrados em Porto Alegre no 1º Semestre d
600
500
400
Dias
300
200
Fonte: Corregedoria Geral de Justiça do TJ/RS.
100
Uma das principais evidências obtidas a partir da análise dos mapas de
andamento processual da Corregedoria Geral de Justiça é quanto ao alto nú0
mero de processos cujo término se deveu ao arquivamento,
Varas situação em que
não chega a ser realizada nenhuma audiência durante oCriminais
processo.
Direito e Democracia
129
Juizado
Especia
Crimina
Como se pode verificar pelas entrevistas realizadas e em contato com os
próprios funcionários dos cartórios, isto ocorreu em grande parte porque um
dos dispositivos da Lei 9.099/95 não foi respeitado pelas Delegacias de Polícia, muito menos pelas secretarias de muitos dos Juizados Especiais, nesse período de implantação: a intimação das partes para a audiência de conciliação
(art. 71 da Lei 9.099/95).
Indo até a Delegacia para registrar a ocorrência, a vítima permanecia aguardando o encaminhamento judicial da questão. Não sendo intimada para a
audiência de conciliação, e nem avisada de que o registro na polícia não era
considerado como representação, passados seis meses o processo era arquivado por decadência do direito de representação (art. 103 do Código Penal),
resultando em uma situação de impunidade e na manutenção da descrença
da população quanto à possibilidade de judicialização desse tipo de delito.
Outra causa comum de arquivamento é o não encaminhamento, pela Polícia
Judiciária, dos exames de corpo de delito, necessários para a comprovação da
materialidade do fato.
Tipos de Decisão Terminativa nos JEC POA - 1996 e 1997
25000
20000
15000
10000
5000
0
Fonte: Corregedoria Geral de Justiça do TJ/RS.
Condenatória
130
Direito e Democracia
Absolutória
Conciliação
ou Transação
Renúncia
Arqu
Dentre os mais de cem delitos considerados pela Lei 9.099/95 como de
menor potencial ofensivo, por terem pena de prisão até um ano, tanto a observação das audiências quanto as entrevistas com os juízes que atuam nos
Juizados Especiais Criminais de Porto Alegre confirmaram uma ampla predominância de dois tipos penais: os delitos de ameaça e lesões corporais leves,
que juntos corresponderam a 76% das audiências observadas.
Tipos de Delito nas Audiências Observadas
3%
2% 2% 2%
3%
5%
Fonte: Observação de audiências nos JEC/POA.
38%
7%
A observação das audiências permitiu também verificar quais os conflitos
sociais que estão por trás dos delitos tipificados pela lei penal. Nesse sentido,
constatou-se que a maioria dos delitos de menor potencial ofensivo é originária de situações de conflito entre vizinhos (41%), entre cônjuges (17%), entre
parentes (10%), ou em relacionamentos entre consumidor e comerciante
(10%). Além destes, foram também encontrados conflitos na relação entre
patrão e empregado (8%), brigas eventuais em locais públicos entre desconhecidos (5%), e ainda alguns conflitos de trânsito (5%), embora a grande
maioria dos delitos de trânsito tenha retornado às Varas Criminais, com a
elevação das penas previstas pelo novo Código38%
Nacional de Trânsito.
Direito e Democracia
131
Tipos de Conflito nas Audiências Observadas
5%
2% 2%
5%
Entre Vizinhos
41%
Entre Cônjuges
8%
Entre Parentes
Em Relação de Consumo
Em Relação de Trabalho
Briga em Bar
10%
No Trânsito
Religioso
Eventual
10%
17%
Fonte: Observação de audiências nos JEC/POA.
Deparando-se com um tipo de conflitualidade social que poucas vezes
chegava até a sala de audiências, e tendo de conduzir um processo de conciliação entre os envolvidos, os juízes que passam a atuar nos Juizados Especiais
Criminais enfrentam dificuldades para assumir este novo papel. Entre os entrevistados, foi freqüente o reconhecimento de que se trata de uma mudança
significativa:
“Eu diria que a mudança é fundamental, porque enquanto a
figura do julgador na justiça tradicional adota uma postura
bastante rígida, com relação ao fato de presidir um processo
criminal, na justiça consensual, e aqui nos juizados especiais
criminais, a figura do juiz se transmuda, o juiz passa a ser uma
espécie de conciliador, uma espécie de aconselhador até mesmo das partes. Muitas vezes se pacificam os ânimos das pessoas, e aí um dos desejos do legislador, ao editar a lei 9.099, que
é justamente o de restabelecer a harmonia nas relações.”
O reconhecimento de que se trata de uma nova função, voltada para a
recomposição dos laços de sociabilidade, que passa a ser exigida dos juízes,
ao invés de uma simples decisão punitiva ou absolutória de uma figura neu-
132
Direito e Democracia
tra e alheia ao ambiente social, começa a aparecer no discurso de alguns
magistrados:
“Eu acho que o juiz passa a ter uma função muito mais ativa.
Antigamente a função do juiz era praticamente ouvir as partes, ouvir, antes o juiz era um grande ouvido, digamos assim. E
ao final, depois de tanto ouvir, prolatava uma sentença. Agora, eu acho muito interessante essa disposição do art. 72, que
diz que competirá ao magistrado explicar os objetivos da audiência, e eu acho que essa explicação, se feita de um maneira
bem adequada ao caso concreta, produz resultados, em níveis
pedagógicos, fantásticos. Então eu acho que o juiz passa a ser
um agente de pacificação social, dependendo da postura dele
nessa audiência inicial.”
Com uma visão mais reticente a respeito da nova sistemática processual,
um dos entrevistados manifestou opinião diversa, no sentido de que o papel
que agora se exige do juiz já deveria ser praticado na sistemática anterior:
“O julgador virou mais um conciliador, ele tem agora a lei a
favor dele, embora eu me lembre que na prática muitas vezes
eu tentava, antes da Lei 9.099, fazer certas conciliações, dentro do possível. Por exemplo, essas lesões corporais causadas
por marido na mulher, eu acho até que era mais eficiente o
sistema, porque a gente julgava e dava o sursis, com uma condição para o marido cumprir. Normalmente essas lesões eram
decorrentes de alcoolismo do marido, então se colocava no
sursis a obrigatoriedade dele se submeter a tratamento, acompanhamento dos alcoólicos anônimos. Então a impressão que
se tinha é que não gerava tanta impunidade. E a impressão
que eu tenho é que em relação às mulheres vítimas de violência doméstica essa lei acaba gerando uma certa impunidade,
porque a mulher não chega nem a representar. Se ao menos
houvesse uma medida, pagasse uma multa, prestasse serviços
à comunidade, mas o marido simplesmente olha para a mulher na hora, o juiz pergunta: a senhora quer representar contra o seu marido, e pelo olhar dele ela acaba não tendo coragem de representar, enquanto que antes, quando não era condicionada a representação e o promotor é que oferecia a de-
Direito e Democracia
133
núncia, podia a vítima mentir, mas ela era advertida que não
deveria mentir. Na verdade, se aplicava uma pena mínima,
curta, se dava o sursis, e depois, quando entrou em vigor a
nova parte geral de 84, se podia aplicar prestação de serviços a
comunidade, multa, quer dizer, penas alternativas. Eu acho
que nesse tocante a lei não foi muito feliz, agora as pesquisas,
as estatísticas é que vão mostrar.”
Quanto à existência de iniciativas institucionais para a conscientização e
o preparo dos operadores jurídicos sobre as funções que lhes foram delegadas
nos Juizados Especiais Criminais, constatou-se que muito pouco tem sido feito. A maioria dos atuais juízes teve formação acadêmica que não contemplou
a possibilidade de informalização processual. Nessa fase de implantação da
Lei 9.099/95, a busca de resultados positivos tem dependido do empenho daqueles juízes que assumiram a nova legislação como um avanço, seja na perspectiva da conciliação, do desafogamento do Judiciário ou de fim da impunidade para os pequenos delitos:
“Eu não sei se está havendo uma preocupação, por exemplo,
dentro da Escola da Magistratura, quando dos cursos de preparação para o concurso, em enfatizar essa questão. Também
não sei se dentro da Corregedoria está havendo essa preocupação. Acho que hoje em dia a coisa se resolve mais dependendo da forma como o juiz encara a lei 9.099, e como o próprio
juiz encara o seu papel e como o juiz pode se adaptar a esse
novo papel. Ele pode se adaptar ou não. Então eu posso estar
errada, mas imagino que ainda não estamos na fase da formação dos juízes, de largada. Acho que os magistrados que já estavam na judicância antes do advento da lei estão se adaptando, e acredito que esses magistrados é que vão passar essa experiência para os novos magistrados.”
Uma das entrevistadas lamentou essa falta de uma preocupação
institucional mais efetiva para a formação dos juízes que vão atuar nos Juizados
Especiais Criminais, pela compreensão de que depende em grande medida da
conduta dos juízes a configuração dessas novas instâncias judiciais
informalizadas:
134
Direito e Democracia
“Uma outra sugestão é que se promovesse mais uma reflexão
sobre o papel dos operadores jurídicos no JEC, porque se os
operadores que estiverem naquela audiência não tiverem um
posicionamento, uma visão do JEC como algo de uma eficácia
social muito grande, nós vamos perder a chance de poder fazer
um bom trabalho em termos de pacificação e de luta contra a
impunidade. Então eu acho que essa reflexão seria importante, não sei se através de cursos específicos, do estímulo dos
magistrados a fazerem publicações, sobre esse assunto especificamente: qual a importância do operador jurídico no JEC
enquanto atuação na comunidade.”
4. CONCLUSÃO: AS ANTINOMIAS DA
INFORMALIZAÇÃO DA JUSTIÇA PENAL
Boaventura de Sousa Santos, no início dos anos 80, em um trabalho
exploratório que visava a construção de novas hipóteses de trabalho e o alargamento do campo analítico da sociologia jurídica para o estudo do fenômeno informalista, reconhecia a carência de uma sólida base empírica que desse
sustentação às suas proposições, mas sugeria que a novidade nos programas de
informalização e comunitarização da justiça era que, se até aquele momento
as classes oprimidas foram desorganizadas individualmente – como cidadãos,
eleitores ou beneficiários da previdência – no futuro passariam a sê-lo em
nível societal ou comunitário – como moradores de um bairro, trabalhadores
de uma fábrica, consumidores de um produto. A hipótese formulada à época
era de que a organização comunitária tutelada pelo Estado seria a forma de
desorganização das classes trabalhadoras no capitalismo tardio (Sousa Santos, 1985, p. 92/93).
Na medida em que o Estado consegue, pela via da informalização, articular, ao mesmo tempo, uma resposta à crise fiscal e o controle sobre ações e
reações sociais dificilmente reguláveis por processos jurídicos formais, ele está
de fato a expandir-se por sobre a sociedade civil. A dicotomia Estado/Sociedade Civil, tão cara ao pensamento da modernidade, deixa de ter sentido teórico, e o controle social pode ser executado na forma de participação social,
a violência na forma de consenso, a dominação de classe, na forma de ação
comunitária.
Direito e Democracia
135
Assim como o próprio projeto da modernidade encontra-se permanentemente tensionado entre o aumento da regulação e a demanda por emancipação, Sousa Santos já visualizava, na época, a presença de um elemento
emancipador nas reformas informalizantes: sua associação ideológica a símbolos emancipatórios com forte implantação no imaginário social (participação, auto-gestão, etc.). Nesse sentido, embora aprisionados por uma estratégia global de controle social, estes símbolos apresentariam um potencial utópico ou transcendente, que faria com que a justiça informal não pudesse “manipular” sem oferecer algum pedaço genuíno de conteúdo ao público que vai
ser manipulado (Sousa Santos, 1985, p. 97/98).
No caso dos Juizados Especiais Criminais brasileiros, embora a Lei 9.099/
95 tenha previsto a utilização de conciliadores escolhidos fora dos quadros da
justiça criminal, até hoje essa disposição legal não foi implementada, e os juízes
que atuam nos Juizados são os mesmos que atuam nas Varas Criminais, valendo-se mais de uma relação de poder hierárquica e intimidatória sobre as partes para encaminhar uma solução para o caso do que de uma proximidade
advinda de vínculos societais comunitários.
Ao invés de permitir um acesso mais fácil a grupos excluídos do sistema
judicial, compensando suas limitações, Lance e Bohn concluem que, no caso
norte-americano, os centros de justiça informal funcionariam mais como saída do que como entrada no sistema de justiça formal, sendo mais bem sucedidos em remover casos considerados inúteis ou menores do sistema formal,
que em sua grande maioria envolvem mulheres, negros e pessoas de nível
sócio-econômico baixo, do que em fornecer uma forma mais acessível de justiça.
Nesse ponto, constatou-se que, no caso dos Juizados Especiais Criminais
brasileiros, há uma situação bastante diferenciada. Ao invés de retirar do
sistema formal os casos considerados de menor potencial ofensivo, a Lei
9.099/95 incluiu esses casos no sistema formal de justiça, através de mecanismos informalizantes para o seu ingresso e processamento. A dispensa da
realização do inquérito policial para os delitos de competência dos Juizados
Especiais Criminais retirou da autoridade policial a prerrogativa que tinha
de selecionar os casos considerados mais “relevantes”, que resultava no arquivamento da grande maioria dos pequenos delitos. O problema é que a
estrutura judiciária não foi adequada para o recebimento dessa nova demanda, que passou a representar quase 90% do movimento processual penal global.
136
Direito e Democracia
A especificidade do caso brasileiro é que a informalização da justiça penal na verdade não ampliou o controle social formal do Estado sobre novas
condutas, uma vez que esse controle era exercido pelas delegacias de polícia. Na prática, as delegacias acabavam cumprindo informalmente uma função de filtro para a descriminalização de certas condutas, como as ameaças
e lesões leves no ambiente doméstico, consideradas de menor importância
para ingressar no sistema judicial. A Lei 9.099/95 permitiu a incorporação
desses delitos ao sistema judicial, numa espécie de recriminalização, substituindo o delegado pelo juiz no exercício da função de mediação. Enquanto
a mediação policial, informal e arbitrária, era freqüentemente combinada
com mecanismos de intimidação da vítima (sobrevitimização) e do acusado, a mediação judicial tende a ampliar o espaço para a explicitação do conflito e a adoção de uma solução de consenso entre as partes, reduzindo a
impunidade.
É preciso reconhecer, portanto, os aspectos emancipatórios que fazem parte do processo de informalização da justiça no caso brasileiro. No entanto, são
justamente essas características as mais facilmente relegadas quando da implementação prática das medidas informalizantes. De um lado, a manutenção
do sentido emancipatório do informalismo depende de níveis de entusiasmo
moral, consenso e convencimento por parte dos operadores jurídicos, especialmente os juízes/conciliadores, a fim de evitar que procurem reforçar seu status
e autoridade adotando toda a pompa formalista: trajes e discursos, procedimentos, etc.
Além disso, é preciso destacar que tendências históricas e atuais apontam
para a mesma conclusão: formalidades criam barreiras, mas também proporcionam um espaço no qual é possível proteger os setores socialmente
desfavorecidos, enquanto que procedimentos informais são mais facilmente
manipuláveis. Isto sugere que a efetivação de direitos através de procedimentos informais somente pode ser bem sucedida se forem ultrapassadas as limitações inerentes à falta de apoio jurídico aqueles que pretendem exercer estes
direitos. Portanto, um extraordinário esforço será necessário para conduzir o
movimento de informalização procedimental da justiça em uma direção favorável. Os resultados deste esforço vão ter um significativo impacto sobre a
vida cotidiana das pessoas comuns.
No Brasil, o processo de abertura e informalização da prestação estatal de
justiça ocorre em uma situação na qual ainda não há de fato um Estado de
Direito funcionando plenamente sob critérios racionais-legais de legitimação.
Direito e Democracia
137
O Estado brasileiro ainda não rompeu com relações tradicionais de poder, que
pouco espaço concedem para a representação dos interesses e reivindicações
populares no quadro institucional. Particularmente o Poder Judiciário, pelo
distanciamento que lhe confere um discurso especializado e somente acessível aos estudiosos do direito, permanece hermético ao senso comum e seletivo em suas decisões, além de disputar espaço com métodos informais de resolução de conflitos, que vão desde formas comunitárias de mediação até a atuação do próprio sistema policial, que em muitas situações cria a sua legalidade
própria.
A seletividade do sistema judicial opera em duas vias: enquanto no âmbito civil a promoção de demandas depende da capacidade da parte em identificar seus direitos lesados e arcar com as custas do processo, no âmbito penal
somente chegam ao judiciário os inquéritos policiais dos crimes dolosos contra a vida e contra a propriedade, ficando sob o arbítrio policial os delitos
relacionados com a conflitualidade interpessoal das favelas e cortiços, das relações domésticas e de vizinhança, das relações entre vendedor e consumidor,
de patrão e empregado. Em todos estes contextos, a violência interpessoal
emerge como um mecanismo de excesso de poder, em que a parte mais forte
impõe a sua vontade através da humilhação do outro, em relacionamentos
sociais freqüentemente duradouros.
Para tirar as lições da implantação da Lei 9.099/95 no âmbito criminal, na
comparação com as demais experiências de informalização da justiça penal, é
preciso compreender essa especificidade do Estado brasileiro, em que se delegou à polícia o relacionamento com a maioria da população, para a
intermediação dos seus conflitos, e as salas de audiência nas Varas Criminais
foram reservadas à punição pública dos ladrões e homicidas.
Os Juizados Especiais Criminais, tendo surgido sob a ideologia da conciliação e da dispersão, para desafogar o Judiciário, acabaram abrindo as portas
da justiça penal a uma conflitualidade antes abafada nas delegacias, e para a
qual o Estado é chamado a exercer um papel de mediador, mais do que punitivo. Com a promessa de resolver disputas através da comunicação e do entendimento, e permitindo uma intervenção menos coercitiva e mais dialógica,
em um espaço estrutural (a domesticidade, os relacionamentos interpessoais)
que antes ficava à margem da prestação estatal de justiça, a informalização da
justiça penal pode ser um caminho para o restabelecimento do diálogo, contribuindo para reverter a tendência de dissolução dos laços de sociabilidade
no mundo contemporâneo.
138
Direito e Democracia
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140
Direito e Democracia
A violência e os meios de
comunicação social
Violence and the Mass Media
ALTAYR VENZON
Professor titular do Pós-graduação Mestrado em Direito da ULBRA; Advogado e
Radialista; Professor de Direito Penal; Procurador de Justiça, aposentado; Doutor
em Direito Penal pela Sorbonne – Paris.
RESUMO
Neste estudo, é examinada a relação da violência com os meios de comunicação
social, focalizando dois aspectos básicos: a) causas da violência; b) Conseqüências
da violência, quando transmitida através dos meios de comunicação social.
Palavras-chave: Violência, meios de comunicação, direitos humanos.
ABSTRACT
In this study the relationship of violence with the midia is examined, focusing two
basic aspects: a) the causes of violence; b) the consequences of violence, when transmitted through the midia.
Key words: Violence, media, human rights.
O prof. Hilário Veiga de Carvalho (1973), consagrado criminólogo paulista,
ao iniciar o que denomina uma tentativa de interpretação da criminalidade,
alerta para o exemplo do insultoso ataque vândalo à obra-prima de
Michelangelo, o conjunto escultórico da Virgem acolhendo em seus braços o
Cristo morto – a “Pietá”, como um estigma, como uma marca, como o triste
símbolo da época em que tresloucadamente entramos, para vilipêndio da hu-
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n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.141-148141
manidade. A época da violência.
A destruição gratuita de bens, de valores materiais e espirituais, o vandalismo, o desprezo à espiritualidade e aos valores artísticos e científicos, a destruição da natureza, por uma selvageria primata, desumana, imotivada, neste
turbilhão de criminalidade, desafiam governantes e governados, sociólogos,
criminólogos, penalistas, a buscarem os meios capazes de deter a crise em que
se encontra a sociedade.
O que o crime, diz Manuel López-Rey (1973), perdeu em originalidade,
ganhou em extensão e em gravidade.
A Justiça Criminal tornou-se anacrônica, inadequada, ineficaz, infecunda,
difusa e até confusa para enfrentar o crime e o criminoso, e os olhos de todos
se voltam para a Criminologia, ciência causal-explicativa, para que esta, através da pesquisa científica das organizações, da sanção punitiva, do tratamento dado ao sentenciado, dos meios de prevenção, da predição do avanço da
delinqüência, da reincidência, do estudo das mudanças sociais e da conduta
desviada, seja capaz de apontar alguma terapêutica para curar o mundo de
hoje do egocentrismo, da agressividade, da violência e da indiferença, do crime enfim, com seu conteúdo variado, com as diversas modalidades possíveis
da conduta do agente criminoso.
Dizendo-lhe respeito a descoberta das causas do crime ou criminogênese,
a busca dos fatores da delinqüência, através da criminologia clínica e da
criminologia geral, associada à irmã gêmea, a ciência penitenciária ou
penologia, a ciência de Garófalo, de Ferri e de Lombroso combina, hoje, análise e síntese como métodos modernos adotados para pesquisa, para a investigação, para a experiência, para a identificação do fenômeno crime.
Não é, pois, a criminologia uma ciência exclusivamente da pessoa humana. O homem é o agente do ato ilícito, mas sobre ele operam inúmeras causas,
algumas ainda desconhecidas, que modificarão o caráter essencialmente humano do fenômeno crime. Há questões de ordem transcendental, que ultrapassam os meros limites da Antropologia, que devem ser considerados como
elementos subsidiários, ou explicativos mesmo, de muitas ações delituosas,
mas que interessam, sobremaneira, à ciência criminológica.
Foi Paul Cuche (1905) quem distribuiu a Criminologia em dois grupos:
1º) As ciências puras: Antropologia criminal; Biopsicologia criminal e Sociologia criminal. 2º) Ciências aplicadas: política criminal, profilaxia criminal
(prevenção) e a Penalogia (ou ciência penitenciária).
142
Direito e Democracia
Jean Pinatel, entretanto, combateu e criticou este pluralismo criminológico
dos fins do século XIX, explicando que a série de estudos parciais do fenômeno criminológico não englobam sua totalidade.
Com efeito, na atualidade, e sob a influência decisiva do II Congresso Internacional de Criminologia realizado em Paris em 1950, surge a era da
criminologia como ciência unitária e interdisciplinar.
Pinatel, com rara felicidade, para explicar este monismo da Criminologia,
na atualidade, recorre a uma figura geométrica, o cone de Mendes Corrêa. Na
base do cone, a circunferência representaria as condições biológicas e mentais; na periferia, as condições econômicas e sociais. No centro da circunferência, a personalidade. No eixo do cone, as situações pré-criminais. No vértice, o ato criminal. As geratrizes, a psicose ou a miséria. As condições biológicas e sociais teriam a sua influência indireta através da personalidade e da
situação (Pinatel, 1945).
Numa síntese, poder-se-á dizer que entre os fatores gerais da criminalidade,
objeto da criminologia, se encontram:
1) as crises políticas, econômicas e sociais;
2) a evolução da sociedade.
Para cada criminoso, por mais hedionda que tenha sido sua ação, o exame
em busca de uma terapêutica adequada somente poderá ser feito de forma
globalizante, envolvendo não só a personalidade do delinqüente, mas também o contorno mesológico, físico e social em que viveu.
Não nos parece, data venia, correta a teoria do determinismo criminoso,
tão comentada nos últimos anos, de que o conjunto cromossômico XYY e
XYY que não é, entretanto, hereditário, mas que exerce grande poder sobre a
conduta humana, tenha tanta influência sobre esta conduta que possa conduzir ao crime sem outros fatores concomitantes, mesológicos, sociológicos,
econômicos e inclusive sem o livre arbítrio.
Razão assiste, porém, aos doutrinadores filiados ao neo-ecletismo penal
quando, na análise da criminogênese, sustentam que a personalidade humana indiscutivelmente se caracteriza pela possibilidade de usar o arbítrio, a
determinação da vontade, que a sua própria natureza de ser racional apresenta, diz Hilário Veiga de Carvalho (1973), “como ápice das suas imanentes qualidades”. Sobre ela é que vão influir os fatores criminógenos pessoais e ambien-
Direito e Democracia
143
tais, biológicos e mesológicos que por si sós não seriam, entretanto, suficientes para a realização do crime.
Ora, é certo que o hipertireoidismo poderá provocar uma reação exagerada aos estímulos exteriores, que tornam a pessoa portadora de excesso do
hormônio tireóideo alguém de grande valia no trabalho e outros setores da
vida pública ou particular ou um líder na prática de ilícitos penais. Depende
apenas do grau de arbítrio à aceitação do incitamento endócrino.
Cabe, então, verificar quais os outros aspectos que merecem estudo a respeito da violência, da criminalidade e da delinqüência.
O que é a violência para o público, cabe indagar? Em que consiste a violência? Quais os atos e quais os fatos que são geralmente associados à idéia de
violência?
Ao ser feita esta indagação, a resposta imediata á dada espontaneamente:
refere-se à violência física, “vis corporalis”, como atentados à pessoa; as agressões contra as pessoas idosas, os raptos de crianças, tumultos, mas também
atentados políticos, guerras, seqüestros de aeronaves, etc.
A população não tem realmente uma polarização sobre uma forma criminal precisa, mas há sempre a impressão de uma agravação da criminalidade
sob todas as formas.
Não resta dúvida, entretanto, que uma forma de criminalidade ocupa lugar à parte: a criminalidade juvenil, que é a mais freqüentemente citada em
quaisquer estatísticas, supera toda evocação feita a respeito da violência em
nossa sociedade.
Os jovens, portanto, ocupam lugar muito importante no discurso coletivo
sobre a violência.
Eles são, com efeito, duplamente considerados, como vítimas e como autores.
A agressão de uma pessoa de idade por um adolescente é lamentavelmente a ocasião de um sociodrama, onde se joga brutalmente o confronto simbólico de duas idades.
Por outro lado, embora, no Brasil, seja aparentemente inexistente a violência política, é neste campo, o político, que se situa outro domínio específico da violência. Com efeito, embora raros ou quase inexistentes os atentados
144
Direito e Democracia
políticos tipo Aldo Moro, os períodos eleitorais são inelutavelmente acompanhados de violência.
Esta dramatização da política participa, certamente, como causa e como
efeito, de uma concepção inquieta das relações sociais.
Em qualquer pesquisa estatística que se faça a respeito dos autores da violência, além dos jovens e dos militantes políticos (estes em menor grau), algumas indagações sempre surgem. É certo, por exemplo, que as mulheres são
menos violentas que os homens e que a violência decresce com o avançar da
idade da pessoa.
Mas o que flui facilmente de estudos, entre todas as opiniões, é certamente a de que os autores da violência são geralmente os outros. Ninguém assume
a violência que pratica.
As causas da violência apontadas pelo público, em entrevistas e em questionários, são o alcoolismo; as habitações em celas pobres; o ritmo da vida
moderna; as desigualdades sociais; e há os que entendem que também se alinham, entre os fatores gerais da criminalidade – cuja pesquisa encontra-se no
caráter finalístico da criminologia –, a influência dos meios de informação e
de comunicação coletiva.
Com efeito, muitos pensam que a televisão, o cinema, revistas e jornais
contribuem para o desenvolvimento da delinqüência e estes órgãos dão exagerada importância em suas mensagens à violência e ao erotismo.
Num relatório elaborado por um comitê de estudos sobre a violência, a
criminalidade e a delinqüência, em França, concluiu-se que grande parte da
insegurança, demonstrada por considerável parcela da população, em todas
as classes sociais, decorre da leitura e do conhecimento de fatos criminosos
publicados pela imprensa.
Por outro lado, os meios de comunicação exercem também uma influência sobre a representação que se faz da criminalidade ou da pessoa do criminoso. Há, muitas vezes, uma inversão de valores morais. O delinqüente perigoso aparece aos olhos do grande público como um herói, sendo transmitida,
portanto, apenas uma certa imagem da realidade: herói-bandido, vítima da
sociedade.
Ao se fazer tal afirmativa, entretanto, ainda não se disse serem os meios de
informação e de comunicação coletiva um fator criminógeno.
Direito e Democracia
145
O que se poderia, por certo, criticar é o exagero no uso de espaços
jornalísticos para explorar comercialmente a violência, o crime e a miséria.
Num estudo efetuado sob a égide do Conselho da Europa, concluiu-se que,
em média, os artigos relativos à delinqüência ocupam mais ou menos 7% do
espaço redacional dos grandes jornais europeus e que um pouco mais da metade destes trata de condutas violentas.
Conclui-se, assim, com Jacques Leauté, em sua consagrada obra,
“Criminologia e Ciência Penitenciária” (1972) que a intervenção dos meios de
informação e de comunicação se produz, em nossos dias, em três fases do fenômeno criminal descrito por eles: 1º) na elaboração das leis, quando expressando a opinião pública, que em ultima ratio contribui, com o valioso costume
do povo, para a redação legislativa, podendo exercer decisiva ação sobre o
legislador; 2º) por ocasião da infração dessas leis, quando os meios de informação têm o dever de dar ciência à coletividade dos problemas que a estão
afligindo; e 3º) o registro da reação social, noticiando e informando acerca
dos processos, dos recursos, das audiências, do Tribunal do Júri e das sentenças.
Já Lombroso entendia nefasta a ação da imprensa durante o processo e o
julgamento do crime, porque pode desviar o julgador da sentença em que faria
verdadeiramente justiça, orientado por uma falsa imagem da opinião pública.
Objeta-se, entretanto, e nesta posição se encontram muitos profissionais
da imprensa, que é necessário informar o público a respeito do crime, é útil ao
controle da reação social pela coletividade e prestam, assim, os meios de informação e de comunicação social relevante trabalho, com o impulso que dão
à adaptação das leis penais às necessidades e às aspirações sociais, à realidade.
À criminologia, ciência causal-explicativa, compete investigar se realmente os meios de comunicação de massa também constituem fator criminógeno.
Ao noticiar um crime, dir-se-á, de início, a ação criminógena, que poderá
decorrer do meio de comunicação coletiva e de informação, terá um duplo
efeito.
