Editorial MILTON SANTOS: UM CIENTISTA SEM FRONTEIRAS Baiano de nascimento e multinacional por reconhecimento, o que caracterizava Milton Santos (1926-2001) era o seu refinamento, a vontade de aprender sobre a vida, sua energia, generosidade e alegria contagiantes. Filho de professores primários, sempre fez referencia à sua educação rigorosa, aos bons modos que aprendeu com os pais. Formado em Direito por influência de um tio, advogado brilhante, conhecedor do latim e do grego, Milton Santos, admirador de Josué de Castro, sempre se distinguiu em matemática e filosofia. Foi editorialista do jornal A Tarde por dez anos, até 1964, onde escreveu 116 artigos que versavam sobre vários temas locais e globais. Na França, convidado por seu mestre Jean Tricart, com quem aprendeu o rigor, a disciplina, o gosto de discutir “e a capacidade de contrariar aquele que trabalha comigo”, defendeu com brilhantismo sua tese de doutorado em geografia, O Centro da Cidade de Salvador, em 1958, um clássico da Geografia, consultado hoje por profissionais de varias áreas do conhecimento. Ao voltar à Bahia, no reitorado de Edgard Santos, com o apoio da Cooperação Técnica Francesa, cria o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da Universidade da Bahia, em 1959, iniciando a pesquisa em Geografia no Estado. Nessa época, só se realizava pesquisa em Geografia no IBGE, no Rio de Janeiro, e na USP. Atraiu jovens de diversos estados do Brasil e do exterior para um ambiente de efervescência cultural e cientifica. Entre 1959 e 1964, foi diretor do Laboratório, subchefe da Casa Civil do governo federal, na Bahia, na gestão Jânio Quadros, Presidente da Comissão de Planejamento Econômico do Estado (CPE), Chefe do departamento de Geografia da Faculdade Católica de Salvador e professor concursado da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Em 1964, colhido pela longa noite do obscurantismo, parte para França, exilado por razões políticas. Apesar desse divorcio físico entre Milton Santos e a Bahia, não há um rompimento com o elo afetivo que sempre manteve com sua terra. Segundo Maria Adélia Aparecida de Souza, Milton Santos, é bom que se repita, foi exilado político. Mas, como poucos, não tira proveito disso, exerce vivamente a ética na política. Jamais se comportou como vitima do regime militar ou guardou amarguras. Ao contrario, é no exílio que constrói um pensamento teórico-crítico muito mais forte do que a construção política. Explico-me. Milton não monta no exílio o discurso heróico da volta. Conheço sobejamente o seu processo de volta e todas as dificuldades para estabelecer e, sobretudo, reingressar na vida e na universidade brasileiras! Apesar das vicissitudes, procura exercer o seu labor e construir um profundo pensamento teórico e político que o Brasil e os brasileiros, aos poucos, estão tendo de conhecer e admirar. Milton se instala não como o herói que voltou carregado nos braços do povo, mas, cautelosa e profundamente, vai se impondo como um dos principais pensadores e intelectuais brasileiros, com um pensamento e uma posição política profundos e inarredáveis. Durante o exílio, foi professor, pesquisador e consultor na Europa, África, América do Norte, América Latina, tempo em que aprofundou seus estudos em sociologia, filosofia e economia. Foi o caminho para produzir um dos seus mais importantes livros: Para uma Geografia Nova. Outras obras importantes fazem parte de sua produção: O espaço dividido, Por uma outra Globalização, Técnica espaço e tempo, A Urbanização Brasileira, Pensando o espaço do homem, Da Totalidade ao Lugar, O Espaço do Cidadão e muitos outros. Na França, o contato com Sartre, de quem incorporou a idéia do intelectual independente, distanciou-o da militância. Sabia separar o mundo da política do mundo das idéias, o que lhe deu credibilidade. Costumava dizer: “Não sou militante de coisa nenhuma, apenas das idéias”. R. Ci. méd. biol., Salvador, v. 6, n. 2, p. 141-259 mai./ago. 2007 É um dos críticos mais respeitados da chamada globalização da economia e suas conseqüências nas atividades do homem. Denominou a globalização de “globalitarismo”, numa fusão com o termo totalitarismo. Para ele, esse estado de coisas representava o fim da critica e da autocrítica. Um exemplo seria o atrelamento da economia do país às finanças: “Se estas forem mal, nada mais é possível. Nem falar, portanto, em bem estar social, cidadania, solidariedade. Será o dinheiro a única razão possível?”