De um lado, a incessante relação de crimes, junto às múltiplas imagens da
violência, expostos à vista de todos, diminui, reduz a capacidade de resistência dos indivíduos frágeis, que, em razão de sua pouca idade, se deixam influenciar pela imagem permanente de crimes, armas e assassinos. Com a excitação dos instintos baixos, muito facilmente passa da imagem psíquica, que re-
146
Direito e Democracia
teve, ao ato exterior. Por outro lado, o destaque, o enfoque, o elogio, muitas
vezes, contribui para excitar a vaidade do delinqüente e a agravação das formas de delinqüência. Muitas vezes, também, os meios de informação deformam a imagem pública dos Juízes, da Justiça e do Ministério Público, desacreditando-os perante os homens e as instituições.
Cabe-nos, entretanto, também alinhar alguns elementos positivos da intervenção dos meios de comunicação de massa.
Para a mídia, o crime é um fato novo, fazendo parte da atualidade; é dever
dos jornalistas, telejornalistas e radialistas informar tanto as causas boas como
as más, o bem como o mal.
No momento em que, usando de seu fabuloso poder amplificador, os meios
de comunicação difundem e divulgam os fatos criminosos e causam indignação social, contribuem, no entanto, para a expressão da necessidade social de
justiça. Os jornais, a radiodifusão e a televisão excitam os sentimentos úteis
na luta contra o crime.
Uma função de catarse é atribuída, em nossos dias, aos meios de comunicação de massa, assim como ocorreu com as tragédias gregas, pós-clássicas. A
narração dos crimes, reais ou imaginários, os filmes de terror, longe de provocar a delinqüência, exerceriam, ao inverso, uma ação terapêutica, libertando
o indivíduo. A publicidade da justiça torna necessária a reportagem a respeito
dos processos. O público raramente participa dos julgamentos de processos do
júri ou assiste às audiências e aos debates. Sem a crônica jornalística, poucas
pessoas saberiam como são julgados os processos e que tipo de justiça é feita.
Mencione-se, ainda, que a participação dos meios de comunicação social
nos processos de elaboração das leis novas é realmente benéfica, porque contribui não apenas para a expressão da necessidade social de justiça, mas também para a criminalização e a descriminalização.
Em questionário recente, a respeito da opção: mostrar ou não a violência
pela televisão-, alinharam-se posições favoráveis e contrárias.
Entre as posições favoráveis, encontra-se a de que o fato informado mostra a realidade de hoje, suscita a reflexão e faz abrir os olhos às pessoas, mormente aos jovens. Faz compreender a vida das grandes cidades. Ensina-nos a
prudência. Mas, a violência mostrada em ocasiões excepcionais, é aceitável,
porém, se for repetida muito seguidamente, representa uma agressão.
Direito e Democracia
147
Por outro lado, um tipo de filme violento pode incitar mais solidariedade
entre as pessoas. Outrossim, informa o que a gente pode fazer numa situação
semelhante. Por derradeiro, o telespectador é livre: ele pode decidir se assiste
o programa ou não.
Há, entretanto, opiniões francamente desfavoráveis. É um mau exemplo
para os jovens que recebem detalhes a respeito de práticas violentas. Os filmes podem chocar a sensibilidade da pessoa.
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148
Direito e Democracia
O direito fundamental do acesso à
justiça
The Fundamental Right of Access to Justice
ROSANNE GAY CUNHA
Mestranda em Processo Civil-PUCRS
Professora de Processo Civil – ULBRA/RS
Professora de Processo de Execução na especialização em Processo Civil da ULBRA
e UCS/RS
*
RESUMO
O acesso à justiça é direito fundamental assegurado na Constituição Federal, mas
não é irrestrito, pois encontra limites quando em confronto com outra norma oposta, igualmente legítima, quando exercido abusivamente, ou quando conflitante com
igual direito da parte adversa. O acesso à justiça somente poderá ser limitado em
razão de outro direito ou liberdade constitucionalmente protegido. Para tanto, sugere-se a aplicação do princípio da proporcionalidade como técnica de relativização
dos direitos em conflito.
Palavras chave: Direito Constitucional, direitos fundamentais, acesso à justiça.
ABSTRACT
The access to justice is a fundamental right commended in the Federal Constitution, but
it isn’t unrestricted, because it meets some limits when in confrontation with another
opposite norm, equally legitimate, when abusively exercised, or when in disagreement
with a similar right of the adverse part. Access to justice will be limited only because of
another right or liberty constitutionally protected. Therefore we suggest the application of
the principle of symmetry as a technique for relativization of the rights in conflict.
Key words: Constitucional Law, fundamental rights, access to justice.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.149-160149
INTRODUÇÃO
A idéia do presente trabalho surgiu do estudo dos princípios processuais
constitucionais, em particular do princípio do acesso à justiça, também conhecido como “direito à tutela judicial efetiva”. Na expectativa de realizar uma
abordagem diferenciada daquela utilizada pela doutrina processual, pretendeuse investigar o referido princípio sob a ótica dos direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais são o elemento essencial do Estado Constitucional,
no sentido da legitimação do poder estatal. Não se concebe atualmente o Estado
de Direito sem a garantia dos direitos fundamentais, assim como estes somente
poderão aspirar à plena eficácia com o reconhecimento do Estado de Direito1. É
igualmente correto dizer-se existente um liame que une os direitos fundamentais
com a idéia de democracia, na medida em que aqueles exercem a função de garantes da limitação do poder e instrumento de exercício das liberdades. E, ainda,
se pensarmos num Estado de Direito de conteúdo não meramente formal, é correto afirmar que os direitos fundamentais são condição para a realização da justiça
material, da igualdade, ou seja, do Estado social de Direito.
Assim, posicionando os direitos fundamentais como elemento essencial
de um Estado social e democrático de Direito, e na medida em que
hodiernamente se concebe o Estado democrático, importa saber em que medida a comunidade jurídica - aqui compreendidos o Estado e os “consumidores” do Direito - tem lhes outorgado aplicabilidade.
Interessa-nos, portanto, fazer algumas considerações acerca do direito fundamental à tutela judicial efetiva. O tema tem norteado a moderna
processualística e toma relevância na medida em que o direito fundamental à
tutela judicial se verifica como meio para a realização de outros direitos, quando não reconhecidos ou insatisfeitos. O acesso efetivo à justiça é, portanto, a
garantia do exercício dos demais direitos fundamentais e/ou subjetivos constantes do nosso ordenamento jurídico.
Nessa perspectiva, e valendo-se da mais moderna e atual doutrina sobre o
tema, pretende-se, num primeiro momento, abordar o acesso à justiça como
direito fundamental, verificando as conseqüências de seu desrespeito.
Mais adiante, estudando o significado e a abrangência do direito à tutela
1
Segundo Ada Pelegrini Grinover (1973, p. 46), o Estado de direito se contrapõe ao Estado absoluto por reconhecer aos
indivíduos a titularidade de direitos subjetivos, de “posições jurídicas ativas com relação à atividade estatal”.
150
Direito e Democracia
judicial efetiva, veremos que, sob a rubrica do próprio princípio de acesso à
justiça, os direitos podem entrar em conflito entre si, oportunidade em que iremos propor a restrição dos direitos, nesse caso específico, desde que, é claro,
observado o sistema da constituição, atendendo ao seu “conteúdo essencial”.
I - O DIREITO À TUTELA JUDICIAL COMO DIREITO
FUNDAMENTAL
O poder estatal, como concebido atualmente, tem sua legitimação estribada nos direitos fundamentais, que são preceitos constitucionais imperativos válidos em um determinado território, para uma determinada comunidade. A existência do Estado de Direito está ligada diretamente à garantia dos
direitos fundamentais, assim como estes somente poderão aspirar à plena eficácia com o reconhecimento daquele.
O “direito à tutela judicial”, também conhecido como “direito de acesso à
justiça”, é direito fundamental, previsto na atual Constituição Federal através
de vários preceitos, tais como o direito de petição (art. 5º, XXXIV, “a”), os
princípios da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV), o do respeito à
coisa julgada (art. XXXVI), o da motivação das decisões (art. 93, IX), etc.,
sendo um direito materialmente constitucional, ainda que não expressamente enunciado no catálogo da constituição formal.
Entre os povos civilizados, o acesso aos tribunais é um direito fundamental baseado no fato de que o pedido de justiça é inalienável, que a ninguém
pode ser negado, sendo um dos valores fundamentais de qualquer ordenamento
jurídico. É um direito que se mostra relevante, na medida em que se afirma
como meio para a realização de outros direitos não reconhecidos ou insatisfeitos. O acesso à justiça é, pois, garantia do exercício dos demais direitos
fundamentais e/ou subjetivos constantes do ordenamento jurídico.
É oportuna a lição de BURRIEZA, no sentido de que o direito à jurisdição
“... no sólo engloba todas las situaciones jurídicas susceptibles de merecer protección
judicial, sino que además, entendiendo el derecho a la jurisdición como un concepto
instrumental del derecho fundamental de defensa jurídica y modo de satisfacerla,
tiene un contenido que es el poder atribuido a todos los ciudadanos para provocar la
actividad jurisdiccional y obtener a través del proceso una sentencia determinada” 2.
2
Àngela Figueruelo Burrieza, 1990, p. p. 31-2.
Direito e Democracia
151
Nessa perspectiva, interessa saber em que medida a comunidade jurídica
tem outorgado aplicabilidade ao direito à tutela judicial. O debate doutrinário atual pode ser sintetizado pela afirmação de Kasuo Watanabe: “a problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso
aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”3, ou como refere Luiz Guilherme Marinoni, direito a procedimentos “que
tutelem de forma efetiva, adequada e tempestiva os direitos”4.
No mesmo sentido conclui Burrieza: “De ahí que se entienda que no basta
garantizar a todos el acceso a la justicia proponiendo al juez la demanda de tutela,
sino que será preciso garantizar a cada ciudadano la posibilidad de obtener la tutela
judicial en un caso concreto, porque, de lo contrario, la garantía se reduciría a meras
declaraciones de principios que eluden toda intención de concretizar. La solución
adoptada en el orden práctico es interpretar la norma en cuestión, tratando de individualizar fuera de los esquemas dogmáticos acostumbrados el concepto que pueda
desarollar lo mejor posible el potencial garantizador y aprovechar los instrumentos
positivos del control de constitucionalidad de las leyes. (...) La relación entre acción
y defensa ... es condición indispensable para convertir en algo concreto y no solamente
aparente el derecho a la pretensión jurisdicional. La existencia del derecho no se
verá disminuida por las diferentes modalidades que para su ejercicio se arbitren según
la distinta estructura de los procedimientos singulares. En este sentido, las garantías
de tutela que sólo operan en los procedimientos jurisdiccionales no pueden agotar su
contenido en la libertad para promover la acción judicial; el derecho a la prueba
coadyuva a lograr la plenitud de los derechos de acción y de defensa en sus relaciones com el derecho a la tutela jurisdicional, porque cada vez que se niega o se limita
a alguna de las partes el poder procesal de representar ante el juez la realidad de los
hechos que le son favorables en la práctica se le está negando el derecho a la tutela
jurisdicional”5.
Por outro lado, não se pode esquecer que, embora os direitos fundamentais
requeiram lhes seja outorgada a maior carga de eficácia possível, o
ordenamento jurídico não pode ser conivente com seu exercício abusivo. O
direito de acesso à justiça não é direito irrestrito, sem limites, quando confronta com outra norma oposta, mas igualmente legítima.
3
Ada Pelegrini Grinover, 1988, p. 128.
4
José Guilherme Marinoni, 1998, p. 18.
5
Àngela Figueruelo Burrieza, 1990, p. p. 44-46.
152
Direito e Democracia
Assim, o direito de demandar, embora garantido constitucionalmente,
encontra limite quando exercido abusivamente, em desacordo com os fins
precípuos do processo civil ou quando conflitante com o direito da parte que
lhe é adversa, da mesma forma que o direito à ampla defesa sofre restrições
quando confronta com o direito do autor que tem razão. Este sempre foi o
embate entre o direito à tempestividade da tutela jurisdicional e o direito à
cognição definitiva, ante à morosidade do processo que tanto mal faz, já que
possibilita o descrédito nas instituições judiciárias.
O movimento do acesso à justiça surgido com o estudo de Mauro
Cappelletti, embora bastante recente, tem sua origem no princípio da
inafastabilidade do Poder Judiciário, surgido na Revolução Francesa, para defender o cidadão em face do Estado.
Nos Séculos XVIII e XIX, segundo Cappelletti, “o acesso formal, mas não
efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva” 6. Isso
significa que o Estado não tinha o dever de agir para a proteção do direito de
acesso à justiça, mas que, tão-somente, devia exigir a sua preservação, ou seja,
tinha apenas o dever de impedir a sua violação por quem quer que fosse. O
comportamento do Estado no sistema do laissez-faire, portanto, era passivo.
Com a transformação do conceito de direitos humanos, tornou-se pacífico que o Estado deve atuar positivamente para assegurar o acesso efetivo à
justiça.
II - CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE ACESSO À
JUSTIÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Modernamente, diz-se que o direito à tutela judicial, no âmbito da liberdade individual, é um direito de defesa (direito de primeira dimensão), a reclamar uma abstenção do Estado na esfera da liberdade do indivíduo. É direito de acesso a uma ordem de valores e direitos fundamentais (justiça em sentido material), mas é, ao mesmo tempo, direito fundamental prestacional (de
segunda dimensão), significando um dever de agir positivamente, a fim de
proteger os direitos individuais. É direito de acesso ao Judiciário e, ao mesmo
tempo, direito a uma ordem jurídica digna (justa, adequada e tempestiva).
6
José Guilherme Marinoni, 1988, p. 9.
Direito e Democracia
153
Essa posição assumida pelo direito de acesso à justiça, no nosso
ordenamento jurídico, desvenda algumas características.
A primeira é a de que, como autêntico direito fundamental, submete-se
ao disposto no § 1º do art. 5º da CF/88. Isso porque os direitos e garantias são
auto-aplicáveis, independendo da interpositio legislatoris para que gerem a plenitude de seus efeitos 7.
Com esta constatação, parte-se para a segunda característica, qual seja, o
efeito vinculante do § 1º do art. 5º da CF/88, segundo o qual decorre, “... num
sentido negativo, que os direitos fundamentais não se encontram na esfera de disponibilidade dos poderes públicos” 8, ou seja, há uma vinculação do poder público
e dos particulares ao direito de acesso à justiça, de modo que, além de deverem atuar no sentido da concretização do direito fundamental, estando
adstritos a outorgarem-lhe o máximo de eficácia possível, devem abster-se de
atentar contra o sentido e a finalidade da norma de direito fundamental.
O Estado não podendo intervir na esfera da liberdade das pessoas, deve
garantir seu acesso a uma ordem jurídica justa, tendo a obrigação de emitir
atos destinados a criar órgãos e estabelecer procedimentos ou medidas.
Corresponde-lhe, em contrapartida, e essa é a terceira característica, um direito público subjetivo do indivíduo, equivalente ao terceiro status, segundo a
classificação de Georg Jellinek 9, denominado status positivus (direitos à prestação estatal), assim como, numa interpretação mais extensiva, representa
um direito subjetivo do indivíduo, equivalente ao status negativus (direitos às
ações negativas) no âmbito da liberdade individual, como direito de defesa.
Não resta dúvida de que, face à proibição da autotutela, e ao monopólio
estatal da jurisdição, surge para os cidadãos um “auténtico derecho subjetivo a
que el poder público se organice de tal modo que los imperativos de la justicia queden
minimamente garantizados. El fundamento básico del derecho que analizamos se
encuentra en el hecho de que a las personas se les há proibido satisfacer por sus
propios medios el conjunto de derechos e intereses que constituyen su patrimonio
jurídico” 10.
7
Essa afirmativa vale para o direito à tutela judicial, pois, como direito de defesa e como um direito à prestação por parte dos
poderes públicos (agir positivo do Estado para garantir a liberdade do indivíduo), ainda que dependa de concretização
legislativa, na sua falta é o próprio Judiciário o poder competente para aplicar imediatamente os direitos fundamentais no caso concreto, assegurando-lhes a plena eficácia.
8
Ingo Wolfgang Sarlet, 1998, p. 323.
9
Apud Sarlet, 1998, p.p. 154-8.
10
Àngela Figueruelo Burrieza, 1990, p. 50.
154
Direito e Democracia
O direito à jurisdição, portanto, nada mais é do que uma compensação à
proibição do exercício da força privada como forma de satisfação das pretensões e direitos dos indivíduos.
Como lembra Burrieza, é preciso também que o Estado crie os instrumentos adequados a essa finalidade, sob pena de restar insatisfeito o desejo de
justiça, e, conseqüentemente, ressurgimento da autotutela e do caos social.
Por esta razão é indispensável para a estabilidade do sistema político a
efetividade do direito de acesso à justiça, como um direito de “... todo aquel
que, sufriendo una violación, pueda acudir a un órgano estatal que le atienda y que
haga efectivos sus derechos en el caso de que lo juzgue procedente” 11.
Por fim, a quarta característica que salientamos é que, como todos os direitos fundamentais, o direito de acesso à justiça está guindado à condição de
cláusula pétrea, como meio de impedir a destruição dos elementos essenciais
da Constituição, protegendo os direitos fundamentais das reformas levadas a
efeito pelo Poder Constituinte derivado.
III - CONSEQÜÊNCIAS DO DESRESPEITO AO
DIREITO
Conforme já se disse alhures, todos os órgãos jurisdicionais estão vinculados ao direito fundamental, de maneira que exercem o controle da
constitucionalidade dos atos dos demais órgãos estatais, declarando a
inconstitucionalidade dos atos ofensivos a tais direitos.
Dada a amplitude do conceito de tutela judicial efetiva, o STF, como Tribunal Constitucional e intérprete supremo da constituição, converte-se na
última instância jurisdicional em matéria de pressupostos inseridos na constituição (material ou formal).
A função assumida por esse Tribunal, nestes casos, é de relevância para o
desenvolvimento da função jurisdicional do Estado, porque grande número
de sentenças serão anuladas e atos processuais deverão ser refeitos, no momento em que a instância ordinária violar o direito constitucional à tutela
judicial efetiva. A violação ao direito fundamental abre a via do recurso
extraordinário.
11
Idem, p. 51.
Direito e Democracia
155
IV - SIGNIFICADO E ABRANGÊNCIA DO CONCEITO
DE EFICÁCIA DO DIREITO À TUTELA JUDICIAL
O direito a obter a tutela judicial efetiva desborda, pois, do simples acesso
ao Judiciário e, acrescenta-se, do acesso ao processo. Compreende, igualmente, um processo com base na legalidade, no direito a obter uma decisão fundada no Direito, devidamente motivada, a fim de permitir o controle da atividade jurisdicional, e ainda, compreende um processo com respeito à coisa
julgada material e à executividade das sentenças, sob pena de privar-se de
eficácia o que se decidiu com firmeza ao fim do processo.
O direito de acesso à justiça somente pode ser limitado, sem maiores prejuízos, em razão de outro direito ou liberdade constitucionalmente protegido.
Assim, o legislador ordinário somente poderá regular os requisitos de admissão de um recurso, por exemplo, se tal atitude corresponder à natureza do
processo e às finalidades que justifiquem sua existência, evitando que se convertam em meros obstáculos processuais, constituindo limitação ao direito
fundamental. As limitações devem se basear em uma causa legal, que não seja
contrária ao conteúdo essencial do direito de acesso à justiça, e que seja interpretada e aplicada da maneira mais favorável para a efetividade do direito.
V - O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E AS
LEIS RESTRITIVAS
Os direitos fundamentais são passíveis de limitação. A própria CF/88 prevê restrições ao exercício de direitos fundamentais, permite que o legislador
infraconstitucional venha a limitá-lo, ou ainda, há limites imanentes que
decorrem do caráter de princípio das normas de direitos fundamentais que,
quando em conflito no caso concreto, submetem-se a uma ponderação.
No dizer de ALEXY, as normas restritivas “não constituem nenhuma ‘restrição’ senão tão somente fundamentam a ‘restringibilidade’ dos direitos fundamentais”12, isto é, as normas restritivas indicam apenas até onde o ordenamento
jurídico deve proteger o direito (âmbito de proteção do bem jurídico).
A restrição, entretanto, deve observar os limites dados pela Constituição,
12
Robert Alexy, 1993, p. 173.
156
Direito e Democracia
atendendo ao seu “conteúdo essencial”, sob pena de, em extrapolando-os,
tornar-se ilegítima e violadora desse conteúdo essencial.
Assim, a CF/88, em um dos enunciados que dão suporte constitucional ao
direito à tutela judicial, quando prevê que “a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5, XXXV), ensejando o acesso
ao Judiciário àqueles que estão submetidos ao monopólio estatal da jurisdição, limita esse direito enunciando outro, igualmente fundamental e suporte
também do princípio do acesso à justiça, quando prescreve que “aos litigantes,
em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os recursos a ela inerentes” (art. 5, LV).
Outra norma restritiva do direito de demandar e do direito de defesa, realizado pelo legislador infraconstitucional, é o art. 17 do CPC, que regula a
litigância de má-fé. Nesse caso, o núcleo essencial dos direitos tutelados pela
Constituição está resguardado. Não se retira o direito de pleitear em juízo ou
de se defender em uma demanda, mas apenas se estabelece que tais direitos
serão tutelados, estarão protegidos, enquanto exercidos de boa-fé que é o princípio retor do processo civil. Se a parte passar a litigar de má-fé, a sua garantia
deixa de estar abrigada pelo ordenamento jurídico e passa a sofrer uma sanção
pelo dano processual causado.
Isso porque “o jogo dos princípios opostos somente é possível devido ao caráter
de princípio das normas iusfundamentais, resultando em direitos fundamentais restringidos e passíveis de restrição, que, por sua vez, também têm sua restrição e
restringibilidade restringidas” 13. A limitação está, pois, no resguardo do núcleo
essencial.
E se acontecer, pelas relações que os indivíduos mantém entre eles e com a
coletividade, que surja a necessidade de restrição ao direito, o que é denominado pela doutrina como limite imanente implícito, ou seja, “um conflito positivo de normas constitucionais, a saber entre uma norma consagradora de certo
direito fundamental e outra consagradora de outro direito ou de diferente interesse
constitucional” 14, a solução para o conflito será a ponderação.
O princípio da proporcionalidade surge como forma de relativizar tais direitos,
em nome de princípios fundamentais como o da justiça e da dignidade da pessoa,
hierarquizando os valores em jogo, a fim de atingir o objetivo maior que é o da coe-
13
Raquel Denize Stumm, 1995, p. 139.
14
Canotilho e Moreira , 1993, p. 135.
Direito e Democracia
157
xistência destas normas no sistema jurídico. A tutela de um deve encontrar limite na
tutela do outro. Entretanto, não há como estabelecer definitivamente esse limite,
como afirma N. BOBBIO: “Na maioria das situações em que está em causa um
direito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um deles
sem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, no
direito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser enganado, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro.
Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não
absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo
ponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamental, mas concorrente. E, dado que é sempre uma questão de opinião estabelecer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âmbito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e não
pode ser estabelecida de uma vez por todas” 15.
O princípio da proporcionalidade, pois, nada mais é que uma ponderação
dos valores conflitantes em jogo, funcionando como instrumento, por meio
do qual se verifica se os limitadores a serem impostos aos direitos fundamentais conflitantes são idôneos. É uma técnica segundo a qual não apenas se
legitima a referida restrição, mas também se otimizam os direitos, determinando-lhes o máximo de eficácia possível, o que vem a respaldar a grande
preocupação atual com a problemática dos direitos fundamentais: a sua eficácia16. Isso porque o enunciado contido no art. 5º, XXXV, da CF/88 não quer
significar somente, como afirma Marinoni, “... direito de ir a juízo, mas também
quer significar que todos têm direito à adequada tutela jurisdicional ou à tutela
jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva” 17.
CONCLUSÃO
O direito à tutela judicial, também conhecido como direito de acesso à
justiça, é direito fundamental previsto na atual Constituição Federal. É um
direito fundamental, porque o pedido de justiça é inalienável, não podendo
15
Norberto Bobbio, 1992, p. 42.
16
Isso porque, como salienta Bobbio (1992, p. 25), “... o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não
era mais o de fundamentá-los, e sim de protegê-los”.
17
Luiz Guilherme Marinoni, 1998, p. 24.
158
Direito e Democracia
ser negado ao cidadão, por ser um dos valores fundamentais do ordenamento
jurídico.
Esse direito, entretanto, não é irrestrito, pois encontra limites quando em
confronto com outra norma oposta, igualmente legítima, quando exercido
abusivamente, em desacordo com os fins precípuos do processo civil ou quando conflitante com o direito da parte que lhe é adversa.
Como direito fundamental, o princípio do acesso à justiça: a) submete-se
ao disposto no § 1º do art. 5º da CF/88; b) o poder público e os particulares
lhe estão vinculados; c) o Estado não podendo intervir na esfera da liberdade
das pessoas, faz surgir também para o cidadão um direito público subjetivo a
que aquele aja estabelecendo procedimentos ou medidas; d) está guindado à
condição de cláusula pétrea, como meio de impedir a destruição dos elementos essenciais da Constituição, protegendo os direitos fundamentais das reformas levadas a efeito pelo Poder Constituinte derivado.
Desta forma, o desrespeito ao princípio enseja exame em última instância
pelo Supremo Tribunal Federal, na qualidade de Tribunal Constitucional e
intérprete supremo da Constituição.
Por derradeiro, o direito de acesso à justiça somente pode ser limitado, se
em razão de outro direito ou liberdade constitucionalmente protegido, baseado em uma causa legal, que não seja contrária ao conteúdo essencial do direito de acesso à justiça, e interpretada e aplicada da maneira mais favorável à
efetividade do direito.
Para tanto, sugere-se a aplicação do princípio da proporcionalidade como
técnica de relativização dos direitos em conflito, pois a tutela de um deve
encontrar limite na tutela do outro.
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160
Direito e Democracia
Direito Urbanístico e Política
Habitacional
Urban Law and Housing Policies*
BETÂNIA DE MORAES ALFONSIN
Advogada, Mestra em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR-UFRGS,
Professora de Direito Urbanístico e Municipal na Faculdade de Direito da
ULBRA; autora do Livro Direito à moradia: instrumentos e experiências de
regularização fundiária nas cidades brasileiras, publicado pelo IPPUR/FASE em
1997.
“Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamais
se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve.
Contudo, existe uma ligação entre eles.”
Italo Calvino1
RESUMO
O artigo analisa a evolução da legislação urbanística do município de Porto Alegre/
RS ao longo do século XX, no que diz respeito ao tratamento dispensado aos territórios de moradia da população de baixa renda, nesta cidade. Utilizando o Direito
Urbanístico como “mapa”, foi possível, através de ampla pesquisa, desvendar as
estratégias governamentais adotadas ao longo de seis diferentes ciclos da política
habitacional do município.
Palavras-chave: Direito urbanístico, políticas habitacionais, população de baixa
renda.
* O presente paper constitui resumo da Dissertação de Mestrado da autora, defendida e aprovada sob o título “Da
Invisibilidade à Regularização Fundiária: A trajetória legal da moradia de baixa renda em Porto Alegre” , em maio
de 2000, junto ao PROPUR – UFRGS.
1
CALVINO, Italo - As cidades invisíveis, Companhia das Letras, 1993, pg. 59.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.161-181161
ABSTRACT
The article analyzes the evolution of urban legislation in the city Porto Alegre, Rio
Grande do Sul State, Brazil, along the XXth Century as far as the treatment given
to housing territory for the population of lower income is concerned. Using Urban
rights as a “map”, it was possible, through ample research, to unveil government
strategoes adopted along six differente cycles of housing policies in the county.
Key words: Urban law; housing policy, low income population.
Porto Alegre é uma das cidades com a legislação urbanística mais avançada do Brasil. Diversas pesquisas confirmam esta afirmação2. Em termos de
política habitacional, sem dúvida alguma, está servida por um repertório bastante amplo de instrumentos, adotados principalmente a partir da promulgação da Constituição de 1988 e da Lei Orgânica do Município, de 1990.
O 2º Plano Diretor de desenvolvimento urbano ambiental, aprovado pela
Câmara de Vereadores em meados de 1999, é a culminância de um amplo
processo de avaliação da legislação urbanística do município, conduzido pela
Municipalidade de forma bastante democrática, e com uma participação popular bastante satisfatória para uma peça legal essencialmente técnica. Além
da qualidade que marca o processo de elaboração do mesmo, o Plano Diretor
atual se caracteriza por “consolidar” em seu corpo inúmeros instrumentos
importantes de política habitacional já incorporados pela legislação urbanística do município, de forma esparsa, durante toda a década de 90.
De fato, o pesquisador desavisado, que porventura chegasse a Porto Alegre a fim de verificar “o estado da arte” de sua legislação urbanística, ficaria
muito bem impressionado e, se não aprofundasse seu estudo e apurasse o seu
olhar, poderia ser levado a crer que esta cidade SEMPRE teve esse grau de
excelência em termos de legislação, e, principalmente, este “acolhimento”
do direito à cidade que o Plano Diretor atual tão bem expressa...
Este, no entanto, seria um olhar “raso” sobre a realidade, pois é preciso
buscar a gênese dos processos, a fim de compreendê-los de forma mais profun2
Ver CARDOSO, Adauto Lúcio & RIBEIRO, Luiz Cesar - A municipalização das políticas habitacionais - Um avaliação da
experiência recente (1993-1996), abril de 1999; ALFONSIN, Betânia de Moraes - Direito à moradia - Instrumentos e
Experiências de Regularização Fundiária nas cidades brasileiras,1997; RIBEIRO, Luiz Cesar (Coord.) - Questão urbana,
desigualdades sociais e políticas públicas: avaliação do programa da reforma urbana no Brasil” , Relatório de Pesquisa, 1994.
162
Direito e Democracia
da. Linhas de continuidade ou sinais claros de ruptura? Qual a relação do
atual instrumental jurídico e urbanístico, colocado à disposição para fins de
condução da política habitacional do município, com a “história legislativa
urbanística” da cidade e as práticas políticas conduzidas de forma sucessiva
pelo Poder Público a partir dela? Só é possível responder a estas indagações,
investigando a história da legislação urbanística desde seu nascedouro, “isolando” a legislação aplicável a cada época, de forma a revelar a “identidade”
de um período determinado, e estabelecendo a relação desta legislação com
as estratégias públicas adotadas relativamente à presença dos territórios de
moradia da população de baixa renda no espaço urbano.
Verificar a hipótese de que a legislação urbanística referente à Política
habitacional destinada à população de baixa renda de Porto Alegre percorreu, ao
longo de um século, claros e sucessivos “ciclos”, em estreita correspondência com
distintas estratégias adotadas pelo Poder Público Municipal, marcadas, estas, pelo
imaginário social da época respectiva, o que redundou em distintos graus de eficácia
dessa mesma legislação, foi a intenção desta pesquisa histórica.
O objeto de investigação privilegiado é o próprio Direito Urbanístico
Municipal, consubstanciado na legislação urbanística do município nesse século. Trata-se de um objeto complexo, que exigiu uma pesquisa inter-disciplinar, buscando contribuições (i) do Direito; (ii) da História, (iii) do Urbanismo.
A fim de responder ao problema de pesquisa colocado e verificar a veracidade da hipótese formulada, realizou-se uma pesquisa de campo
consubstanciada em uma “varredura” na legislação urbanística promulgada
em Porto Alegre desde a primeira legislatura, logo após a Proclamação da
República, em 1892, até o ano de 19993.
A pesquisa de campo empreendida buscou atender a um triplo objetivo:
(i) verificar e caracterizar o tratamento dispensado pela legislação urbanística aos territórios de moradia de população de baixa renda no
município de Porto Alegre, em uma perspectiva diacrônica;
(ii) identificar “ciclos” legislativos com identidade própria e o “imaginário” urbanístico e ideológico que justificou, em cada período
analisado, a adoção política/administrativa de uma legislação
marcada por determinada estratégia/postura;
3
A principal fonte de consulta foi o acervo legislativo da Câmara de Vereadores de Porto Alegre
Direito e Democracia
163
(iii) analisar, subsidiariamente, a eficácia da legislação na condução da
política habitacional no ciclo correspondente.
Aqui o que importa compreender é que o Direito é tomado como fonte para
entender a História da cidade e o tratamento que esta cidade dispensou aos seus
“pobres”. Por óbvio que o Direito é apenas uma dimensão desta realidade urbana, mas se tomarmos a teoria de Boaventura de Souza Santos4 sobre o Direito,
explicitada em seu célebre artigo “Uma cartografia simbólica das representações
sociais: Prolegômenos a uma concepção pós-moderna do Direito”, saberemos que o
Direito é fonte segura de orientação sobre determinada realidade:
A comparação proposta é, pois, entre mapas e direitos. O direito, isto é, as leis, as normas, os costumes, as instituições jurídicas, é um conjunto de representações sociais, um modo
específico de imaginar a realidade que, em meu entender, tem
muitas semelhanças com os mapas. (...) Esta abordagem que
se pode designar por cartografia simbólica do Direito, (...)
questiona radicalmente alguns dos postulados filosóficos e políticos da teoria liberal do Estado e do direito modernos e, por
essa via, contribui para a construção de uma concepção pósmoderna do Direito. (...)
Para ser prático, o mapa não pode coincidir ponto por ponto
com a realidade. No entanto, a distorção da realidade que isso
implica não significa automaticamente distorção da verdade,
se os mecanismos de distorção da realidade forem conhecidos
e puderem ser controlados.
Passa, então, o jurista e sociológo português, a discorrer sobre a escala, a
projeção e a simbolização, como os mecanismos principais de distorção da realidade utilizados pelos mapas e pelo Direito, impressionando-nos com a riqueza
desta metáfora. Se podemos, de fato, tomar o Direito como um “mapa”, ele atua
em diferentes escalas, representa uma realidade e adota mecanismos e símbolos
para reproduzir esta realidade. Para a história que estamos querendo contar aqui,
nada mais apropriado que utilizar o Direito como fonte historiográfica capaz de
nos reportar o imaginário social e as representações de uma época.
4
SOUZA SANTOS, Boaventura - Uma cartografia simbólica das representações sociais: Prolegômenos a uma concepção pósmoderna do Direito, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 13, janeiro-março 1996, Editora Revista dos
Tribunais, 1996, pg. 255-256.
164
Direito e Democracia
Procedida a catalogação e a análise de toda a legislação urbanística do
município, a qual se mostrou generosamente reveladora das posturas do Poder Público, bem como do imaginário social de diferentes épocas, foi possível
identificar claramente a existência de 6 grandes “ciclos” sucessivos de estratégias do Governo local diante das necessidades habitacionais da população
de baixa renda na cidade:
Por óbvio, os limites deste trabalho não permitem examinar em detalhe a
diversidade de diplomas legais que, vigentes à mesma época, autorizaram a idenCICLOS DE POSTURAS e/ou ESTRATÉGIAS
tificação da “tônica” predominante da política
habitacional
em cada
um dos
pe-.
Invisibilização
da moradia
de baixa
renda.
ríodos analisados. Assim, aqui, só vamosExpulsão
dar alguns
exemplosde
debaixa
legislação
típica
da população
renda das
áreas
centrais da dos
cidade.
de cada um dos ciclos, destacando as características essenciais
mesmos.
Provisão privada de lotes e moradias na NÃO
CIDADE
A transição: Da provisão privada à pública
Reconhecimento do Direito à moradia:
1892 A 1914 - A INVISIBILIZAÇÃO
40 anos de (des)provisão pública de lotes e
moradias
Direito
à cidade,
No mundo todo, a cidade de 100 anosReconhecimento
atrás convivia do
com
a pobreza,
“faà
cidadania
e
à
diferença:Regularização
Fundiária
zendo de conta” que ela não estava ali, ou seja, escondendo-a, invisibilizando-
a, ignorando-a propositalmente nas intervenções urbanas. Londres,
Manchester, Paris, Berlim, Chicago, Nova York, São Paulo, Rio de Janeiro,
são exemplos estudados e documentados.5
Na Porto Alegre do início do século, a situação não era diferente. O ima5
Ver, a respeito: HALL, Peter - Cidades do amanhã, Perspectiva, São Paulo, 1995; BONDUKI, Nabil - Origens da habitação
social no Brasil - São Paulo, Estação Liberdade/FAPESP, 1998; PESAVENTO, Sandra Jathay - O imaginário da
cidade: visões literárias do urbano - Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, Porto Alegre, 1999.
Direito e Democracia
165
ginário operava ativamente para “invisibilizar” uma população que a elite
preferia não ver. A população de baixa renda portoalegrense, no início do
Século, residia ainda, em sua grande maioria, no centro da cidade. Moravam
em pequenas casas, de porta e janela, em becos da área central. A principal
tipologia habitacional adotada, no entanto, era a do “cortiço”.
No “Regulamento Geral de Construcções”6 de 1913, encontram-se dispositivos que representam lapidarmente o imaginário da época. Veja-se o que
diz o § 3º do artigo 20:
Fica proibida a divisão de casas ou compartimentos de grandes dimensões por cubículos de madeira, de modo a se estabelecerem sob o mesmo tecto varias famílias ou ocupantes.
Ora, o que se torna ilegal, aqui, é o cortiço. A municipalidade simplesmente
proíbe a principal tipologia de habitação dos pobres do início do século!
Plano Geral de Melhoramentos
O Plano Geral de Melhoramentos de 1914, embora não se constitua em
um instrumento legal, teve força de ordenamento e, sem dúvida, como nos
explica Boaventura de Souza Santos7, foi um fenômeno/manifestação do
“pluralismo jurídico”. Este conceito integra a concepção do sociólogo português que concebeu a “cartografia simbólica do Direito” e pode, sinteticamente, ser explicado por suas próprias palavras:
(...) ao contrário do que pretende a filosofia política liberal e o
que sobre ela se constituiu, circulam na sociedade, não uma,
mas várias formas de direito ou modos de juridicidade. O direito oficial, estatal, que está nos códigos e é legislado pelo governo ou pelo parlamento, é apenas uma dessas formas, se bem
que tendencialmente a mais importante.
(...) [o conceito de pluralismo jurídico] trata-se outrossim,
da sobreposição, articulação e interpenetração de vários espa6
“Regulamento Geral de Construcções”, Acto nº 96, de 11 de junho de 1913.
7
SOUZA SANTOS, Boaventura - Uma cartografia simbólica das representações sociais: Prolegômenos a uma concepção pósmoderna do Direito, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 13, janeiro-março 1996, Editora Revista dos
Tribunais, 1996, pgs. 259-260, 272.
166
Direito e Democracia
ços jurídicos misturados [o que nos conduz ao conceito de
interlegalidade]. A interlegalidade é a dimensão fenomenológica do pluralismo jurídico.
Embora não tenha se tornado lei, o Plano Geral de Melhoramentos teve
grande impacto na cidade, por ser ao mesmo tempo produtor e produto do
imaginário social da Porto Alegre de então. Sua força reguladora se fez sentir
por muitos anos e se ele próprio não teve status legislativo, a lei orçamentária
do município lhe destinou recursos por 4 anos, entre 1914 e 19188.
Vê-se daí a importância que o referido Plano tinha para a cidade, tanto
para a municipalidade como para a sociedade de então. Essa importância decorre de seu protagonismo simbólico. O Plano Geral de Melhoramentos projetava Porto Alegre como os porto alegrenses de então gostariam que ela fosse: moderna, higiênica e bela...
Porto Alegre, na verdade até tardiamente, se insere em um movimento
que ocorria nacionalmente e que já tinha projetado Belo Horizonte como
uma cidade nova - idealizada para substituir a antiga capital das Minas Gerais, Ouro Preto - e que já havia promovido a “reforma urbana” do Rio de
Janeiro, aos moldes das reformas levadas a efeito em Paris décadas antes pelo
Prefeito Haussmann.
O referido Plano Geral de Melhoramentos guiou-se pelo trinômio básico:
trânsito, beleza e higiene. Essas 3 questões são colocadas na justificativa do
Plano como “necessidades crescentes” da capital. As intervenções propostas,
e mais tarde realizadas nestas 3 áreas, desconsideravam os pobres da cidade.
Foram projetadas praças e jardins em áreas de moradia de população de baixa
renda, bem como avenidas foram abertas sobre antigos becos habitados exclusivamente pelos pobres da cidade - como se a terra estivesse livre, nenhuma
palavra sobre o destino daquela população, como se ela fosse invisível...
1915 - 1928 - A EXPULSÃO
De 1915 em diante, a legislação de Porto Alegre vai “apertar o cerco” principalmente em relação aos cortiços. Se o momento anterior foi marcado pela
INVISIBILIZAÇÃO da moradia da população de baixa renda, aqui, a estra8
Actos nº 117, 123, 134 e 140, de 1914, 1915,1916 e 1917 respectivamente.
Direito e Democracia
167
tégia adotada pela Municipalidade se torna mais explícita e mais dura com os
pobres residentes na área central, constituindo-se em uma clara postura pública de EXPULSÃO.
A legislação tributária e a implantação do serviço de esgotos serão as vedetes do período, taxando e controlando os cortiços com uma estratégia que
acabou por inviabilizar a presença dos pobres nas regiões de maior centralidade.
A legislação sanitarista controlava rigorosamente a obrigatória ligação ao
serviço do esgoto (um serviço caro à época) dos imóveis situados na zona
urbana, multando pesadamente os prédios desprovidos deste serviço (principalmente em se tratando de habitações coletivas) .
O gráfico a seguir mostra, por outro lado, a evolução do imposto predial
urbano durante este ciclo. Enquanto o imposto devido pelos proprietários dos
demais imóveis residenciais se manteve estável, com uma alíquota de 10%
sobre o valor locativo ao longo de 12 anos, o imposto devido pelos cortiços
aumentou 4 vezes e subiu de 25% sobre o valor locativo até a escorchante
alíquota de 55%.
Evolução do imposto predial urbano durante o período da
EXPULSÃO
60%
50%
40%
Cortiços
30%
Imóveis urbanos
20%
10%
0%
1916
1918
1920
1922
1924
1926
1928
Não é preciso dizer que esta fórmula perversa (SANITARISMO + CONTROLE + TRIBUTAÇÃO) teve êxito na explícita estratégia do Poder Público de limpar o centro da presença incômoda dos pobres.
168
Direito e Democracia
Década de 30 - A ambiguidade: Provisão privada (e
auto-construção) de moradias na NÃO CIDADE
A política rentista, que, em capitais como São Paulo tinham sido marca
registrada da República Velha9, somente se tornará uma alternativa de investimento para os capitalistas porto-alegrenses a partir da Era de Getúlio Vargas
(1930-1945). Esta política tinha 2 faces, respondendo a 2 interesses: por
parte da população de baixa renda atende a uma parte da demanda por moradias, e por parte de quem edifica para alugar a esta população, trata-se de
investimento seguro e de alta rentabilidade em tempos de baixa inflação.
Em Porto Alegre, o período foi dominado pelo incentivo governamental,
principalmente pela via fiscal, para a produção privada de moradias. Algumas
destas leis eram sofisticadas, e se faziam acompanhar, inclusive, das plantas
das casinhas a serem edificadas. Os incentivos fiscais, no entanto, eram concedidos a quem edificasse na zona urbana de então, ou seja, na zona provida
de serviços urbanos.
Ocorre que, ao adotar esta política, o Governo, embora oficialmente tentasse limitar a construção de novas moradias para baixa renda dentro da região
dotada de serviços, acaba por ignorar a população pobre que foi para a periferia
em decorrência da eficácia do Ciclo da Expulsão, se desresponsabilizando pela
provisão de serviços públicos na periferia. Assim, a contrapartida da política
oficial é o seu oposto: a expansão clandestina da periferia através do fenômeno
da auto-construção de moradias. São desta época os assentamentos humanos
embriões das primeiras favelas de Porto Alegre.
Década de 40 - A transição: Da provisão privada à
pública
A década de 40 representou uma espécie de transição entre o modelo de
produção privada de moradias (principalmente para fins de aluguel) para o
modelo de provisão estatal de moradias. Nele observa-se um hibridismo nas
estratégias e políticas conduzidas pelo Poder Público, que oscila entre assumir
ele próprio responsabilidades pela política habitacional ou continuar na política de concessão de incentivos à iniciativa privada, dominante no período
anterior.
9
BONDUKI, Nabil - Origens da habitação social no Brasil - São Paulo, Estação Liberdade/FAPESP, 1998.
Direito e Democracia
169
Durante o Governo de Getúlio Vargas, a União passou a tomar conhecidas
iniciativas na área social e habitacional. Uma delas foi a permissão legal para
que os Institutos de Aposentadorias e Pensões destinassem parte de seus recursos para financiar a construção de moradias para seus associados. No modelo de
financiamento atodado pelos IAP’s os recursos tinham uma fonte tripartite,
na qual participavam empregados, empregadores e o Estado. A participação do
Estado, neste período foi determinante para o sucesso da fórmula.
Coadunando-se com a política do Governo Federal, Porto Alegre também apoiaria a provisão de moradias via isenções fiscais10, para que os Institutos de Aposentadorias e Pensões comprassem terrenos e edificassem para seus
associados, pertencentes a diferentes categorias profissionais.
Aproveitando-se do incentivo fiscal, o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI) veio a adquirir um terreno para fins de edificação
de um importante conjunto habitacional na Zona Norte da cidade, por esta
época. Tomando o nome de “Conjunto Residencial Passo da Areia”, o “IAPI”,
como veio a ser conhecido na cidade, teve sua construção iniciada em 1943 e
foi um dos primeiros empreendimentos habitacionais de porte de Porto Alegre. Com 1.691 unidades à época de sua inauguração, adotou variadas tipologias
(prédios de apartamentos e casas térreas ou assobradadas), e demarcou um
eixo de expansão da zona urbana da cidade em direção à Zona Norte, região
na qual passavam a se localizar as indústrias.
Além da novidade em termos de política habitacional, por significar um
empreendimento de massa, o IAPI adotou a proposta da Cidade Jardim e é,
ainda hoje, bastante emblemático da influência desta proposta urbanística
no traçado de algumas regiões da cidade.
Vê-se aí a importância do IAPI como um “capítulo à parte” na política
habitacional do município, sem precedentes e praticamente sem sucessores à
altura. Em grande parte ele foi possível por se tratar de uma política que, embora se tratasse de uma orientação do Governo Federal, era dotada de autonomia no plano local. Assim, os IAPs tinham poder de decisão para escolher
tipologias, contratar arquitetos, adquirir terrenos, etc. Porto Alegre, no caso
do “Conjunto habitacional Passo da Areia”, saiu lucrando, pois, através da
concessão de um incentivo fiscal, viu erguer-se uma obra que tanto do ponto
de vista social como urbanístico e arquitetônico tornou-se uma referência.
Tanto que hoje, o IAPI é “patrimônio cultural” do município.
10
Decreto-lei nº 96, de 17 de abril de 1942.
170
Direito e Democracia
1950 -1988 - DIREITO À MORADIA: 40 ANOS DE
(DES)PROVISÃO PÚBLICA DE LOTES E MORADIAS
O período que vamos examinar agora abrange 40 anos durante os quais a
tônica foi a forte intervenção estatal, das diferentes esferas governamentais,
no problema da moradia de baixa renda. No início dos anos 50, a população
brasileira chegava já a mais de 40 milhões de pessoas e a capital do Rio Grande do Sul, nosso objeto aqui, já beirava os 400 mil habitantes11.
Porto Alegre já havia dado passos importantes no caminho da assunção
administrativa da política habitacional, mas será em 1952 que teremos, através da Lei nº 98212, a criação do Departamento Municipal da Casa Popular.
A iniciativa, sem precedentes institucionais, demonstra a importância dispensada no período à política habitacional, já que a lei também trazia em seu
corpo importantes instrumentos de incremento à política habitacional na
cidade, tais como uma pioneira taxa de financiamento da casa popular, a ser
cobrada sobre o custo total de toda nova construção com área superior a cento e cinquenta metros quadrados (150 mts2). As medidas dão conta de um
definitivo envolvimento do Poder Público com a questão habitacional e com
o reconhecimento do direito à moradia de uma população de baixa renda
cada vez mais numerosa.
De fato, a cidade crescia em ritmo acelerado e, no final da década de 50, a
população de Porto Alegre já era 60% maior do que em 195013. Este crescimento espantoso, com certeza era ainda maior nas áreas faveladas, que não
cessavam de se expandir. Também pudera, com o país tendo experimentado,
na “Era Juscelino Kubitschek”, um crescimento econômico considerável, uma
grande massa populacional havia migrado para os centros metropolitanos em
busca de emprego e renda, em um fenômeno de caráter nacional.
O crescimento das favelas, no entanto, não foi capaz de sensibilizar o grupo de urbanistas que durante a década de 50 elaborou o Plano Diretor de
1959, uma pérola do urbanismo modernista. Neste Plano, o Zoneamento era
a palavra de ordem, a espinha dorsal, o núcleo estruturador da proposta urbanística apresentada pelos planejadores à Câmara. A lei, extremamente técnica, não atingia a totalidade do território do município e somente as zonas de
11
Fonte: IBGE - Dados históricos dos censos (http://www.ibge.gov.br/)
12
Lei nº 982, de 19 de dezembro de 1952.
13
Segundo dados do IBGE, a população de Porto Alegre passou de 394.151 em 1950 para 641.173 em 1960.
Direito e Democracia
171
maior centralidade mereceram a atenção do planejador urbano. Aliás, ironicamente o resto da cidade nem aparece no mapa, literalmente como se não
existisse, em um resquício do primeiro ciclo que examinamos, o da
“Invisibilidade”, no qual uma espécie de véu se estende sobre as moradias da
população pobre. Enquanto uma parte da cidade é ultra-regulamentada, a
“outra”, a “marginal”, é uma terra de ninguém, sobre a qual não incide a
“ordem urbanística14“.
Seria então, dotada de uma nova ordem urbanística, consolidada no Plano diretor de 59, que Porto Alegre seria atingida pela repressão instalada pelo
Golpe Militar de 1964 e pelos reflexos igualmente nefastos havidos na Política Urbana e Habitacional conduzida no país. Para além do autoritarismo político, que redundaria na sufocação da vida democrática brasileira, os militares impuseram um modelo absolutamente centralizador das políticas públicas
desenvolvidas nesta área, uniformizando a produção habitacional e os problemas urbanos das grandes cidades.
Pela Lei nº 4380 de 21/08/1964, o Governo Federal, através do Ministério de Planejamento, criava o Banco Nacional de Habitação (BNH)
como órgão de cúpula do Sistema Financeiro para a aquisição da Casa
Própria (Sistema Financeiro de Habitação - SFH), instalando um novo
período na história da produção habitacional no Brasil. Ambicioso, o projeto dos militares pretendia, conforme documentos do próprio Governo
Federal 15, construir mais de 140.000 casas anuais e absorver um déficit
habitacional estimado em 4.600.000 casas em 1966. Por força da criação
do BNH foram criadas também, em todo o país, Companhias de Habitação, estaduais e municipais.
Em 1965, de fato, através da Lei nº 2.90216, seria reestruturado, sob a
denominação de Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), o
Departamento Municipal da Casa Popular. A lei é um testemunho do pensamento hegemônico à época, e portanto, uma fonte importante de interpretação do imaginário social de então a respeito de nosso objeto de estudo.
Vale a pena reproduzir na íntegra o Capítulo I da lei, constituído de apenas
1 artigo:
14
O termo é cunhado por Raquel Rolnik. A cidade e a lei - Legislação, Política Urbana e Territórios na cidade de São Paulo”,
Studio Nobel, FAPESP, São Paulo, 1997, pg. 14.
15
MINISTÉRIO DA FAZENDA - BRASIL - A Política Habitacional Brasileira: Banco Nacional de Habitação; Primer
Congresso Inter americano de la vivienda, Outubro de 1966, Santiago, Chile, pg. 8.
16
Lei nº 2.902, de 30 de Dezembro de 1965.
172
Direito e Democracia
“Capítulo I - Da Política Habitacional
Art. 1º - O Prefeito orientará a política habitacional geral e de
interesse social no Município, em harmonia com os Governos da União e do Estado, através do Departamento Municipal de Habitação.
§ 1º - Habitação de interesse social, neste caso, é aquela destinada a substituir por melhores padrões arquitetônicos as
atuais moradias vulgarmente denominadas, em nosso
meio, “Malocas”.
§ 2º - Política Habitacional de interesse social é a que visa a
retirar das habitações marginais urbanas seus atuais moradores, proporcionando-lhes novas e melhores moradias para
integrá-los na vida espiritual, econômica e cultural da comunidade.” (grifos meus)
Os textos grifados visam traduzir o “espiríto”, a essência desta lei. Preliminarmente aparece claramente o perfilamento do órgão recém criado à política federal. A lei não usa subterfúgios, em segundo lugar, para estabelecer os
objetivos do DEMHAB, que eram literalmente, segundo os conceitos introduzidos neste artigo 1º, remover as “malocas” e junto com elas a população
“marginal” que as ocupa. Especialmente esta faceta da política seria conduzida
com grande eficácia nos anos seguintes. Assim, vê-se que, quando a tônica do
período é a provisão pública de moradias, não faltam resquícios de Ciclos anteriores, notadamente do Ciclo de Expulsão. Sob os auspícios da política de
provisão pública de moradias, então, Porto Alegre experimentaria, nas décadas seguintes, um crescimento expressivo do número de favelas e loteamentos
clandestinos e irregulares, resultante de uma absoluta incapacidade governamental de atender à imensa demanda por novas moradias para a população
de baixa renda.
Às vésperas da promulgação do 1º Plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano de Porto Alegre (1º PDDU), em 1979, a população de baixa renda do
município vivia sérias dificuldades para resolver seus problemas de moradia,
tendo a auto-construção da casa, muitas vezes como única saída. Em plena
Ditadura Militar, e no auge da ideologia desenvolvimentista que marcou as
realizações urbanas do Estado pós-64, no entanto, os planejadores urbanos
que elaboraram o Plano Diretor de 1979, não foram suficientemente sensíveis para o problema.
Direito e Democracia
173
Elaborado sem qualquer participação popular, consoante os costumes dos
técnicos contemporâneos da Ditadura Militar, o Plano dedicou apenas 1 artigo17 (dentre 384) aos territórios de moradia de população de baixa renda. O
artigo criava as “‘Areas Funcionais de Recuperação Urbana”. O termo “área
funcional” trai a visão funcionalista de cidade e, se a área é de “recuperação
urbana”, subjaz a idéia de que ela está, em verdade, perdida para a cidade, ou
“funcionando mal”, ou, voltando às metáforas que acompanharam os assentamentos auto-construídos desde o início do século XX, são áreas “doentes”, que
precisam ser tratadas, no caso, através da instituição de uma A.F.R.U. Independentemente das críticas teóricas que possam ser feitas ao instrumento, é preciso
dizer que sua eficácia foi praticamente nula. Apenas umas poucas AFRUS foram instituídas ao longo de mais de 20 anos de vigência do 1º PDDU...
Melancólica e caótica era a situação dos pobres da cidade e de seus locais de
moradia, portanto, quando o país atravessava a transição para a Democracia e
iniciava o processo constituinte que redundou na promulgação da Constituição Federal de 1988. A Carta Federal inauguraria um capítulo radicalmente
novo na História da política habitacional brasileira, e ainda mais, da política
conduzida nesta área pelo Poder Público em Porto Alegre, como veremos.
1988-2000 - DIREITO À CIDADE: A
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
No decorrer da década de 80, quando o país iniciou a transição democrática, ficou claro o desejo da sociedade por mudanças. Vinte anos de Ditadura
Militar haviam reprimido as manifestações populares, violado os direitos humanos individuais e coletivos e deteriorado as condições materiais de vida da
maioria da população. O movimento pelas “Diretas JÁ”, em 1984, no entanto, demonstrou que as energias sociais tinham estado apenas adormecidas
durante os anos de chumbo e que despertavam com insuspeitado vigor, dispostas a conduzir o país novamente à Democracia. O desdobramento natural
desta busca pelo reequílibrio da vida nacional, só poderia ser um: a exigência
de uma nova Ordem Constitucional, que pudesse, definitivamente, reinstaurar
o Estado Democrático de Direito no Brasil.
Foi assim que, a partir de 1986, quando se iniciou o processo constituinte,
17
Artigo 49 da Lei complementar nº 43/1979.
174
Direito e Democracia
o conteúdo que assumiria a nova ordem constitucional pautou as agendas dos
partidos políticos e dos movimento sociais, de Norte a Sul do país. Também
na área que estamos investigando, houve intensa movimentação. Entidades
não governamentais, pesquisadores, sindicatos, profissionais liberais e movimentos sociais urbanos trataram de consolidar, em uma “Emenda Popular da
Reforma Urbana”18, as reivindicações, propostas e instrumentos urbanísticos
que pretendiam ver contemplados na Nova Carta, a fim de intervir no caos
social em que haviam se transformado as cidades brasileiras.
Segundo Orlando Santos Júnior19, a tal emenda abordava inúmeros temas: Dos Direitos Urbanos; Da Propriedade Imobiliária Urbana; da Política
Habitacional; Dos Transportes e Serviços Públicos; Da Gestão Democrática da
Cidade. Tinha 23 artigos, que, após o embate com o “Centrão”20, se tornaram
o Capítulo “Da Política Urbana” da Constituição Federal de 1988, com apenas 2 artigos. Apesar da aparente derrota, as conquistas foram bastante significativas, como veremos.
Edesio Fernandes21 lembra que o princípio da Função Social da Propriedade estava presente em todas as Constituições Brasileiras desde 1934, mas aqui,
pela primeira vez, ela apareceu como um princípio estruturador da Política
Urbana no país. Além disto, a Constituição Federal22 delegou aos municípios
a condução desta mesma política urbana, dando-lhes poder para coibir os
abusos especulativos praticados por proprietários inescrupulosos. Como se sabe,
a maior parte das favelas brasileiras se ergueu sobre “vazios urbanos”, ou seja,
áreas privadas, cujos proprietários aguardavam a valorização decorrente dos
investimentos públicos realizados no entorno dos terrenos. A dinâmica é bem
conhecida: a terra, tornada mercadoria no regime capitalista, é comprada
barata já que desprovida de infra-estrutura. O proprietário, que trata o espaço
urbano como “investimento”, deixa a terra ociosa e espera que, ao longo dos
anos, a provisão de serviços e equipamentos públicos dote a gleba de infraestrutura e com isto o terreno passe a valer bem mais do que o valor originalmente pago pelo mesmo.
18
SAULE JÚNIOR, Nelson - Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da Política
Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1997, pg. 25.
19
SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos - Reforma Urbana - Por um novo modelo de planejamento e gestão das cidades. Rio
de Janeiro, FASE/UFRJ, 1996. Pg. 46.
20
“Centrão” foi a alcunha dada nos meios políticos e na imprensa nacional à aliança Centro-direita que impediu que as
propostas mais progressistas passassem na Assembléia Nacional Constituinte.
21 10
22
FERNANDES, Edésio - Direito e urbanização no Brasil in FERNANDES, Edésio (organizador) -Direito Urbanístico,
Livraria Del Rey Editora, São Paulo, 1998, pg. 213.
Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
Direito e Democracia
175
Os constituintes reconheceram a perversidade desta dinâmica e, no § 4º
do artigo 182, permitiram ao poder público exigir adequado aproveitamento
da terra urbana, sob pena de parcelamento ou edificação compulsória, IPTU
progressivo no tempo e, em última instância, desapropriação. Além disto, no
artigo 183, ficou consagrada a maior vitória do Movimento Nacional pela
Reforma Urbana:
“Art. 183 - Aquele que possuir como sua área urbana de até
250 mts2, por cinco anos, ininterruptos e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. “.
O artigo 183 da Constituição Federal, que incorporou a Usucapião urbana
para fins de moradia, tem uma importância capital, portanto, para nossa investigação aqui. Veja-se, em primeiro lugar, que ele se relaciona com o anterior, punindo também o proprietário que deixa a gleba urbana vazia, já que sua
inércia permitiu a ocupação e dará as condições para que os posseiros possam
requerer em Juízo a Usucapião-moradia. Em segundo lugar, o artigo implica
um reconhecimento da falência da política habitacional conduzida durante
todo o período da Ditadura Militar, já que há implícita nessa redação a compreensão de que milhares de famílias brasileiras, de fato, na ausência de política pública com capacidade de atender a demanda habitacional de baixa
renda no país, auto-construíram suas moradias em terrenos vazios, que foram
“ocupados” para que essa população pobre pudesse exercer o mais elementar
dos direitos humanos: o direito de morar. Mais do que isso, o artigo não reconhece apenas um “fato”, reconhece um “direito” que emerge desse fato: o
direito de permanecer no local ocupado, adquirindo a propriedade da terra
ocupada.