. Milton Santos foi um comprometido com o mundo. Inicia-nos no conceito de “aceleração contemporânea”, uma vez que pertencemos a um período técnico-científico-informacional da história. Nos últimos anos, referia-se à epistemologia da existência, ensinando-nos a perceber a diferença não apenas entre o rico e o pobre, mas entre pobre e ser humano. Estudou o espaço geográfico com maestria. Embora a técnica permanecesse como a questão central do seu trabalho, focaliza a questão da emoção. E aí surge um novo livro, trabalhado longa e cuidadosamente, a grande obra, que revela a sua forma de trabalhar com disciplina, organização, curiosidade: A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção, de 1996. Por essa obra, recebeu o Prêmio Jaboti de melhor livro de Ciências Humanas do ano de 1957. Outro projeto – a reflexão de um Geógrafo sobre a sociedade brasileira – gerou a publicação, em 2005, da obra O Brasil. Território e sociedade no inicio do século XXI. A experiência internacional lhe permitiu difundir idéias humanistas e humanitárias, que resultaram em 20 títulos de Doutor Honoris Causa de universidades do Brasil, da América Latina e da Europa. Publicou 40 livros, mais de 300 artigos em revistas cientificas em português, francês, espanhol e inglês. Fez pesquisas e conferencias em mais de 30 países da Europa, da América Latina, da África e da Ásia, nos Estados Unidos e no Canadá. Recebeu inúmeros prêmios e medalhas no Brasil e por todos os países pelos quais passou. O fechamento de sua consagração internacional, inclusive com uma obra que perpassa diversas áreas do conhecimento, veio em 1994, com o Prêmio Internacional Vautrin Lud considerado o Prêmio Nobel da Geografia. Milton Santos foi o único pesquisador não anglosaxônio a recebê-lo. Costumava dizer que, por receber esse prêmio, a mídia brasileira lhe abrira as portas. Milton Santos tinha prazer de trabalhar com jovens, levando-os a leitura e à reflexão. Sempre desprezou as leis que engessam a criatividade, leis que são feitas, geralmente, por quem não têm a prática: só o poder. Lamentou sempre o pouco espaço que aqueles com cargo de mando dão aos jovens. Seu ultimo prêmio foi o Multicultural Estadão Cultura, em junho de 2000, para o qual concorreu com inúmeras personalidades, sendo votado por milhares de brasileiros. Numa cerimônia carregada de emoção e beleza, disse: Considero a indicação do Prêmio MEC como um presente expressivo que coroa, de alguma forma, o meu trabalho intelectual. Meu desejo secreto, o desejo dos pensadores – e é difícil confessá-lo – é que o seu trabalho possa ter alguma repercussão, sobretudo quando ele ultrapassa os limites da sua própria área e da universidade. O fato de que o seu trabalho tenha uma visibilidade em camadas mais amplas da sociedade dá ao seu autor não a certeza que ele tenha o aplauso geral, mas um certo conforto de ver que o seu discurso não é um discurso fechado. Agradeço a todos que votaram em mim, aos meus amigos, e ofereço esse prêmio a todos os brasileiros que tanto esperam de seus intelectuais. Neste número, a Revista de Ciências Médicas e Biológicas homenageia Milton Santos, cidadão do mundo, um ícone para as gerações que se sucedem, particularmente para todos que se dedicam ao trabalho de pensar a ciência a serviço do homem. Maria Auxiliadora da Silva Professora Associada do Mestrado de Geografia da UFBA Drª. em Geografia pela Universidade Louis Pasteur de Strasbourg – França Vice-Diretora do Instituto de Geociências da UFBA R. Ci. méd. biol., Salvador, v. 6, n. 2, p. 141-259 mai./ago. 2007