Estas disposições da Constituição Federal revolucionaram as possibilidades da política urbana e habitacional brasileira. Pela primeira vez, o tema
“Habitação” foi colocado no centro da política urbana, rompendo com décadas de marginalização da questão pelos planejadores urbanos marcados pela
ideologia desenvolvimentista, que sempre tratou com explícito preconceito
“o problema” dos territórios de moradia da população de baixa renda.
Porto Alegre, como já se ressaltou na introdução deste trabalho, foi uma
das cidades que melhor aproveitou o “gancho” da Constituição Federal para
inovar em termos de Política Urbana e Habitacional. Para tanto, dois aconte-
176
Direito e Democracia
cimentos foram fundamentais. Em 1989, Porto Alegre elege uma Frente Popular encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores, tendo Olívio Dutra como
Prefeito, e um slogan de campanha baseado na “Coragem de Mudar”. Além
disto, a Câmara de Vereadores promulgou, em 1990, a Lei Orgânica do Município23, incluindo aí um capítulo intitulado Da Política e Reforma Urbanas,
cujo conteúdo foi detalhadamente debatido por vereadores comprometidos
com as bandeiras da Reforma Urbana e por um Fórum de mais de 100 instituições que acompanhou ativa e propositivamente o processo constituinte municipal.
Na Lei Orgânica de Porto Alegre foram previstos e posteriormente regulamentados os seguintes instrumentos :
• Função social da Propriedade - IPTU progressivo no tempo
• Programas de Regularização Fundiária
• Apoio à usucapião urbana
• Concessão do direito real de uso
• Fundo Municipal de Desenvolvimento
• Solo Criado
• Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação
• Áreas Especiais de Interesse Social - AEIS
Embora não haja como detalhar aqui as características de cada um destes
instrumentos, é preciso registrar que, somados, permitem ao Poder Público
costurar firmemente política urbana e política habitacional. Mais importante do que a mera previsão destes instrumentos é o fato de que a Prefeitura
organizou, a partir de 1990, um Programa de Regularização Fundiária, que
tinha à disposição instrumentos jurídicos, urbanísticos, financeiros e de democratização da gestão da política habitacional. O Programa passou a atuar
com uma concepção radicalmente nova de Política Habitacional, na qual se
evoluía de Direito à moradia para Direito à cidade.
Basicamente, neste novo momento a “auto-construção” da moradia (e da
cidade) é reconhecida, e, mais do que isto, valorizada, pela Administração.
23
Lei orgânica do Município de Porto Alegre, de 21 de setembro de 1990, CORAG, Porto Alegre, 1990.
Direito e Democracia
177
Finalmente, o direito à moradia deixa de ser direito apenas a “4 paredes” e
passa a ser Direito à cidade, à moradia adequada e à cidadania. Mais de
100 assentamentos auto-produzidos são indicados, via Orçamento
Participativo24 e gravados como áreas especiais de interesse social para fins de
manutenção de moradias de população de baixa renda através de intervenções de Regularização Fundiária.
A Regularização Fundiária, carro chefe da nova política habitacional do
município, foi implantada com uma concepção pluridimensional, implicando (i) ampliação da segurança no exercício do direito de morar, (ii) Melhoria
do ambiente urbano do assentamento (iii) Sustentabilidade ambiental urbana (iv) resgate ético da cidadania dos beneficiados pela intervenção.
Mesmo enfrentando uma série de obstáculos (administrativos, jurídicos,
econômicos, culturais), a Política começa lentamente a dar resultados e hoje
já se tem territórios de moradia de população de baixa renda dignamente regularizados no tecido intra-urbano da cidade de Porto Alegre. A participação
ativa da população beneficiária é sabidamente uma das condições para o sucesso da Regularização e, nesta cidade, ela existe, embora possa sempre ser
ampliada.
CONCLUSÃO25
O Direito Urbanístico Municipal foi uma fonte generosa na confirmação
de nossa hipótese. As sucessivas estratégias do Poder Público resultaram perfeitamente caracterizadas e os ciclos de política habitacional vividos pelo
município tornaram-se perfeitamente identificáveis pela predominância de
estratégias determinadas. Sugere-se que estes “ciclos”, com pequenas variações cronológicas, observaram-se no Brasil todo ao longo do século XX.
A análise dinâmica destes ciclos permite concluir que as “estratégias” dominantes em cada um deles, embora se constituindo em tendência hegemônica
24
O orçamento participativo é um instrumento de democratização da gestão do orçamento público municipal de Porto
Alegre, criado pela “Administração Popular” e implantado em suas três gestões (1989-1992; 1993-1996 e 1997-2000).
Funciona incorporando a participação popular (por regiões da cidade e por “temáticas”) na discussão da peça
orçamentária, em especial dos investimentos a serem realizados pelo município. Implantado desde 1989 não foi
regulamentado legalmente.
25
A conclusão desta investigação foi ligeiramente alterada a partir da singular contribuição de Raquel Rolnik a quem
agradeço pela competente avaliação.
178
Direito e Democracia
de um período determinado, não se esgotaram no interior do mesmo. Pelo
contrário, foram observadas vários “sombreamentos” e “interpenetrações”.
De fato, o que se constatou foi que algumas das posturas governamentais
remanesceram para além do seu ciclo original, vindo a marcar a Política
Habitacional de grande parte do período analisado, ressurgindo em diplomas
legais e práticas públicas conduzidas anos mais tarde pela Prefeitura Municipal, comprovando sua influência para além do ciclo em que surgiram e dominaram.
Assim, podemos dizer, por exemplo, que a INVISIBILIZAÇÃO e a EXPULSÃO, estratégias predominantes nos primeiros ciclos identificados, marcaram inúmeras iniciativas da política habitacional conduzida anos mais tarde pelo BNH - Banco Nacional de Habitação, por exemplo. Da mesma forma, diante da incapacidade do Poder Público em atender ao conjunto da demanda por moradias, notamos que durante o longo ciclo em que o Estado
assumiu a provisão de moradias como uma responsabilidade sua, houve momentos em que mal-disfarçadamente o Poder Público apoiou a provisão privada de moradias, quer através de “anistias” a loteamentos clandestinos e irregulares, quer através de uma tolerância à auto-construção de moradias.
As características do ciclo inaugurado com a Constituição de 88 em Porto
Alegre, no entanto, apontam para uma ruptura paradigmática com as estratégias de modelos anteriores. Ao passo que as posturas governamentais dos
ciclos antecedentes promoviam segregação sócio-espacial, a regularização
fundiária tem potencial para amenizar significativamente o problema, embora não seja possível nos limites deste trabalho demonstrar claramente esta
evidência. De qualquer forma, o desenho a seguir anexado esclarece nossa
visão ao graficar os ciclos em sua sucessão cronológica, bem como os ciclos
reciprocamente considerados.
Direito e Democracia
179
180
Direito e Democracia
No que diz respeito à eficácia da legislação em cada um dos ciclos, podemos apresentar o seguinte quadro-resumo:
A eficácia das estratégias predominantes em cada Ciclo
Ciclos
Invisibilização
Expulsão
Provisão privada
Transição
Provisão pública
Regularização Fundiária
Eficácia
Alta
Alta
Baixa
Alta
Baixa
Média
De fato, no que diz respeito ao último ciclo, o da Regularização Fundiária,
aquele que representou a grande ruptura paradigmática em termos de política
habitacional no município, não se pode dizer que este programa tenha alcançado altos níveis de eficácia, inclusive a julgar pelo próprio mapa da irregularidade construído pela Secretaria do Planejamento Municipal em 1998 e que
aqui se anexa. Mesmo considerando que muitas destas áreas já são objeto de
intervenção para fins de Regularização, um Programa desenvolvido desde 1990
já poderia ter resultados mais significativos.
Por óbvio, não imaginamos que tenhamos chegado ao “Fim da História”
da política habitacional de Porto Alegre. Pelo contrário: mais do que nunca é
preciso avançar no sentido de incorporar a população de baixa renda à ordem
urbanística. Para além do direito à cidade, é preciso construir o direito à
produção regular da moradia também para este segmento populacional.
De qualquer forma, é inegável que a política habitacional em curso, uma
radical novidade no município, com as meritórias características que lhe são
inerentes, promete muito para o novo século. Esperemos, então, que cada vez
mais se alarguem os horizontes daqueles que tiveram o privilégio de viver ao
tempo em que, finalmente, o direito à moradia é reconhecido como parte
inalienável dos direitos humanos e o direito à cidade é uma aposta coletiva
de que se pode vencer a segregação sócio-espacial e construir uma Cidade
para todos no século que se inicia.
Direito e Democracia
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182
Direito e Democracia
Alimentos transgênicos e o direito
Transgenic foodstuffs and Law
MÁRCIA FERNANDES SAITOVITCH*
Especialista em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo –USP
Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio Grande do Sul
Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
RESUMO
Este artigo tem como finalidade contribuir de alguma forma para o debate que
certamente vai marcar este século, sobre a biotecnologia agrícola e consequentemente
sobre os alimentos transgênicos. Inicialmente define o que é biotecnologia e o que
são os alimentos transgênicos; na seqüência, trata do assunto tomando como ponto
de partida a legislação pátria referente ao Direito Ambiental e ao Direito de Propriedade Intelectual, objetivando abordar também, além das fronteiras jurídicas, as
diversas opiniões sobre o tema, expressas por empresas de biotecnologia, cientistas,
organizações não governamentais, consumidores, entre outros. Por fim, discute o
papel dos alimentos transgênicos na erradicação da fome no mundo.
Palavras-chave: Biotecnologia, alimentos transgênicos, direito ambiental, direito
de propriedade intelectual, fome.
ABSTRACT
This article aims at contributing with the debate on agricultural biotechnology, which
already is an important issue in our century. Initially, it conceptualizes biotechnology in general and more specifically biotechnology in food. Afterwards, it analyses
the legality of transgenic food taking into account the Brazilian law on Environmental Rights and the Intellectual Property Rights. The author goes further in the
*
A autora deseja agradecer ao Professor Dr. Plauto Faraco de Azevedo pela revisão criteriosa deste artigo, assim como pelo
seu apoio e estímulo para o desenvolvimento deste estudo.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.183-204183
debate on the matter among biotechnology companies, scientists, journalists and
non-governmental organisations (NGO), among others. Finally, it discusses
transgenic food and the context of starvation in the world.
Key words: Biotechnology, transgenic food, Brazilian Environmental Rights, Brazilian Intellectual Property Rights, starvation.
I- INTRODUÇÃO
“O progresso ingressa no direito e mexe com os nossos conceitos e tradições.” Galeno Lacerda 1
No final de século XX, a engenharia genética proporcionou avanços relevantes e significativos em inúmeras áreas da ciência, provocando um grande
debate ético em todo o mundo.
Estas transformações científicas têm colocado em cheque muitos dos conceitos sobre os limites da ciência e desencadeado novos questionamentos que
transcendem os argumentos científicos, abrangendo as questões éticas, culturais, econômicas, sociológicas, políticas e jurídicas.
Dentre estes avanços, podemos citar o mapeamento de toda a seqüência
da estrutura do DNA humano - projeto genoma - e o desenvolvimento da
biotecnologia agrícola com a transformação de plantas e vegetais.
Este novo século, “século da biotecnologia”2, começou marcado pelas grandes discussões em torno da biotecnologia agrícola - alimentos transgênicos além do desenvolvimento gerado na área da agricultura e na indústria de alimentos. Diz Jeremy Rifkin: As indústrias se movimentam rapidamente para fazer
dos animais e lavouras geneticamente construídos uma realidade comercial até o
final do século XXI. 3
O Brasil tem uma importância fundamental nas discussões sobre este tema,
pois é o país que lidera a lista dos países de megadiversidade biológica do planeta, à frente da Colômbia, México, Madagascar e Indonésia; cobre 48% da
1
LACERDA, Galeno - Pensamento manifestado em aula em Porto Alegre, no dia 04 de setembro de 1999.
2
RIFKIN, Jeremy, O século da Biotecnologia, 1ª ed., São Paulo: Makron Brooks, 1999.
3
RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg. 85.
184
Direito e Democracia
superfície total da América do Sul e contém cinco dos maiores biomas deste
continente (Amazônia, Floresta Atlântica, Caatinga, Cerrado e Pantanal)4.
É indiscutível que estes novos conceitos científicos, dentre eles, o de alimentos transgênicos, têm gerado grandes debates em todo o mundo, despertando o interesse não só dos cientistas, como das pessoas, das comunidades, das
empresas, das ONGs (organizações não governamentais), dos governos, etc.
As opiniões estão bastante divididas com relação aos efeitos benéficos e
maléficos, a médio e longo prazo, dos alimentos transgênicos, no meio ambiente, na saúde da humanidade, no desenvolvimento econômico e na
erradicação da fome.
Este artigo tem como objetivo desenvolver alguns dos pontos acima referidos,
sempre tendo como parâmetro o direito brasileiro. Ele está dividido em três tópicos principais e conclusão. No primeiro tópico, delimitamos o conceito e qualificamos os alimentos transgênicos e, especificamente, referimos algumas das técnicas de biotecnologia que têm sido aplicadas na área da agricultura; no segundo,
abordaremos algumas questões do Direito Ambiental brasileiro e da biotecnologia
vegetal; no terceiro, trataremos de alguns aspectos concernentes ao Direito de
Propriedade Intelectual na área da biotecnologia vegetal e dos alimentos
transgênicos, e no quarto e último, traçamos um paralelo entre a erradicação da
fome e os alimentos transgênicos. Finalmente, apresentamos algumas conclusões.
II -CONCEITO
Há mais de dez mil anos, desde a descoberta da agricultura para a subsistência humana, o homem utiliza técnicas convencionais de transferência genética
entre animais e entre vegetais intimamente relacionados, híbridos
intraespecíficos. Estas técnicas têm como finalidade o aumento de variabilidade das espécies, caracterizando-se basicamente pela transferência genética através da hibridização sexual e pela indução de mutações por radiações ou agentes
mutagênicos químicos5. Entretanto, os resultados alcançados com as referidas
técnicas são limitados pelo número de combinações genéticas possíveis.
4
Recomendações e Conclusões dos Grupos de Trabalho produzidos em virtude do Seminário - Clonagem e transgênicos Impactos e Perspectivas – realizado entre 08 a 10 de junho de 1999 no Senado Federal, Brasília.
5
ZANETTINI, Maria Helena Bodanese e PASQUALI, Giancarlo, Plantas Transgênicos – Uma nova ferramenta para o
melhoramento genético vegetal, patrocinado por FIERGS, CIERGS, FARSUL, SENAR E UFRGS, p. 09, Porto
Alegre, 1999.
Direito e Democracia
185
Hoje, os limites impostos pelas técnicas convencionais estão sendo transpostos pelas novas técnicas de biotecnologia. Especificamente os alimentos
transgênicos (AT) ou organismos geneticamente modificados (OGM) são
produzidos através das modernas técnicas de engenharia genética. Basicamente, estas técnicas permitem o transplante de genes6 específicos de uma espécie
(doadora) para outra espécie (receptora), sem que ditas espécies estejam relacionadas entre si, quebrando a seqüência de DNA (ácido desoxirribonucléico)
do organismo receptor e provocando uma reprogramação de sua seqüência de
DNA, o que capacita a espécie a produzir novas substâncias. A grande revolução da biotecnologia consiste em possibilitar que a transferência de genes
possa ser realizada com mais precisão, se comparada às técnicas convencionais, pois são transferidos genes específicos de interesse7. Isto possibilita que estes genes sejam funcionais em outro DNA, alterando características específicas e produzindo modificações desejadas nas espécies receptoras.
O que diferencia a biotecnologia das técnicas convencionais é a atuação
em nível molecular, fisiológico e bioquímico. Estes fatores possibilitam a retirada de fragmentos genéticos específicos, para que sejam transferidos a outra
espécie. Desta forma, a biotecnologia possibilitou que fossem isolados e
clonados genes de bactérias, plantas e animais, para introduzi-los e expressálos em plantas, alterando seu código genético. O transplante de genes pode se
dar entre espécies vegetais ou animais, assim como também genes de um animal podem ser introduzidos em uma planta e vice versa.
Outra questão relevante, debatida pelos críticos das plantações
transgênicas, é o uso ainda maior de herbicidas, tornando as ervas daninhas
cada vez mais resistentes aos seus efeitos e o aumento constante de agrotóxicos
e de produtos químicos, podendo provocar a contaminação do solo, da água,
dos animais e dos seres humanos. Espécies transgênicas daninhas podem ocorrer quando espécies híbridas, que se tornarem ervas daninhas, transmitam o
transgene para gerações subseqüentes, criando assim as ervas daninhas
transgênicas. Neste sentido, foi comprovado, em estudos realizados por pesquisadores da Universidade Charles Sturt, em New South Wales, Austrália,
que uma erva daninha comum na Austrália, chamada azevém, está tornando-
6
Unidade funcionais que o compõem o DNA. Assim as características totais de uma planta dependerão de quais genes foram
recebidos das plantas genitoras, da expressão (funcionamento) ou não destes genes e, também, de interação entre os genes e
destes com fatores ambientais., ZANETTINI, Maria Helena Bodanese e PASQUALI, Giancarlo, Op. Cit., p. 09.
7
Por exemplo: a transferência de genes que conferem resistência contra a uma determinada praga, para as sementes de
uma espécie vegetal.
186
Direito e Democracia
se cada vez mais resistente ao Roundup, herbicida venenoso produzido pela
empresa Monsanto, podendo tolerar até quatro ou cinco vezes a dose recomendada.8
Há também trabalhos desenvolvidos pela indústria agrícola de espécies
transgênicas, no sentido de possibilitar que todas as células da planta produzam, automaticamente, inseticidas. Pode-se mencionar, como exemplos, uma
espécie de milho (milho maximizante), produzido pela empresa Novartis, resistente a pragas, e uma espécie de tabaco, também resistente a pragas, da
empresa Rohm and Haas. Referidas espécies são produzidas com a introdução
de uma bactéria, encontrada naturalmente no solo, uma arma natural contra
insetos e pragas, o bacillus thuringiensis; esta bactéria produz uma proteína,
chamada Bt prototoxina.
Algumas espécies transgênicas foram programadas para ter em seu DNA
a proteína Bt, em função do que esta proteína torna-se imediatamente ativa
após sua produção pelas plantas, ao contrário do que ocorre em situações naturais, quando ela deve ser ativada pelos ácidos estomacais de insetos e pragas.
Os agricultores de plantações orgânicas utilizam-se de referida protéina,
Bt prototoxina, na pulverização de suas plantações e, por este motivo, há uma
preocupação muito grande destes agricultores com o fato de que estas lavouras transgênicas com o Bt prototoxina possam criar espécies resistentes a insetos e pragas, tornando o Bt “natural” absolutamente ineficaz. Além disso, a
correspondente transgênica da proteína Bt prototoxina, permanece tóxica no
solo por três vezes mais tempo que a proteína natural, além de ser mais letal.9
Neste sentido, a ONG Greenpeace sustenta que os organismos geneticamente modificados (OGM) são devastadores do meio ambiente e, como exemplo, menciona o milho transgênico. Com base em estudos publicados na revista Science e Nature, referidos pelo jornal Folha de São Paulo10 e11, o pólen do
milho transgênico pode matar as larvas da inofensiva borboleta monarca.
Da mesma forma, o milho transgênico com a toxina natural Bt, produzida
pela bactéria Bacillus thuringiensis, poderá disseminar nas espécies de lagartas
8
RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.87.
9
RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.88.
10
Folha de São Paulo, 05 de maio de 1999, pg. 18.
11
Folha de São Paulo, 5 de agosto de 1999, pg.19.
Direito e Democracia
187
e insetos esta resistência, o que, conseqüentemente, poderia criar populações
invulneráveis ao Bt.
Há pesquisas na indústria agrícola, utilizando-se das técnicas da
biotecnologia, para criar espécies vegetais que automaticamente possam evitar vírus comuns a elas, ou seja, criar lavouras resistentes a vírus. A pesquisa
consiste, basicamente, na inserção de genes com revestimentos virais em espécies vegetais, com a finalidade de proteger estas espécies de infeções causadas pelos vírus respectivos. O que, sem dúvida, é bastante tentador para os
agricultores e é uma fonte certa de lucros às empresas produtoras.
O risco derivado destas espécies transgênicas, resistentes a vírus, é o
surgimento de novas espécies de vírus, absolutamente desconhecidos com
características inéditas e surpreendentes, através da recombinação deles com
diferentes genes de outros vírus presentes na natureza. Para muitos, a perspectiva da criação de novas espécies de vírus é preocupante e abala enormemente a segurança do meio ambiente.
Acrescenta-se a esta preocupação da produção de espécies de vírus desconhecidos a possibilidade de migração sem controle de novas espécies
transgênicas daninhas - que são correspondentes transgênicos de ervas daninhas silvestres12 - o que poderia provocar uma nova e virulenta forma de poluição genética13.
Contrariamente, os representantes da indústria agrícola biotecnológica
afirmam ser esta uma possibilidade muito pequena, em função da inexistência
de produção de lavouras comerciais próximas a suas correlatas silvestres. Entretanto, estudos têm demonstrado que há a migração de genes, a qual não é
facilmente controlada ou mesmo detectada. Rifkin, referindo-se a estes estudos, escreve: cientistas cultivaram batatas geneticamente modificadas, que continham um gene resistente a antibióticos. Em áreas com distancias variadas foi então
plantada a batata comum. Das sementes coletadas em batatas, cultivadas a até 1.100
metros de distância da lavoura transgênica, 35% continham o gene resistente.14
As correntes, que defendem a segurança e a utilização dos alimentos
12
Pode ocorrer que espécies hibridizadas se tornem ervas daninhas e retrasmitam o gene para gerações futuras; o fluxo de
genes entre culturas e espécies de ervas daninhas correlatas é estudado por biólogos, desde o século passado. Por
exemplo: o arroz silvestre, hibridizado com o cultivado, fez surgir um arroz silvestre daninho, que freqüentemente se mistura
às culturas, causando incalculáveis problemas para a agricultura. RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.92
13
RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.93.
14
RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.94.
188
Direito e Democracia
transgênicos, tais como as empresas transacionais, governos e cientistas atuantes na área da biotecnologia agrícola, entendem que as espécies transgênicas
testadas, como por exemplo, o trigo, o milho e a soja, não sofrem alterações
químicas e não fazem mal à saúde das pessoas, levando-se em consideração os
graus toleráveis de toxicidade e alergenicidade. Da mesma forma, consideram
que a plantação de respectivas sementes não causaria danos ao meio ambiente, pois a produção destas sementes teria seus riscos ambientais monitorizados,
e quaisquer eventuais alterações consideradas significativas para a
biossegurança levaria à suspensão imediata dos plantios comercias de respectivas espécies.
Por outro lado, os opositores à utilização dos alimentos transgênicos entendem que não há estudos conclusivos de nenhuma espécie a respeito do
assunto e, muito menos, estudos de impacto ambiental capazes de garantir
que sua utilização não seja desastrosa a médio e longo prazo para o meio ambiente e para a saúde dos seres humanos. Ainda, sugerem que há uma grande
possibilidade das plantações transgênicas serem responsáveis por uma poluição genética que, sem dúvida, seria devastadora. Diz Jeremy Rifkin: Nós simplesmente não sabemos. Isso é o que torna a intervenção no mundo da agricultura
tão problemática. Trata-se de um empreendimento de alto risco, com poucas regras
para a nova era da biotecnologia agrícola, com muitas esperanças, poucos freios e
um vaga idéia dos resultados potenciais15.
Como exemplo, podemos referir alguns dos principais riscos apontados na
produção e do consumo de alimentos transgênicos: o empobrecimento da
biodiversidade; a eliminação de insetos e microorganismos benéficos ao equilíbrio ecológico; o aumento da contaminação dos solos e lençóis freáticos
decorrentes do uso intensificado e excessivo de agrotóxicos; o desenvolvimento de plantas e animais resistentes a uma ampla gama de antibióticos e
agrotóxicos e o aparecimento de novos tipos desconhecidos de vírus e de doenças, etc. Em outras palavras, o desequilíbrio ecológico decorrente do emprego de tecnologia de transgênicos na agricultura e suas conseqüências, não
mensuráveis de forma antecipada, constituem uma grande ameaça potencial
à humanidade.
São muitos os aspectos duvidosos que podem ser relacionados e discutidos
sobre os efeitos de transformações “frankenstônicas” de plantas, bactérias, vírus e animais relativamente ao meio ambiente e aos seres humanos, e são, sem
15
RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg 86.
Direito e Democracia
189
dúvida, poderosos os instrumentos oferecidos pela biotecnologia para tal; urge,
portanto, que sejam tomadas medidas para viabilizar o controle e a realização
de estudos sérios e precisos dos impactos ambientais16 e avaliações de conseqüências eventuais das plantações de espécies transgênicas. A utilização da
biotecnologia deve atentar a fatores primordiais, ou seja, a biossegurança, a
manutenção do equilíbrio da natureza e a saúde da humanidade; o que não se
pode aceitar é, simplesmente, a satisfação e as exigências impostas pelo mercado.
III- O DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO E OS
ALIMENTOS TRANSGÊNICOS
A este respeito, a legislação brasileira nesta área está moldada inicialmente no art. 225 da Constituição Federal, que diz: Todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público o dever de defendê-lo e preserválo para as presentes e futuras gerações.
A Constituição Federal, art. 23, incisos VI, VII e XI, estabeleceu que a
proteção do meio ambiente, o combate à poluição, a preservação das florestas, da flora e da fauna, a exploração de recursos hídricos são de competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Neste
sentido, o art. 24, incisos VI e VIII, parágrafo 2º, estabeleceu a a competência
concorrente entre os entes da Federação para estabelecer normas em matéria
ambiental. A União tem competência para editar normas e princípios gerais,
os Estados membros têm competência suplementar para editar normas sobre
a mesma matéria, desde que não contrariem as normas e princípios gerais
estabelecidos pela União. No entanto, caso seja inexistente a norma federal, os
Estados exercerão a competência legislativa plenamente de molde a atender às suas
peculiaridades17. Da mesma forma, os Municípios e o Distrito Federal têm competência para legislar sobre o meio ambiente e poderão fazê-lo sobre assuntos
de interesse local, art. 30 da CF, e suplementar a legislação federal e estadual,
no que couber, sem contrariá-las.
16
HONER, Michael Robin diz: “Os testes (não existentes) de segurança e toxidade, sugeridos pela desinformação embutida nas
explicações oficiais, não existem simplesmente porque nenhum pesquisador sabe como fazê-los.” Artigo publicado no Jornal
Medicina, do Conselho Federal de Medicina, dezembro de 1999,pg. 0 e 09.
17
ANTUNES, Paulo de Bessa, Direito Ambiental, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 3ª Edição, 1999, p. 193.
190
Direito e Democracia
A Lei 8.974, de 5 de janeiro de 1995 e o Decreto n. 1.752/95, estabelecem
normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso de técnicas de engenharia genética, e na comercialização, cultivo, transporte, manipulação,
liberação e descarte no meio ambiente de organismos geneticamente modificados. O uso destas técnicas depende de autorização do Poder Público Federal, através de seus Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente, da Agricultura
e da Reforma Agrária e de licenciamento pelo órgão ambiental competente,
que poderão ser federais, estaduais ou até municipais.
Especificamente sobre a matéria, a Lei 8.974/95 autorizou o Poder Executivo a criar, no âmbito da presidência da República, um órgão ligado ao Ministério de Ciência e Tecnologia, a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança (CTNBio). Esta comissão é responsável pelo controle da
tecnologia molecular, além de possuir, dentre suas atribuições, a de emitir pareceres técnicos sobre qualquer liberação de OGM no meio ambiente.
A CTNBio aprovou, desde 1997, seiscentos e quarenta e duas (642) experiências com produtos transgênicos, e o número de novas solicitações continua crescendo. Havia uma estimativa, para o final de 199918, de que o número de solicitações chegue a setecentos (700). Neste período muitas críticas
foram manifestadas contra o posicionamento da CTNBio, acusando esta Comissão de não promover o debate público necessário e, muito menos, de promover ou de exigir estudos de impacto ambiental dos respectivos produtos,
inclusive, tendo sido, por isto, alvo de ações judiciais. Recentemente, foi
julgada procedente uma Ação Cautelar Inominada19, promovida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC - e a ONG Greenpeace, contra a União Federal, visando impedir, imediatamente, a autorização para qualquer plantio de soja transgênica (Round up Ready), da empresa Monsanto,
antes de se proceder à devida regulamentação da matéria e ao prévio Estudo
de Impacto Ambiental.
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é um dos instrumentos mais importantes para a efetiva proteção do meio ambiente. Garantido pela Constituição Federal, art. 225, parágrafo 1º, inciso IV, deverá ser realizado sempre
que houver a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente.
18
Jornal Medicina do Conselho Federal de Medicina, Editorial, dezembro de 1999, pg. 25.
19
Ação Cautelar Inominada, processo n. 1998.34.00.027681-8, Sentença proferida pelo Juiz Titular da 6ª Vara Cível da
Justiça Federal, Seção Judiciária do Distrito Federal, Dr. Antônio Souza Prudente. Sentença na íntegra na revista
Consulex, Vol. II, n. 33, setembro/99, ps. 4 a 8, referência nº34 .
Direito e Democracia
191
O EIA é um instituto constitucional, cuja a importância cresce dia a dia , tendo
ele tem como finalidade realizar estudos prévios para averiguar e oferecer,
através do Relatórios de Impacto sobre o Meio Ambiente (RIMA), os esclarecimentos sobre as certezas e/ou as incertezas científicas e tecnológicas, sejam elas positivas ou negativas, que determinados projetos poderão ocasionar
no meio ambiente. O EIA, expresso pelo RIMA, deve integrar o processo de
licenciamento ambiental, conforme exigência legal. Portanto, se o EIA não
for realizado, pode-se impedir que a licença seja concedida, anulada, se existente. 20
Conforme os ensinamentos do professor Paulo de Bessa Antunes o “estudo
do impacto ambiental é procedimento formal e material. É formal, pois não se pode
licitamente deixar de realizar nenhum dos procedimentos determinados nas normas
concernentes à sua realização. É material, pois a implementação das regras formais
dever ser feita com a utilização de todos os recursos técnicos disponíveis e na análise
dos resultados, devem ser aplicados os princípios norteadores do Direito Ambiental,
em especial o princípio da cautela.” 21
No caso específico dos alimentos transgênicos, uma vez que a liberação de
Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) no meio ambiente pode representar uma intervenção em grande escala nos processos naturais, é exigida a apresentação de EIA/RIMA em audiência pública, quando do processo de liberação da
produção/cultivo de OGMs.22
No Direito Ambiental a audiência pública está regulada pela resolução n.
9 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) de 3 de dezembro
de 1987, publicada em 18 de março de 1988. Ela tem a finalidade de assegurar
o cumprimento dos princípios democráticos, que informam o Direito
Ambiental, e dar publicidade à sociedade do conteúdo dos EIA e do RIMA,
oportunizando aos cidadãos, de forma democrática, ofertar à administração
sua opinião quanto à possibilidade de implantação ou não de determinado
projeto. 23,
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) advoga uma
20
ANTUNES, Paulo de Bessa, Direito Ambiental, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 3ª Edição, 1999, p. 205.
21
ANTUNES, Paulo de Bessa, Op. Cit., p. 199.
22
Texto referente às Recomendações e Conclusões dos Grupos de Trabalho produzidos em virtude do Seminário Clonagem e transgênicos - Impactos e Perspectivas, Grupo 1 – Biotecnologia e Meio Ambiente, realizado entre 08 a 10
de junho de 1999, no Senado Federal, Brasília.
23
O CONAMA foi constituído através do Decreto n.99.274, de 06 de junho de 1990.
192
Direito e Democracia
moratória de cinco anos para a utilização de produtos transgênicos, pelo fato
de haver insuficiência de dados relativos ao impacto ambiental e à segurança alimentar. A idéia é a de que este prazo seja utilizado para o desenvolvimento de
estudos e controle de riscos das plantas geneticamente modificadas, monitoramento ambiental e rotulagem destes alimentos para comercialização, além
de entender necessária uma modificação na estrutura da CTNBio. 24.
Por sua vez, o Estado do Rio Grande do Sul proibiu a existência de plantações transgênicas e o abastecimento de produtos alimentícios derivados de
plantações transgênicas, principalmente, de soja e de arroz, mandando, inclusive, incendiar arroz geneticamente modificado, produzido pela Embrapa. Tais
medidas são justificadas pelo Governo do Rio Grande do Sul com base na
falta de segurança e conhecimento de referidos produtos, portanto, em respeito ao princípio da precaução ou princípio da cautela (conceito formulado na
ECO/92). A proibição tem a finalidade de proteger os direitos e a saúde dos
cidadãos gaúchos e das futuras gerações, assim como salvaguardar o meioambiente. O Governo do Rio Grande do Sul também entende que a permissão do plantio de transgênicos ocasionaria, a médio e a longo prazo, a
escravização dos agricultores às sementes, como por exemplo, a de soja, sementes estas vendidas com exclusividade pelas empresas produtoras. 25
Inclusive, em recente decisão judicial, processo n. 70000027425, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu em favor do Estado do
RGS e interditou o cultivo de soja transgênica ROUNDUP READY, porque
a empresa não tinha a licença competente. O Tribunal entende que o parecer
técnico conclusivo da CTNBio, não é licença, ele apenas destina-se a instruir o
pedido de autorização dirigido aos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e da
Agricultura, não suprindo a exigência do licenciamento ambiental a cargo da autoridade competente, que, neste caso, é o Estado do Rio Grande do Sul. 26,
O Estado do Rio Grande do Sul (RS), através da Lei n. 9.453 de 10 de
dezembro de 1991, exige que as empresas que desenvolvam pesquisas, testes,
24
Pocisionamento manifestado na reunião da SBPC, em Porto Alegre, de 11 a 16 de julho de 1999 por Glací Zancan,
presidente da SBPC. Jornal Medicina do Conselho Federal de Medicina, dezembro de 1999, pg. 24.
25
O princípio da precaução visa à durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações humanas e a continuidade da natureza
existente no planeta. A precaução deve ser visualizada não só em relação às gerações presentes, como em relação ao direito
ao meio ambiente das gerações futuras, como afirma Michel Preiur, professor da Universidade de Limoges. Sentença do Dr.
Antônio Souza Prudente, Revista Consulex, Vol. II, n. 33, setembro de 1999, pg. 7 .
26
Mandado de Segurança n. 70000027425, de 06 de outubro de 1999, exarado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, Segunda Câmara Cível, promovido pela Monsoy Ltda. contra o Estado do Rio Grande do Sul. A
decisão foi, por unanimidade, a negativa do recurso do impetrante e o provimento do recurso do Estado.
Direito e Democracia
193
experiências ou atividades na área de Biotecnologia e da Engenharia Genética notifiquem sobre suas atividades ao agente controlador e fiscalizador do
meio ambiente, que é o Poder Executivo estadual.
A justificativa para o posicionamento do RS, também, inclui questões estratégicas de mercado. No caso da soja transgênica: os governantes do Rio
Grande do Sul entendem que este Estado, assim como o Brasil, podem vir a
dominar a exportação de soja não transgênica aos mercados de países que não
sejam favoráveis à utilização de produtos geneticamente modificados, como é
o caso de países do continente europeu, atualmente nossos maiores compradores de soja.27
Outra questão muito relevante é a da defesa do direito dos consumidores.
Organizações em prol destes direitos têm assumido um papel questionador
muito importante, proporcionando a democratização do debate sobre os produtos transgênicos e fazendo com que este debate extrapole os limites da
comunidade científica, atingindo a todos nós, também consumidores e, visando a este fim, a audiência pública tem papel fundamental.
Essas organizações defendem o direito dos consumidores ao amplo acesso
à informação e ao controle dos produtos consumidos. Uma das medidas defendidas é a de rotular claramente os alimentos transgênicos ou seus derivados, oferecendo aos consumidores uma oportunidade real de optarem pelo
seu consumo ou não. A União Européia deliberou que, dentro de dois meses,
passará a rotular toda a soja e seus derivados, sendo, talvez, esta a tendência
futura para todos os outros produtos alimentares.
O Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicação de Agrobiotecnologia
informa que a área global de plantações geneticamente modificadas cresceu
44% em 1999, aumentando as plantações de 27,8 milhões de hectares para
39,9 milhões de hectares. Os principais países produtores são: os Estados Unidos, 72%; a Argentina, 17%; Canada, 10% e China, 1%.28
Entretanto, várias ONGs vêm fazendo pressão sobre alguns países da União
Européia, para que os alimentos transgênicos sejam absolutamente banidos
ou controlados. A ONG Inglesa Consumer´s Association, que tem muita influência sobre os consumidores e um orçamento de mais de 60 milhões de
27
Os grandes produtores de soja, no mundo, são: o Brasil, EUA e Argentina, detendo mais de 90% da produção Mundial;
o Brasil é o único a não implementar a produção de soja transgênica e os nossos maiores compradores são o continente
europeu e União Européia, que não vêm se manifestando muito favorável aos produtos transgênicos.
28
Jornal do Comércio, 3 de fevereiro de 2000, pg. 14, setor de agronegócios.
194
Direito e Democracia
dólares, condena a utilização dos alimentos transgênicos e já afirmou que o
mercado para os alimentos transgênicos na União Européia está “morto”. 29
O papel estratégico da biotecnologia para o desenvolvimento da ciência é
significativo e sem dúvida marcará este século, especialmente na área da agricultura, portanto é importante que um ajuste institucional e uma estrutura
legal adequada sejam estabelecidos para regulamentar a questão, tanto na ordem interna como na internacional, levando em consideração, acima de tudo,
o equilíbrio e a preservação ambiental e as questões sociais e culturais a ela
inerentes.
IV – DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E A
BIOTECNOLOGIA VEGETAL
A megadiversidade dos recursos naturais do Brasil é reconhecida em todo
o mundo e torna-o um país com um grande potencial econômico e também
bastante atraente às pesquisas ligadas a biotecnologia vegetal, entre outras;
por esta razão, nosso país tem que promover as medidas necessárias, sejam elas
legislativas, administrativas, de investimentos em pesquisa e educação, para
proteção de nossos recursos naturais, que é nosso grande patrimônio e que
temos o dever de preservar para as futuras gerações.
É notório que a biotecnologia é um poderoso instrumento da ciência. Da
mesma forma, fica evidente o interesse econômico no desenvolvimento de
muitos projetos nesta área. A indústria da biotecnologia em geral movimenta
milhões de dólares, com ganhos brutos de mais de 4 milhões de dólares, somente na venda de herbicidas nos Estados Unidos30. No Brasil, o mercado
também é muito significativo, ocupando lugar de destaque na área da
biotecnologia vegetal, pois somente no setor de sementes, o Brasil movimenta aproximadamente US$ 1,2 milhões/ ano e gera cerca de 300 mil empregos
diretos e indiretos.31
Assim, neste mercado, a conquista de novas patentes é um objetivo cons-
29
Jornal Zero Hora, 16 de fevereiro de 2000, pg. 26, Campo e Lavoura.
30
RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.86.
31
NERO, Patrícia Aurélia Del, Propriedade Intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia, Editora Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1998, p. 211.
Direito e Democracia
195
tante e muito tem impulsionado as empresas de biotecnologia. Tanto é assim,
que a maior parte dos esforços das empresas, que atuam nesta área, destina-se
a lançar plantas transgênicas tolerantes a herbicidas e resistentes a pragas e
vírus. Logicamente, a idéia destas empresas é vender sementes patenteadas,
que sejam resistentes a cada uma das marcas de herbicidas produzidas também por estas empresas.
Mesmo nos Estados Unidos, país reconhecidamente defensor e promotor
das patentes, inclusive na área da biotecnologia agrícola, grupos de fazendeiros preocupados com o domínio do mercado pelas grandes empresas de
biotecnologia, promoveram um processo32 contra a empresa Monsanto, acusando-a de lançar no mercado sementes geneticamente modificadas, potencialmente causadoras de problemas à saúde, antes de testá-las adequadamente e também de estar criando cartel, a fim de monopolizar o mercado de sementes geneticamente modificadas de soja e milho, restringindo o comércio
nesses mercados, além de manipular os preços.33
Especificamente, no que concerne às patentes34, o tema é bastante delicado e é, sem dúvida, um dos pontos críticos no debate em torno dos alimentos
transgênicos. Os opositores à utilização dos alimentos transgênicos alertam
para o domínio e a monopolização das grandes empresas na área da agricultura, visto que poucas empresas seriam detentoras das patentes, por exemplo, de
sementes transgênicas e dos processos relacionados às plantas e grãos.
Em geral, as patentes são obtidas a partir de invenções que devem ser inovadoras em sua concepção e que não devem ser compreendidas pelo estado da
técnica35 em sua utilização, devendo ser suscetíveis de aplicação industrial.36
O TRIPS (Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights) 37, tratado
32
Folha de São Paulo, 17 de dezembro de 1999.
33
Folha de São Paulo, 15 de dezembro de 1999.
34
As patentes são documentos oficiais outorgados pelo governo ao inventor, garantindo-lhe o uso e o gozo exclusivo da
exploração econômica (produzir, utilizar, vender, importar e exportar)de seu invento, por tempo determinado por lei
(geralmente 20 anos), podendo o inventor permitir sua exploração por outrem, mediante o recebimento de royalties.
35
NERO, Patrícia Aurélia Del, Propriedade Intelectual. A Tutela Jurídica da biotecnologia, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo,
1998, p. 59. “O estado da técnica é constituído por tudo que foi tornado acessível ao público, seja por uma descrição escrita ou oral,
seja por uso ou qualquer outro meio, inclusive conteúdo de patente no país ou no exterior, antes do deposito do pedido de patente.”
36
Ver Lei de Propriedade Industrial, 9.279/96, art. 10.
37
O TRIPS, tratado referente à propriedade industrial, formulado na Rodada do Uruguai do GATT, 1986 a 1993, tem
como objetivo abordar a nível internacional aspectos concernentes à propriedade industrial, permitindo, assim, a
uniformização nas legislações dos países signatários quanto à disciplina jurídica da propriedade industrial. O Brasil é
signatário do TRIPS, assim como é membro da OMC. Portanto em princípio, as disposições contidas neste tratado
tornam-se parte da legislação brasileira, a partir de 1º de janeiro de 2000.
196
Direito e Democracia
do qual o Brasil é signatário, assim como o são os Estados Unidos, o Japão e a
União Européia, não faz quaisquer restrições ao patenteamento de microorganismos
e de processos biotecnológicos, desde que atendidos os requisitos de patenteabilidade
(novidade, passo inventivo e aplicação industrial). 38
Recentemente, comprovado o grande interesse econômico nesta área da
biotecnologia, a Organização Mundial do Comércio- OMC39 discutiu, em
seu encontro em Montreal, Canadá, a questão relacionada ao TRIPS. Os debates foram centrados no comércio e no patenteamento dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), incluindo-se neste debate os alimentos
transgênicos.
O Brasil, em princípio, pode reconhecer o patenteamento de
microorganismos, pois aprovou através do Decreto Legislativo n.30, de 15 de
dezembro de 1994 a Ata Final do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT)
da Rodada do Uruguai; assim a partir de 1º de janeiro de 2000, as normas do
TRIPS40 deveriam estar implementadas. Entretanto, há um prazo para que os
ajustamentos internos necessários sejam realizados, para que referido tratado
seja absolutamente incorporado à nossa legislação, o que permitirá ao país
amadurecer os termos e condições, diante das inúmeras controvérsias geradas, através de uma discussão ampla, que deverá envolver vários setores da
sociedade.
38
NERO, Patrícia Aurélia Del, Op. Cit., p. 135.
39
OMC – Organização Mundial do Comércio foi originada na Rodada do Uruguai do GATT( Acordo Geral sobre Tarifas
e Comércio), com a finalidade de sucedê-lo, em 1º de janeiro de 1995. Entretanto, a OMC é composta por um
número maior de membros e, em comparação com as matérias tratadas no GATT, a OMC tem normas de maior
alcance, por conta de seu aprofundamento ratione materiae. É uma organização internacional com a finalidade de
fornecer um marco institucional comum para a conduta de relações comerciais entre seus membros, no que concerne
às matérias dos acordos e instrumentos jurídicos firmados. Um dos acordos, sob a gerência da OMC, é o TRIPS
(Trade Related Aspects os Intelectual Property Rights), muito importante para o nosso estudo, que trata de aspectos
relacionados à propriedade Intelectual. Ver LAFER, Celso. A OMC e a Regulamentação do comércio internacional:
uma visão brasileira, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
40
Entre os princípios respaldados e fixados pelo GATT/TRIPS as legislações de propriedade industrial dos países signatários
devem reconhecer o trade secret e o pipeline. Em outras palavras, o trade secret significa pois que a descrição dos
processos e produtos patenteados é apresentada de forma sucinta e muitas vezes de forma cifrada impedindo a
reprodução e a reaplicação dos inventos, transformando assim toda a forma inventiva em uma verdadeira caixa –preta,
descaracterizando os mecanismos de funcionamento da patente. O outro princípio referido é do pipeline que significa
que qualquer produto ou processo da biotecnologia que já conta com a proteção monopolística conferida pela patente no
exterior fica impedido de ser explorado ou utilizado no Brasil, salvo o caso expresso de anuência do titular que pode
efetivamente, mediante concessão de licença voluntária, porém sempre onerosa, autorizar a sua utilização. Ver NERO,
Patrícia Aurélia Del, Propriedade Intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia, Editora Revista dos Tribunais, São
Paulo, 1998, ps. 145, 270 e 271.
Direito e Democracia
197
Tendo em vista esta realidade, será necessário ao Brasil objetivar e harmonizar a sua legislação quanto a propriedade intelectual da biotecnologia, visando, efetivamente, preservar os interesses nacionais relativos a sua
biodiversidade. Hoje regulamentam a matéria, genericamente, a Lei 8.974 de
5 de janeiro de 1995, que disciplina o uso de técnicas de engenharia genética
e liberação no meio ambiente de OGMs; a Lei 9.456 de 25 de abril de 1997,
lei de proteção cultivares, que regula os direitos de melhorista e a Lei 9.279 de
14 de maio de 1996, que regulamenta os direitos de propriedade industrial.
No caso da biotecnologia vegetal, há discussões e divergências quanto a
aplicabilidade da Lei 9.279/96 ou da Lei 9.456/97 (Direito de Cultivares), pois se
verifica que, em tese, existe uma área comum na regulamentação das duas normas
quanto à propriedade intelectual dos OGMs.
A Lei da Propriedade Industrial, determina, em seu art. 18, que microorganismos transgênicos são patenteáveis desde que atendam aos requisitos da
novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. O parágrafo único deste
artigo diz que microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem mediante intervenção humana direta em
sua composição genética, uma característica não alcançável pela espécie em condições naturais.
Ainda, a Lei 9.279/96, em seu art. 10, inciso IX, não considera invenção o
todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive genoma ou germoplasma de qualquer ser
vivo natural e os processos biológicos naturais.
Por outro lado, o art. 2º da Lei 9.456/97, Lei de Cultivares, diz que: A
proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referente a cultivar se efetua
mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, considerado bem móvel para todos os efeitos legais e única forma de proteção de cultivares e de direito
que obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou multiplicação vegetativa, no País. 41
Assim, a Lei 9.456/97, que visa a proteção de cultivar, por intermédio do
direito de melhorista, não contraria as disposições do GATT/TRIPS, pois este
dispõe que os países membros podem excluir o patenteabilidade de plantas e
animais, sendo-lhes facultado dispor de sistema específico para a proteção de
variedades de plantas.
41
NERO, Patrícia Aurélia Del, Op. Cit., p. 216.
198
Direito e Democracia
No entanto, existe um paradoxo nas leis, tanto de Propriedade Intelectual
como de Cultivares (direito de melhorista), pois no momento em que é possível a patenteabilidade de microorganismos, é possível a patenteabilidade
dos seres vivos. Em outras palavras, desde que as estruturas dos microorganismos sejam manipuladas, potencialmente elas poderão ser patenteadas, pois
serão consideradas invenções, devido, apenas, a um conceito normativo.
Patrícia Aurélia Del Nero entende que seria mais vantajosa a regulamentação da biotecnologia vegetal no contexto exclusivo da proteção de cultivares (direito de melhorista). Primeiro, porque o agricultor pode usar a “cultivar
protegida” sem o pagamento de nenhuma remuneração ou royalties; segundo,
há a possibilidade de comercialização do produto obtido pelo plantio do material protegido, e, terceiro, este sistema facilitará o desenvolvimento da pesquisa do Brasil, na área da biotecnologia vegetal, pois a fonte de variação e
fonte de informação científica poderão ser livremente utilizadas. Conclui a
autora que: “A forma de proteção concedida às cultivares, por intermédio de registro da propriedade intelectual ao titular, é flexível e contrapõe-se à forma rígida e
monopolística própria do sistema de patentes. 42
V – A FOME MUNDIAL E OS ALIMENTOS
TRANSGÊNICOS
Além destas questões quanto aos alimentos transgênicos, relacionadas
diretamente ao direito de propriedade intelectual e ao meio ambiente, existe a questão da fome no mundo, que, além de ser uma questão de saúde
pública, também é de caráter ambiental, com conseqüências as mais significativas. Os defensores da utilização e desenvolvimento de plantações e lavouras transgênicas entendem que a biotecnologia agrícola seria uma nova
solução para erradicar a fome no planeta, pois as espécies poderiam receber
tratamentos adequados, tornando-se resistentes a adversidades naturais,
além de terem suas qualidades incrementadas. Por exemplo, cientistas inseriram genes de uma proteína “anticongelamento”, obtida do peixe linguado,
no código genético de tomates, para proteger essa fruta contra danos causados pela geada.43
42
NERO, Patrícia Aurélia Del, Op. Cit., ps. 214 e 215.
43
RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.85.
Direito e Democracia
199
Recentemente, o Banco Mundial (BIRD), durante a conferência realizada no encontro anual da AAAS (Associação Americana para o Progresso da
Ciência) em Washington, os Estados Unidos, defenderam a utilização dos alimentos transgênicos no combate à subnutrição mundial. Entretanto, este país
afirmou que as sementes devem ser distribuídas gratuitamente entre as comunidades mais pobres, pois, do contrário, os pesquisadores da área da
biotecnologia agrícola estarão fadados a criar um “apartheid científico”, em que
a tecnologia gerada em países desenvolvidos não será repassada às nações em desenvolvimento. 44
O presidente do Grupo Consultivo para Pesquisa Agrícola Internacional
(CGIAR) e vice-presidente dos Programas Especiais do Banco Mundial, Ismail
Serageldin, de nacionalidade indiana, afirmou que, no ano de 2020, o mundo
necessitará produzir 40% a mais de grãos para suprir a população mundial,
sendo que 15% das necessidades referem-se a países desenvolvidos e, por isso,
seria preciso desenvolver uma pesquisa de sementes adaptada aos mais pobres e ao
meio ambiente.45
Neste sentido, pode-se mencionar, a título de exemplo, o arroz com ferro,
que é uma espécie transgênica, a qual poderia combater a anemia em países
em desenvolvimento. Há estudos que afirmam ser suficiente uma porção de
arroz transgênico para prover de 30% a 40% das quantidades do mineral necessário para um adulto. Este arroz foi produzido da seguinte forma: cientistas
do Instituto Central de Pesquisa da Indústria de Elétrica, em Chiba, Japão46,
retiraram um gene presente na soja, chamado ferritina, que facilita a absorção
de ferro pela planta, inserindo-o na espécie de arroz Oryza sativa. O arroz
geneticamente modificado pode reter três vezes mais ferro do que o seu parente comum. 47
O ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1999, o indiano Amartya
Sen, afirmou, através de seus estudos econômicos, que a fome existe e cresce
no planeta, não porque não sejam produzidos alimentos suficientes, mas porque a distribuição dos alimentos é realizada de forma desigual e injusta. Deduz-se logicamente desta idéia estarem os ricos engordando e os muito pobres
tornando-se cada vez mais famintos. Uma das idéias desenvolvidas por
44
Folha de São Paulo, pg. 10, 21 de fevereiro de 2000.
45
Folha de São Paulo, de fevereiro de 2000, pg. 10, 21.
46
Folha de São Paulo, 06 de junho de 1999, pg. 5/12.
47
Folha de São Paulo, 06 de junho de 1999, pg. 5/12.
200
Direito e Democracia
Amartya Sen é de que a mudança vantajosa para cada indivíduo deve ser uma
mudança igualmente proveitosa para toda a sociedade, porém identificar vantagem
com utilidade nada tem de óbvio. 48
Nikos Alexandratos, pesquisador da FAO, concorda plenamente com esta
idéia. Para ele, a insegurança alimentar e a subnutrição não se caracterizam
como problemas de produção, mas de distribuição, quando se refere ao mundo como um todo. Acredita ele que a solução do problema da insegurança
alimentar está na produção local de comida, pois, em muitas partes do mundo, há falta de boas sementes, de educação, de água e de fertilizantes, tudo isso
somado à pobreza e à instabilidade política e às guerras. Estudos realizados por
Alexandratos indicam que, em 2010, ainda existirão 680 milhões de famintos no mundo.49
Assim, esta conclusão obriga-nos a questionar quais as mudanças que deveriam ser realizadas para acabar com a fome no planeta. Obviamente, poderíamos, de forma superficial, apresentar algumas hipóteses, tais como: democratização da distribuição de alimentos, de sementes e de recursos humanos
específicos conforme as necessidades específicas de cada área do planeta; promover projetos de irrigação em áreas áridas do planeta; etc.
No entanto, o término da fome no planeta, infelizmente envolve uma gama
de aspectos complexos, cujas soluções não são nem simples nem tampouco
fáceis, pois a sua efetivação está intimamente ligada ao poder econômico e à
vontade política da comunidade internacional. Assim, algumas questões são
inevitáveis quando se reflete sobre a afirmativa de que as plantações
transgênicas colaborariam para o término da fome mundial: como as empresas da área da biotecnologia agrícola conseguirão ressarcir-se dos investimentos nesta área? A resposta mais provável conteria a afirmação de que estas
empresas tornariam-se detentoras de patentes e, sendo assim, a agricultura
transgênica restringiria ainda mais o acesso dos povos mais pobres ao consumo de alimentos. Então, será que o sistema de agricultura mundial não seria
controlado por um número ainda menor de países e empresas, ao invés de
expandir-se de forma mais igualitária e acessível às diversas regiões do planeta? Parcialmente, esta pergunta está respondida pelas preocupações do Banco Mundial quanto à criação de um apartheid científico, e as outras questões
nós mesmos é que temos que tentar responder ou exigir respostas.
48
SEM, Amartya, Sobre Ética e Economia, São Paulo: Companhia Das Letras, 1999.
49
Folha de São Paulo, Caderno especial ANO 2000, 2 de julho de 1999.
Direito e Democracia
201
VI- CONCLUSÃO
Finalmente, apesar da divergência de opiniões sobre a questão dos alimentos
transgênicos, pode-se afirmar que sobre um aspecto há consenso: a
biotecnologia é uma realidade e marcará este século. Entretanto, o debate
sobre os alimentos transgênicos está longe de terminar. Talvez, o ideal seria
que as técnicas modernas de manipulação genética de plantas e animais servissem essencialmente para o desenvolvimento e para a melhoria de condições de vida e de saúde da humanidade, sem ignorar questões fundamentais
como a proteção ao meio ambiente e a proibição do controle econômico,
pelas empresas transacionais, no patenteamento da vida.
“O que leva o homem a desafiar a natureza e os elementos,
somente para saciar seu apetite pelo dinheiro, fruto do capitalismo selvagem, não importa o que aconteça, nem que danos
cause a outro ser a própria natureza e às gerações futuras?”
(Juiz Federal, Dr. Antônio de Souza Prudente).
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204
Direito e Democracia
A Poluição Dos Mananciais Por
Dejetos Suínos1
The Pollution Of Water Sources Due To Swine Dejects
MIGUEL L GNIGLER
Promotor de Justiça em SC
RESUMO
Pretende-se com o presente trabalho demonstrar que a suinocultura desenvolvida,
isolada ou integradamente com a piscicultura, é uma atividade potencialmente
poluidora de mananciais, além de gerar maus odores que afetam o bem-estar e a
saúde da população, sujeitando-se, pois, ao licenciamento ambiental previsto no
art. 60 da Lei n. 9.605/95.
Palavras-chave: Suinocultura, poluição de mananciais, Lei nº 9.605/95,
licenciamento ambiental.
ABSTRACT
The present paper aims at demonstrating that swineculture developed either isolatedly
or in parallel with fish culture is a potentially polluting activity for water sources,
and also generates bad odors which affect the well-being and the health of the population, therefore being subject to the environmental licencing required in article 60
of Brazilian law 9.605/95.
Key words: Swineculture, pollution of water sources, law 9.605/95, environmental licencing.
1
Texto apresentado no XV Congresso Nacional do Ministério Público, de 27-29 de outubro de 1999, em Curitiba, tendo
sido a proposição aprovada.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.205-212205
Enquanto a atenção dos ambientalistas se volta para as regiões Norte e
Centro Oeste, onde os satélites têm identificado a destruição de grandes áreas
de florestas e de cerrados, provocadas pela ação criminosa de madeireiros e
agropecuaristas, e bem assim a poluição de rios com metais pesados utilizados
nos garimpos clandestinos, a suinocultura intensiva presente no Sul do Brasil
não tem sido alvo de preocupação daqueles que lutam por um meio ambiente
equilibrado, em que pese tratar-se de atividade altamente poluidora de mananciais e fontes de água.
Dados estatísticos publicados por órgãos ligados à Secretaria Estadual da
Agricultura de Santa Catarina indicam que o rebanho de 4 (quatro) milhões
de suínos produz anualmente o equivalente a 10 milhões de metros cúbicos
de dejetos, volume suficiente para encher uma vala imaginária, com 20 metros
de largura e 1 (um) de profundidade, ligando os dois extremos do território (
Oeste – Leste).
Assim, embora seja a suinocultura uma atividade potencialmente
poluidora, sujeita ao prévio licenciamento ambiental ( art. 60 da Lei 9.605/
95), o que se verifica na prática é que ainda prevalecem as propriedades rurais
com instalações inadequadas para o manejo e destinação final dos dejetos
suínos. Primeiro, porque as chamadas bio-esterqueiras ou câmaras de fermentação, necessárias para depuração dos dejetos em adubo orgânico, via de regra
não passam de buracos abertos no solo, revestidos de lona plástica resistente,
onde os efluentes permanecem em depósito a céu aberto, exalando maus odores; segundo, porque a conformação topográfica do terreno dificulta a incorporação dos dejetos ao solo, sendo constantemente carreado das encostas
para os mananciais.
Além desses fatores, há ainda as agravantes como a prevalência do
minifúndio, cuja localização das benfeitorias deu-se originariamente com a
fixação das pocilgas próximas às fontes de água, dada a inexistência de energia elétrica ao tempo da ocupação dos imóveis. Convém mencionar, ainda ,
que o agricultor ainda custa compreender que é ônus seu produzir sem provocar a degradação do meio ambiente, vale dizer, ao suinocultor compete
dar destinação adequada dos efluentes produzidos nos limites de sua propriedade.
O tema sob enfoque, como se vê, é de indiscutível importância num momento em que a atenção da humanidade se volta ao que é de interesse de
todos : a preservação do meio ambiente. Especialmente no caso da suincultura,
onde o impacto ambiental incide diretamente sobre a água, seguramente o
206
Direito e Democracia
bem natural mais indispensável para a sobrevivência do homem, afigura-se
urgente combater as atividades que causam a sua conspurcação.
A água é a substância que predomina na biosfera, mas segundo dados publicados na revista Saúde, edição de janeiro/97, p. 26, quatro quintos do globo terrestre são cobertos de água, mas de todo o manancial existente na face
da terra , 97,6% é de água salgada e apenas 2,4% de água doce. Desta pequena
porção, 79% está sob a forma de geleiras, nas calotas polares; 20,96% correm
silenciosos nos subterrâneos do planeta e apenas 0,04% da água doce do Globo constituem rios e lagos.
Esses números evidenciam que o bem “água” será um dos recursos naturais mais escassos neste no milênio que se avizinha. A escassez, naturalmente, não reside no volume de água doce encontrada na biota terrestre, mas
devido a sua poluição generalizada, reduzindo a porção disponível para o consumo humano. Daí o consenso mundial acerca da necessidade de garantir às
presentes e futuras gerações o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado ( art. 225, CF), com qualidade razoável que lhes permita viver com
dignidade e bem-estar.
No Brasil, sucessivas normas esparsas têm surgido com inegável finalidade de proteger os mananciais de água, cuja preocupação já se fazia presente
no Código Penal de 1890, que verbalizava como conduta típica “Corromper
ou conspurcar a água potável de uso comum ou particular, tornando-a impossível
de beber ou nociva à saúde. Pena: prisão celular de 1 (um) a 3 (três) anos.”( art.
162).
Com o advento do Código de Águas, editado em 1934, época em que a
mata nativa e as fontes de água potável eram ainda abundantes, o vetusto
estatuto já traçava regras de conduta ainda válidas para os dias atuais, conforme se depreende de seus artigos 109 e 110.2
Já o Código Penal de 1940 reproduziu a figura penal de 1890, dispondo :
“art. 271 - Corromper ou poluir água potável de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para o consumo ou nociva à saúde. Pena : Reclusão, de dois a cinco
anos. Se o crime é culposo: pena: detenção, de dois meses a um ano.”
A lei de proteção da fauna ( 5.197/67), impropriamente chamada Código
2
“Art. 109 - A ninguém é lícito conspurcar ou contaminar as águas que não consome, com prejuízo de terceiros e 110 - Os trabalhos
para salubridade das águas serão executadas à custa dos infratores, que, além de responsabilidade criminal, se houver,
responderão pelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativos.”
Direito e Democracia
207
de Caça, com as modificações introduzidas pela Lei n. 7.653/88, transformou
em crimes diversas figuras contravencionais, cominando a pena de reclusão
de 2 (dois) a 5 (cinco) anos para quem “provocar, pelo uso direto ou indireto de
agrotóxicos ou de qualquer outra substância química, o perecimento de espécimes
da fauna ictiológica existente em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou mar territorial
brasileiro.”(Art. 27, par. 2o )
A aplicação da norma penal protetora dos peixes mostrava-se mais eficaz
para proteger os mananciais do que os dispositivos específicos do Código Penal, embora o estatuto em referência apresentasse exageros indiscutíveis, ao
rotular de inafiançáveis condutas que contavam com a tolerância do grupo
social. Cite-se, como exemplo, o sertanejo que, para saciar a fome de sua prole, abatia um pássaro silvestre ( art. 34).
Outras normas foram erigidas com a finalidade de proteger os cursos de
água. A propósito, o art. 15 da Lei n. 7.802/89, cominava uma pena de
reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos para “ aquele que produzir, comercializar,
transportar, aplicar ou prestar serviço na aplicação de agrotóxicos, seus componentes e afins, descumprindo as exigências estabelecidas nas leis e nos seus regulamentos.”
O coroamento do ordenamento legal de proteção ambiental veio com a
Constituição Federal de 1988, que dispôs no seu art. 225 : “Todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
Já sob a égide da nova Carta Magna, a Lei n. 7.804/89 deu nova redação
ao art. 15 da Lei n. 6.938/81, estabelecendo que “O poluidor que expuser a
perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando mais grave
situação de perigo existente, fica sujeito à pena de um a três anos de reclusão e multa
de 100 a 1.000 MVR.”
Mais recentemente, a Lei no 9.433/97 regulamentou o inciso XIX, do art.
21 da Constituição Federal, instituindo a Política Nacional de Recursos
hídricos e o seu gerenciamento, normatizando a utilização dos recursos
hídricos, objetivando a sua preservação e disponibilidade, em benefício da
qualidade de vida da população, reconhecendo, expressamente, que “a água
é um bem de domínio público; um recurso natural limitado, dotado de valor econômico e que, em situações de escassez, o seu uso deve ser prioritário para o consumo
humano e para saciar a sede dos animais”
208
Direito e Democracia
A Regulamentação da sobredita norma constitucional sobreveio com a
edição da nova lei ambiental ( Lei n. 9.605/95). Esse novo estatuto, a par de
inovações como a responsabilização penal da pessoa jurídica, procurou sistematizar as normas de caráter penal ambiental, facilitando a sua observância e
aplicação pelos agentes do poder público.
Oportuno anotar que a expressão poder público deve ser compreendida
como sendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Às
comunas, o constituinte concedeu, por via de competência comum ( art. 23),
a obrigação de cuidar do meio ambiente. A competência para legislar sobre
matéria ambiental pertence concorrentemente à União e aos Estados ( art.
24, VI, VII e VIII). Há quem sustente que, dispondo o art. 30, - “Compete aos
municípios.... II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”,
caberia ao legislador municipal dispor complementarmente sobre matéria
ambiental de interesse local.
Na prática, o que se observa é a Administração Pública atuando como
agente incentivador, quando não poluidor direto do meio ambiente, figurando reiteradamente no polo passivo de ações civis públicas aforadas com o
objetivo de embargar atividades nocivas ao meio ambiente. É como diz o insigne Hugo Nigro Mazzilli “Não raro, as pessoas jurídicas de direito público interno serão legitimadas passivas para a ação civil pública, pois que, quando não parta
delas o próprio ato lesivo, muitas vezes para ele concorrem diretamente, quando
licenciam ou permitam a atividade nociva, ou então deixam de coibi-la” (A Defesa
dos Interesses Difusos em Juízo, Atlas, 1993, p. 156).
Sobreleva assinalar, nesta etapa, que a nova lei ambiental protege a água,
tipificando como crime : “Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em
níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Pena –
reclusão , de um a quatro anos , e multa. (...) § 2o – Se o crime (...) – ocorrer, por
lançamento de resíduos sólidos , líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos.
Pena – reclusão , de um a cinco anos.”
Assim, conquanto o ordenamento jurídico brasileiro disponha de um
invejável aparato de leis tuteladoras do meio ambiente, é de se lamentar que
as normas de caráter penal não estejam cumprindo a sua finalidade principal
de prevenir a ocorrência do crime e, de conseguinte, o dano ao meio ambiente. Em que pese a publicidade que se deu à nova legislação ambiental na mídia,
nas escolas, em eventos comemorativos de datas relacionadas ao meio ambi-
Direito e Democracia
209
ente, nos pedágios educativos, etc., basta sair a campo para constatar que os
infratores continuam agindo como de antanho, e pior, sem que sejam molestados pelo poder público, a quem a Constituição Federal comete o dever de
combater todas as formas de poluição ambiental.
De fato, basta percorrer alguns quilômetros de uma rodovia interiorana,
com os olhos voltados às suas margens, para perceber o quanto o homem
maltrata o meio ambiente. A primeira agressão ambiental de fácil constatação
é em relação ao desmatamento das faixas de preservação existentes nas margens das rodovias ( art. 3., “c”, do Código Florestal). As demais formas de
agressão ambiental podem variar segundo a região observada. No caso específico de áreas, onde se desenvolve a suinocultura em grande escala, não será
necessário sequer sair da rodovia para constatar a existência de pocilgas despejando dejetos suínos em mananciais, além de causar incômodos ao bemestar dos transeuntes com a produção de maus odores.
Ao observador também será possível verificar a existência de chiqueiros
sobre açudes, uma espécie de palafitas para abrigar suínos, cujos excrementos
são despejados diretamente na água e utilizados para criar e engordar alevinos,
técnica de manejo e aproveitamento dos dejetos suínos que infelizmente já
faz parte da nossa paisagem rural e, não raro, tem recebido o aval de órgãos de
pesquisa ligados às Secretarias Estaduais de Agricultura, empenhados em
demonstrar que o método não provoca a poluição da água, ao argumento de
que a matéria orgânica é integralmente absorvida pelos peixes.
A conduta, salvo naquelas hipóteses em que a condição pessoal do agente
afastar a sua culpabilidade, por ausência de potencial consciência de ilicitude,
subsume-se perfeitamente no tipo penal descrito no art.54 e seu inciso V, da
Lei n. 9.605/98: “Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou provoquem a mortandade de
animais ou a destruição significativa da flora (...) Se o crime ocorrer por lançamento de resíduos sólidos líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas,
em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos.”
É que a piscicultura, desenvolvida com o aproveitamento de detritos gerados na suinocultura, é, sem dúvida, uma atividade poluidora, notadamente
porque a utilização dos dejetos suínos in natura provoca a poluição dos
corpos receptores, especialmente nos períodos de despesca, quando ocorre
o despejo da água represada e dos resíduos orgânicos acumulados no fundo
dos açudes.
210
Direito e Democracia
Já nas pequenas comunas, verificar-se-á que os maus odores gerados com
a suinocultura estabelecida nas proximidades do perímetro urbano causam
transtornos e incômodos ao bem-estar e à saúde da população urbana, cuja
situação se agrava nos dias em que os dejetos são espalhados sobre o solo e
aguardam a sua incorporação.
Na hipótese acima mencionada, encontra-se presente o interesse local a
que se reporta o art. 30, II, da Constituição Federal, legitimando os Municípios a disporem, em seus Códigos de Posturas e Regulamentos de Higiene,
sobre o manejo de dejetos suínos nas proximidades do perímetro urbano, estabelecendo regras eficazes para proteger a população dos maus odores.
Como se nota, todas as condutas acima mencionadas causam poluição
ambiental, incidindo os agentes poluidores nas penas cominadas em normas
penais de caráter ambiental, dada a perfeita correspondência entre a conduta
do poluidor e o tipo penal descrito abstratamente. Entretanto, a carência dos
órgãos estatais encarregados de fiscalizar o cumprimento dessas leis, e bem
assim de autuar os eventuais infratores, acaba gerando a ineficácia da lei.
Diante desse quadro de poluição generalizada de nossos mananciais,
provocada com o manejo inadequado dos dejetos suínos , urge que o poder
público das três esferas de governo cumpra com o seu papel, garantindo um
meio ambiente saudável e equilibrado, emprestando plena eficácia às normas editadas com tal finalidade , inclusive as de natureza extrapenal previstas
nos regulamentos de higiene e nos Códigos de Posturas Municipais.
SÍNTESE CONCLUSIVA
1. A suinocultura é uma atividade potencialmente poluidora, sujeitando-se ao prévio licenciamento ambiental e à observância das
normas legais e regulamentos pertinentes, especialmente no tocante às técnicas de manejo de dejetos suínos e às regras de higiene e
posturas municipais.
2. O uso de excrementos de suínos “in natura” para alimentar alevinos,
com a manutenção do rebanho em pocilgas construídas sobre açudes ou tanques de água, com o posterior despejo em mananciais receptores, configura , em tese, o crime de poluição hídrica tipificada
no art.54, combinado com o seu § 2º , VI, da Lei n. 9.605/95,
Direito e Democracia
211
excluída a culpabilidade do agente se, pela sua condição pessoal,
ficar demonstrada a ausência de potencial consciência de ilicitude.
3. Observada a Legislação Federal e Estadual, reconhece-se aos Municípios competência suplementar para disporem, em seus Códigos
de Postura e Regulamentos de Higiene, sobre o manejo e a utilização de dejetos suínos em propriedades rurais estabelecidas nas
imediações do perímetro urbano, visando proteger a saúde e o bemestar da população em face dos maus odores gerados pela
suinocultura.
Obs. A Segunda conclusão sofreu emenda modificativa do MP/SP,
ficando com a seguinte redação:
“2. O despejo, lançamento ou disposição de excrementos de
suíno in natura em cursos de água ou mananciais receptores
configura, em tese, o crime de poluição hídrica tipificado no
art. 54, combinado com seu parágrafo 2º, VI, da Lei n 9.605/
95, excluída a culpabilidade do agente se, pela condição pessoal, ficar demonstrada a ausência de potencial consciência de
ilicitude.
212
Direito e Democracia
El carácter político del control de
constitucionalidad
The Political Character of the Control of
Constitutionality
PAULA VITURRO
Docente de la Maestria de Sociologia Jurídica- Universidad Buenos Aires
Master por la Universidad Internacional de Andalucía
Doctoranda del programa Derechos Humanos y Desarollo-Universidad Pablo de
Olavide( Sevilla)
“El Estado es el más glaciar de los monstruos. Miente fríamente, y de su boca sale esta falacia: Yo, el Estado, soy el pueblo” (F. Nietzche, Así hablaba Zaratustra).
RESUMEN
El artículo está destinado a mostrar cuáles son las principales cuestiones problemáticas que subyacen al ejercicio del control de constitucionalidad, cuestiones todas
ellas que se derivan del innegable caracter politico de dicha tarea. Para comprender
mejor el alcance de la problemática planteada, la autora se introduce en uno de los
primeros debates que se suscitaron en torno a este tema, a saber, aquél que sostuvieron Hans Kelsen y Carl Schmitt”
Palabras claves: control de constitucionalidad, caracter politico, Kelsen, Schimitt.
ABSTRACT
This article is aimed at showing the main problematic questions which underline the
exercise of the control of constitutionality, all these questions generated from the
undeniable political character of the mentioned task. To better understand the scope
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.213-239213
of the problem in case, the author introduces herself in one of the first debates that
ever occurred on this subject, the one between Hans Kelsen and Carl Schmitt.
Key words: Control of constitutionality; political character; Kelsen;
Schmitt.
En la Argentina, rara vez los constitucionalistas se refieren a la grave complejidad que plantea la justificación de la revisión de las leyes y otras normas
jurídicas, por parte de los jueces. Se asume simplemente que esta institución
es una secuela incuestionable de los ideales del constitucionalismo norteamericano. No obstante ello, aún en el ámbito donde surgió, fue sometida a
duros cuestionamientos y actualmente el problema de la justificación del control judicial de constitucionalidad se ha convertido en una discusión de teoría de la democracia.
Las diferencias comienzan cuando se toma en consideración la naturaleza
de esta tarea, la cual generalmente era concebida sólo como una actividad
tendiente a evitar que se dicten o se apliquen normas infraconstitucionales
que contradigan lo establecido en la constitución. Sin embargo, interrogantes
tales como qué abarca la constitución, en qué consiste su defensa, qué características tiene la función del juez constitucional, cuáles son los límites del
control judicial, cómo debería estructurarse un poder judicial democrático
capaz de llevar a cabo la tarea de control, cuál es el fundamento de su legitimidad, si es el control judicial de constitucionalidad un requisito indispensable de la democracia constitucional, cuál es el alcance de las llamadas cuestiones políticas o el de la constitucionalización de los derechos sociales y lo
que esto implica respecto a una intervención activista por parte del poder
judicial en la preservación de esos derechos, etc., nos encontramos con una
infinidad de respuestas diferentes que llevan a poner en duda la originaria
concepción del control de constitucionalidad como una actividad estrictamente técnico-jurídica y a centrar la polémica -permanentemente abiertaen torno a la politicidad del juez constitucional. Así, el establecimiento en
muchos Estados democráticos, de órganos judiciales con competencia para
revisar en última instancia la constitucionalidad de disposiciones emitidas
por legislaturas elegidas democráticamente, no hizo más que revelar y llevar a su punto máximo la inescindible relación entre el ámbito jurídico y el
político.
214
Direito e Democracia
Dicho en otras palabras, si con el surgimiento de las constituciones rígidas
y la necesidad de determinar cómo atribuirles significado, cobró más relevancia tanto teórica como práctica la gran problemática de la interpretación,
con la consecuente aparición de la jurisdicción constitucional, la cuestión se
ha vuelto aún más compleja. Así surgió el “formidable problema”, en palabras
de Mauro Cappeletti, de fundamentar la legitimidad democrática de este poder, que llegaría a ser calificado por muchos como contra-mayoritario. He
aquí las dos caras de la misma moneda: cómo decidir (interpretación), y quién
y por qué decide (legitimación). Ambas están presentes en los debates acerca
de los fundamentos del control judicial de constitucionalidad, aunque de diversas maneras: mezcladas, separadas, negadas y/o ignoradas.1
Para quien aborde el tema desde la interpretación, puede resultar una buena
guía recordar la siguiente afirmación de Robert Alexy, “la ciencia del derecho, tal como es cultivada en la actualidad, es, ante todo, una disciplina práctica porque su pregunta central reza: ¿qué es lo debido en los casos reales o
imaginarios? Esta pregunta es planteada desde una perspectiva que coincide
con la del juez”.2
Los intentos por responder a la cuestión de la interpretación generaron,
en las últimas décadas, significativos y conocidos debates aún vigentes, acerca del carácter de la toma de decisiones judiciales, los cuáles se desarrollaron
en torno a tópicos tales como el poder creador del juez y la posibilidad de hallar
mediante interpretación soluciones correctas, sobre todo en aquellos casos calificados como difíciles -hard cases-. Las alternativas que se plantearon, se
correponden con alguna teoría respecto de la naturaleza del derecho, ya que
“lo que cuenta en última instancia y de lo que todo depende, es la idea del
derecho, de la Constitución, del código, de la ley, de la sentencia”.3 Si de acuerdo con Habermas,4 desechamos la aspiración del iusnaturalismo racionalista
que cree posible someter al derecho vigente a criterios suprapositivos, el debate se genera entre tres posturas bien conocidas, a saber:
1
A su vez, este debate acerca de la fundamentación del control de constitucionalidad se inserta en otro de carácter más
general que surgió a raíz del creciente protagonismo social y político de los jueces a lo largo de los últimos doscientos
años, protagonismo que generó múltiples cuestionamientos a la labor judicial, sobre todo en lo atinente a su capacidad, su legitimidad y su independencia. Es por ello que ahora se habla cada vez más de la judicialización de los
conflictos políticos, ya que si bien es cierto que en el origen del Estado moderno el sector judicial es un poder
soberano, lo cierto es que sólo se asume públicamente como poder político en la medida en que pueda interferir con
los otros poderes.
2
Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, pág. 33.
3
Gustavo Zagrebelsky, El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia., Madrid, Trotta, 1995, pág. 9.
4
Jurgen Habermas, Facticidad y Validez, Madrid, Trotta, pág. 268.
Direito e Democracia
215
a) la positivista, que proclama el sentido normativo específico de las
proposiciones jurídicas que conforman los sistemas jurídicos; los
cuales a su vez son descriptos como completos y cerrados reduciendo así el problema a la inevitable textura abierta de los lenguajes
naturales,5
b) la conformada por las tesis de la respuesta correcta,6 la más distingida
de las cuales es la de Ronald Dworkin al proponer la inserción de la
razón que en el contexto histórico de las tradiciones de que se trate,
a fin de reducir la indeterminación del proceso circular de comprensión mediante referencia a principios que provean la mejor justificación moral para la decisión de un caso,7
c) la escéptica que afirma la indeterminación radical propia del discurso jurídico habitual y busca las tensiones propias del mensaje
político escondido en la idea de justicia, para revelar la posibilidad
de interpretaciones alternativas, perfectamente coherentes con las
premisas declaradas por los jueces y mostrar así la falta de neutralidad valorativa que los distingue.8
Esta última posición, cobra fundamental importancia porque es la que nos
permite salir del falso dilema que plantea el punto de partida clásico de esta
controversia, el cual inquiere si los graves problemas políticos que se someten
al máximo tribunal pueden resolverse con los criterios y métodos de una decisión judicial, y de ser así cuáles deben ser esos criterios y métodos.9 De esa
5
“A primera vista el espectáculo parece paradojal; ante nuestros ojos tenemos jueces ejerciendo potestades creadoras que
determinan los criterios últimos para comprobar la validez de las propias normas que les confieren jurisdicción en
tanto que jueces. ¿Cómo puede una constitución conferir autoridad para decir lo que la constitución es? Pero la
paradoja desaparece si recordamos que aunque toda regla puede ser dudosa en algunos puntos, es por cierto una
condición necesaria de un sistema jurídico existente que no toda regla sea dudosa en todos los puntos” (H.L.A. Hart,
El concepto de derecho, trad. de Genaro Carrió, 2º ed., Buenos Aires, Abeledo Perrot, 1995, pág. 189).
6
En otros términos, implica afirmar que los tribunales tendrán en todos los casos que se les presenten, una única solución
aplicable. Esta postura, que entronca con el realismo moral y la tradición iusnaturalista supone que a todo sistema
jurídico le corresponde un mundo posible absolutamente determinado, y susceptible de otorgar una sola calificación
deóntica para cada acción.
7
Véase por ejemplo R. Dworkin, Los derechos en serio, Barcelona, Planeta-Agostini, 1993, capítulo IV.
8
“¿Cómo conjugar el acto de justicia que debe referirse siempre a una singularidad, a individuos, a grupos, al otro o yo como
el otro en una situación única, con la regla, la norma, el valor o el imperativo de justicia que tiene necesariamente una
forma general, incluso si esta generalidad prescribe una generalidad cada vez singular?... Dirigirse al otro en la lengua
del otro es la condición de toda justicia posible, pero esto parece rigurosamente imposible?” (Jacques Derrida, “Fuerza
de ley: el fundamento místico de la autoridad”, Doxa, N°11, Alicante, 1992).
9
Cfr. Francisco Fernández Segado, “Reflexiones en torno a la composición del Tribunal Constitucional en España”,
Lecciones y Ensayos, Nº 55, Buenos Aires, 1991, pág. 37.
216
Direito e Democracia
manera, se inicia la discusión desde un reduccionismo que presupone la neutralidad judicial y que evade toda consideración acerca de la dimensión política de esta función. Es justamente esta presunción, la que generará los mayores problemas a la hora de fundamentar la legitimidad del control judicial y la
que de origen a más de una discusión circular y bizantina.
Como señala Gargarella,10 la estrategia consiste en demostrar que existen
formas más o menos obvias y no arbitrarias de interpretar la Constitución,
para luego volver a afirmar que los jueces no gobiernan ni reemplazan a los
legisladores, sino que simplemente dan cuenta del significado del texto. Para
tal fin se apeló históricamente a diferentes justificaciones pretendidamente
objetivas, a saber: las tradiciones, el derecho natural, los principios neutrales,
la razón, el consenso, los principios filosóficos, etc.11 No obstante ello, la
complejidad creciente de la mayor parte de los conflictos de rango constitucional, hizo que fuera cada vez más difícil sostener la caracterización tradicional del poder judicial como el neutro equilibrio entre los verdaderos poderes
políticos, lo que implicaba negarle este carácter al primero. Como sostiene
Habermas:
“el Tribunal Constitucional habría de proteger precisamente
ese sistema de los derechos que posibilita la autonomía privada
y pública de los ciudadanos. El esquema clásico de la separación e interdependencia de los poderes del Estado ya no responde a esa intención porque la función de los derechos fundamentales ya no puede apoyarse en los supuestos de la teoría
de la sociedad que el paradigma liberal de derecho comporta,
es decir, ya no puede agotarse en proteger de las intrusiones del
aparato estatal a los ciudadanos que de por sí gozasen de autonomía privada. Pues la autonomía privada viene también
amenazada por posiciones de poder económico y social...”12
La interpretación ya no puede reducirse entonces tan fácilmente a una
técnica jurídica que posibilite llevar adelante una mera lectura de la Constitu-
10
Roberto Gargarella, La justicia frente al gobierno, Buenos Aires, Ariel, 1996, pág. 60.
11
Un análisis crítico y sintético de estas propuestas se encuentra en John Hart Ely, Democracia y desconfianza. Una teoría del
control constitucional, trad. cast. de Magdalena Holgín, Santafé de Bogotá, Siglo del Hombre Editores, Universidad
de los Andes- Facultad de Derecho, 1997, en especial capítulo III.
12
J. Habermas, Facticidad..., op. cit., pág. 339.
Direito e Democracia
217
ción, ni se puede eludir el carácter político y discrecional de la función del
juez ni aún por parte de quienes gustan de combinar normas con lógica. Surge
así la necesidad de nuevos argumentos que desarrollarán la otra cara de la
problemática, es decir la de la legitimidad del poder judicial para ejercer esta
función.
Como no es posible seguir negando el carácter político de la tarea de los
jueces constitucionales, los nuevos argumentos estuvieron en muchos casos
destinados a cuestionar la función y legitimidad democrática de estos jueces
no elegidos popularmente, muchas veces con carácter vitalicio y aparentemente exentos de responsabilidad política. De nuevo las opiniones que se
dieron fueron muchas, y todas intentaron resolver el “dilema entre la inoperancia o la ilegitimidad”13 de los tribunales constitucionales, o dicho en otras
palabras entre optar por una concepción restrictiva de esta actividad y condenarla a la inoperancia, o bien aceptar una amplia competencia con posibles márgenes de ilegitimidad.14 Aquí se revela con toda claridad como detrás
de cada una de estas teorías subyace una concepción diferente de la democracia, y que este es el tema que en realidad se debería discutir. A tal fin resulta
útil recordar uno de los primeros debates que se suscitaron durante los años
veinte en torno a este tema, aquél que sostuvieron Hans Kelsen y Carl Schmitt.
Este último por medio de su rechazo a la democracia liberal, cuestionó la legitimidad democrática de los procedimientos establecidos de defensa de la Constitución y sostuvo que la jurisdicción no podría tener a su cargo el control de
constitucionalidad de las leyes, especialmente cuando se trata de un control
centralizado que hace perder fuerza a la ley, pues se trataría de una función
netamente política. Las próximas páginas estarán simplemente dedicadas a
exponer ese debate, no porque encuentre valorable la conclusión a la que
llega este autor, sino porque tal como sostiene Chantal Mouffe, muchas de sus
críticas al liberalismo pueden prestar hoy en día un buen servicio en esta discusión, al poner de manifiesto que no se puede excluir el fenómeno de lo
político creyendo que “el acuerdo sobre reglas de procedimiento debería bastar para regular la pluralidad de intereses de una sociedad”.15
13
Cfr. José E. Estévez Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia civil, Madrid, Trotta, pág.69.
14
En relación a losdebates acerca de los fundamentos de control judicial de constitucionalidad véase Gargarella, op. cit.
15
Chantal Mouffe, “De la articualción entre liberalismo y democracia”, en El retorno de lo político, Barcelona, Paidós, 1999.
218
Direito e Democracia
EL DEBATE ACERCA DEL GUARDIÁN DE LA
CONSTITUCIÓN
Múltiples son los ejemplos que la historia nos da, sobre todo a lo largo de
este último siglo, de líderes políticos que reivindicaron para sí la legítima y
última representación de su pueblo. E.J. Hobsbawm nos recuerda que muchos
de los políticos nacionalistas, populistas y, en la forma más peligrosa, los fascistas, simplemente redescubrieron el tipo de relación que Napoleón III estableciera con las masas campesinas francesas y que fuera lucidamente descripta
por Marx en el El dieciocho brumario de Luis Bonaparte.16
La terrible ejecución por parte del nazismo, de esta idea según la cual los
auténticos valores de la gente pueden ser descubiertos de manera más confiable
por una elite hizo que la misma pasara a conocerse como “el principio del
Führer”.17 La puesta en práctica del mismo incluyó en todos los casos, el reconocimiento de márgenes de acción amplios e incontrolados que permitieran
al líder tomar las decisiones necesarias para realizar lo que “el pueblo” le encomendó en forma directa. Muy común es que se aluda a dicha facultad con
el término “decisionismo”, y que inmediatamente resurja la figura de Carl
Schmitt, quien durante la decadencia de la República de Weimar previa al
advenimiento del nazismo, argumentó en favor del fundamento democrático
del cargo de Presidente del Reich concluyendo que, en virtud del mismo, solo
él podía ser el legítimo defensor de la Constitución.
A simple vista, pareciera subyacer a lo largo de su planteo la siguiente
idea: el poder no debe ser juzgado, el poder ejecutivo debe estar exento de
control judicial ya que el respeto a las normas jurídicas supone en numerosas
ocasiones limitaciones al ejercicio de ese poder directamente encomendado
por el pueblo, por parte de jueces sin responsabilidad política directa.
El desarrollo de sus argumentos lo hizo en un trabajo denominado La
defensa de la Constitución,18 que fuera escrito en abierta polémica con Hans
16
Eric Hobsbawm, La era del capital, 1848-1875, trad.cast. de A. García Fluixá y Carlo A. Caranci, Buenos Aires, Crítica, 1998).
17
“Mi orgullo es que no conozco a ningún estadista del mundo que, con mayor derecho que yo, pueda decir que
representa a su pueblo” (A. Hitler, citado por Ely, op.cit., pág. 91).
18
Carl Schmitt, La defensa de la Constitución, trad. cast. de Manuel Sánchez Sarto, 1º ed., Madrid, Tecnos, 1983 (2º ed., 1998),
por donde se citará. El mismo, originariamente publicado en 1931, es una versión ampliada y más elaborada -según
cuenta el propio Schmitt en el Prólogo- de una serie de estudios previos, el más importante de los cuáles ya había sido
publicado en 1929. Observa G. Cassió (véase el Estudio Preliminar de ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución? de
Hans Kelsen, trad.cast. de Roberto J. Brie, Madrid, Tecnos, 1995, pág. IX) que en el primer escrito Schmitt habla de
“dictadura “ del Presidente, mientras que en segundo lo presenta como “defensor de la Constitución”.
Direito e Democracia
219
Kelsen,19 creador y miembro del Superior Tribunal austríaco; quien a su vez
respondió con la obra ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución?,20 en la
que rechaza la consideración de aquél según la cual la justicia constitucional no conduciría a juridificar la política, sino a politizar la justicia.
Este enfrentamiento se produjo en un delicado momento histórico signado
por el comienzo de las modernas dictaduras totalitarias facistas y por el ocaso
de la República de Weimar,21 la cual hacia 1929 sufrió una crisis económica
que acabaría con el período de relativa estabilidad política que había disfrutado desde 1925. A su vez, la coalición tripartita (socialdemocracia, SPD;
liberalismo democrático, DDP, y catolicismo social Zentrum), que había sido
el principal apoyo de la República, presentaba profundos signos de
resquebrajamiento. Desde marzo de 1930 el gobierno estaba encabezado por
el canciller Brüning, quien, frente al rechazo parlamentario de las leyes financieras en el mes de julio, disuelve el Reichstag, y comienza a gobernar por reglamentos del presidente Hindenbourg,22 apoyándose en la segunda parte del
artículo 48 de la Constitución del Reich Alemán referente a los poderes de
excepción del Ejecutivo.23 Las elecciones que siguen dan un importante triunfo
electoral a Hitler, quien pudo así desmontar el sistema de la Constitución de
Weimar, sin necesidad de derogarla formalmente.
Que esta polémica se haya desarrollado en tal contexto histórico, entre
dos de los más destacados especialistas de derecho público de la época y en
torno a los problemas que encierra el ejercicio del control de
19
Más elocuentes son las palabras del propio Schmitt, La defensa..., op. cit. pág. 81: “Toda la aberración de esta especie de
lógica que se manifiesta en una rara mezcla de abstracciones sin fondo y metáforas llenas de fantasía se manifiesta
en el problema del protector o garante de la constitución”. Al respecto señala C. Herrera en “La polémica SchmittKelsen sobre el guardián de la Constitución”, Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), Nº 86, octubre- diciembre
de 1994, pp. 195- 227, que si bien en este caso se trata de una confrontación directa entre ambos autores, se trataría
de la consecuencia de un largo contrapunto que ya venía realizándose desde el inicio de la década del veinte o
incluso antes. Agrega este autor, que de hecho podría afirmarse que la obra que Schmitt elabora durante ese período
de tiempo, se desarrolló fundamentalmente a partir de una “constante (aunque no siempre explícita)” contraposición con la obra de Kelsen, que debe ser situada en el marco de una reacción general que se estaba produciendo en
esa época, en los ámbitos académicos europeos contra la doctrina de la “escuela de Viena”.
20
Hans Kelsen, ¿ Quién debe ser el defensor de la Constitución?, trad.cast. de Roberto J. Brie, Madrid, Tecnos, 1995, por donde
se citará.
21
Véase además Claude Klein, De los espartaquistas al nazismo: La República de Weimar, Madrid, Sarpe, 1985 y Carlos M.
Herrera, op.cit.
22
La Constitución de Weimar preveía dos posibles titulares del poder político: el Presidente del Reich, elegido directamente
por el pueblo y el Canciller del Reich que era elegido por el primero y debía tener la confianza del Parlamento.
23
Schmitt argumentó a favor de esta medida en La defensa..., op.cit., pág. 68 y sig., y tuvo la oportunidad de ponerlas en
práctica en 1832, en un dictamen que como consejero jurídico del gobierno central, hiciera ante el Tribunal Superior
de Liepzip, en un conflicto entre éste y el gobierno de Prusia. Al respecto véase C. Herrera, op. cit., pág. 214.
220
Direito e Democracia
constitucionalidad muestra una vez más la importancia política de la misma y
cómo la forma de entenderla, fundamentarla y ejercerla, lleva ínsita una concepción acerca de la democracia, tal como afirmáramos al comienzo.
LA TEORÍA DE LA CONSTITUCIÓN DE CARL
SCHMITT
Si bien en Teoría de la Constitución24 Schmitt no se ocupa particularmente
del problema de la defensa de la Constitución, allí deja sentadas las premisas
fundamentales con las que luego elaboraría su tesis sobre el tema.
La propuesta que realizará Schmitt en oposición a la que realizara Kelsen,
debe ser ubicada en la tradición constitucional de la Alemania del siglo XIX,
la cual difiere notablemente de las tradiciones francesa y americana. Señala
Estévez Araujo,25 que en dicho país influyeron fundamentalmente dos tipos
de factores, por un lado, una reacción historicista contra las pretensiones
universalizadoras del pensamiento ilustrado en general y del
constitucionalismo francés en particular, y por otro, la ausencia de un proceso
revolucionario que lograra poner en cuestión la existencia de la monarquía e
instaurara un sistema político ex-novo.
La concepción historicista supuso así un rechazo de la concepción del dictado de la Constitución siguiendo el modelo del contrato social, y por lo tanto la Constitución no sería un acuerdo formalizado por escrito, sino el fruto
de un proceso de decantación histórica que convierte a cada Constitución en
un producto particular de su pueblo. De ese modo se dio preeminencia al
concepto de pueblo como “estirpe” frente a una concepción de pueblo como
conjunto de los individuos vivos dotados de uso de razón.26 Así se generó “una
concepción material de la Constitución en virtud de la cual, ésta no sería la
ordenación jurídica del Estado recogida en un texto legal, sino el modo como
de hecho es gobernado un pueblo”.27
24
Cfr. Carl Schmitt, Teoría de la Constitución, Madrid, Alianza, 1982, por donde se cita. Según Habermas (Facticidad..., op.
cit., pág. 517, nota 74), marca la importancia que adquirieron las tesis de este autor el hecho de que aún hoy en
Alemania, la discusión acerca de la generalidad de la ley sigue viniendo determinada por la exposición que hizo en
esta obra, la cual resultó de mucha influencia en la República Federal, directamente a través de E. Forsthoff, o
indirectamente a través de F. Neumann.
25
J. A. Estévez Araujo, La Constitución..., op.cit., pág. 43.
26
Op.cit., pág. 44.
27
Ibídem.
Direito e Democracia
221
Posteriormente con la culminación de la unificación alemana y la preeminencia del positivismo jurídico en el ámbito del derecho público, se impondría un concepto de Constitución estrictamente formal y despojado de
exigencias políticas por el cuál, ésta sería considerada como una ley diferenciada de las leyes comunes por el procedimiento agravado previsto para su
reforma. De esta forma, la Constitución aparecía como consecuencia de la
voluntad del Estado y no como el elemento constitutivo del mismo.
En cuanto a la interpretación del texto constitucional, el método utilizado por el iuspublicismo alemán privilegió el análisis de la norma entendida
como texto legal plasmado por escrito, y su aplicación fue concebida de acuerdo
al modelo silogístico sin consideración de cuestiones históricas, sociológicas
y o políticas.28
Schmitt en su obra Teoría de la Constitución, intenta darle nuevamente a
esta última un sentido unitario dada la disgregación que se había producido
en virtud de la adopción por parte de la Escuela Alemana de Derecho Público, de ese concepto formal de Constitución.
Según él, la caracterización de la Constitución como una ley con procedimiento agravado de reforma convierte a las diversas disposiciones que la integran, en leyes constitucionales y a la Constitución en una simple suma de
esas leyes. Esa caracterización positivista carecería así de un criterio para determinar qué disposiciones deben tener necesariamente carácter constitucional y cuáles no. Afirma que el criterio necesario para otorgarle a las disposiciones que integran la Constitución ese sentido unitario, consiste en que se
trata de decisiones acerca de la forma de existencia de una determinada unidad política. Esa es la caracterización de la Constitución que sostiene y que
califica como concepto “positivo” de Constitución: la Constitución es una
decisión consciente acerca del modo de existencia de una unidad política
realizada por el titular del poder constituyente. Remarca especialmente la
noción de poder constituyente, insistiendo en que deben distinguirse norma
y existencia. De esta forma intenta refutar que la Constitución puede ser definida como “norma de normas”; atacando así la “teoría normativa del Estado”, es decir, la teoría del Estado de Kelsen “en tantos libros repetida”.29
A partir de esa definición de Constitución, marca la diferencia entre esta, y
las meras “leyes constitucionales”. Según él, la primera está integrada única28
Op.cit., pág. 47.
29
Op. cit., pp.45-46.
222
Direito e Democracia
mente por aquellas disposiciones que atañen al modo de la existencia política
del Estado, mientras que las restantes disposiciones no son más que leyes constitucionales que valen en base a una Constitución y que la presuponen.30 De esa
distinción, sobre la que se basa toda su teoría de la Constitución, extrae dos
consecuencias: por un lado, que la Constitución no puede reformarse por medio del procedimiento de reforma previsto por el propio texto constitucional,
ya que el mismo sólo es utilizable para reformar las leyes constitucionales. Por
otro lado, que el juramento de fidelidad a la Constitución se refiere a las decisiones fundamentales contenidas en la misma y no se agota su contenido a atenerse al procedimiento de reforma constitucional.31
En relación al poder constituyente del pueblo, afirma que es de carácter
“inconstituible” y que el mismo persiste una vez aprobada la Constitución.32
Cuando habla del carácter “inconstituible” del poder constituyente del pueblo se refiere a que la expresión de su voluntad no está vinculada a determinadas “formas jurídicas y procedimientos”, sino que vale en cuanto pueda
comprobarse que responde a la auténtica voluntad de su titular. Exigir que
dicha manifestación de voluntad se ajuste a determinadas formas o procedimientos supondría constitucionalizar el poder constituyente, o bien supondría afirmar que por encima del poder constituyente existe otra instancia que
le impone la observancia de determinadas formas.
Acerca de la persistencia del poder constituyente del pueblo tras la aprobación de la Constitución, dice que existen fundamentalmente dos supuestos en
los que se debe apelar al mismo y dejar que sea el que decida dado que es su
titular. El primer supuesto es el de los conflictos constitucionales que afectan “a
las bases mismas de la decisión política de conjunto”,33 el segundo se refiere a las
lagunas de la Constitución que “pueden llenarse, tan sólo, mediante un acto del
poder constituyente”.34 En los dos casos se daría una manifestación del pueblo
en cuanto poder constituyente en el marco de un sistema político constituido
para resolver problemas graves que afectan a su esencia, pero sin que llegue a
darse una situación de crisis global de dicho sistema. En tales casos el pueblo
como poder constituyente se encontrará por arriba de la Constitución, ya que
eventualmente podrá modificarla o reemplazarla por una nueva.
30
Op.cit., pág. 48.
31
Op. cit., pp. 49-52. Esta distinción es importante ya que en La defensa..., se basará en ella para realizar su crítica a la
propuesta kelseniana.
32
Op. cit., pp.97-99.
33
Op. cit., pp.94-95.
34
Ibídem.
Direito e Democracia
223
Por lo tanto en la concepción de Schmitt, la Constitución abarca además
del propio texto, la voluntad de una instancia dotada de legitimidad que puede manifestarse en el marco del sistema constituido, al margen de los procedimientos de reforma de la Constitución. Es esa posibilidad de apelar al pueblo
para resolver conflictos o para eliminar lagunas, la que convierte a esta solución en un criterio decisorio integrante de la Constitución.
También señaló otros casos en los que el pueblo no actúa en su calidad de
poder constituyente sino que lo hace como poder constituido, en virtud de
ciertas competencias atribuidas por la Constitución; esto es, ejerciendo una
facultad reglada que debe ajustarse por disposición constitucional a ciertos
requisitos procedimentales y formales, como por ejemplo el derecho a voto
para elegir al Presidente, el referéndum, etc.35 No obstante esta circunstancia,
cabe aclarar que Schmitt niega que sólo puedan tener valor las manifestaciones de la voluntad popular expresadas mediante un procedimiento específico
preestablecido, ya que para él la forma natural de manifestación de la voluntad popular es la aclamación,36 y por ello considera en particular al sufragio
individual y secreto como una forma inadecuada de manifestación de la voluntad popular. La aclamación supera, desde su punto de vista, los inconvenientes que plantea la mera suma de voluntades del sufragio universal y secreto, como mecanismo apto para configurar una auténtica voluntad general.
EL PRESIDENTE DEL REICH COMO DEFENSOR DE
LA CONSTITUCIÓN
Mas tarde en La defensa de la Constitución, Schmitt retoma ciertos aspectos de su teoría constitucional, y, desarrolló diversas líneas de argumentación
en defensa de su tesis según la cual la interpretación de la Constitución no es
una actividad de carácter jurisdiccional como sostenía Kelsen,37 sino que por
el contrario se trata de una función netamente política motivo por el cual
35
Op.cit., pp. 108 y 114.
36
“la voz de asentimiento o repulsa de la multitud reunida” (op.cit., pág. 100).
37
“la manera usual de ser actualmente tratada esta difícil cuestión de Derecho Constitucional hállase aún muy influida
por las `ideas judicialistas´ que se inclinan a encomendar simplemente la solución de todos los problemas a un
procedimiento de tipo judicial y desprecian en absoluto la fundamental diferencia que existe entre un fallo procesal
y la resolución de dudas y divergencias de criterio acerca del contenido de un precepto constitucional.” (La
Defensa..., op.cit., pág. 31).
224
Direito e Democracia
debe ser atribuida a un poder con responsabilidad política directa como el
Presidente del Reich.
En el primer capítulo,38 Schmitt se ocupa de descalificar a la justicia como
protectora de la Constitución utilizando diferentes argumentos. Sostiene en
primer lugar que el “derecho de control general (accesorio) ejercido por los
jueces, y también llamado material”, no constituía en Alemania, una defensa
de la Constitución “en sentido estricto”.39 Dicho en otras palabras, para este
autor, el comprobar si las leyes simples están de acuerdo, en su contenido, con
los preceptos constitucionales, negando en caso de colisión y por aplicación del
principio de supremacía constitucional vigencia a las leyes que no cumplan
con ese requisito, no constituye una defensa de la Constitución. El error de
considerar a los tribunales como “garantía máxima de una Constitución” lo
atribuye a ciertas opiniones generalizadas acerca del Tribunal Supremo de los
Estados Unidos, que para algunos juristas alemanes de la época se había convertido “en una especie de mito”. Sin embargo, en su opinión, el mismo sólo puede
ser considerado como un protector de la Constitución en un estado judicialista40
en el que se erige al Tribunal Superior en protector y defensor del orden social y
económico existente.41 Por el contrario, en un Estado como el Reich alemán de
esa época, el control debía apoyarse exclusivamente en normas que permitan
una “subsunción concreta”, de no ser así el juez dejaría de ser independiente
“sin que pueda aducirse en su descargo ninguna apariencia de judicialidad”.42
De esta manera concluye reconociendo a la independencia judicial sólo el
reducido ámbito del ejercicio de la subsunción silogística precisa y delimitada
de la norma al caso concreto. Para él la posición del juez en el Estado de Derecho, su objetividad, su situación por encima de las partes, su independencia e
inamovilidad, descansa sobre el hecho de que falla sobre la base de una ley, y
su decisión deriva, en cuanto al contenido, de otra decisión definida y conmensurable, que se haya contenida en la ley.43 Un buen resumen de esta primera argumentación es el siguiente párrafo del propio Schmitt:
38
Op.cit., pág. 43 y sig.
39
Ibídem.
40
Para Schmitt los Estados pueden ser clasificados de acuerdo a la función que en ellos predomina, de la siguiente manera:
Estado de jurisdicción propio de la época medieval, Estado ejecutivo como el Estado absolutista, y Estado legislativo
es decir el Estado liberal del siglo XIX. Cfr. C. Herrera, op. cit., pág. 210.
41
Op.cit.,. pp. 44, 46 y 52.
42
Op.cit., pág. 53.
43
“La independencia judicial es solamente el otro aspecto de la sujeción del juez a las leyes, y, por esa razón, es apolítica.”
(op. cit., pág. 248).
Direito e Democracia
225
Ante todo la justicia queda sujeta a la ley, pero por el hecho de
situar a la ley constitucional por encima de la sujeción a la ley
simple, el poder judicial no se convierte en protector de la Constitución. En un Estado que no es un mero Estado judicial, no
es posible que la justicia ejerza semejantes funciones. Precisa,
además, tener en cuenta que la observancia del principio de
legalidad y, por añadidura, de legalidad constitucional, no constituye por sí misma una instancia especial. De lo contrario,
cada organismo público y, en fin de cuentas, cada ciudadano
podría ser considerado como un eventual protector de la Constitución.44
Vemos así como no sólo considera improcedente el atribuir la defensa de
la Constitución a los tribunales, ya que la no aplicación de leyes
anticonstitucionales a lo sumo solo “puede contribuir” a que sea respetada,
sino que además concibió a esa tarea en términos excluyentes aún de la propia ciudadanía. De hecho afirma que una buena prueba de la existencia de un
eficaz protector de la Constitución, es el constatar que éste ha podido “suplir
y hacer superfluo este general y eventualísimo derecho a la desobediencia y a
la resistencia.”45
El segundo argumento desarrollado por Schmitt en defensa de su posición
contraria al control jurisdiccional, apunta a mostrar los “límites reales de todo
poder judicial”46 cuestionándose qué es lo que en general puede hacer la justicia para proteger a la Constitución y hasta qué punto es posible organizar
dentro de su esfera instituciones especiales cuyo sentido y fin sea asegurar o
garantir la Constitución. Que esa pregunta no haya sido planteada en los años
de la primera posguerra sino que directamente se haya optado “con manifiesta ligereza” por situar al protector de la Constitución en la esfera de la justicia
se explica para Schmitt por diversas razones, entre las que sobresalen por un
lado la vigencia de una “idea falsa y abstracta acerca del Estado de derecho”,
y por otro una “tendencia orientada contra el democrático principio de mayorías”.47
44
Op. cit., pág. 55.
45
Schmitt, op. cit. pág. 56.
46
Op. cit., pág. 57.
47
Op. cit., págs. 57 y 61.
226
Direito e Democracia
La primera de las razones citadas, la atribuye a la comodidad que implica
el concebir a la resolución judicial de todas las cuestiones políticas, como el
ideal dentro de un Estado de Derecho sin tener en cuenta que con la expansión del campo de intervención de la justicia “a una materia que acaso ya no
es justiciable sólo perjuicios pueden derivarse para el poder judicial”. Es aquí
donde afirma que la consecuencia no es una judicialización de la política sino
una politización de la justicia. Se enfrentó así directamente a Kelsen48 afirmando que este último por concebir al Estado de Derecho en términos abstractos no reconoce las distinciones “concretas” e ignora las diferencias “efectivas” que existen entre Constitución y ley constitucional, concluyendo sarcásticamente que con tal criterio más sencillo hubiera sido “hacer que el Tribunal supremo estableciera a su leal saber y entender las normas de la Política, orientadas a perfeccionar, en sentido formal, el Estado de Derecho.”
La tendencia orientada contra el democrático principio de mayorías, la
atribuye a una alteración de las funciones de gobierno tendiente a asegurar
intereses determinados, en especial de una minoría contra las mayorías parlamentarias de cada momento. Así se intentarían proteger ciertas actividades e
intereses que sólo competen al legislador, contra el legislador mismo. Intención que para él, sólo encuentra sustento en la teoría de la separación de poderes con su tradicional división tripartita,49 y en la vigencia de la tradición
del Estado judicial propio de la Edad Media que sólo podía conducir a “las
aspiraciones ´naturalísimas` de un Tribunal soberano”.
Explicitados los motivos por los cuáles se optó por el control jurisdiccional, se pregunta si el ejercicio de tal actividad “aunque aureolado con apariencia de judicialidad” sigue siendo en la práctica justicia o si se trata de “un
disfraz engañoso” de atribuciones de marcado carácter político.50 Llega a esta
última conclusión diciendo que si efectivamente se tratara de una práctica
judicial desarrollada mediante un procedimiento regular controvertido entre
partes, rápidamente se encontrarían las limitaciones de la justicia para ejercer
la tarea de protección de la Constitución. En otras palabras, dado que todo
órgano jurisdiccional posee límites objetivos por ocurrir post eventum,51 y por
lo tanto su misión sólo puede ser sancionadora o absolutoria, reparadora o
48
“Es cierto que un habilidoso método formulista logra sobreponerse a tales razones, y resulta incontrovertible, porque
trabaja con ficciones que carecen de contenido y contra las cuales, por tal causa, es inútil luchar.” (Op. cit., pág. 57).
49
Op. cit., pp.61y 62.
50
Op. cit., pág. 63.
51
“La lógica interna de toda judicialidad llevada hasta sus últimas consecuencias conduce inevitablemente al resultado de
que el fallo judicial genuino sólo se produce post eventum” (Op. cit., pág. 71).
Direito e Democracia
227
represiva, pero siempre de hechos pasados, y teniendo en cuenta además que
por ser incidental, accesoria y aplicable exclusivamente al caso concreto y
específico que fue sometido a proceso,52 sólo puede virtualmente servir como
precedente judicial pero no como protectora de la Constitución.53 Si se intentara corregir ese inconveniente facultando a los tribunales para dictar “resoluciones previsionales”, el juez se enfrentaría a la posibilidad de adoptar medidas políticas o de impedir otras, procediendo activamente en el orden político quedando así convertido en un “factor dominante de la política interior”.
Subyace a este razonamiento su concepción material de jurisdicción,54 según la cual “juzgar”, “dictar sentencia”, etc., quiere decir adoptar una decisión
sobre un caso concreto “en base a una ley”. Lo cual, a su vez, significa que la
decisión que se adopte en la sentencia está predeterminada en su contenido
por lo establecido en la ley.55 Dictar sentencia “en base a una ley” es, en este
sentido, diferente de ejercer determinadas funciones “en base a la Constitución”. Schmitt utiliza la categoría de “subsunción” para ilustrar esta diferencia: lo que el juez hace al dictar sentencia es subsumir el caso concreto bajo la
ley general, por el contrario, cuando el presidente del Reich declara el estado
de excepción en razón de las atribuciones que le otorga la Constitución no
realiza subsunción alguna.56 Pareciera que la diferencia entre aplicar una ley y
aplicar la Constitución radica para él en que esta última otorga facultades
para adoptar decisiones, pero sin determinar el contenido de las mismas, mientras que la ley sí predetermina la decisión para el caso concreto.57
Consecuentemente su tercer argumento en contra de la jurisdicción como
protectora de la Constitución, consiste en afirmar que la determinación precisa de un precepto constitucional dudoso en cuanto a su contenido, es materia de la legislación constitucional y no de la justicia. Aquí pone en cuestión,
52
Cabe aclarar que si bien las experiencias en materia de control de constitucionalidad de Weimar y Austria fueron de las
primeras, existía una diferencia importante entre ambas, ya que la primera tenía un sistema difuso.
53
“la protección judicial de la Constitución no es más que un sector de las instituciones de defensa y garantía instituidas
con tal objeto, pero revelaría una superficialidad notoria el hecho de olvidar la limitación extrema que todo lo judicial
tiene, y que por encima de esta protección judicial existen otras muchas clases y métodos de garantizar la Constitución.” (Op. cit. pág. 41).
54
Op.cit., pág.79.
55
“En el Estado cívico de Derecho sólo existe Justicia en forma de sentencia judicial sobre la base de una ley.” (Op. cit., pág.
78).
56
Op.cit., pág. 80, nota 58.
57
“Es un abuso dejar que se borre la diferencia entre indicación de competencia y regulación concreta.” (Op. cit., pág. 81).
228
Direito e Democracia
por un lado, que el control abstracto de normas sea una cuestión de aplicación de normas, es decir una operación genuina de la práctica de toma de
decisiones judiciales. Afirma que “las reglas generales sólo se comparan entre
sí, pero no se subsumen unas bajo otras o se aplican unas a otras”, mostrando
de esa manera la falta de relación entre norma y hecho58 necesaria en la operación lógico-jurídica -en particular, en la “subsunción en el supuesto de hecho”-, que, según la tradición del positivismo, es la única a la que habría podido referirse el término “aplicación”.
Claro que para ello, utiliza nuevamente su concepto muy estricto de “aplicación” en virtud del cual “aplicar” un ley se refiere únicamente a la operación de decidir acerca de un caso concreto “subsumiéndolo” en los conceptos
abstractos contenidos en la norma. De ahí que por esa ausencia del supuesto
de hecho, afirme que el control de constitucionalidad de la actividad estatal
no podría consistir en una “aplicación” -en el sentido judicial de la palabrade las normas constitucionales a los contenidos de dicha actividad y que, a
menos que se incurriera en un evidente “abuso de las formas”, la garantía de
constitucionalidad de la actuación del Estado no podría configurarse como
actividad jurisdiccional.59
Señala además, que con la concepción jerárquica del orden jurídico, las
cuestiones más difíciles de resolver y de mayor trascendencia práctica que
son aquellas que se presentan dentro de los mismos preceptos legales formulados en la Constitución, seguían sin resolverse ya que “en ese caso no existe
la posibilidad de fingir una gradación de normas, y, por consiguiente, cuando
un precepto legal de los contenidos en la Constitución determina algo distinto que otro de los preceptos de la misma [...], la colisión no puede resolverse
con ayuda de una ´jerarquía de normas`”.60 Para él, por el contrario, debe
concebirse en términos políticos y atribuir su competencia a órganos comprometidos y responsables políticamente.
La estructura de las fórmulas constitucionales de principio las atribuye así
al campo de la utilización o gestión “política”, irremediablemente incompatible con la naturaleza de las funciones que se consideran auténticamente judiciales desde el positivismo. Esta circunstancia no sólo derivaría del carácter
58
Op. cit., pág. 85.
59
“cuando la ‘norma’ es tan amplia y vacía que no resulta ya posible una subsunción concreta, o cuando sólo existe una
indicación de competencia, en esa misma medida se pierde, con la norma justiciable, el fundamento para una
solución de tipo judicial.” (Op. cit., pág. 81, nota 58).
60
Op. cit., pág. 87.
Direito e Democracia
229
impreciso y no rígido de los principios y, por tanto, del carácter inevitablemente creativo ínsito de la determinación de su significado, sino también, y
sobre todo, de su pretensión de generar adhesión y participación en la concepción “política” de la que son expresión.61
Por último, en apoyo de su idea Schmitt desarrolla una línea de argumentación con la finalidad de demostrar que en las resoluciones del Tribunal Constitucional el componente decisionista es el determinante a diferencia de lo
que ocurre en las sentencias judiciales. Schmitt admitie que en toda sentencia judicial hay un “componente decisionista”, pues la resolución del caso
concreto no puede derivarse por completo de la norma general, pero en las
decisiones que ponen fin a la discusión acerca de las interpretaciones de los
preceptos legales dudosos contenidos en la Constitución, este elemento
decisionista no es sólo un componente, sino el “sentido y objeto” de la decisión.62 Por lo tanto, cuando el Tribunal Constitucional fija el sentido de una
disposición constitucional de contenido impreciso el componente normativo desaparece quedando únicamente el componente decisionista de poner
fin a la discusión.63
Lo que Schmitt quiere poner de manifiesto es que la sustancia del poder
del Tribunal Constitucional consiste en la facultad de adoptar una decisión
que ponga fin a la controversia. El Tribunal tiene la facultad de decidir en
último extremo, de adoptar una decisión que no puede ya ser puesta en cuestión. Es esa facultad, y no la calidad de sus argumentos, lo que fundamenta sus
decisiones. Por ello, para él, el Tribunal Consitucional no pone fin a la discusión porque sea el “máximo experto”64 en derecho constitucional y sus argumentos sean los más fundados y sólidos, sino porque tiene la facultad de decidir en última instancia el contenido “de una ley formulada en la Constitución, y como consecuencia esto significa una determinación del contenido
legal: es decir, legislación, y hasta legislación constitucional, pero no Justicia.”65
61
Zagrebelsky, op. cit., pág. 127, nota 7, califica a estas argumentaciones de Schmitt como:”anticipadoras acerca del tipo
de problemas que toda jurisdicción constitucional actual debe afrontar, ligados, por lo general, a la necesidad de
evaluar la validez de las leyes”.
62
Op. cit., pp.90-92.
63
“podemos decir que la decisión, es como tal, sentido y objeto de la sentencia, y que su valor no radica en una
argumentación aplastante, sino en la autoritaria eliminación de la duda...” (Op. cit., pág. 91).
64
Op. cit., pág. 90.
65
Op. cit., pág. 80.
230
Direito e Democracia
El corolario de todas estas argumentaciones es que cuando el Tribunal
Constitucional determina el contenido impreciso o dudoso de una disposición constitucional, está realizando una “interpretación auténtica de la misma”. La operación del Tribunal Constitucional consistente en determinar
autoritariamente el contenido dudoso e impreciso de una norma constitucional, es pues para Schmitt, legislación y no jurisdicción como pretende Kelsen.66
Por ello agrega que, cuando se llega a considerar que la misión de un tribunal
de justicia constitucional consiste en resolver de modo indiscutible las dudas
referentes a un precepto constitucional, la tarea de dicho tribunal no sólo ya
no es hacer justicia, sino que constituye una “turbia asociación de legislación
y labor de asesoramiento.”67 Opción que además presenta para él dos dificultades previas, por un lado el definir quién decide qué se entiende por litigio
constitucional ya que si fuera el propio tribunal “el protector se convertiría
en dominador de la Constitución”;68 y por otro el determinar quiénes eventualmente podrán ser parte en ese litigio. En relación a esta última cuestión
nuevamente da una solución restrictiva y excluyente, al afirmar que el admitir como partes a los más variados grupos sociales, daría lugar a una concepción pluralista del Estado, en virtud de la cual la Constitución pasaría de ser
“una decisión política del titular del poder legislativo”, a ser un sistema de
derechos contractualmente adquiridos.69
En tal caso, los diversos grupos sociales tenderían a reclamar el derecho al
ejercicio del poder político que surge de la Constitución, por haber sido ellos
quienes la han llevado a término, provocando de esa manera la fragmentación pluralista del Estado.70 Situación, a la que ve más acorde con una sociedad estamental propia de la Edad Media que con la situación que atravesaba
el Reich alemán de esa época, cuya Constitución “afirma la idea democrática
66
Op. cit., pp.89-90.
67
Op. cit., pág. 96. Llegados a este punto, nuevamente se referirá a la independencia de los jueces, afirmando que:”La
tendencia de los juristas profesionales que integran un Tribunal a mantenerse dentro del marco concreto de la
Justicia no debe considerarse como signo de una mera precaución política o como mezquindad de subalterno, ni
debe tildarse por esa razón como un acto reprobable, psicológica o sociológicamente. Con ello más bien se demuestra
solamente que es improcedente atribuir a la Justicia ciertas funciones que rebasan el ámbito de una subsunción real,
es decir, que traspasan las fronteras establecidas por la sujeción a normas de contenido preciso.”
68
Op. cit., pág. 101.
69
“Cuando el Estado no se considera como una unidad hermética (ya sea por domino de un monarca o de un grupo
imperante, ya sea por la homogeneidad de la nación, unificada en sí misma), descansa de manera dualista o acaso
pluralista sobre un convenio o compromiso de varias partes.” (Op. cit., pág. 111).
70
Op. cit., pág. 111 y sig. En este punto nuevamente se distanció de Kelsen, afirmando que este último negaba con
“desenfado” esta situación al calificar al Estado parlamentario como un compromiso, negación que tendría origen en
la típica confusión liberal entre liberalismo y democracia. Cfr. op. cit., pág. 114, nota 88.
Direito e Democracia
231
de la unidad homogénea e indivisible de todo el pueblo alemán, que, en virtud de su poder constituyente, se ha dado a sí mismo esta Constitución mediante una decisión política positiva, es decir, mediante un acto unilateral.”71
Por esto último, dice que quienes intentaran ver en la Constitución de
Weimar un contrato, o algo de similares características, estarían vulnerando
su espíritu; en cambio quienes hubieran comprendido que se trataba de una
decisión política del pueblo alemán unificado como titular del poder constituyente, en virtud del cual el Reich alemán era una democracia constitucional, podrían ver que la cuestión relativa al protector de la Constitución hubiera podido resolverse de otra manera que mediante una “ficticia
judicialidad”.72
A esta altura ya se puede advertir porqué en la segunda parte de La defensa
de la Constitución tampoco reconoce en el legislador al auténtico defensor de
la misma, a pesar de que el argumento que utilizó con mayor insistencia para
descalificar a la jurisdicción como protectora de la Constitución es que en tal
caso se estaría aceptando que realice tareas legislativas.
Para Schmitt conspiraba contra la unidad del Reich alemán, la “neutralidad” liberal característica del “disolvente Estado de partidos de coalición lábil”73 que caracterizaba al sistema parlamentario de aquél entonces, en el que
los partidos políticos constituían estructuras fuertes que representan clases e
intereses diversos, y que lo transforman en un Estado pluralista.
Las crisis del parlamentarismo y de la representación las asocia con la
emergencia de una ciudadanía ampliada a los sectores populares y de los consiguientes partidos de masas. Estos últimos habían acabado para él, con la
discusión abierta y la competencia de argumentos, ya que en la nueva democracia de partidos la verdadera formación de políticas y leyes no se hace públicamente, sino desde una u otra comisión y conforme a las decisiones y
arreglos de las cúpulas partidarias.
Todos esos intereses contrapuestos en el Parlamento impedirían “formar
una voluntad política e instituir un Gobierno capaz de gobernar”. Esto implica que si se acepta que la Constitución funcione como una regla de juego para
71
Op. cit., pág. 113, la negrita es nuestra. Aquí se advierte claramente como volvió sobre sus conceptos de la Teoría de la
Constitución.
72
Op. cit., pág. 124.
73
Op. cit., pág 167.
232
Direito e Democracia
la lucha entre partidos políticos, la unidad política desaparecería porque no
se trataría de otra cosa que alianzas y compromisos entre ellos, por lo que
surge la necesidad de restablecer la unidad política, es decir la situación normal. Así a lo largo de su razonamiento opone al “parlamentarismo liberal” el
“presidencialismo democrático” mediante las antinomias: votación- aclamación, pluralismo- unidad; y al “pluralismo” el “Estado total”.
Vemos que en la concepción de Schmitt es esencial para la democracia,
entendida como la unidad e identidad de un pueblo, el defender la homogeneidad “que le es propia y aniquilar las diferencias que la amenazan”. Por ello,
afirma que el órgano legislativo no sólo resulta un imposible defensor de la
Constitución, sino que es el propio generador de esa necesidad de defensa de
la misma. Por ello, planteó la importancia de recrear la forma de gobierno y
resuelve que debe relegarse al Parlamento y hacer del Presidente del Reich el
defensor de la Constitución.74
A esa conclusión llega luego de analizar y descartar una serie de medidas
que califica como “remedios y reactivos”, tales como la adopción de una Constitución económica como la soviética o el establecimiento de incompatibilidades entre cargos parlamentarios e intereses económicos.
El carácter democrático del Presidente del Reich, deviene así de la legitimidad plebiscitaria, ya que en la unidad e identidad del propio pueblo alemán
se encontra la única fuente y el único límite del poder presidencial, estableciendo así una vinculación directa entre el Presidente y el pueblo considerado como un todo. Esa vinculación la derivó de dos tipos de consideraciones:
por un lado, porque es elegido por medio de sufragio directo; por otro lado,
porque determinadas facultades suyas, como la de disolver el Parlamento o la
de promover un plebiscito, las entiende como formas de “apelar al pueblo”.75
De este modo, el Presidente del Reich es considerado por Schmitt como
el punto de referencia que sirve para canalizar la expresión de la voluntad
popular en un sentido plebiscitario: como manifestación de aprobación o repulsa frente a una determinada propuesta que el Presidente es el encargado
de formular.
74
“La necesidad de instituciones estables y de un contrapeso al Parlamento representa en la Alemania actual un problema de
naturaleza distinta que anteriormente el control del monarca. Ello puede aplicarse tanto al derecho de control general,
difuso, de los jueces, como al control concentrado en una sola instancia.[...] Esto significaría algo apenas imaginable
desde el punto de vista democrático: trasladar tales funciones a la aristocracia de la toga” (op. cit., pág. 245).
75
Op.cit., pág. 250.
Direito e Democracia
233
Una vez equiparado el Estado democrático con la unidad política de un
pueblo, afirma que no puede existir más que una voluntad política y que para
defenderla, el soberano, es decir el que decide, debe distinguir al amigo del
enemigo, tanto dentro como fuera del Estado. Es a partir de la relación con
ese enemigo virtual, que cobra significado para él la defensa de la Constitución.
Schmitt lo explica señalando una serie de mecanismos cuyo objetivo es
garantizar la independencia de los diversos órganos estatales, estos mecanismos consisten en un conjunto de “incompatibilidades” e “inmunidades”.76
Ahora bien, el sentido de dicha independencia es diferente en unos casos y
en otros. En el caso de determinados órganos -como los jueces-, los mecanismos garantes de la independencia tienden a evitar la formación de una
voluntad política o que en sus decisiones influyan los grupos políticos. En
otros supuestos, de lo que se trata es de garantizar la formación de una voluntad política fuerte por encima de las diferencias entre partidos y teniendo como única referencia la unidad política en su conjunto.77 Por ello afirma que los mecanismos de garantía de la independencia del Presidente del
Reich -elección realizada por todo el pueblo, mandato de siete años y trabas
que se oponen a su revocación- son del tipo de los que tienden a asegurar la
formación de una voluntad política fuerte por encima de las que considera
“tendencias disgregadoras” de los partidos y grupos sociales organizados. Al
ser el presidente, el órgano que para él puede establecer una comunicación
más directa con el titular del poder constituyente a la cual ve materializada
en la aclamación del pueblo, lo convierte en el verdadero “guardián de la
Constitución”.78
Sin embargo, su defensa de la Constitución no consiste -como en el caso
de Kelsen- en controlar la constitucionalidad de las leyes, sino que el Presidente es una instancia “protectora y garante del sistema constitucional y del
funcionamiento adecuado de las instancias supremas del Reich”. La defensa
de la Constitución consiste, entonces, en la preservación de la unidad política, y ello implica mantener la unidad del Estado frente a la disgregación partidista e impedir que los enemigos instrumentalizen la Constitución para sus
propósitos.
76
Op. cit. , pág. 238 y sig.
77
Op.cit., pp. 245-248.
78
Op.cit., pp. 249-251.
234
Direito e Democracia
El desarrollo de su planteo lo hace a partir de una interpretación del artículo 48 de la Constitución de Weimar79 y tomando como base la teoría del
pouvoir neutre, intermédiaire y régulateur de Benjamin Constant,80 por la que
identifica los “poderes excepcionales” del presidente del Reich con la función de “defensor de la Constitución”. Tales poderes excepcionales estan para
él, constituidos por una serie de prorrogativas y atribuciones del Jefe de Estado, creadas como elementos y posibilidades de intervención en su calidad de
pouvoir neutre, a saber: posición privilegiada del jefe de Estado, refrendo y
promulgación de las leyes, prerrogativa de indulto, nombramiento de ministros y funcionarios, etc.
Según él, la Constitución de Weimar al establecer un Estado parlamentario representativo procura dar al Presidente del Reich una suma de atribuciones de ese tipo, que lo colocaran como un auténtico “poder neutral, mediador, regulador y tutelar”81 dentro de la clásica división de poderes, como “un
cierto centro en la Constitución” frente a las antítesis sociales y económicas
de la sociedad, cuya actividad se produciría activamente sólo en casos de necesidad. Este poder neutro sería el llamado a constituir el “eficaz remedio contra
la desintegración automática propia del estado pluralista”, ya que en este último cuanto más numerosas fueran las elecciones colectivas ya sea por referéndum, en el Consejo del Reich, en los Consejos obreros, etc., mayor sería la
necesidad de disponer “de un punto fijo, al cual concurran todos los hilos,
ideológicamente por lo menos.”82
79
Este artículo, que era aquél en el que se había apoyado el canciller Brüning para disolver el Parlamento, decía: “Cuando
un Territorio no cumple con los deberes que le imponen la Constitución o las leyes del Reich, el Presidente del Reich
puede obligarle a ello con la ayuda de la fuerza armada. Cuando en el Reich alemán el orden y la seguridad públicos
estén considerablemente alterados o amenazados, el presidente del Reich puede adoptar las medidas necesarias para
el restablecimiento de la seguridad y el orden públicos, incluso con ayuda de la fuerza armada en caso necesario. A
este efecto, puede suspender temporalmente, en todo o en parte, los derechos fundamentales consignados en los
artículos 114, 115, 117, 118, 123, 124 y 153 [se trataba de la libertad personal, inviolabilidad del domicilio, secreto de
correspondencia, libertad de opinión, libertad de reunión, libertad de asociación y derecho de propiedad respectivamente]. De todas las medias que adopte con arreglo a los párrafos 1.º y 2.º de este artículo, el Presidente del Reich
deberá dar conocimiento inmediatamente al Parlamento. A requerimiento de éste, dichas medidas quedarán sin
efecto. El gobierno de un Territorio podrá aplicar provisionalmente las medidas expresadas en el párrafo 2.º de este
artículo cuando el retraso en adoptarlas implique peligro. Tales medidas quedarán sin efecto a instancia del Presidente del Reich o del Parlamento. Los pormenores serán regulados por una ley del Reich.” Cfr. G. Gasió, op.cit., pág.
XXVI, nota 36.
80
“Tanto en el orden constitucional como en la teoría política es esta doctrina de máximo interés. Descansa sobre una
acepción política, que reconoce claramente la posición del rey o del presidente del Estado en el Estado constitucional, y la expresa en una fórmula certera.” (Schmitt, La defensa..., op. cit., pp. 215-216).
81
Op. cit., pág. 225.
82
Op. cit., pág. 221.
Direito e Democracia
235
LA RESPUESTA KELSENIANA
En su obra ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución?, Hans Kelsen contestó a Schmitt diciendo que su concepción de la jurisdicción como mera
aplicación no controvertida de la regla al supuesto de hecho es una caricatura, un fantoche que ningún jurista conocedor de la naturaleza actual de la
jurisdicción puede tomar en serio y que parece creada adrede por su antagonista para facilitar su función polémica específica: la destrucción de las
premisas de un posible control judicial sobre la constitucionalidad de las leyes.
Señala Kelsen que a tal fin, el razonamiento de Schmitt parte del presupuesto erróneo de que existe una contradicción esencial entre la función jurisdiccional y las funciones políticas, y que en especial la decisión acerca de la
constitucionalidad de las leyes y la anulación de leyes inconstitucionales son
actos políticos, a partir de lo cual concluye que tal actividad no sería justicia.
Recuerda además, que quienes como en su caso defendieron la instauración de
un Tribunal Constitucional, nunca habían negado que el mismo tiene un carácter político en una medida aún mucho mayor que el resto de los tribunales,
ni habían desconocido el significado político de sus sentencias. Agrega también que cuando se califica a un conflicto como “no arbitrable” o político, no es
porque haya algo en su naturaleza que determine tal condición y por lo tanto lo
convierta en no justiciable, sino que una de las partes o ambas no quieren por
algún motivo que sea sometido a una instancia “objetiva”.83
Para Kelsen, Schmitt cae en el error de considerar al Parlamento como el
único órgano creador de derecho. Por ello concluye diciendo que la concepción de Schmitt:
es falsa porque presupone que el proceso de ejercicio del poder se
remata en el proceso legislativo. No se ve, o no se quiere ver, que
el ejercicio del poder encuentra su muy esencial continuidad e
incluso hasta su efectiva iniciación en la jurisdicción, no menos
que en la otra rama del ejecutivo, cual es la Administración.[...]
todo conflicto jurídico es, por cierto, un conflicto de intereses, es
decir, un conflicto de poder; toda disputa jurídica es consecuentemente una controversia política, y todo conflicto que sea caracterizado como conflicto político o de intereses o de poder puede ser resuelto como controversia jurídica 84
83
H. Kelsen, ¿Quién debe ser el defensor de la constitución?, pág. 20.
84
Op. cit., pp. 18-21.
236
Direito e Democracia
Por otro lado, en relación a la objeción de Schmitt según la cuál el control
abstracto de normas no constituye una genuina aplicación de normas, Kelsen
replica que el objeto del control no es el contenido de una norma
problematizada, sino la constitucionalidad de su producción: “El hecho que
en las decisiones sobre la constitucionalidad de una ley se subsume bajo la
norma que representa la Constitución, no es la norma [...], sino la producción
de la norma”.85
Sin embargo, sus argumentos más importantes se situan en el terreno de
las concepciones políticas que lo separan de Schmitt, ya que tal como vimos,
ante la crisis del sistema jurídico-político de la Constitución de Weimar, mientras Kelsen busca la conciliación de intereses en un Estado parlamentario
controlado jurisdiccionalmente,86 Schmitt reclama un líder político que distinga al amigo del enemigo y adopte decisiones en el Estado total. Por ello en
este trabajo se dedica sobre todo a defender a la Constitución del defensor
propuesto por Schmitt.87
Comenza por recordar que “defensor de la Constitución” significa, un órgano cuya función es defender la Constitución contra las violaciones del Estado subordinado directamente a la misma; y que la función política de la
Constitución es la de poner límites jurídicos al ejercicio del poder, por lo que
concluye que si algo es indudable es que ninguna otra instancia es menos
idónea para tal función que aquella, precisamente, a la que la Constitución
confiere el ejercicio total o parcial del poder y que por ello, tiene en primer
lugar “la ocasión jurídica y el impulso político para violarla.”88 Quienes por el
contrario sostienen que la garantía de la Constitución es una tarea del Jefe de
Estado, sólo estan disfrazando su inexplicable y verdadero objetivo político
que consiste en impedir las garantías efectivas de la Constitución. Señala que
esta última situación, en general no puede ser vista claramente porque se la
oculta mediante la ficción de un interés general o de una unidad de intereses,
85
Op. cit. , pág. 25.
86
Cfr. C. Herrera, “La polémica Schmitt- Kelsen sobre el guardián de la Constitución”, Revista de Estudios Políticos (Nueva
Época), Nº 86, octubre-diciembre de 1994, pp. 201-202.
87
“Como precisamente en los casos más importantes de vulneración de la Constitución el Parlamento y el gobierno son
partidos en pugna, lo recomendable para dirimir esta disputa es recurrir a una tercera instancia que esté fuera de esa
oposición y que de ningún modo esté implicada ella misma en el ejercicio del poder que la Constitución distribuye
en lo esencial entre Parlamento y Gobierno. El que esta instancia obtenga por esta vía un cierto poder, es inevitable.
Pero se da una gran diferencia entre dotar a un órgano del Estado de un poder que se reduce al poder de control
institucional, o reforzar aún más el poder de uno de los dos principales portadores del poder del Estado, asignándole
además la función de control constitucional” ( Kelsen, La defensa..., op. cit., pág. 54).
88
Op. cit., pág. 5.
Direito e Democracia
237
que es la “típica ficción” de la que se echa mano “cuando se trabaja con la
´unidad` de la ´voluntad` del Estado, o con la ´totalidad` de lo colectivo,
en un sentido distinto al puramente formal, con el fin de justificar una determinada configuración del orden estatal.”89 Un ejemplo de esto es el referéndum, el cuál constituye para Schmitt una garantía de la expresión del pueblo
como unidad, mientras que para Kelsen en el -mejor de los casos- sólo constituye la voluntad de una mayoría.
Concluye señalando que la afirmación de Schmitt, según la cual las amenazas a la Constitución provienen solamente del poder legislativo, es absolutamente injustificada ya que “está en contradicción directa con los hechos”90,
recondándole a su oponente que el Tribunal austríaco a través de su jurisprudencia había entrado en un conflicto con el gobierno que prácticamente puso
en peligro su existencia; y que en relación a Weimar, no se podían “cerrar los
ojos” frente a la relevante expansión legislativa que tenía lugar cuando el
“derecho del Gobierno a reglamentar toma[ba] el lugar del derecho legislativo del
Parlamento.”91
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ESTEVEZ ARAUJO, José E., La Constitución como proceso y la desobediencia civil,
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89
Op. cit., pág. 43.
90
Op. cit., pág. 74.
91
Op. cit., pp. 74 y 53.
238
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ZAGREBELSKY, Gustavo, El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia., Madrid, Trotta,
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Direito e Democracia
239
240
Direito e Democracia
Documento Histórico
Declaração de princípios sobre a
tolerância proclamada e firmada
em 16-11-1995 - UNESCO1
Os Estados membros da Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura, congregados em Paris, por motivo da 28 Reunião da
Conferência Geral, de 25 de outubro a 16 de novembro de 1995,
Preâmbulo
El carácter político del control de constitucionalidad
Tendo presente que a Carta das Nações Unidas declara “ nós, os povos das
Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra... a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no
valor da pessoa humana ... e com tais finalidades a praticar a tolerância e a
conviver em paz como bons vizinhos”,
Recordando que no Preâmbulo da Constituição da UNESCO, aprovada em
16 de novembro de 1945, se afirma que a “paz deve basear-se na solidariedade
intelectual e moral da humanidade”,
Recordando ainda que na Declaração Universal de Direitos Humanos se
afirma que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião” ( artigo 18), “de opinião e de expressão” ( artigo 19) e que a
educação “favorecerá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as
nações e todos os grupos étnicos ou religiosos” ( artigo 26),
Tomando nota dos seguintes instrumentos internacionais pertinentes:
1
Tradução do original espanhol por César Augusto Baldi
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.241-247241
- o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,
- o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
- a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas
de discriminação racial,
- a Convenção para prevenção e sanção do delito de genocídio,
- a Convenção sobre os direitos da criança,
- a Convenção de 1951 sobre o estatuto de refugiados, seu protocolo
de 1967 e seus instrumentos regionais,
- a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher,
- a Convenção contra a tortura e outros tratos ou penas cruéis,
inumanos ou degradantes,
- a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância
e de discriminação fundadas na religião ou nas crenças,
- a Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias
nacionais ou étnicas, religiosas e lingüísticas,
- a Declaração sobre as medidas para eliminar o terrorismo internacional,
- a Declaração e Programa de Ação de Viena da Conferência Mundial de Direitos Humanos,
- a Declaração de Copenhagen sobre o desenvolvimento social e o Programa de Ação da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social,
- a Declaração sobre a Raça e os preconceitos raciais ( da UNESCO),
- a Convenção e a recomendação relativas à luta contra as discriminações na esfera de ensino ( da UNESCO),
Tendo presentes os objetivos do Terceiro Decênio da luta contra o racismo
e a discriminação racial, o Decênio das Nações Unidas para a Educação na
esfera dos Direitos Humanos e o Decênio Internacional das Populações Indígenas do Mundo,
242
Direito e Democracia
Tendo em conta as recomendações das conferências regionais organizadas
no marco do Ano das Nações Unidas para a Tolerância de conformidade com
a Resolução 27c/5.14 da Conferência Geral da UNESCO, assim como as conclusões e recomendações de outras conferências e reuniões organizadas pelos
Estados-membros no marco do programa do Ano das Nações Unidas para a
Tolerância,
Alarmada pela intensificação atual dos atos de intolerância, violência, terrorismo, xenofobia, nacionalismo agressivo, racismo, anti-semitismo, exclusão,
marginalização e discriminação perpetrados contra minorias nacionais, étnicas, religiosas e lingüísticas, refugiados, trabalhadores migrantes, imigrantes e
grupos vulneráveis da sociedade, assim como por atos de violência e intimidação contra pessoas que exercem seu direito de livre opinião e expressão – todos
os quais constituem ameaças para a consolidação da paz e da democracia no
plano nacional e internacional e obstáculos para o desenvolvimento,
Pondo em relevo que corresponde aos Estados membros desenvolver e fomentar o respeito dos direitos humanos e as liberdades fundamentais de todos, sem distinções por raça, gênero, língua, origem nacional, religião ou incapacidade, assim como o combate contra a intolerância,
Adotam e proclamam solenemente a seguinte Declaração de Princípios
sobre a tolerância
Resolvidos a adotar todas as medidas positivas necessárias para fomentar a
tolerância em nossas sociedades, por ser esta não somente um apreciado princípio, mas também uma necessidade para a paz e o progresso econômico e
social de todos os povos,
Declaramos o que segue:
Artigo 1º.
Significado da tolerância.
1.1. A tolerância consiste no respeito, aceitação e apreço da rica diversidade das culturas de nosso mundo, de nossas formas de respeito e meios
de ser humanos. A fomentam o conhecimento, a atitude de abertura, a
comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. A tolerância consiste na harmonia na diferença. Não só é um
dever moral, mas também uma exigência política e jurídica. A tolerância, a virtude que faz possível a paz, contribui a substituir a cultura de
guerra pela cultura de paz.
Direito e Democracia
243
1.2. Tolerância não é o mesmo que concessão, condescendência ou indulgência. Antes de tudo, tolerância é uma atitude ativa de reconhecimento dos direitos humanos universais e liberdades fundamentais dos
demais. Em nenhum caso pode ser utilizada para justificar a quebra
destes valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, grupos e Estados.
1.3. A tolerância é a responsabilidade que sustenta os direitos humanos, o
pluralismo ( compreendido o pluralismo cultural), a democracia e o
Estado de Direito. Supõe o rechaço do dogmatismo e do absolutismo e
afirma as normas estabelecidas pelos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos.
1.4. Conforme ao respeito dos direitos humanos, respeitar a tolerância não
significa tolerar a injustiça social nem renunciar às convicções pessoais ou contemporizá-las. Significa que toda pessoa é livre para aderir a
suas próprias convicções e aceita que os demais adiram às suas. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, naturalmente caracterizados
pela diversidade de seu aspecto, sua situação, sua forma de expressarse, seu comportamento e seus valores, têm direito a viver em paz e a ser
como são. Também significa que ninguém há de impor suas opiniões
aos demais.
Artigo 2º
A função do Estado
2.1. No âmbito estatal, a tolerância exige justiça e imparcialidade na legislação, na aplicação da lei e no exercício dos poderes judicial e administrativo. Exige também que toda pessoa possa desfrutar de oportunidades econômicas e sociais sem nenhuma discriminação. A exclusão e a
marginalização podem conduzir à frustração, à hostilidade e ao fanatismo.
2.2. A fim de instaurar uma sociedade mais tolerante, os Estados devem
ratificar as convenções internacionais existentes em matéria de direitos humanos e, quando seja necessário, elaborar uma nova legislação,
que garanta a igualdade de trato e oportunidades a todos os grupos e
indivíduos da sociedade.
2.3. Para que reine a harmonia internacional, é essencial que os indivíduos, as comunidades e as nações aceitem e respeitem o caráter
multicultural da família humana. Sem tolerância não pode haver paz,
e sem paz não pode haver desenvolvimento nem democracia.
244
Direito e Democracia
2.4. A intolerância pode revestir a forma da marginalização de grupos vulneráveis e de sua exclusão da participação social e política, assim como
da violência e discriminação contra eles. Como confirma o Artigo 1.2
da Declaração sobre a raça e preconceitos raciais, “todos os indivíduos
e os grupos têm direito a serem diferentes”.
Artigo 3°
Dimensões sociais.
3.1. No mundo moderno, a tolerância é mais essencial que nunca. Nossa
época se caracteriza pela mundialização da economia e uma aceleração da mobilidade, a comunicação, a integração e a interdependência;
a grande amplitude das migrações e o deslocamento de populações; a
urbanização e a transformação dos modelos sociais. O mundo se caracteriza por sua diversidade, a intensificação da intolerância e dos
conflitos, o que representa uma ameaça potencial para todas as regiões. Esta ameaça é universal e não se circunscreve a um país em particular.
3.2. A tolerância é necessária entre os indivíduos, assim como dentro da
família e da comunidade. O fomento da tolerância e a inculcação de
atitudes de abertura, escuta recíproca e solidariedade hão de ter lugar
nas escolas e universidades, mediante a educação extra-escolar e no
lar e no lugar de trabalho. Os meios de comunicação podem desempenhar uma função construtiva, facilitando um diálogo e um debate livres e abertos, difundindo os valores da tolerância e pondo em relevo o
perigo que representa a indiferença à ascensão de grupos e ideologias
intolerantes.
3.3. Como se afirma na Declaração da UNESCO sobre a raça e os preconceitos raciais, é preciso adotar medidas, onde façam falta, para garantir
a igualdade em dignidade e direitos dos indivíduos e grupos humanos.
A este respeito se deve prestar especial atenção aos grupos vulneráveis
socialmente desfavorecidos, para protegê-los com as leis e medidas sociais em vigor, especialmente em matéria de habitação, de emprego e
de saúde; respeitar a autenticidade de sua cultura e seus valores e facilitar sua promoção e integração social e profissional, em particular
mediante a educação.
3.4. A fim de coordenar a resposta da comunidade internacional a este desafio universal, se devem realizar e criar, respectivamente, estudos e
redes científicos apropriados, que compreendam a análise, mediante
Direito e Democracia
245
as ciências sociais, das causas fundamentais e das medidas preventivas
eficazes, assim como a investigação e a observação destinadas a prestar
apoio aos Estados-membros em matéria de formulação de políticas e
ação normativa.
Artigo 4º
Educação.
4.1. A educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância. A primeira
etapa da educação para a tolerância consiste em ensinar às pessoas os
direitos e liberdades que compartilham, para que possam ser respeitados e em fomentar, ainda, a vontade de proteger os dos demais.
4.2. A educação para a tolerância deve ser considerada um imperativo urgente; por isso, é necessário fomentar métodos sistemáticos e racionais
de ensino da tolerância, que abordem os motivos culturais, sociais, econômicos, políticos e religiosos da intolerância, ou seja, as raízes principais da violência e da exclusão. As políticas e os programas educativos
devem contribuir ao desenvolvimento do entendimento, da solidariedade e da tolerância entre os indivíduos, e entre os grupos étnicos, sociais, culturais, religiosos e lingüísticos, assim como entre as nações.
4.3. A educação para a tolerância deve ter por objetivo resistir às influências que conduzem ao temor e à exclusão dos demais, e deve ajudar os
jovens a desenvolver suas capacidades de juízo independente, pensamento crítico e raciocínio ético.
4.4. Nos comprometemos a apoiar e executar programas de investigação
sobre ciências sociais e de educação para a tolerância, os direitos humanos e a não-violência. Para isto, fará falta conceder uma atenção
especial ao melhoramento da formação do corpo docente, dos planos
de estudo, do conteúdo dos manuais e dos cursos e de outros materiais
pedagógicos, como as novas tecnologias da educação, a fim de formar
cidadãos atentos aos demais e responsáveis, abertos a outras culturas,
capazes de apreciar o valor da liberdade, respeitadores da dignidade e
das diferenças dos seres humanos e capazes de evitar os conflitos ou de
resolvê-los por meios não-violentos.
Artigo 5º
Compromisso para a ação.
Nos comprometemos a fomentar a tolerância e a não-violência medi-
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Direito e Democracia
ante programas e instituições nos âmbitos da educação, ciência, cultura e comunicação.
Artigo 6º
Dia internacional para a tolerância.
A fim de fazer um chamamento à opinião pública, pôr em relevo os
perigos da intolerância e reafirmar nosso apoio e ação em prol do fomento da tolerância e da educação em favor desta, proclamamos solenemente Dia Internacional para a Tolerância o dia 16 de novembro de
cada ano.
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Normas para publicação
I. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS
1. Os artigos devem ser apresentados em disquete, preferencialmente
em Windows Word 6.0 ou superior, acompanhados de uma cópia
impressa.
2. O texto dos artigos deverá ter de 10 a 20 laudas, em média.
3. Um resumo de seis a dez linhas, em língua inglesa e em língua portuguesa, deverá introduzir o artigo, juntamente com palavras-chave indicativas de seu conteúdo.
4. A apresentação do artigo deverá conter: identificação, com título;
subtítulo ( se houver); nome do(s) autor(es); maior titulação acadêmica ou outra, cargo atual e instituição onde exerce as funções;
telefone e endereço; e-mail, se for o caso.
5. As citações, referências bibliográficas e notas de rodapé deverão
seguir, obrigatoriamente, as normas da ABNT. As citações, no texto, deverão ser feitas em língua portuguesa, reservando-se as citações em língua estrangeira para as notas de rodapé, se for o caso.
Excepcionalmente, a critério do Conselho Editorial e dos editores,
serão aceitos artigos em espanhol ou citações, no texto, nesta língua, por ser ela comum aos países do Mercosul.
6. Artigos em outra língua estrangeira poderão ser aceitos, a juízo do
Conselho Editorial e dos editores, se o autor for estrangeiro e sua
contribuição de indiscutível valor científico.
Direito e Democracia
CanoasDireito e vol.2,
n.1
Democracia
1º sem. 2001
p.249-250249
II. PUBLICAÇÃO
1. Os trabalhos remetidos para publicação serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial ou de outros consultores por este designados, de acordo com a especificidade do tema.
2. O Conselho Editorial não se responsabiliza pela devolução dos originais.
3. Havendo necessidade de alteração quanto ao conteúdo do texto,
será sugerido ao autor que as faça, para posterior publicação.
Adeqüação lingüística e copidescagem ficam a cargo dos editores,
ressalvada a alteração de conteúdo.
4. Os autores, cujos trabalhos forem publicados, receberão dois exemplares da revista e cinco separatas.
5. Os originais deverão ser enviados para:
Prof. Dr. Plauto Azevedo, Editor
Universidade Luterana do Brasil
Revista Direito e Democracia
Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 127
92.420-280 - Canoas/RS
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Impresso na Gráfica da ULBRA
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